Categorias
Sem categoria

Estado de Flow: um caso prático no futebol de seleções

Por: Nicolau Trevisani Frota

Na última Data Fifa, após assistir Brasil x Chile, me deparei com
uma fala do atacante Luiz Henrique, do Zenit, depois de sua bela
atuação, que me chamou atenção:

“Essa hora eu pensei: eu tenho que ser o Luiz Henrique que saiu de
Petrópolis. Pensei em quando jogava com meus amigos. Jogava
leve, jogava solto. Quando estava no hotel, ajoelhei e pedi a Deus
que eu pudesse ser o Luiz Henrique do Vale do Carangola: que
jogasse feliz, que ajudasse meus companheiros e que jogasse para
a minha família, que veio ao Maracanã me apoiar. Graças a Deus,
deu tudo certo. Temos que continuar com essa pegada. Só queria
ser o Luiz Henrique do Vale do Carangola, que jogasse com alegria.
Não quero perder nunca a minha alegria de jogar futebol. Sou
apaixonado, e deu tudo certo.”

Abaixo, o vídeo contendo a entrevista:

Fonte: Globoesporte

Ao assistir a entrevista — somada à ótima partida do jogador — o
conceito de estado de flow (que inclusive já refletimos em colunas
anteriores aqui no portal) me veio de forma imediata, como algo
concreto e prático. O estado de flow é um conceito da psicologia
positiva descrito por Mihály Csíkszentmihályi. Ele representa um
estado mental em que a pessoa está completamente envolvida e
absorvida em uma atividade, a ponto de perder a noção do tempo e
do ambiente ao redor. É quase como se o indivíduo estivesse
totalmente imerso no presente — no “aqui e agora”.
Para que isso
ocorra, algumas características se fazem presentes: foco total na
tarefa, clareza de objetivos, equilíbrio entre desafio e habilidade,
sensação de controle, perda da autocrítica e alteração na
percepção do tempo.

Apesar de soar, muitas vezes, como algo abstrato ou distante, o
flow se mostra muito presente e palpável no futebol de alto nível.
Na fala de Luiz Henrique, ao relembrar sua infância e a alegria
genuína de jogar com os amigos, ele descreve um estado em que o
jogo flui com naturalidade, sem a interferência de pressões externas
— torcida, adversário ou o peso de uma partida decisiva.
Ali
estavam evidentes foco total, confiança, espontaneidade e leveza.

Essa ideia também aparece no livro “FLOW (Fluir) en Fútbol”(2015), no qual Miguel Fernández Macías aponta que uma das mais
marcantes características do flow individual no futebol é quando “o
jogador se sente absorvido; ele executa ações técnico-táticas de
forma automática”.

Ao se remeter à sua infância, Luiz Henrique reconecta-se
justamente a esse estado em que o jogo acontece com leveza e
alegria, permitindo que a performance flua de forma natural.
Para
que essa condição surja, fatores do ambiente também
desempenham papel fundamental, favorecendo ou atrapalhando o
processo, como já discutimos em outro texto publicado aqui no
portal (“O que sustenta boas decisões e indica talentos no futebol”).

O ponto central é que o flow, muitas vezes tratado como algo
distante ou abstrato, é real, acessível e impacta de maneira decisiva
no rendimento de atletas no mais alto nível. O desafio de
treinadores, atletas e equipes está em criar e sustentar as
condições que permitam que esse estado emerja, potencializando a
performance de forma consistente.

Foto: Karen Fontes/AFI/Gazeta Press

Categorias
Sem categoria

A “ciência” do futebol

Por: Manuel Sérgio

O futebol, como qualquer outra modalidade desportiva é, para mim, uma das formas da motricidade humana – como é lógico! Embora a pretensa cientificidade de muitos comentadores do futebol seja proporcional à sua “desumanidade”, quero eu dizer: quanto mais falam de futebol menos humano se revela o seu discurso.

É verdade que, desde os inícios do pensamento moderno, mormente com Galileu e Descartes, o “homem” e a “ciência” sempre se constituíram como duas realidades estranhas uma à outra: a inteligência, a personalidade, os sentimentos humanos não podiam pesar-se, medir-se, quantificar-se – não eram, com toda a certeza, científicos. Demais, a ciência moderna nasce e desenvolve-se mecanicista. O universo é uma imensa máquina, composta por um enorme conjunto de máquinas cujas leis importa conhecê-las. E, por isso, Deus é o divino engenheiro, onipotente criador de um universo que pode ser estudado, matematicamente. Não é de estranhar assim que os filósofos e os cientistas de mais ampla inteligência teorizadora tenham comparado o Mundo a um relógio.

