Você sabe o que quer dizer “risco moral”? Caso desconheça, não se assuste. Não é um termo muito utilizado por aí, muito menos por pessoas que atuam ou acompanham o mercado futebolístico brasileiro. Deveria, pois.
O risco moral é derivado do mercado de seguros e surgiu no século XIX. Servia, a princípio, para classificar as pessoas não muito indicadas para quem se vender uma apólice de seguro. Essas pessoas eram aquelas que possuíam uma moralidade questionável e, portanto, tenderiam a tentar burlar e se aproveitar do sistema de seguros. Ao invés de fazer um seguro para tentar diminuir uma eventual perda, fariam o seguro pensando na receita proveniente da compensação pelo risco. Por exemplo, uma pessoa de caráter dúbio poderia adquirir uma apólice contra incêndios para sua casa e logo depois fazer uma fogueira no meio da sala, sem se preocupar com o risco de incêndio. Em último caso, o indivíduo poderia até atear fogo à própria residência propositadamente para receber o valor da cobertura. Como os vendedores de apólices da época não tinham como elaborar maneiras mais apropriadas para calcular o valor do seguro conforme as características de cada indivíduo, eles eram instruídos pelas seguradoras a não firmar contrato com pessoas com esse tipo de caráter, uma vez que essas pessoas apresentavam um risco moral.
A partir disso, surgiu a teoria do risco moral, que resumidamente sugere que ‘menos perdas por uma perda significa maiores perdas’, ou seja, que aqueles que possuem maior segurança cobrindo seus riscos tendem a tomar decisões mais arriscadas. Se você vai esquiar sem um seguro de saúde específico para esportes radicais, por exemplo, a tendência é que você tome mais cuidado ao descer a montanha, uma vez que qualquer tombo pode acarretar em uma fratura grave. Como o resgate nessas situações é feito na maioria das vezes por helicóptero, um acidente pode acabar custando muito caro. Se você vai esquiar com seguro, porém, a tendência é que você não se importe tanto em se machucar e desça do jeito que melhor lhe convier, uma vez que você não vai gastar dinheiro em caso de acidente.
O conceito de risco moral eventualmente saiu dos limites das apólices de seguro e hoje é bastante difundido no meio econômico, principalmente nas análises de investimentos bancários. Bancos, em geral, tendem a possuir o risco moral, uma vez que muita gente depende de seu funcionamento, o que acarreta em um posicionamento especial em relação ao mercado. Dificilmente um banco vai à falência, já que é provável que o governo da localidade na qual ele se encontra acabe o socorrendo. A quebra de um banco implica em graves conseqüências para todo o sistema financeiro, e por isso ele precisa ser protegido. Essa proteção, entretanto, permite que um banco faça apostas financeiras mais arriscadas, uma vez que o risco da operação não será necessariamente assumido completamente por ele. Isso é uma clara demonstração do conceito de risco moral.
No Brasil, é possível dizer que o futebol também possui risco moral, afinal é notável o papel que o futebol desempenhou na formação da sociedade brasileira atual, principalmente durante o século XX. Como o Estado se apoiou no futebol, e mais especificamente na seleção brasileira, para atingir alguns dos seus objetivos, é natural que o futebol ganhasse uma importância distinta para o povo e os governos brasileiros. Daí, inclusive, a sugestão de que a seleção deveria se tornar um patrimônio cultural brasileiro.
Tamanha importância do futebol no país acaba sendo refletida também nos maiores clubes, como Flamengo, Corinthians, Vasco, São Paulo, Palmeiras, Cruzeiro, Grêmio e afins, uma vez que se entende que esses clubes desempenham um papel fundamental na manutenção do status do futebol dentro do território nacional. Não obstante, os clubes possuem um funcionamento mercadológico, e como tal estão sujeitos às regras do mercado. Porém, assim como os bancos, os clubes de futebol no Brasil são importantes demais para simplesmente fecharem as portas, e acabam sempre sendo socorridos pelo dinheiro público.
O exemplo mais atual disso é a Timemania, que nada mais é do que um instrumento proveniente da esfera pública para tentar equilibrar o caixa dos clubes de futebol. Caso funcionassem como uma empresa qualquer, boa parte dos clubes de futebol do Brasil – quiçá do mundo inteiro, já teriam fechado as portas há tempos. Como eles possuem risco moral, entretanto, sempre se dá um jeito para solucionar os problemas.
As conseqüências do risco moral, entretanto, são graves. Na medida em que organizações possuem as conseqüências dos seus riscos assumidos por terceiros, elas tendem a embarcar em situações de riscos ainda maiores. Nos bancos, esse fenômeno pode ser observado principalmente através de empréstimos internacionais em excesso. No futebol, o fenômeno pode ser enxergado na manutenção de uma falsa estrutura financeira, manifestada principalmente através do pagamento de transferências e salários acima do valor com o qual um clube realmente pode arcar.
Enquanto o governo brasileiro continuar a enxergar os clubes do futebol como organizações que possuem risco moral, pouca coisa vai mudar no cenário atual. Na atual situação, os clubes continuarão a adotar estratégias arriscadas e o mercado continuará desequilibrado.
Fechar um clube de futebol, entretanto, não é coisa fácil. Você aceitaria ver o seu time encerrando suas atividades por conta de dívidas financeiras? O risco para o governo é muito grande. E no final das contas, para tomar uma atitude dessas, com o perdão do trocadilho contínuo e infame, é preciso que o governo tenha muita moral.
Coisa essa que, convenhamos, está um pouco em falta.
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