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A alegria contagiante dos sul-africanos

Essa é a primeira impressão que se tem do país da Copa. Nada da frieza e racionalidade alemã, da formalidade oriental ou da indiferença de franceses e americanos. Após quase 20 anos, a Copa do Mundo volta a ser disputada num país que tem uma idolatria pelo futebol. E, para melhorar, o fato de ser um Mundial inédito no continente africano deixa a história ainda mais colorida, cheia de vida e de coisas para contar. É uma alegria que contagia a todos.

Confesso que achava uma propaganda enganosa o discurso ensaiado da Fifa de que a Copa precisava ir para a África para fazer a alegria de um povo tão castigado e maltratado em sua história. Mas, a julgar pelas primeiras horas em solo sul-africano, não é tanta falácia da Fifa e de Joseph Blatter essa tal de alegria transbordante do africano pela bola.

O clima de Copa geralmente é aquela coisa que prende, que motiva quem é apaixonado por bola desde que se conhece por gente. Todos, afinal, estão ali por um motivo único e muito, mas muito nobre. Mas na África dá para sentir que a coisa é diferente. Se, na Alemanha, tinha quem criticasse a Copa ou a Fifa por “invadirem” o seu cotidiano, agora essa reclamação não se repete.

Todo sul-africano quer falar de futebol, quer saber de Copa do Mundo, quer descolar ingressos para jogos, quer encontrar Ronaldinho e Ronaldo (até agora, aliás, essa é a primeira resposta que tem de ser dada quando se descobre que somos brasileiros).

Essa alegria que contagia é um bem para o futebol. E um risco, claro, para a manipulação das massas. Mas, na Copa de 2014, o Brasil terá de se esforçar para aparentar um clima parecido com o dos sul-africanos. Um povo que sabe que o Mundial é uma forma de reforçar sua origem, de mostrar para o mundo a sua existência, de celebrar a vida e a bola.

Condições para isso não faltam ao Brasil. Se o cenário se repetir, coitado de quem for receber o direito de abrigar a Copa de 2018. Pela lógica política que se avizinha, a Inglaterra tem boas chances de ser a escolhida. Provavelmente a Fifa não terá a menor dor de cabeça com o pré-Mundial. Mas que está com cara de que vai faltar um tempero nessa festa, isso é cada vez mais claro…

Para interagir com o autor: erich@universidadedofutebol.com.br

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A cavernada

– Quando vai acontecer o jogo de vocês contra a caverna de baixo? – perguntei ao meu amigo morcego.

A morcegada andava muito acesa com o torneio de fruitbol entre cavernas, que foi criado este ano e que eles estão chamando de Cavernada. Aqui na região temos umas doze cavernas. Oito delas praticam fruitbol, aquele jogo que já descrevi anteriormente, jogado de asa em asa, de boca em boca de morcegos, com uma frutinha redonda no papel de bola.

– Vai ser na semana que vem, na terça. Arnaldo pediu que os jogos finais sejam aqui na nossa caverna, para que ele possa ouvir a confusão – disse Oto, o morcego.

Arnaldo ouvia nossa conversa. O bagre cego é um legalista. Queria que os morceguinhos fizessem um estatuto e registrassem o torneio na CBF. Segundo ele, havia grandes chances de ser o fruitbol reconhecido pela entidade máxima do futebol brasileiro. Arnaldo acredita que o presidente da CBF, sempre atento aos movimentos do esporte brasileiro, certamente incluiria o fruitbol na confederação.

– Deixa de bobagem Arnaldo. Você acha que a CBF vai se preocupar com um joguinho de morcegos? – disse Oto, irritado com o bagre.

– Bobagem agora, que temos só oito equipes praticando Fruitbol. Mas se a coisa pegar, serão milhões de morcegos espalhados por milhares de cavernas no Brasil. Um prato cheio até para a televisão – enfatizou Arnaldo.

Acertaram que as semifinais e a final seriam realizadas na nossa caverna, no salão central, onde fica o lago habitado pelo bagre. Combinaram que o regulamento seria feito por Aurora. Eu teria que falar com ela, claro, porque os morcegos tinham pavor da coruja. Apesar de ser minha amiga e a pessoa mais sensata que já conheci, eu também não confiava nela nessa questão dos quirópteros. Seus instintos falavam mais alto quando se tratava de morcegos, ratos e outros bichinhos do gênero. O bagre ainda insistia na ideia de registrar o torneio na CBF. Em algumas coisas ele tinha razão. Se a coisa pegasse e se espalhasse pelo Brasil todo, talvez nossa entidade máxima do futebol realmente se interessasse. Além disso, era preciso considerar as incríveis semelhanças entre o fruitbol e o futebol. Com um pouco de aperfeiçoamento, seriam mais parecidos ainda.

O torneio começou. Nosso primeiro jogo foi contra a caverna de baixo. Perdemos! Feio! Nove a um! Nosso time era super defensivo, mas mesmo assim, tomamos nove gols. O segundo jogo ganhamos: magro um a zero. Fizemos um a zero no início do jogo e nossa defesa conseguiu segurar o avanço adversário até o fim. Carecíamos de contra-ataques. O terceiro empatamos, mantendo as chances de classificação. A caverna de baixo revelou-se o assombro do torneio. Nove a um contra nós, seis a zero contra a caverna de cima, sete a um contra a caverna da várzea.