O homem-máquina de La Mettrie (1709-1751), filósofo materialista e médico que pretende ensinar que, no mundo todo, só matéria se encontra e é dessa matéria que o ser humano (e tudo) nasce e de que o ser humano é feito – La Mettrie, minucioso e irônico, não abandona o mecanicismo, apontando as leis mecânicas que regem, segundo ele, as funções do corpo de um ser vivo. Um ponto a realçar: a partir desta altura, o sábio deixa de ser o clérigo aristotélico-tomista e passa a ser um leigo, uma pessoa que sabe que não tem a verdade, mas que imparavelmente a procura, pela razão e pela reflexão e pelo método experimental. No meu modesto entender, a história das ciências, que vai de Copérnico (1473-1543) a Newton (1643 1727) é de um progresso admirável e prepara o Iluminismo e informa, claramente, a Revolução Francesa…

Não surpreende portanto que Ciência, Razão e Progresso caminhassem de mãos dadas e que, quando pela primeira vez, no século XVIII, a expressão Educação Física (que integrava a Ginástica, os Jogos e os Desportos) tenha surgido, no vocabulário científico, os exercícios ginásticos se destinassem ao homem-máquina, a um corpo-instrumento que a Razão esclarecia.

Vale a pena reler a Proposta de Lei, de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à Assembleia Nacional para a criação do INEF (Instituto Nacional de Educação Física) português, onde assim se define a Educação Física: “é uma ação intencional que o homem, devidamente dirigido, exerce sobre si mesmo, pela prática racional, sistemática dos exercícios físicos – ginástica, jogos, desportos – metódica e conscientemente executados, como complemento essencial dos restantes meios educativos e higiênicos e tendo como objetivos imediatos a saúde, beleza, força, resistência, disciplina, prontidão, espírito de solidariedade, optimismo, confiança em si, domínio de si próprio, coragem, prudência, caráter, personalidade, tornando o corpo o digno instrumento de uma vontade esclarecida”.

Como se vê, uma antropagogia, ou teoria da formação do ser humano, assente no corpo-instrumento e apontando para uma antropologia declaradamente dualista. Enfim, a dicotomia corpo-mente, sentimentos consciência, natureza-cultura emergia da educação física até meados do século XX. Muita gente que pontifica, no desporto nacional e internacional, ainda não ultrapassou, nem o mecanicismo cartesiano, nem o solo epistemológico do positivismo.

Ousaria mesmo escrever que, no futebol, há muita gente que pensa que sabe explicar o futebol, sem nunca o ter compreendido.

Compreendido? Sim, porque ao nível do humano nada escapa à ordem dos valores e das significações, mesmo como exigência do rigor metodológico.

O que eu aconselharia aos “agentes do futebol”?… Digo isto, após uma severa autocrítica (porque, à boa maneira socrática: só sei que nada sei): um corte epistemológico, em relação à pré-ciência de um senso comum que analisa o futebol, sem descontinuidade, nos problemas e na linguagem.

O curso de um conhecimento verdadeiramente científico não é linear, o seu grande objetivo é respeitar o Passado, mas construir o Futuro, o que implica pôr de lado e rejeitar muito do que a tradição nos oferece. “A exigência de objetividade, no sentido de objetivação, leva-nos necessariamente a descartar o caráter meramente acumulativo e continuísta do saber, bem como a fazer da ideia de progresso descontínuo a espinha dorsal de toda a cientificidade. Se é assim, também esse progresso precisa ser pensado em termos de ruptura” (Hilton Japiassu, Nascimento e Morte das Ciências Humanas, Francisco Alves editora, p. 145).

Ruptura, em primeiro lugar com uma organização apressada e desleixada dos clubes. Há dirigentes desportivos de exemplar amor pelos seus clubes, mas sem especialização bastante para, atualmente, organizarem um clube com alta competição, ou alto rendimento.

Já é clássica a definição de Peter F. Drucker: “Uma organização é um grupo humano composto por especialistas que trabalham numa tarefa comum (…). Uma organização é sempre especializada. Define-se pelas suas tarefas (…). Uma organização só é eficaz, se se concentrar numa tarefa. Uma orquestra sinfônica não tenta curar doentes, toca música. Um hospital cuida dos doentes, mas não procura tocar Beethoven (…).

A sociedade, a comunidade e a família, são as organizações que fazem (Sociedade Pós-Capitalista, Atual Editora, Lisboa, 2003, pp. 61/62). E, para as organizações fazerem, é imprescindível o contributo de direções competentes.

