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Lavagem de dinheiro

Sempre me preocupa barulho de água na caverna, por causa do Arnaldo, meu amigo bagre cego. Todas as vezes que ele se irrita, ou se excita além da conta, agita-se a tal ponto que acaba caindo fora do lago. Já o recolhi diversas vezes estrebuchando no chão de pedra. Eu e Oto vivemos de olho nele. Por isso, abandonei a contemplação do mormaço da tarde e corri ver o que se passava. Eufórico, o bagre nadava em círculos dentro do lago.

– Vencemos! – ele disse, depois de se acalmar um pouco, mas em lágrimas. – As Olimpíadas, Bernardo, vencemos as Olimpíadas.

Demorei a perceber. Afinal, de quais Olimpíadas éramos campeões? Arnaldo falava da escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016. Passou-me despercebido. Que lapso! O país inteiro em festa e eu contemplando poeira, não mais que poeira no meio de uma tarde quente e ensolarada.

– Foi a vitória da competência, da insistência, da perseverança. Calamos os detratores, os maus brasileiros – enfatizou o bagre.

– E você confia que as verbas para 2016 serão bem utilizadas, Arnaldo? Lembra do Pan?

– Claro que sim, Bernardo. Você se deixa influenciar muito pela imprensa brasileira, principalmente por aqueles jornalistas que pedem a queda dos nossos maiores dirigentes. Onde já se viu dizer que homens como Ricardo Teixeira e Carlos Nuzman deveriam deixar os cargos. Antes, que caia o presidente da república.

– Mas, no que o Rio de Janeiro será beneficiado com as Olimpíadas?

– Será outro, Bernardo, após os jogos. Acabaremos com o tráfico de drogas, despoluiremos a Baía de Guanabara, disciplinaremos o trânsito, não cuspiremos mais nas ruas, urbanizaremos as favelas. Até medalhas ganharemos, aos montes, mas isso é o de menos. Você acha que nossos dirigentes já não pensaram em tudo?

Poderíamos ter esticado esse assunto por muito tempo, não fosse minha atenção ter sido chamada por um papel que boiava nas águas do lago. Aproximei-me e peguei-o: uma nota de cinquenta reais.

– O que é isso? – perguntei.

O bagre era cego, portanto, não podia saber do que eu falava. Expliquei que me referia ao dinheiro no lago.

– A notícia das Olimpíadas me distraiu – disse o bagre. – Até me esqueci do dinheiro. Eu estava lavando essa nota.

– Lavando dinheiro, Arnaldo! Por quê?

– Ora, parece que lavar dinheiro é um grande negócio. A coisa funciona assim: eu pego uma nota de cinquenta, lavo, lavo, e ela fica valendo muito mais.

A inocência do bagre me comovia.

– Arnaldo, meu amigo, não é assim que se lava dinheiro.

– Então, como é? – ele perguntou.

– Vou dizer o que li sobre isso. Mas antes quero saber o que um bagre quer com tanto dinheiro.

Ele me explicou, um tanto por cima, e eu não entendi nada, que tinha uns planos para o futuro. Só mais tarde, tempos mais tarde, pude entender a que se referiam tais planos.

– Para lavar dinheiro, Arnaldo, primeiro a pessoa tem que abrir uma conta num paraíso fiscal. Sabe aqueles lugares que recebem depósitos de dinheiro sem perguntar de onde ele veio?

– E de onde vem esse dinheiro? – perguntou o bagre.

– De muitas fontes – expliquei. – Do tráfico de drogas, vendas de armas, corrupção, compra e venda de jogadores e clubes de futebol, entre outras.

– Jura, Bernardo? Tem gente no futebol que faz isso? Mas não os nossos grandes dirigentes!

Eu disse que não sabia quem fazia isso, mas era o que eu tinha lido sobre o assunto.

– Arnaldo, se você tem um jogador que vale quinhentos mil dólares e ele é negociado por dois milhões, sobram aí um milhão e quinhentos mil dólares. Ora, se você fez um negócio sujo qualquer que lhe rendeu essa enorme quantia, ela pode ser lavada nessa transação. Faz de conta que você recebeu dois milhões pelo jogador quando, na verdade, um milhão e meio foi dinheiro sujo de outra transação lavado na venda do jogador.

O bagre arregalava os olhos à medida que eu descrevia o caso. Pediu detalhes. Contei que o dinheiro seguia uma rota. Abria-se, por exemplo, uma conta em Liechtenstein, um conhecido paraíso fiscal. Lá poderia ser depositado todo o dinheiro ganho nessas transações sujas. Mas, para ele entrar no Brasil, era preciso ter um esquema qualquer. Aí era só abrir uma empresa fantasma em alguma cidade brasileira e essa empresa poderia receber o dinheiro de Liechtenstein como se fosse um empréstimo, empréstimo esse que nunca seria pago.

