Muita gente no Brasil vibrou com a eliminação da Alemanha da Copa. Esses se sentiram vingados, ou parcialmente vingados, pelos 7 a 1 do mundial anterior, mas há inúmeras discrepâncias entre o vexame alemão de 2018 e a humilhação brasileira de 2014.
A derrota do Brasil há quatro anos simbolizou tudo o que há de errado em nosso futebol. Não foi o ‘time de Felipão’ que foi humilhado. Foi o futebol brasileiro que ali teve a sua inferioridade global mostrada a todo o planeta. Estamos doentes faz muito tempo. Mas no Mineirão em 2014 foi aberta uma enorme ferida que ficou evidente para todos o tamanho e a profundidade da nossa péssima saúde.
E entenda que aqui não há nenhum complexo de vira-lata. Muito menos oportunismo. Não foi porque ganhamos em 2002, por exemplo, que tudo estava perfeito. Pelo contrário. Já estávamos envolvidos com inúmeras CPIs e acusações. Mas um título mundial sempre causa a falsa impressão de que está tudo bem. Muitas vezes o torcedor compra a ideia de que seleção e futebol brasileiro são a mesma coisa. Mas não. São coisas completamente diferentes. O nosso time é e sempre será um dos melhores do mundo. Porém ele não representa em sua totalidade o futebol do país. Falo aqui de dirigentes, calendário, renda dos clubes, condições de trabalho, qualidade do campeonato nacional e uma serie de outras coisas.
Você acha que se o Brasil de Tite ganhar a Copa estará tudo bem? O atual e últimos presidentes da CBF são gênios? Estamos em nossos campeonatos locais praticando um futebol de qualidade? Tenho dúvidas.
A Alemanha mesmo tendo sido um fiasco na Copa da Rússia segue no caminho certo. O planejamento estabelecido após o vice-campeonato de 2002 segue adiante normalmente. Os alemães entenderam naquele momento que estavam muito arraigados no futebol jogado no século passado. E revolucionando a formação dos jogadores, técnicos e fortalecendo o campeonato nacional mudaram completamente sua filosofia de jogo.
Outro exemplo que corrobora com isso: a seleção da Inglaterra não ganha nenhuma Copa desde 1966. Mas eles tem a melhor liga do mundo. Compreende a diferença entre gestão do futebol e o que representa a seleção do país?
O torcedor brasileiro tem todo o direito de comemorar a desclassificação da Alemanha. Mas eles estão no caminho certo. Já nós…mesmo ganhando a Copa estamos na segunda, caindo para a terceira divisão mundial.
Mês: julho 2018
Categorias
Categorias
Análise do Jogo: Brasil 2-0 México
Confira a análise dos gols da partida (o vídeo acima contém imagens da emissora Cuatro e FIFA).
Frente à forte seleção mexicana e após 30 minutos de muito equilíbrio, o Brasil mostrou porque é a principal candidata ao título mundial. Conseguiu ter um desempenho ainda melhor que nos jogos anteriores, controlou um grande adversário, criou muitas chances de gol e sofreu poucas.
Talvez a palavra que mais traduza a seleção brasileira até agora na Copa do Mundo é o equilíbrio. O Brasil tem sido uma seleção que sofre muito pouco em sua defesa (Alisson é o goleiro que menos defesas fez na competição) e no ataque não apenas cria, mas finaliza no alvo e marca gols.
É uma seleção que coloca a imensa qualidade dos seus jogadores em favor do coletivo, da organização de jogo, numa relação em que tanto jogadores como equipe se beneficiam, já que também a boa organização de jogo favorece o aparecimento das individualidades. Mérito inegável de Tite e sua comissão técnica.
México impõe seu plano de jogo nos primeiros 30 minutos:
Juan Carlos Osório disse que sua equipe não iria se acovardar diante do Brasil e de fato foi isso o que ocorreu, principalmente durante os primeiros 30 minutos do jogo.
Ora com pressão alta, ora a partir da intermediária, o México marcou a saída de bola do Brasil sempre que possível e impôs ao Brasil um tipo de jogo que ainda não havia enfrentado na competição.
Com Rafa Márquez de titular, o México povoou seu meio-campo, fazendo uso de encaixes de marcação (somente na zona da bola) e uma reação pós-perda muito rápida e agressiva. Com boa intensidade, a seleção mexicana fechava as linhas de passe e deixava o Brasil desconfortável para sair jogando, impedindo a seleção brasileira de tocar a bola da maneira em que está habituada a fazer.