Donde, logicamente se conclui que organizar é tornar produtivos os conhecimentos. Mas, no âmbito das ciências humanas, um especialista é tanto mais eficaz quanto mais tiver em conta a complexidade humana, presente em todos os elementos que a constituem. Num treino de dominância física, o jogador de futebol (o atleta) é um ser de sentimentos.

E se ele se encontra incompatibilizado com o treinador?… E, se nesse dia o pai está gravemente doente?… E se um dos filhos ficou em casa, com febre alta?… É evidente que, assim, o treino se transforma num espaço de insanável aborrecimento e, nalguns casos, de aversão. Não passo sem sublinhar as palavras de António Damásio à revista do Expresso, de 2017/10/28: “Os humanos não têm apenas a inteligência, têm por exemplo a linguagem. E temos uma socialidade muito mais complexa do que a de outras criaturas. E os impulsos criativos. E, analisando estas respostas, vemos a ideia. A ideia forte é a de que tudo o que há de bom e de bem, tudo o que ajudou instrumentalmente a criar culturas nunca teria acontecido se não tivéssemos sentimentos. Sentimentos, ora de dor e sofrimento, ora de plenitude e prazer”. E diz mais adiante, numa entrevista superiormente conduzida por uma jornalista com dotes notórios para o jornalismo (o que nem sempre sucede) e pessoa culta, que se topa no seu infatigável interrogar: “O sentimento é a representação do imperativo homeostático”. O que é peculiar no jogador, por ser homem, é secundário e acaba por reduzir-se às necessidades primárias da tática, nos “estudos” de alguns pseudo-especialistas.

Não, eu não digo que a tática não é importante, o que eu digo é que não é essencial. Só podemos esperar respostas humanas dos jogadores, se os respeitarmos (e estudarmos) como homens. Só assim podemos fazer ciência… nas ciências humanas! Mas eu vou continuar com este tema.

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com

Categorias
Sem categoria

O que sustenta boas decisões e indica talentos no futebol

Por: Nicolau Trevisani

No último texto publicado aqui na Universidade do Futebol, discutimos como o ambiente de treino pode ser manipulado para evocar estados emocionais específicos — e como essas emoções, quando bem guiadas, impactam o comportamento tático dos atletas. Hoje, gostaria de seguir nesse fio condutor: se as emoções influenciam o comportamento, o que elas nos dizem sobre a qualidade das decisões tomadas dentro do jogo?

Mais do que a técnica, ou mesmo o conhecimento tático, a tomada de decisão é atravessada por uma condição emocional específica: a capacidade de presença “no aqui e no agora”. Aquilo que alguns chamam de flow, outros de estado ótimo. Pensando no futebol, gosto muito da ideia de “estado de jogo” trazida pelo professor Alcides Scaglia, a qual tive acesso há muitos anos, na qual ele define o estado de jogo como: “Uma suspensão momentânea da realidade comum, na qual o jogador experimenta uma imersão completa na dinâmica do jogo. Nesse estado, tudo mais parece desaparecer — restando apenas o contexto da partida e a ação situacional como foco total.”

Ou seja, trata-se de um estado em que o atleta consegue viver aquele momento de maneira tão entregue e presente que atinge uma condição de isolamento de qualquer ruído externo, vivendo o jogo e alcançando o seu melhor nível de performance.

Para entendermos melhor o estado de jogo — e sua relação com a performance — precisamos fazer uma separação importante. É muito comum associarmos bom desempenho ao prazer. Mas nem sempre o prazer significa desenvolvimento ou desempenho. O prazer pode vir de atividades lúdicas e pouco desafiadoras (o que, quando pensamos em recuperação mental da equipe, tem muito valor se bem colocadas dentro da rotina e periodização).

Mas o estado de jogo exige mais: exige engajamento, risco e exposição a contextos realmente desafiadores. Para entrar nesse estado, o atleta precisa de um equilíbrio entre o nível de desafio proposto e sua capacidade de executá-lo. Se for muito simples (como, às vezes, são as atividades muito prazerosas), não se atinge a zona de equilíbrio necessária.

Além disso, há fatores que podem facilitar o alcance desse estado ideal, como:

  1. Tarefas claras e com significado — por exemplo, uma estratégia de jogo bem definida, com funções bem estabelecidas para vencer uma partida, ou até mesmo um treino com objetivos e regras claras.
  2. Segurança emocional para errar — um ambiente que permita o erro, sem cobranças excessivas por parte de treinadores ou responsáveis.
  3. Feedbacks claros e construtivos — mesmo quando negativos.
  4. Confiança na própria leitu

Da mesma forma, a ausência desses fatores pode funcionar como bloqueadora, impedindo que o atleta atinja o estado de jogo — seja em treino ou em competição. É claro que, dependendo de cada indivíduo — sua capacidade de regulação emocional e experiências prévias — o peso desses fatores varia. Cada jogador responde de forma diferente.