– E as pessoas que fazem isso não são presas, Bernardo?

– Depende – eu respondi. – Se você for uma pessoa importante, poderosa, mesmo havendo investigações, não dará em nada. Ainda mais se você for um dirigente muito bem sucedido, cheio de títulos. As vitórias fazem o povo esquecer os crimes e os políticos fecharem os olhos.

– Você está de brincadeira, Bernardo. Anda assistindo muita televisão e ouvindo muito aqueles programas de esporte subversivos. Lavar dinheiro é lavar dinheiro, ora. Basta pegar uma nota e esfregar na água, quem sabe com um pouquinho de sabão.

Deixei-o com sua distração. Ele que lavasse à vontade sua nota de cinquenta reais. Mal não faria. Não é fácil diminuir a solidão. Quando me sinto muito só, é ao Arnaldo que recorro, quando não a Aurora ou Oto.

Na semana seguinte encontrei-o eufórico. Oto, meu morcego correio, encontrara uma nota de um dólar, caída de algum bolso distraído, e a trouxe para o bagre. Se lavar real é bom negócio, imagine o que não se faz com dólares.

*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br  

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Retorno indesejado

Eu achei que o assunto tinha morrido.
De verdade. Mas me enganei profundamente.

É o tipo de assunto que não morre.
Fica, no máximo, colocado no cantinho. Quieto. Escondidinho.
Até que aparece alguma coisa que o coloca de novo sob os holofotes.

A tal da bendita carteirinha de identificação do torcedor.

Eu, sinceramente, não entendo porque algumas pessoas gostam tanto de uma carteirinha.
Confesso que não sou muito chegado. E olha que tenho muitas carteirinhas, entre outros documentos.
Identidade, CPF, habilitação, carteira de trabalho, passaporte, plano de saúde, academia, supermercado, universidade, hostels, banco, clube, jornal e por aí vai.
Tudo pra provar que eu sou eu mesmo.
Como se ninguém acreditasse nisso.
Pressupõe-se, assim, que estou mentindo quando digo que eu sou eu mesmo. Porque talvez eu não seja.
Shakespeare daria piruetas filosóficas.

Como já escrevi por aqui, naquela que deve ter sido a minha coluna mais pop de todos os tempos, já que foi publicada pelo Juca Kfouri e me levou a dar uma entrevista para o Diário de Pernambuco, a ideia da carteirinha de torcedor foi rejeitada na Inglaterra.
Dias atrás, foi rejeitada na Itália.
E jurava que tinha sido rejeitada no Brasil.
Mas não foi.
O projeto continua.
Ainda que outros países não tenham adotado a ideia e que os próprios clubes brasileiros já tenham se posicionado contra.
Mas são coisas do Estado Brasileiro.
Que, na realidade, não dá “lhufas” de importância para a opinião da sociedade.

É, na verdade, uma medida populista.
Uma resposta política que se dá a uma população alarmada por uma ocorrência de violência dentro do estádio.
Como o Estado não sabe o que fazer, ele sugere o cadastramento.
Como se isso fosse a solução para alguma coisa.
É como quando um secretário de segurança anuncia que a principal medida para acabar com a violência é acabar com a torcida organizada. E só.
Como fizeram as autoridades paulistas nos anos 1990. Como fizeram outras tantas autoridades no mundo inteiro, desde que as torcidas organizadas tomaram o formato atual, nos anos 1970 e 1980.
Com fez o Secretário de Segurança do Estado do Paraná, dias atrás, para dar uma resposta imediata à sociedade curitibana, em polvorosa após os graves incidentes do jogo que decretou o rebaixamento do Coritiba.

Ao mesmo tempo, a Câmara de Vereadores votou a favor de um projeto municipal de cadastramento de torcedores.
Parece um script de resposta a acidentes em estádio: carteirinha e acabar com torcida organizada.
O empirismo mostra a eficácia das medidas.
A proposta dos vereadores curitibanos foi quase aprovada em unanimidade na primeira votação. Um único vereador, Professor Galdino, votou contra. Seu argumento contra a proposta foi a não concordância com o estabelecimento de um “Estado policialesco de violência do cidadão”. Um argumento exemplar.

Como também foi exemplar a postura das polícias e da mídia paranaense.
Que identificaram e repercutiram de modo incessante a prisão de 18 dos envolvidos na confusão.

O que mostra que é possível identificar, julgar e prender aqueles que tomaram parte do confronto.

Sem que, para isso, seja preciso você portar mais uma carteirinha.

Para interagir com o autor: oliver@universidadedofutebol.com.br