Por: João Batista Freire
Crianças precisam brincar muito. Precisam brincar muito porque brincar, para elas, é como respirar, alimentar-se e serem acolhidas. Brincar (ou jogar) é vital para as crianças e para a sociedade (que nem sabe disso). Observar crianças torna isso tão evidente que me custa crer que a sociedade adulta não perceba tal evidência. Deixadas livres, quando não estão dormindo ou doentes, as crianças brincam. Brincam ao se alimentar, brincam ao tomar banho, brincam com todas as coisas ao seu redor, brincam com as mãos, com os pés, com os sons, com os olhares, com os cheiros, com os toques, com a imaginação, com tudo. Brincar, ou jogar, é decisivo na espécie humana. Pode salvá-la ou condená-la, porque os jogos não são para o bem ou para o mal, mas para aquilo que fizerem deles os jogadores. Brincar (ou jogar) para a criança é uma compulsão, assim como o é para gatinhos e cachorrinhos (todos os chamados animais superiores brincam). A intensidade da brincadeira na infância alimenta a motricidade e a imaginação da criança.
Nem todos os jogos são de imaginação, porque as crianças mais novas, com menos de 18 meses aproximadamente, também jogam e ainda não são capazes de imaginar com desembaraço; seus jogos são sensoriais e motores. Porém, a partir do momento em que adquirem maturidade para se servir da imaginação, esta passa a acompanhar os jogos e até a orientá-los. A partir dessa idade a imaginação orienta os jogos e se alimenta deles. O jogo faz a criança imaginar mais que qualquer outra atividade. Tanto é assim que o jogo mais típico da criança é o jogo de faz-de-conta. Com poucos anos de vida a criança será capaz, inclusive, de jogar apenas com a imaginação, sem necessidade de realizar qualquer ação motora. Porém, o mais comum é que os jogos da criança sejam uma bela sincronia entre imaginação e gestos.
As crianças, e todos nós, jogamos movidos por uma espécie de pulsão, uma necessidade vital. O jogo, no ser humano, não é um capricho, uma escolha, mas uma necessidade tão decisiva quanto a alimentação, o abrigo ou o sexo. Restringir a imaginação na criança é restringir suas oportunidades de imaginar, e a imaginação humana é tão decisiva para a espécie que restringir a imaginação no período da infância é diminuir as chances de sobrevivência da espécie humana. Há muito sabemos que os chamados animais superiores também brincam; durante a infância brincam (ou jogam) intensamente. Se observarmos suas brincadeiras, constataremos que seus gestos lembram aqueles usados pelos animais adultos em seus empenhos para manter a vida, ou seja, são jogos de agarrar, morder, perseguir, escapar, saltar, rolar etc. Brincam daquilo que lhes será decisivo para a sobrevivência. Considerando que a natureza não pode ter receitas diferentes para o que é mais fundamental para a manutenção da vida, concluímos que também o ser humano jogará (ou brincará) com aquilo que será decisivo para sua sobrevivência enquanto espécie. Observemos as crianças e veremos que elas brincam, acima de tudo, de realizar gestos e imaginar. Porém, principalmente, de imaginar. O jogo de imaginação é o grande jogo humano, em crianças e em adultos. E por um motivo bastante simples: o que nos torna humanos e nos dá a grande chance de nos mantermos como espécie humana é a imaginação. Trata-se do grande diferencial humano comparativamente às outras espécies. Cada espécie viva tem seu diferencial, que torna sua vida possível no planeta. No caso da espécie humana esse diferencial é a imaginação. Sem imaginação bem desenvolvida não há chances de sobrevivência para a espécie humana. Jogando somos livres para imaginar, mais que em qualquer outra situação. Quando jogamos não há tarefas cobradas de fora do jogo, não há pressões externas, por isso podemos imaginar livremente.
Todas os animais precisam alimentar os instrumentos que tornam sua vida possível. No caso dos humanos, se é a imaginação que, acima de tudo, torna sua vida possível, é ela que mais precisa ser alimentada. Há várias maneiras de alimentar a imaginação, entre elas uma muito especial: jogar. Entre outros motivos, jogamos para alimentar a imaginação. Considerem que somos a espécie que tem a duração mais prolongada de juventude. Considerem que a juventude (infância e adolescência) é nosso período de vida mais flexível, mais propenso às aprendizagens. Considerem que a juventude é o período de vida em que mais nos dedicamos ao jogo. Ou seja, a espécie viva que tem, como instrumento fundamental de sobrevivência, a imaginação, tem um enorme período de vida para se dedicar a enriquecê-la (embora continuemos a alimentar, com menos intensidade, a imaginação durante a idade adulta e a velhice). Se a cultura humana favorecerá isso, ou não, é outro assunto, mas essa cultura, especialmente no que se refere à educação, deveria investir, acima de tudo, na imaginação. E de que maneira? Servindo-se do jogo como instrumento alimentador dessa imaginação. Submeter crianças a processos de adultização, tais como passou a ocorrer com enorme frequência em diversos campos da atividade humana, além de ser cruel e transgressor de seu direito de serem crianças, consiste em enorme risco para a existência humana a longo prazo.
