Dia desses me perguntaram por que eu gosto tanto de falar sobre o futebol inglês e italiano, suas peculiaridades táticas e modelos de jogo e por que insisto em dar exemplos de equipes européias como referências para determinado aspecto da complexidade do jogo. As indagações vieram seguidas da afirmação de que as equipes brasileiras têm levado vantagem sobre as equipes européias nos últimos anos em jogos internacionais (e que, portanto, o futebol brasileiro é melhor tecnicamente e taticamente do que o europeu – vide e acrescente na argumentação o número de títulos mundiais da seleção brasileira).
Vivemos no “país do futebol”. E se isso é verdadeiro, é verdade também que nossas crianças tendem a nascer com o “dom para a coisa” (já nascem sabendo jogar).
Que pretensão! Deus realmente deve ter criado um selo especial para isso – fico só imaginado o Todo Poderoso na linha de produção (digo na fila de pessoas a nascer) dizendo: É brasileiro? Selo amarelo nos pés… Próximo…
Obviamente, ninguém nasce sabendo jogar futebol; assim como ninguém nasce sabendo sambar ou falar português. Falar português, sambar e jogar futebol são habilidades adquiridas no ambiente em que se vive. Não nascemos com maior tendência a falar português, sambar ou jogar futebol porque a dádiva natural do nascimento ocorreu em terras brasileiras. Claro, ao nascer aqui (ou não), sofrendo influência das “ocorrências” do meio daqui, estaremos adquirindo a cultura DAQUI!
Estranho ou trivial?
A menos que realmente acreditemos que o samba, o nosso idioma e/ou o futebol sejam obras divinas. Aí teremos obrigação de crer na teoria de que nós brasileiros já nascemos jogando futebol e que o Todo Poderoso, com tantas preocupações; duzentos e tantos países para cuidar, guerras, doenças… Ainda tem de atribuir habilidades para jogar futebol, dançar samba (tango, salsa, flamenco!?), cuidar de cada idioma a ser falado, sem nos esquecer ainda dos pedidos emergenciais dos nossos seres bons humanos…
O fato é que, por vezes, cegados pelo brilho de nossas crenças, nos tornamos incapazes de ver além do comum.
Certamente o futebol brasileiro tem coisas a ensinar taticamente. A questão é que vivemos no Brasil um paradigma diferente daquele que alguns países europeus tomam para seguir. Não porque ultrapassamos o paradigma alheio e já vivemos outro momento. Muito pelo contrário.
A questão aqui é que a maior parte dos treinadores e “especialistas” do futebol ainda vêem o jogo em fragmentos, atentando ao jogador fora do contexto coletivo da equipe. É como se para mudar uma tendência, corrigir um problema ou acentuar um desequilíbrio vantajoso em um jogo, a melhor e única solução estivesse sempre atrelada a substituição de um jogador que não está a render satisfatoriamente, e colocar em seu lugar outro que, quiçá, poderá ter desempenho melhor.
E como o jogador é parte do todo (que é a equipe), espera-se que a intervenção no “pedaço” resulte em grandiosas e positivas transformações no “bolo” (o todo).
Não que na Europa tenhamos o modelo “ideal”, o exemplo a ser seguido. Mas existem lá focos de outra visão sobre o jogo, sistêmica, que leva em conta a complexidade do futebol e que compreende que qualquer alteração em qualquer variável do sistema pode gerar amplificadas e transformadoras respostas no todo (e que portanto, não é necessariamente a substituição de um jogador a solução para os problemas).
E se é fato que o brilho de nossas crenças pode nos cegar, posso eu, ao invés de não estar vendo, estar enxergando brilho demais. Importante salientar que nossa vantagem (vantagem do futebol brasileiro em confronto com o europeu) não é tão grande assim (nos últimos cinco jogos contra equipes européias estamos à frente: 3 x 2). Será que o brilho nos deixa enxergar isso?
Mas como o assunto é futebol (e não “o brilho”), não posso deixar de escrever que o jogo, por ser jogo, é imprevisível; e jogar bem (que é diferente de dar espetáculo) não significa necessariamente ganhar (significa “somente” aumentar as chances).
E para quem ainda acredita que nossos bebês nascem fazendo gol, nada melhor do que intensificar as preces ou caprichar mais no “ato reprodutor”.
Para quem não acredita, melhor que os óculos escuros estejam sempre à disposição. Caso contrário, há sempre o risco de um brilho desavisado atrapalhar a visão…
Para interagir com o colunista: rodrigo@universidadedofutebol.com.br