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Correr pelo outro: o vínculo como motor da performance e facilitador do Flow

Por: Nicolau Trevisani

Em textos anteriores aqui no portal, já abordei o conceito de Flow aquele estado de imersão total em que o atleta joga no presente, concentrado, leve e conectado ao jogo. Mas há um elemento que antecede e facilita esse estado de performance e que merece muita atenção: o vínculo.

Se o Flow representa o ápice da fluidez entre mente, corpo e ambiente, o vínculo é quase uma ponte entre atletas e ambiente — o que permite que o estado de Flow apareça de forma mais frequente e segura, com confiança e coragem.


O vínculo é o elo de confiança que conecta o atleta às pessoas e ao contexto que o cercam. Amy Edmondson (1999) descreve o termo segurança psicológica como a sensação de poder agir e se expressar sem medo de punição. No futebol, esse vínculo se manifesta em detalhes: no tom de voz do treinador, na coerência do discurso, na empatia dentro do grupo. É o que diferencia um ambiente em que o jogador atua com receio de errar de outro onde ele se sente livre para arriscar, criar e aprender.

Mais do que isso: vínculos fortes entre os componentes de um grupo facilitam a capacidade de competir e lutar por objetivos coletivos, e não apenas individuais, dentro de campo.

Quando há vínculo, o sistema nervoso sai do modo de defesa e entra em um estado de segurança, o que facilita a criação. O cérebro deixa de se proteger e passa a perceber, decidir e executar com mais clareza. O jogo se torna mais leve e mais inteligente. Sem vínculo, o atleta joga travado; com vínculo, o jogo flui — e isso naturalmente se reflete em uma performance individual e coletiva mais consistente.

Esse fenômeno também aparece em uma das frases mais repetidas e simbólicas do futebol: “Esse time corre um pelo outro.” Essa expressão cotidiana traduz, de forma simples, o que a ciência explica em linguagem técnica. Quando o vínculo está presente, a confiança coletiva ativa os circuitos cerebrais de cooperação e empatia, gerando mais foco, energia e prazer na execução. O jogador não corre por obrigação, mas por conexão e essa diferença muda completamente a intensidade e a estabilidade da performance.

Mihaly Csikszentmihalyi (1990) mostrou que o Flow surge quando o desafio se equilibra com a habilidade, criando um estado de engajamento profundo. Mas, para que esse equilíbrio exista, o atleta precisa estar emocionalmente seguro. A confiança que nasce do vínculo é o gatilho que permite ao corpo e à mente entrarem nesse estado de fluidez. A dopamina associada à sensação de domínio e à recompensa intrínseca (Deci & Ryan, 2000) aumenta, a atenção se afina e o tempo parece desacelerar. Tudo isso só acontece quando há uma base relacional que dá suporte ao risco, à entrega e à espontaneidade — três pilares do Flow.

Em outras palavras: o vínculo é o alicerce invisível da concentração e da leveza. Ele não é sentimentalismo, é estrutura neuropsicológica que transforma um grupo em equipe e um bom jogador em alguém capaz de atingir o seu limite real. Essa reflexão é muito importante também quando pensamos sob a ótica do scouting. Ao analisar um jogador, não basta enxergar o que ele faz, mas em que tipo de ambiente ele faz. Entender o que de fato pode ajudar ou dificultar o potencial de virar performance. Ambientes com vínculos fortes favorecem a expressão plena da habilidade; ambientes frágeis ou punitivos tendem a inibir a tomada de risco e a criatividade.

Por isso, ao pensar em contratação ou desenvolvimento, é fundamental perguntar:

“Esse jogador vai encontrar aqui as mesmas condições de vínculo e ambiente que sustentam o seu melhor desempenho? O ambiente que ofereço permite que ele tenha tempo, segurança e vínculos estáveis para atingir esse potencial a médio e longo prazo? Ou, no meu contexto, faz mais sentido trazer atletas já prontos, que dependam menos de fatores relacionais e mais da própria autorregulação emocional?”

São perguntas fundamentais para entender se o potencial que observamos é mais direto ou mais dependente de contexto para acontecer — e, principalmente, se o nosso ambiente está preparado para receber e desenvolver pessoas com diferentes níveis de maturidade emocional.

O Flow é o auge do desempenho, mas o vínculo é o seu ponto de partida. Quanto mais genuína for a relação entre as pessoas e o ambiente, mais natural será a fluidez do jogo e de todos que o envolvem. Seja nas decisões, nas ações ou no prazer de jogar, o vínculo é o que transforma o esforço em entrega, o talento em confiança e o futebol em algo verdadeiramente humano.