Há vários elementos que podem nos mobilizar para o jogo. Em um jogo de pega-pega, por exemplo, o desafio de escapar ao pegador em um espaço delimitado, ou de ser capaz de pegar os fugitivos, testando nossa capacidade de correr, desviar, acelerar, parar etc., é altamente estimulante. Num jogo de construir miniaturas de casas o estímulo maior é ser capaz de criar figuras e torná-las, na imaginação, reais com as peças disponíveis. Num jogo de pular corda o obstáculo maior à nossa inteligência é suplantar, com nossa habilidade de saltar, os problemas de tempo e espaço colocados pela brincadeira. Quando se trata do jogo de futebol, o desafio maior é organizar as ações corporais para finalizar, com sucesso, ao gol adversário. Quaisquer que sejam os desafios colocados pelo jogo, a partir dos dois anos de idade, mais ou menos, desde o faz-de-conta de uma criança de quatro ou cinco anos, aos complexos jogos desportivos dos adultos, o êxito dos jogadores dependerá de suas habilidades motoras e de sua capacidade de imaginar as soluções e os caminhos para o sucesso. E por qual motivo a imaginação seria tão importante? Porque é a ela que o jogador mais recorre, uma vez que o espaço para que a imaginação se apresente e oriente as ações é mais amplo e livre no jogo que em outras circunstâncias. Na situação de jogo, ela só é jogo porque não há algo com o caminho completamente traçado; haverá sempre um espaço vazio, inusitado, imprevisível, que só pode ser preenchido pela imaginação, a única capaz de criar algo inusitado. Quando se trata de um trabalho, ele pode ser realizado por uma rotina já conhecida, embora muitos trabalhos exijam, também, a criatividade. No entanto, o espaço de criatividade do jogo é muito maior, porque ele permite ao jogador um espaço de risco enorme, ou porque, ocorrendo o erro, as consequências não são graves (sempre se pode começar de novo), ou porque o próprio risco é o grande motivador (temos vários exemplos, entre eles os esportes de aventura de alto risco, ou os esportes de desafio extremo como o automobilismo). Quando as crianças ficam sozinhas, ou em grupo, e livres, rapidamente inventam brincadeiras. E essas brincadeiras são desafios de, em parte, repetir o que já sabem fazer, em parte de criar algo, de suplantar um novo obstáculo, de arriscar uma ação inusitada. Lembram quando o Professor Manuel Sérgio dizia que o ser humano é um animal de transcendência? Pois ele queria dizer que nascemos incompletos, e isso não é um defeito de nossa natureza, mas uma boa qualidade. Sendo incompletos temos sempre que criar algo para preencher aquilo que falta. Uma vez preenchida a falta, novas faltas surgirão. Quando jogam, as crianças refletem, sem ter consciência disso, nossa natureza incompleta e nossa necessidade de sempre transcender o estado atual. Ao jogar e se colocar o desafio de criar algo a mais, as crianças seguem a orientação primordial de transcender aquilo que somos no estado atual. Do nascimento à morte nossa tarefa será preencher nossas faltas, tal como no mito grego, em que Prometeu, amarrado a um penhasco e, tendo seu fígado comido todos os dias por um abutre, precisava regenerá-lo em seguida. A Prometeu sempre lhe faltou o fígado, aos seres humanos sempre lhes faltará algo. Sem a imaginação ele não poderia preencher suas faltas. Discutir a incompletude natural do ser humano requer, no entanto, um ensaio à parte.
Os desafios colocados pelo jogo são, na verdade, os desafios colocados à imaginação humana. São os jogos aqueles que mais desafiam o ser humano a testar os limites de sua imaginação, a dimensão mais decisiva para que se mantenha como criatura viva no planeta. Na verdade, o grande teste dos humanos no planeta é o teste de verificar se sua imaginação dá conta de lidar com os grandes problemas de adaptação. Nossa imaginação, responsável pela produção de boa parte de nossa inteligência, já produziu, inclusive, a inteligência artificial. Porém, desafios como a escassez de água potável, a poluição dos oceanos e do ar, o desmatamento, a miséria e a fome, as guerras, a corrupção e os preconceitos, entre outros, nunca foram solucionados por nossa inteligência natural, muito menos pela inteligência artificial. Os desafios de bom uso da inteligência foram colocados a todas as criaturas vivas, da ameba ao ser humano. A má notícia é que a maioria das criaturas vivas que passou pelo planeta Terra falhou no uso da inteligência; não resolveu os problemas de adaptação e foi extinta. A boa notícia é que algumas delas vivem há centenas de milhões de anos.
