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Escuta, Zé-Ninguém

"Quem quer que esteja lutando pela preservação da vida e pelo futuro dos seus filhos deve necessariamente opor-se ao fascismo, mesmo que mascarado de democracia, tanto da direita como da esquerda. Não tanto porque os fascistas de esquerda, à semelhança dos fascistas de direita, no seu apogeu, tenham uma ideologia assassina, mas porque transformam os jovens em desempregados, em inválidos, em tristes e deprimidos; porque, através de uma informação alienante, exaltam o Estado mais do que a Justiça, a mentira mais do que a verdade e a guerra mais do que a vida".

Estas palavras, com mais de 60 anos, não são da minha autoria. São de Wilhelm Reich, no seu livro Escuta, Zé-Ninguém. E tudo isto, Zé-Ninguém, onde tu também tens algumas culpas. Foram perseguidos ou mortos Sócrates, Jesus de Nazaré, Galileu, Tomás Morus, Giordano Bruno, Mahatma Gandhi, Luter King, Nelson Mandela, Oscar Romero e tantos, tantíssimos mais, ao longo dos anos até hoje, e tu acreditaste e aplaudiste, numa atordoadora vozearia, as hipócritas palavras dos reis e dos ditadores e o cascalhar diabólico do riso de contentamento dos algozes e dos esbirros.

Muitas vezes dás a entender de que o que gostas, verdadeiramente, é de ditaduras. Com efeito, o ditador pensa e deseja e decide por ti. Tu ficas com o tempo bastante para beberes uns copos, para jogares às cartas, para navegares na internet, para discutires o trabalho dos árbitros de futebol e para contemplares, crédulo, acéfalos programas televisivos. E assim vais continuando Zé-Ninguém!

Há, em Portugal e num Estado de Direito, 852.000 desempregados e um OE de tamanha austeridade que a criação de empregos parece quase impossível. Por outro lado, o governo, por sua vontade, privatizava tudo: a saúde, a educação, a justiça, a defesa, etc, – enfim, tudo o que pode ser serviço público! Demais, trata-se de um governo de ideologia neoliberal, ou seja, sabe muito de economia, mas de uma economia ao serviço da exploração do trabalho, da maximização do lucro e do agravamento das desigualdades.

Escuta, Zé-Ninguém, sou, como tu, um apaixonado do futebol. O meu Belenenses vive dentro do meu coração. Mas sei que o futebol é produto, não é causa. Embora também não passe de um Zé-Ninguém para a lógica da economia neoliberal, o pensar ainda não paga imposto…

Escuta, Zé-Ninguém, o futebol é sintoma, não é causa! McLuhan disse, um dia, que o mundo se transformou numa aldeia global – a aldeia global do capitalismo neoliberal, da destruição dos fundamentos sociais da democracia e do Ronaldo e do Messi e do Neymar e tantos mais, também todos eles, embora inconscientemente, ao serviço da triunfante economia de mercado que não deixa passar um mês sem dolorosas medidas de desvalorização salarial, como se nelas residisse o principal fator de desenvolvimento.

Escuta Zé-Ninguém, não deixes de frequentar os estádios onde joga o clube do teu coração. O futebol é o fenômeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo. Mas, lucidamente, criticamente. Como um sujeito, não como um objeto!

Em 1969, no Estádio Nacional, eu vi um jogo de futebol (Acadêmica x Benfica, final da Taça de Portugal) transformar-se num espaço de contestação política ao fascismo salazarista. "Velhos tempos!", diremos nós. Mas com futuro…

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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A (re)construção do modelo de jogo e o ritmo de jogo

Uma determinada equipe apresenta ao final de uma temporada, para cada um dos momentos do jogo, um nível específico de resolução dos problemas que são impostos pelo jogo. Exemplificando, numa equipe que tem como comportamento de organização ofensiva sempre sair jogando evitando chutões e construir um ataque posicional com passes curtos, a comissão técnica tem condições de avaliar qualitativa e quantitativamente em que nível tais ações estão sendo executadas.
Com as mudanças dos jogadores ocorridas por diversos motivos, entre eles, contratações, promoções de atletas das categorias de base, negociações e até lesões, é fato que a nova formatação desta equipe expressa uma dinâmica do seu jogar significativamente distinta daquela que terminou a temporada. Ou seja, por mais que um time-base tenha se mantido, a chegada de quatro, três ou até dois jogadores é suficiente para gerar alterações funcionais no sistema que diferem do modelo de jogo pretendido.
Essas alterações são ainda mais bruscas se os comportamentos que se desejam construir são opostos aos que os jogadores apresentavam em seus clubes/treinadores anteriores. Como exemplo, um determinado jogador habituado a ter como referência para a marcação somente o adversário, terá dificuldades de adaptação num sistema em que as referências de marcação também consideram o próprio gol, a bola, a região do campo e os seus companheiros.
Então, no início da temporada, cada comissão técnica tem um trabalhoso problema nas mãos: verificar novamente em que nível sua equipe se encontra na resolução dos problemas do jogo. Para isso, mais do que verificar a condição física individual, que traz informações muito pobres relativas ao sistema, a comissão técnica precisa agendar um bom número de jogos amistosos. Somente jogando será possível conseguir a real informação de todos os comportamentos individuais e coletivos apresentados, relativos ao modelo de jogo.
Com a real informação da equipe em mãos, possibilitada por uma análise complexa, tem início o desenvolvimento da temporada competitiva (imediatamente para os grandes clubes brasileiros e mais tardiamente nas categorias de base e outras equipes que não disputam competições nacionais). Devido às mudanças supracitadas, provavelmente, muitos comportamentos de jogo terão regredido e então, a comissão técnica tem mais um trabalhoso problema nas mãos: o desenvolvimento das atividades que possibilitarão a evolução constante do sistema/equipe.
É neste aspecto do desenvolvimento da periodização que muitos treinadores se equivocam. Influenciados por resultados positivos em temporadas passadas, simplesmente replicam sessões de treinamento que julgam terem sido positivas em suas últimas equipes. Esquecem, portanto, que o novo sistema, formado por novos elementos, apresenta um jogar atual diferente daquele anterior, logo, as sessões de treino também devem ser diferentes.
Além disso, restringem o jogo coletivo ao somatório das ações individuais e não aprofundam em treinamentos que permitirão a expressão em alto nível de dinâmicas setoriais, intersetoriais e coletivas.
E qual o reflexo destes equívocos?
As desculpas comuns em todos os inícios de temporada, em que muitos treinadores justificam os maus rendimentos competitivos à falta de ritmo de jogo.
Planejar sessões de treino complexas, criar atividades que ao mesmo tempo sejam técnica-tática-física-mental, jogar, discutir, analisar e avaliar minuciosamente a equipe são princípios básicos de uma pré-temporada muitas vezes negligenciados pela comissão e aceitos pela diretoria e imprensa.
Felizmente, as ditas desculpas não duram mais que um mês. Infelizmente, as desorganizações em algumas equipes brasileiras (mesmo com ritmo de jogo) duram uma temporada inteira.
Como você realiza sua pré-temporada?