Foto: Albert Gea/Reuters

Referências:
Csikszentmihalyi, M. (1990). Flow: The Psychology of Optimal Experience. Harper & Row.
Edmondson, A. (1999). Psychological Safety and Learning Behavior in Work Teams. Administrative Science Quarterly, 44(2).
Deci, E. & Ryan, R. (2000). Self-Determination Theory and the Facilitation of Intrinsic Motivation. American Psychologist, 55(1).

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Caso prático: os componentes psicológicos que ajudam a entender a histórica virada do Palmeiras

Por: Nicolau Trevisani

Antes da histeorica semifinal da Libertadores e da “noite mágica” vivida pelo Palmeiras no jogo contra a LDU a comissão técnica do Palmeiras fez algo que ultrapassa a motivação tradicional (muitas vezes até mitológica) muito comum em momentos decisivos no alto rendimento. Nos quartos dos atletas, espalharam placares de grandes viradas e goleadas da história recente do clube — lembranças concretas de que o impossível já havia sido superado antes.

O gesto é simples, mas profundamente intencional: um resgate de evidências positivas. Ao rememorar momentos de superação, a comissão não apenas reforçou a confiança do grupo — reativou a memória emocional da competência. Em termos psicológicos, essa estratégia desperta o sentimento de autoeficácia (Bandura, 1977): a crença de que se é capaz de agir com sucesso diante de um desafio.

Quando o atleta revisita vitórias passadas, ele não se conecta apenas ao resultado, mas ao estado interno que o levou a performar bem: o foco, a energia, a leveza e a sensação de domínio. Essas lembranças funcionam como gatilhos emocionais e neuroquímicos que reduzem o medo e reacendem a motivação intrínseca. É uma forma de dizer ao cérebro: “Você já esteve aqui. E foi capaz.”

No plano coletivo, esse tipo de mobilização cria as condições ideais para o que Alcides Scaglia define como estado de jogo — um estado em que o atleta e a equipe estão plenamente conectados à ação, em sintonia com o contexto, o ambiente e os companheiros. O estado de jogo, segundo o autor, é o momento em que “a lógica do jogo ocupa o centro da atenção”, permitindo que o atleta perceba, decida e aja de maneira fluida, com mínima interferência de fatores externos.

Esse conceito dialoga diretamente com o estado de flow descrito por Mihaly Csikszentmihalyi (1990), em que desafio e habilidade se equilibram, gerando um nível profundo de imersão e prazer na execução. A diferença é que, no futebol, o flow se manifesta dentro de um contexto coletivo, em que emoção, ambiente e intenção tática se misturam numa única experiência.

Foi isso que Abel Ferreira e sua comissão técnica conseguiram despertar:
um estado de jogo coletivo, onde a crença compartilhada reorganiza a emoção e devolve leveza à execução. Não se trata de inflamar o grupo pelo grito, mas de reativar a confiança pela lembrança. De transformar o passado em gatilho emocional para o presente.

A neurociência do esporte explica que esse tipo de lembrança positiva reduz a ativação da amígdala (ligada ao medo) e aumenta a liberação de dopamina, o que favorece a atenção, a coragem e a tomada de decisão criativa. O corpo deixa o modo de defesa e entra no modo de criação — condição essencial para jogar bem sob pressão.

Raphael Veiga resumiu após o jogo:

“A gente precisava de duas coisas: acreditar e jogar futebol.”

Acreditar é o primeiro passo para jogar. Mas jogar com presença, confiança e coerência é o que transforma crença em performance.

Esse caso prático mostra que, no futebol de alto rendimento, a emoção não é oposta à racionalidade — é a base da performance. Mobilizar o grupo emocionalmente não é “motivar” — é reorganizar o estado mental para que o jogo volte a fluir. E talvez essa seja uma das maiores virtudes de uma boa comissão técnica: criar, antes da bola rolar, as condições psicológicas para que o jogo — e o jogador — possam acontecer por inteiro.

Referências Bibliográficas:

  • Bandura, A. (1977). Self-Efficacy: Toward a Unifying Theory of Behavioral Change.
  • Scaglia, A. J. (2003). Jogo e Treinamento: Perspectivas da Pedagogia do Jogo.
  • Csikszentmihalyi, M. (1990). Flow: The Psychology of Optimal Experience.
  • Deci, E. & Ryan, R. (2000). Self-Determination Theory.
  • Edmondson, A. (1999). Psychological Safety and Learning Behavior in Teams.

Foto: Alexandre Schneider/Getty Images