A tomada de decisão, muitas vezes tratada como um processo somente racional ou ligada unicamente à inteligência tática, é cada vez mais atravessada por aspectos emocionais. Isso interfere tanto no que o jogador decide quanto em como ele interpreta o contexto em que está inserido.

Treinar ou analisar decisões também é treinar como lidar com emoções (como falamos, por exemplo, na descoberta guiada emocional), mas também é treinar a capacidade do jogador de permanecer imerso no presente — no “aqui e agora” — para então ser mais eficiente e claramente como isso irá se traduzir em desempenho no jogo.

Como scout, me interesso cada vez mais por observar não apenas os atributos físicos ou técnicos, ou como o jogador interpreta suas opções de passe, mas o estado emocional que sustenta a decisão. Qual é o comportamento do jogador quando erra? Quão focado e imerso ele permanece mesmo vencendo por 6×0? Como é sua entrega em contextos adversos? Qual seu nível de atenção em momentos de definição?

Essas questões ajudam a entender o quanto o jogador consegue se manter presente no jogo — e no estado de jogo.

Quando analisamos um jogador, tão ou mais importante do que observar aspectos tangíveis é tentar entender o que sustenta aquilo que é visível de forma objetiva. Nesse sentido, entender o estado de jogo é um excelente termômetro.

Quando conseguimos observar um jogador com alta capacidade de foco  no presente  e  imersão no jogo, podemos estar diante de um talento mais sólido para o jogo de futebol. Muitas vezes, atletas com essa capacidade — de manter-se em estado de jogo e com alto nível de foco — têm mais a contribuir com a equipe do que jogadores tecnicamente excelentes que as vezes até são capazes de encontrar algumas boas soluções na partida mas de forma menos frequentes , mas que não conseguem se manter emocionalmente conectados com o jogo.

Foto: Reuters

Categorias
Sem categoria

Os Clubes de Futebol e Modelos de Gestão

Por: Luis Filipe Chateaubriand

O notável Peter Drucker já ensinava que não são as empresas que devem ser gerenciadas, mas as Organizações em geral que precisam ser gerenciadas. Uma empresa precisa ser gerenciada, para gerar lucro. Uma organização não empresarial precisa ser gerenciada, mas para se obter credibilidade, institucionalização e, eventualmente, lucros.

Portanto, repete-se, são as Organizações que precisam de Gestão, e não apenas as empresas.

No futebol brasileiro, criou-se um mito de que as Sociedades Anônimas Anônimas do Futebol (SAFs) são a solução.

Não necessariamente.

Perceba-se que Flamengo e Palmeiras, considerados os principais clubes brasileiros no momento, não são SAFs.

O Flamengo, entre 2014 e 2018, fez um vigoroso ajuste financeiro, aumentando brutalmente as receitas e decaindo, mais brutalmente ainda, os gastos, o que lhe proporcionou saúde financeira ímpar. O clube Rubro Negro faturou o recorde de mais de um bilhão de reais em 2022, 2023 e 2024 e, para 2025, estima-se o hiper faturamento de mais de dois bilhões de reais.

Não foi preciso ser SAF para tal.

O Palmeiras, a partir de ajuda do ex-presidente Paulo Nobre, sanou dividas, passou a ter um estádio próprio rentável e, posteriormente, passou a ter o também rentável patrocínio da CREFISA. O alvo verde imponente ganhou, desde a Gestão de Paulo Nobre, três Copas Libertadores da América, quatro Campeonatos Brasileiros e duas Copa do Brasil.

Não foi preciso ser SAF para tal.

Já o Vasco da Gama, que foi SAF da 777 Partners, cumpriu o papel subalterno de formar grandes promessas das divisão de base, e ver a SAF vendê-las a “peso de ouro”, sem o clube receber dinheiro por isso. O clube chegou ao incrível endividamento de 1,18 bilhão de reais ao final de 2024, especialmente no período em que a 777 Partners conduziu a Gestão.

Era SAF e não funcionou.

Um clube de futebol pode funcionar como SAF, como é o caso do Bahia.

Assim como pode funcionar sem ser SAF.

Cada situação, em si, determinará se um clube qualquer deve ser SAF, ou não.

Em suma, não é o modelo de Gestão que determina o sucesso de um clube de futebol – mas, sim, a própria Gestão.