Todas as criaturas vivas são casos típicos e únicos da natureza, apesar de suas bases comuns. Quis a natureza humana que fôssemos uma criatura frágil do ponto de vista motor, porém, dotados de imaginação suficiente para compensar tal fragilidade. Associada à imaginação nossas ações tornam-se poderosas. A imaginação foi capaz de criar a cooperação, a solidariedade, as máquinas de locomoção, as máquinas de força, os computadores, os aparelhos de comunicação e a medicina, entre outras invenções. Descobrimos, pensando, que somos frágeis individualmente, mas somos fortes socialmente. Alguns dos maiores problemas não solucionamos ainda, embora percamos boa parte de nossos esforços com guerras e outras formas de estupidez. Ainda deixamos que alguns manipulem a imaginação de bilhões e fartem-se nos lucros fazendo isso. No entanto, talvez não haja outro caminho para a educação que não seja investir para que desenvolvamos sempre mais nossa imaginação. Ainda não paramos para refletir sobre o enorme risco que corremos quando suprimimos oportunidades de desenvolver a imaginação, principalmente entre as crianças. E seria tão simples fazer isso. Bastaria que elas pudessem brincar mais tempo e com mais liberdade. Que as escolas fossem adaptadas às crianças. Que tivéssemos uma matemática criança, uma biologia criança, um português criança e assim por diante… e um esporte criança.
Quando vai ao esporte, além de aprender a praticar o esporte, a ideia da criança é a de que vai se divertir, vai jogar, vai brincar. Durante as aulas, em boa parte das vezes ela é surpreendida por rotinas de exercícios que nem de longe lembram um jogo. Recordo de uma criança, depois de fazer sua primeira aula de natação, quando o pai lhe perguntou se ela tinha gostado da aula. Ela respondeu que não queria mais ir à escola de natação. O pai quis saber o motivo, e ela disse que a professora não a deixou nadar, ficou o tempo todo batendo pernas na beirada da piscina. A criança quer brincar de jogar bola, mas tem que treinar futebol adulto em miniatura. E esse procedimento no futebol faz parte de um conjunto de aberrações praticadas na educação, quer seja no campo das artes, dos esportes ou das ciências. Essas aberrações suprimem o direito da criança ao lúdico, ao jogo, ao brinquedo, além de não ensinar o que anuncia. Deixada livre, brincando de jogar bola com os amigos, ela aprenderia mais.
O problema é maior que o futebol, maior que o esporte. Trata-se de um problema geral de educação dos seres humanos que, por não compreenderem a importância da infância, comprometem toda uma sociedade. O destino dos seres humanos está profundamente vinculado ao desenvolvimento de sua imaginação, e a imaginação nunca poderá se desenvolver tanto quanto na infância e adolescência, especialmente na primeira. É a imaginação que permite que um jogador de futebol se torne um virtuose da bola, um artista. Suprimir na criança que aprende futebol suas oportunidades de desenvolver a imaginação é torná-la um jogador comum, insosso, sem criatividade. Está ao alcance de, praticamente, todas as crianças, desenvolver boas habilidades com a bola. Ao alcance da arte de jogar futebol estão somente aquelas crianças e adolescentes que puderem brincar com a bola, aqueles que puderem sincronizar sua boa imaginação com sua boa motricidade.
Dirigentes, pais, professoras e professores de futebol, técnicos e técnicas de futebol, empresários, agentes, dão um tiro no pé quando insistem em especializar precocemente as crianças e adolescentes no futebol, obrigando-os a se submeterem a rotinas de treinamentos técnicos específicos. Se passarem por eles mil meninas e meninos, raros escaparão à sangria da criatividade. Obrigados a abrir mão da imaginação oriunda do lúdico, somente por golpe de sorte ou talento extremo (muitíssimo raro) um ou outra seguirá adiante com alguma chance de vir a ser um profissional destacado. Porém, se fossem respeitadas as características das crianças e adolescentes e todos pudessem desenvolver as habilidades para o futebol em um ambiente lúdico, saudável, sem pressões por resultados, sem dúvida o número daqueles que seguiriam adiante com chances de se tornarem adultos praticantes de um ótimo futebol seria muito maior. Porém, antes disso, o mais importante é assegurar a essas crianças e jovens o direito de praticar o esporte como uma maneira de viver com dignidade, com respeito, com felicidade. O momento de estar no esporte deve ser um momento de vida privilegiado, de vida feliz, prazerosa, e não um momento de sofrimento, de renúncia à vida típica da infância e da adolescência.
Com relação aos professores e professoras, a responsabilidade por educar crianças e adolescentes é enorme. Tal responsabilidade não condiz com pessoas que não se interessam por estudar, por se preparar intensamente para dar conta da tarefa de educar. Não basta incorporar alguns procedimentos técnicos, meia dúzia de rotinas de exercícios mecânicos e descontextualizados que serão impostos às crianças e jovens. Boas professoras e bons professores do esporte se interessam por conhecer metodologias, por estudar as pedagogias disponíveis dentro e fora do esporte, por saber os fundamentos da psicologia da criança, por se aprofundar nas teorias do desenvolvimento e da aprendizagem, por saber como se organizam as sociedades, desde as pequenas sociedades lúdicas das crianças às sociedades adultas.
Impedir o lúdico, a imaginação e a criatividade nas crianças é, como se diz no vocabulário futebolístico, jogar contra o patrimônio. Nesse caso, o patrimônio da humanidade.
Crianças brincando. Foto: Aline Oliveira/reprodução