Para ler a análise na íntegra, clique aqui.
Não é preciso muito esforço para observar como nós, treinadores ou meros admiradores do futebol, costumamos argumentar sobre o jogo a partir da lógica do controle. ‘Queremos ter o controle do jogo’, diria alguém. ‘O jogo estava sob controle, mas nós nos desconcentramos’. A impressão é de que o jogo está sempre sob o nosso domínio, uma espécie de animal a ser domesticado pelos humanos.
Me parece que não. O mundo do jogo não é desprovido de racionalidade: tem uma racionalidade própria, diferente da nossa. A racionalidade própria do jogo funciona como funcionam as batidas de um coração: por motivos próprios, à revelia da vontade humana. Blaise Pascal, aliás, afirmou certa vez que o coração tem razões que a própria razão desconhece– um dos mais belos aforismos já escritos, especialmente verdadeiro para quem já amou ao menos uma vez na vida (além de deixar implícita uma certa primazia das paixões sobre a razão). Me parece coerente admitir que o mesmo acontece no jogo: o jogo também tem razões que a própria razão desconhece.
Em linhas gerais, vejo a ideia de controle baseada em dois pilares importantes: a razão e os sentidos. No primeiro caso, temos uma tendência a superestimar as potencialidades da razão humana, a fantasiá-la maior do que ela é, o que geralmente nos faz flertar com os sonhos, com o imaginário, mas não necessariamente com o real. Assim, não raro criamos expectativas absolutamente incoerentes com as nossas reais possibilidades. Quando lutamos pela humanização do treino e do jogo, lutamos pelo mais sincero reconhecimento dos nossos limites, pois reconhecê-los na sua inteireza é um requisito obrigatório para que possamos ultrapassá-los. Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.
No segundo caso, os sentidos também nos enganam. Repare que os sentidos (especialmente a visão) são a nossa porta de entrada para a experiência, o que não significa que eles sejam plenamente confiáveis. Afinal, os sentidos estão sob a influência das paixões e, além disso, os sentidos captam apenas as aparências de um certo objeto, mas não necessariamente a sua essência (a sua verdade). Ou seja: se baseamos a maioria absoluta das nossas conjecturas sobre futebol nos sentidos (o que não é errado), talvez precisemos admitir que podemos ter ótimas hipóteses, mas não alcançamos necessariamente o real. Não há controle, se você preferir.
No domingo à tarde, li e ouvi vários colegas indignados com a Espanha de Fernando Hierro, que teria sido preguiçosa e esnobe, especialmente quando estava em vantagem no placar contra a Rússia. O empate e a derrota nos pênaltis seriam uma punição, um castigo dado pelo jogo à equipe que deveria fazer mais e não fez. Mas este não me parece o ponto: a Espanha de Hierro não fez mais porque não quis. Não fez mais porque não conseguiu. Porque enfrentou suas próprias limitações e porque enfrentou um adversário inteligente, que conhecia a si mesmo e ao outro e que, por isso, defendeu-se em uma linha de cinco e baixou o bloco. Porque um dos melhores zagueiros do mundo fez um pênalti absolutamente impensável. Porque essas nuances nos escapam. Interpretar o jogo como uma relação de causa/consequência a partir da racionalidade humana é o exemplo clássico do que falamos até agora: uma ilusão disfarçada de verdade. Me parece o extremo oposto das leis que regem o jogo. Elas têm razões próprias.
Mas se não é possível controlar, o que devemos fazer? Em primeiro lugar, treinadores e treinadoras precisam deixar ir. É preciso adotar uma postura realista, que investe a totalidade das energias naquilo que pode ser controlado (nós mesmos) ao mesmo tempo em que admite a existência de uma face do jogo desconhecida, oculta – algo próximo do que os estoicos chamavam de ataraxia. Em segundo lugar, talvez o caminho não esteja no controle, mas na adaptação. Ao invés de tentar adestrar o jogo, como se adestra um animal qualquer, o treinador constrói um processo realista (é mais fácil o jogo domesticar o jogador) e, exatamente por isso, cria estratégias adaptativas, cria problemas que permitam dançar a dança do jogo a partir do repertório, das ideias e do conhecimento – de si e dos outros. Por isso, aliás, faz tanto sentido pensar que o treino é jogo e o jogo é treino.