À noite teve reunião. Era preciso mobilizar todos os recursos para manter as chances de classificação. Arnaldo dirigia a reunião, Oto, nosso técnico, e todos os jogadores estavam presentes, mais os conselheiros, que eram os morcegos anciãos, e, algo com o que não concordei, representantes de três outras cavernas. A caverna de baixo era o perigo, o inimigo a ser batido. Talvez por desespero, um acontecimento excepcional: Aurora foi convidada, desde que ficasse ao meu lado, presa ao meu braço por uma cordinha, caso a coruja caísse em tentação. Pediram que ela falasse.

– Se não mudarmos nosso modo de jogar, o time da caverna de baixo leva o campeonato fácil, fácil – disse Aurora.

– E o que é que eles têm que nós não temos? – perguntou Oto.

– Disciplina, regulamento, estatuto – afirmou Arnaldo.

– Eles gostam de jogar, são divertidos, jogam pra frente, são corajosos e habilidosos. Brincam com a bola – respondeu Aurora.

– Não podemos mudar nosso modo de jogar – disse Oto, – treinamos o ano todo desse jeito e só sabemos jogar na defesa.

O representante da caverna da várzea disse que o time da caverna de baixo não era imbatível. Só sabiam jogar no ataque. Se anulassem seus principais atacantes, eles não fariam mais nada.

– Concordo – disse Oto. – Mas como faríamos isso? Ninguém consegue segurar aqueles meninos da frente!

– Vai ter que ser na pancada – disse o representante da caverna da várzea. – Na fruta não dá mesmo, a gente sabe. Só que precisamos bater de uma maneira que o juiz não nos expulse. É só chegar antes, deslocar com o corpo, bater de ombro, que eles não param em pé.

Tive que interferir. Não me conformava com as ideias de Oto e seus amigos morcegos. Aurora me cutucou e disse que queria ir embora, aquilo não servia para ela, adepta que era do futebol bonito, do futebol arte. Não teve jeito, combinaram que seria mesmo na retranca e na pancada. Na fruta não conseguiriam parar os craques da caverna de baixo. Era tentar um gol isolado e segurar o resultado.

Depois de sete jogos, deu a lógica: o time da caverna de baixo ficou em primeiro, ficamos em segundo, a caverna da várzea se classificou em terceiro lugar, e a caverna do morro terminou na quarta colocação. A segunda etapa do torneio seria jogada entre os quatro melhores times, o primeiro contra o quarto e o segundo contra o terceiro. Tudo na nossa caverna.

A plateia era imensa, milhões de morcegos. O barulho das asas era insuportável. Arnaldo vibrava. Cego, o que o excitava era o barulho. Pelos sons era capaz de acompanhar até jogos de futebol pela TV. Nossa caverna foi decorada com lanternas para a primeira noite das semifinais. Ficou muito bonita. Aurora preferiu não assistir; disse que veria outros tipos de jogos no canal Z33 de sua TV. O juiz veio de fora, da Argentina, especialmente para a segunda etapa do torneio e a grande final.

No primeiro jogo da noite enfrentaram-se o time da caverna de baixo e o time da caverna do morro. Foi um massacre. Mesmo jogando na retranca, os do morro tomaram seis gols e só fizeram um. Não fomos mal, ganhamos da caverna da várzea por dois a um. Portanto, a final seria entre nós e a garotada da caverna de baixo, uma semana depois. Oto apostava na pressão da torcida, esmagadoramente a nosso favor, e no esquema da retranca e de parar na pancada os adversários mais habilidosos.

Durante a semana, só se falou nisso. Oto queria mandar emissários para convidar gente de fora. O jovem João Paulo seria o convidado de honra. Arnaldo queria fazer convites especiais para o presidente da CBF e do COB. Fui contra, bati o pé e acabei com aquilo. Seria só entre nós.

A grande noite chegou, uma terça-feira. Caverna toda enfeitada. Milhões e milhões de morcegos. A noite ficou mais escura que o habitual. A caverna era pequena para tanto bicho. O jogo começou. Duro, o juiz deu logo um amarelo para nosso volante. Mas a pancadaria seguia solta, porque era mais à base de encontrões que de agressões explícitas. Nossos jovens jogadores, treinados por Oto, aprenderam a bater sutilmente. E a retranca era forte, os meninos da caverna de baixo não conseguiam entrar na nossa defesa. O primeiro tempo terminou zero a zero. A torcida vibrava, fazia a maior pressão e era quase toda nossa. Aos doze minutos do segundo tempo, numa cobrança de falta, fizemos um a zero. Era preciso segurar por trinta e três minutos os adversários, que se atiraram como loucos ao ataque, não tinham medo de se arriscar, faziam jogadas fantásticas, mas tudo terminava nas asas de nossos zagueiros ou de nosso goleiro. Foi um drama. Mais de um morcego idoso da plateia teve que ser atendido por sentir-se mal.

Enfim, o argentino trinou o apito final, sem descontos, talvez intimidado pelos guinchos dos morcegos hematófagos, convidados de última hora, sem que eu soubesse, para reforçar nossa torcida. Não éramos a melhor equipe, mas éramos os campeões. O esquema montado para vencer o torneio funcionou. A festa entrou pelo dia. Eu nunca tinha visto morcegos em revoada às dez da manhã. Aurora fechou-se em sua toca. Tirei a manhã para dormir, já que os quirópteros, muitos deles bêbados, tão cedo não voltariam.

*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br