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Carta aberta ao doutor José Mourinho

Querido amigo,

Antes do mais, sou eu que devo agradecer-lhe. Em primeiro lugar, o convite que se dignou fazer-me, através da Senhora Presidente da Câmara, para participar na homenagem que o município da sua cidade natal hoje lhe presta.

Depois, as inúmeras entrevistas que venho dando a televisões dos cinco continentes, por esta única razão: porque o meu amigo me distingue, entre os seus professores no ISEF da Universidade Técnica de Lisboa.

Eu não deixo de dizer aos jornalistas, ávidos do meu pretenso saber, que o José Mourinho nunca aprendeu futebol comigo; que eu, em matéria de futebol, sou de uma aflitiva ignorância. Mas, eles acreditam mais no meu amigo do que em mim. E as entrevistas realizam-se, inevitavelmente, sob a cálida simpatia das suas palavras de apresentação.

Já o afirmei, no Chile, há seis meses atrás, na televisão também: O José Mourinho não é só um treinador, é acima de tudo um treinador genial! Por generosidade sua e do José Maria Pedroto e do Jorge Jesus e ainda por influência dos meus estudos, no âmbito da epistemologia, aprendi a ver o texto e a descobrir o contexto de um jogo de futebol.

O Sr. Pedroto era de uma curiosidade imparável. O seu fantástico sonho de um futebol de excelência deixava-nos a sonhar com um futebol que há-de nascer… um dia! Tenho pena de ter dialogado, com ele, tão poucas vezes!

No Jorge Jesus comove-me o sorriso benigno que se lhe derrete nos lábios, quando lhe explico o meu conceito de motricidade ou o de complexidade ou o de ciência hermenêutico-humana. Não esqueço o agradecimento a luzir nos olhos de um azul transparente e acariciador do atual treinador do Benfica, sob determinados aspetos um superdotado também…

O nosso comum amigo, prof. Luís Lourenço, na sua tese de mestrado, desceu aos abismos insondáveis dos meus papéis e encontrou os sumários das aulas que o meu amigo fez o favor de escutar-me.

Aí vai o resumo: a unidade prática-teoria; a complexidade presente, em todos os domínios da prática desportiva; o desporto como movimento em busca permanente da superação e como subsistema de uma ciência humana; a denúncia de uma preparação física, desinserida da totalidade do treino; o diálogo, aprofundado e constante, entre o desporto e as outras ciências humanas e da natureza; a expressão hegeliana "a verdade é o todo"; a necessidade de uma "revolução científica", nos cursos de treinadores e das licenciaturas em Desporto; o respeito pela pluralidade dos modos de conhecimento, devendo respeitar-se e estudar-se os treinadores e os jornalistas de grande prática e de sério estudo, mesmo que não licenciados em Desporto; o desporto é mais do que desporto. Tudo isto, há 31 anos!

Partindo daqui; da sua prática, no mundo do futebol; e das suas qualidades intelectuais, verdadeiramente invulgares (bem patentes no seu olhar de um brilho astuto), o meu amigo chega rapidamente à conclusão que é um especialista numa ciência hermenêutico-humana e desenvolve todo o seu trabalho, à luz não tanto de uma periodização tática, mas de uma periodização antropológica e tática.

Sem homens para a tática, não há tática. Aliás, não há saltos, há homens (e mulheres) que saltam; não há chutos, há homens (e mulheres) que chutam; não há corridas, há homens (e mulheres) que correm.

Se eu não compreender os homens (e as mulheres), jamais compreenderei os saltos e os chutos e as corridas. Esta é, ou não, a revolução que o meu amigo fez, no mundo do futebol? Não, a sua revolução não é tática. A sua revolução é humana. E, enquanto não se entender isto, jamais se entenderá o treinador de futebol, doutor José Mourinho.

O meu caro colega (falo em termos universitários) nada me deve, no que ao futebol diz respeito. Com 80 anos, já não estou em idade de plagiar, nem de vestir o que não me pertence.

Mas, louvo-me de não ter faltado ao rigoroso compromisso que tomei de não deixar de realçar o que, no José Mourinho, deve ser realçado: o meu amigo é um grande treinador de futebol, porque é um gênio, intelectualmente falando. Repito-me: não, a sua revolução não é tática. A sua revolução é humana. E, porque é humana, o meu amigo é um vencedor.

De fato, o desporto é bem mais do que uma atividade física, é verdadeiramente uma atividade humana. Bem andou a Presidente da Câmara de Setúbal, na homenagem que lhe promoveu. O José Mourinho é o setubalense mais conhecido, no mundo todo. Eu disse "o setubalense"? Talvez devesse dizer “o português”…

Seu Manuel Sérgio.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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Jogo de cena

A coluna é sobre futebol e o site é a Universidade do Futebol, mas peço licença para começar falando de outro esporte. A história que abre o texto aconteceu no último domingo, em Kuala Lumpur, no Grande Prêmio da Malásia de Fórmula 1. O evento também pode ser lembrado como o pódio mais triste da história do esporte.

Por motivos diferentes, Sebastian Vettel (Red Bull Racing), Mark Webber (Red Bull Racing) e Lewis Hamilton (Mercedes), os três primeiros da prova, exibiram no pódio expressões que em nada condiziam com o resultado. A sensação contraditória foi agravada por uma entrevista realizada durante a premiação.

O procedimento, aliás, é uma das inovações recentes da Fórmula 1. A categoria passou a entrevistar os pilotos que formam o pódio de cada etapa. A ideia era captar declarações efusivas, festas e emoção, mas o último domingo mostrou que o momento posterior a uma corrida também pode servir para desabafos e constrangimento.