Se você preferir, o treinador é como um médico, que faz uma anamnese da sua paciente (a equipe) e que, a partir dos recursos que têm, estabelece um tratamento razoável. À medicação principal, que resiste ao longo do tempo, nós chamamos de modelo de jogo. Ao mesmo tempo, são importantes medicações secundárias, ajustes, estratégias e ideias para tratar das moléstias específicas de cada jogo. Ao treinador, cabe avaliar diariamente os efeitos causados pelo tratamento escolhido. Assim como o médico escolhe uma dada intervenção, mas não a reação do organismo à ela, o treinador escolhe o modelo e as ideias, mas não escolhe se elas serão aceitas pelo jogo. Se não forem, cabe ao treinador adaptar-se, como faz um médico quando o tratamento inicial não dá resultados.
Porque as razões do jogo são outras e porque nós dependemos dela mais do que o contrário.
***
PS: mudando de assunto, repare em todo o movimento de Romelu Lukaku no lance que deu a vitória à Bélgica contra o Japão. Me parece um vídeo de almanaque. Qualquer garoto que almeja ser centroavante um dia deveria ver isso:
https://twitter.com/EnricSoriano_/status/1013878435452784641
Categorias
Rafa Márquez e a isenção da imagem
O zagueiro mexicano Rafa Márquez é um dos maiores de sempre em sua posição no futebol mundial. Jogou em grandes clubes pelo mundo e é um dos poucos que disputaram cinco Copas do Mundo. Jogar ao lado de outros grandes futebolistas, a manter um alto nível em meia dezena de mundiais, ou seja, por aproximadamente vinte anos. Um atleta em potencial para eventualmente atrair um patrocinador. Muitas marcas podem estar em negociação com ele.
Ledo engano. Podem até estar. Entretanto Rafa Márquez enfrenta um processo da justiça norte-americana por envolver-se em lavagem de dinheiro de um narcotraficante do seu país natal. Em função disso nenhuma marca de origem estadunidense pode se envolver com ele. Ademais, a organizadora da Copa do Mundo, a FIFA, proibiu quaisquer pronunciamentos do atleta durante o mundial em coletivas de imprensa ou entrevistas exclusivas. Em princípio, a fornecedora de uniformes do México é alemã, alguns patrocinadores são mexicanos sendo um deles mexicano-americana e uma marca de bebidas, americana, o que impediria o defesa a ostentar a logo nos equipamentos de treino. Porém, a federação local optou por não ostentar nenhum apoiador no material usado por Rafa Márquez, a fim de preservá-lo esportivamente e as empresas, de maneira legal.
Até onde vai o futebolista em atividade, recordista de mundiais e com um incomparável palmarés e começa o que fora de campo é relacionado a um crime? É uma delicadíssima questão. Coloca em cheque os valores e princípios de todas as partes envolvidas. De maneira inteligente mas também levado a esta opção, Rafa Márquez optou pelo silêncio durante o desenrolar do processo jurídico. Simultaneamente a federação mexicana optou por não expor quaisquer patrocinadores na camisa de treinamento. Por associação, a impressão que se tem de um atleta pode também ter uma marca e, para quebrar uma boa imagem ou relação de confiança, basta um mínimo deslize.
Com tudo isso, antes de tudo um futebolista profissional – sobretudo o de uma seleção que joga uma Copa do Mundo – é um exemplo para a sociedade: é talvez a configuração máxima da meritocracia, algo tão pouco observado publicamente em nossa sociedade – e digo a brasileira. Ou seja, se alguém está “lá” (no Mundial de futebol) é porque merece, fez por onde. Até agora nada foi provado contra ele e, por isso, pode e merece estar lá.
Categorias
O jogo que queremos
O meio-campista Paulinho, 29, titular da seleção brasileira que disputa a Copa do Mundo de 2018, contou no site “The Player’s Tribune” uma história que deveria ser obrigatória para todos que trabalham com futebol. Aconteceu em 2015, quando ele teve uma oportunidade de trocar o Tottenham, time em que vinha sendo pouco aproveitado, pelo chinês Guangzhou Evergrande.
“Meus amigos pensaram que eu tinha ficado maluco. Eles me escreveram dizendo: ‘China? O que você vai fazer na China?’. Eu respondi: ‘China, cara. Vamos ver’. Eu vivo de acordo com o que o Dani Alves uma vez me disse, quando eu estava passando por um momento difícil na minha vida. Ele falou: ‘Nós somos apenas moleques brincando na chuva, cara. Se der errado, e daí?! É o fim do mundo?! Não, cara. A gente encontra outro lugar para brincar’.”
A evolução do futebol em diferentes âmbitos mudou radicalmente o processo de tomada de decisão no jogo. Nas últimas décadas, cada passo de um atleta em campo tem sido sustentado por uma carga de estudo que abarca segmentos como preparação física, psicologia, pedagogia, fisioterapia, medicina e os próprios fundamentos do jogo. Ver uma partida de dez ou 20 anos atrás é suficiente para entender a alteração na dinâmica, na velocidade e nas demandas técnicas do esporte. Mas isso não muda um princípio basilar: por mais científico, sério e cheio de alternativas oriundas de diferentes áreas, o futebol é e sempre vai ser um jogo. No fim, aqueles atletas correndo atrás de uma bola são, como disse Daniel Alves, crianças brincando na chuva.
A comparação, importante frisar, não tem nada a ver com seriedade. Daniel Alves pode defender que jogadores não são nada além de crianças brincando na chuva, nunca usou essa lógica para ser irresponsável. Ao contrário: detém o currículo mais vitorioso da história do esporte. Respeitar o futebol também é saber levá-lo com alegria e tratá-lo como o entretenimento que é.
Entender essa lógica é parte fundamental de qualquer análise sobre desempenho de grandes seleções na Copa do Mundo de 2018. Sobretudo num momento em que há um debate extremamente polarizado sobre o estilo da Espanha, eliminada pela Rússia nas oitavas de final.
Forjada a partir da Euro 2008, a Espanha consolidou nos anos seguintes um perfil de troca de passes e valorização da posse de bola. Uma geração influenciada pelo Barcelona de Pep Guardiola, alicerçada no dueto entre Xavi e Andrés Iniesta no meio-campo. Foram dois títulos continentais e uma Copa, sempre a partir de um estilo.
No entanto, o futebol de hoje não é o de 2010. A média de passes trocados pela Espanha na Copa deste ano supera em quase 200 a quantidade de toques que os jogadores da Fúria distribuíram na campanha do título da África do Sul. A posse de bola continuou, mas as defesas evoluíram a ponto de isso não ser suficiente para encontrar espaços. O desafio que se apresentou a eles foi conciliar a valorização da posse de bola com o sentido mais agudo e mais capaz de decidir.
O estilo da Espanha é fundamental como marca e como identidade, mas a seleção se afastou do contexto durante os anos. E ao fazer isso, tornou-se um produto pouco afável a diferentes públicos – ainda existe um grande número de seguidores do que a equipe representa, mas o perfil também gerou um grupo significativo de detratores. Essa dicotomia é uma das marcas da Copa do Mundo de 2018.
Numa competição marcada por fracassos de times como Alemanha e Espanha e pelo ocaso de estrelas como Cristiano Ronaldo, Lionel Messi e o próprio Iniesta, uma das marcas mais evidentes do Mundial da Rússia é a distribuição de questionamentos sobre o jogo enquanto produto de entretenimento.
Como produto de entretenimento, o futebol tem uma missão de divertir. Ganhar é parte fundamental do jogo, mas o encantamento é uma vitória ainda maior na relação com o público consumidor. A Espanha da Copa de 2018 aqueceu novamente um debate sobre isso.
Há outros debates sobre a Copa de 2018 que partem da mesma lógica. O comportamento de Neymar, a falta de gols de Gabriel Jesus, as seleções que Messi e Cristiano Ronaldo não conseguem carregar nas costas: no limite, todas as discussões são sobre o futebol que o público gostaria de ver e não consegue.
A Copa do Mundo de futebol é o maior evento de entretenimento do planeta. Nada consegue atingir uma audiência tão massiva ou despertar tantas reações de impacto ao redor do planeta. Até por seu gigantismo, também é um exemplo de que o jogo real nem sempre é o que as pessoas querem ver.
Esse é um enorme problema de comunicação, aliás. A Copa pode ser gigante, movimentar orçamentos gigantes e chegar a públicos gigantes, mas o sucesso do futebol tem relação com sua essência: afinal, são apenas meninos brincando na chuva.