A começar por Vettel, atual tricampeão do mundo, autor da manobra mais polêmica do GP da Malásia. Ele estava em segundo, atrás de Webber, e ignorou um pedido da Red Bull para que os dois pilotos reduzissem o ritmo. Enquanto o líder desacelerou, o alemão aproveitou e tomou a dianteira.

Na entrevista posterior à corrida, Vettel tentou contemporizar. O alemão admitiu ter errado e pediu desculpas a todos pela insubordinação. Em vez de comemoração, o que ele mostrou foi puro constrangimento.

Webber, jogado ao segundo posto da corrida, estava bem menos contido. Em vez de abatimento ou rubor, o australiano exalava indignação no pódio da Malásia. A sensação era de que faltou uma faísca – uma declaração atravessada de Vettel, por exemplo – para ele cobrar na festa a atitude do companheiro na pista.

O último componente do pódio era Hamilton. Mas, segundo ele mesmo, não por méritos. "[Nico] Rosberg devia estar aqui no meu lugar. Ele fez um trabalho fantástico", disse o inglês.

Nas voltas finais, Hamilton teve de economizar combustível e diminuiu o ritmo. Nico Rosberg, companheiro dele na escuderia Mercedes, estava atrás e tinha mais velocidade. Ele chegou a pedir que a equipe ordenasse uma inversão de posições. Contudo, pensando na classificação do campeonato, a diretoria rechaçou a ideia.

"Ele teve um ritmo melhor na corrida. Sendo honesto, acho que ele deveria estar aqui [no pódio]", completou Hamilton, evidentemente consternado.

São muitas histórias para apenas uma corrida, mas todos esses episódios servem para discutirmos conceitos fundamentais de comunicação. Afinal, a Fórmula 1 teve um embate duro entre o que deve ser falado e o que deve ser omitido.

Como qualquer produto de mídia, a Fórmula 1 depende de jogo de cena. Essa é a justificativa para a categoria não oficializar a existência de trabalho em equipe – a prioridade estratégica a um piloto é um acordo tácito, que a cúpula da disputa teima em não reconhecer.

Temos, então, um enorme jogo de cena. Por não admitir que as equipes podem controlar posições de seus pilotos e ordenar inversões em nome da classificação, a Fórmula 1 cria uma imagem falsa e extremamente frágil.

Por outro lado, temos um excesso de verdade nas declarações dos pilotos. Entrevistas feitas logo depois de competições sempre são suscetíveis a reações passionais ou exacerbadas.

Sobre isso, existe uma excelente passagem na autobiografia do tenista norte-americano Andre Agassi (Agassi, Autobiografia – Globo Editora, 2010). O ex-atleta admite que não se lembra de praticamente nada do que falou aos repórteres que o interpelaram na quadra. Preocupado com o jogo ou tomado por adrenalina, ele perdia o controle sobre a conversa.

É essa falta de controle que muitos repórteres buscam quando entrevistam atletas. O momento é uma explicação fundamental para tantos deslizes e tantas histórias engraçadas registradas assim.

A primeira coisa que a corrida da Fórmula 1 ensina é que é impossível mentir para o público. Se você trabalha com comunicação, é fundamental ser honesto. Ou parecer honesto, pelo menos. Construir um perfil ilibado com base em jogo de cena é um risco enorme para a credibilidade. E uma competição vende, antes de qualquer coisa, a própria credibilidade.

Na outra ponta, a Fórmula 1 também ensinou que o organizador deve se preocupar com as histórias que o evento conta. Criar um procedimento de entrevista no pódio é legal para aumentar a exposição de patrocinadores, mas é um risco para o clima da festa.

A saída, nesse caso, é assumir um pouco mais o controle da interação com a mídia. A organização deve pensar no momento e nos assuntos ideais para abordar com os pilotos. Criar polêmicas e mostrar insatisfação dos atletas são posturas honestas, mas que podem arranhar a imagem do evento.

Atualmente, o Real Madrid tem mais jornalistas trabalhando no clube do que qualquer veículo que cobre o cotidiano merengue. O que justifica essa concentração é que a equipe tenta controlar o acesso à informação. Com mais gente produzindo conteúdo, é mais fácil blindar atletas e reduzir o contato entre eles e os setoristas. Assim, também é mais fácil disseminar "versões oficiais".

A comunicação depende de estratégia. Antes de falar, é necessário saber o que falar e como falar. Se um evento não pensa nisso e oferece todo tipo de fonte à mídia, é bom estar preparado para deslizes.

E o que o futebol pode tirar de tudo isso? Em primeiro lugar, é fundamental repensar o modelo de entrevistas que se tornou popular no Brasil. O acesso a jogadores depois de um jogo é cômodo para a imprensa, mas demanda um planejamento muito grande de quem faz a comunicação de clubes, entidades e campeonatos.

Jornalistas costumam reclamar da pasteurização da informação. Normalmente, usam o excesso de entrevistas coletivas e a dificuldade de acesso como argumentos para isso.

As coletivas e a informação oficial como base são um caminho irreversível. Clubes, entidades e campeonatos precisam zelar por patrocinadores e conteúdos que desejam ver na mídia. Para isso, precisam tentar controlar o material distribuído.

Não defendo, porém, que os repórteres se acomodem com isso. A blindagem do conteúdo é fundamental para garantir os interesses de quem organiza. Fazer jornalismo, invariavelmente, é contrariar isso.

Millôr Fernandes disse: "Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados". O problema é quando a imagem não é debelada por quem está na redação, mas pela própria mídia oficial.

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofut
ebol.com.br