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Propor o jogo ou jogar em transição?

Ainda não consegui digerir as alegações que construir um jogo de contra-ataques é mais fácil e seguro que o jogo de posse de bola!
Temos a equivocada impressão que jogar com proposição é atacar sempre e com total domínio do jogo, enquanto em transição só se defende à espera de um lance para decidir. Nem uma coisa, nem outra! Pode-se impor ao adversário com jogos de proposição, transição ou outro qualquer. Além do mais, quase sempre, as equipes apresentam alternância de posturas, por mais que uma domine a outra.
Ao falar neste assunto estamos nos atentando para um míope olhar do futebol brasileiro que, não raro, apresenta soluções infundadas a respeito das ideias de construção do jogo.
No Brasil, praticamos o verdadeiro “samba do crioulo doido” nas escolhas e demissões dos nossos treinadores e só por isso já não seria justo esperar do nosso jogo respostas táticas consistentes em meio a tantas dificuldades.
É fato, na construção do jogo, qualquer modelo necessita de tempo para ser implantado. Se se quer propor o jogo ou jogar em transição será preciso tempo e competência.
Costumamos acreditar que na construção do jogo de proposição é necessário mais tempo de trabalho que no jogo de transições. Ainda que um tenha mais ou menos detalhes que outro, não devemos considerar apenas o tempo como condicionante.
Além disso, erroneamente consideramos que no jogo de transições basta ficar recuado – com o bloco defensivo baixo – e esperar que “uma bola” surja em ação ofensiva para que tenhamos a vitória. Isso não é jogo de transição, é jogar “retrancado”. Que pode ser uma opção. Não tenho nada contra!
Aqui, cabe citar lições que este lindo e complexo jogo nos traz todos os dias: no Grêmio 2X1 Estudiantes, jogo do último 28 de agosto, o time argentino “abdicou de jogar por” quase 90 minutos. Ficou muito na defensiva. Esta nunca será uma proposta de jogar em transição. O Estudiantes esteve entregue à “sorte” e ao massacre gremista por opção ou imposição adversária, não posso afirmar. Mas que isso não é jogo de transição, aí sim, posso fazer! Loteria, talvez!?
Praticar o jogo de transições leva em consideração muitas variáveis táticas a serem treinadas e praticadas. A equipe que se propõe a utilizar essa forma de jogar tem de treinar e fixar conceitos táticos que a permita fazê-lo. Eu diria até que, praticando um jogo de transição, pode-se ter o controle do jogo também. Pensem nisso!
Jogar com proposição de jogo significa jogar com imposição sobre o adversário. Mais ou menos ofensivo, com verticalidade ou horizontalidade no jogo, vai depender de muitas circunstâncias. Sob domínio do oponente, resta à equipe acuada reagir às ações da equipe dominante – vide como reagem os adversários dos times do Guardiola.
Para não ser injusto e parecer mais um tiete deste grande gênio do futebol no século 21, outras equipes pelo mundo têm praticado também o jogo de imposição com muita eficiência. Sejam eles com transição ou proposição de jogo. Costumamos gostar mais do jogo de posse de bola como forma de dominar o adversário. O Guardiola nos ensinou isso também.
Um grande elemento a considerar no jogo de proposição é a competência mental. Muitos esforços, individuais e coletivos, devem ser feitos neste sentido para manter por muito tempo o controle do jogo. Não há como se “desligar”!
Qualquer perfil de jogo demanda vários elementos na sua construção:

  • Elenco de jogadores vocacionado a desempenhar as ideias táticas propostas;
  • Força mental;
  • Método de treinos;
  • Tempo para a construção do jogo;
  • Ideia de jogo – jogo sem ideias é jogo reativo, “pelada”;
  • Dentre muitos outros fatores…

O que poderíamos concluir é que jogar em transição ou com proposição requer alto grau de competência técnica e abrangência de conceitos para a construção de jogos de qualidade. Além do mais, muitos conceitos táticos do jogo são comuns às duas formas de jogar ou outra qualquer que se queira. São princípios táticos do jogo, sem os quais não se tem jogo!
Devido ao desmazelo de pretensos construtores de jogo costumamos ver alguns jogos, que mais parecem outra modalidade esportiva, nunca o futebol. No Brasil mesmo temos desses exemplos.
Depois voltaremos a falar mais do assunto!
Até…
 

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Sobre o treinador que pensa por si

Telê Santana: um exemplo tácito do pensar por si? (Imagem: goal.com)

 
Poucas qualidades são mais saudáveis, para treinadores e treinadoras, do que a capacidade de pensar por si. Não apenas porque os outros já existem, como nos lembrou Oscar Wilde, mas porque o jogo é tão plural, um emaranhado de tamanhas possibilidades, que há espaço para as mais diversas formas de pensar, as mais diversas estratégias e modelos, especialmente se elas forem frutos do processo de afirmação de quem as constrói, se forem um parto de ideias.
Reparem, leitores e leitoras, que vivemos em um tempo de abundância informacional como jamais se viu anteriormente. Treinadoras e treinadores acessam, em um mero toque no smartphone, os mais elaborados relatórios e estatísticas, jogos dos mais diversos campeonatos mundo afora (em tempo real!), aforismos ou análises dos mais diferentes formadores de opinião, brasileiros ou não. As conexões virtuais estão mais afirmadas do que nunca e isso, a priori, seria motivo de regozijo e satisfação, pois estaríamos munidos com aquilo que talvez tenha sido o sonho de muitos dos nossos antepassados profissionais.
Mas, ao mesmo tempo, em que medida o excesso informacional compromete nossa real capacidade de reflexão? Me lembro de uma brilhante crítica de Arthur Schopenhauer (que indico desde já), no seu A Arte de Escrever, quando ele observa que um dos malefícios da leitura compulsiva é que ela, ao longo do tempo, pode afrouxar os músculos mais críticos do leitor, de modo que ele, sem perceber, perca a capacidade de pensar por si. Afinal, quando lemos, visitamos uma outra pessoa, pensamos pelo pensamento dela e, mais tarde, devemos retornar à nossa própria visitação, quando interrompemos a leitura e refletimos, fazemos nossas ponderações, digerimos as palavras do outro como se digere um alimento qualquer. Mas, se lermos sem parar, como poderíamos refletir?
O mesmo raciocínio me parece aplicável à formação de profissionais do futebol, nos mais diversos contextos. É bem verdade que nossa realidade parece outra, na medida em que, infelizmente, nosso tempo dedicado à leitura está cada vez menor – seja no futebol ou fora dele. Mas, ao mesmo tempo, a imagem de Schopenhauer me parece presente, à sua forma. Quando nos entregamos em tamanhos jogos, em tantas entrevistas e modelos de jogo, especialmente não-brasileiros, me parece que corremos um risco bastante razoável, às vezes imperceptível, de um afogamento ideológico. Quando mergulhamos inadvertidamente nas ideias alheias, sem submetê-las ao nosso próprio julgamento, estamos, ao meu ver, cometendo uma razoável violência conosco, com nossa história, nossos valores. Assim como voltamos às nossas residências após visitar uma pessoa querida, não me parece razoável morarmos nas ideias alheias, em detrimento das nossas próprias. É preciso pensar por nós mesmos, amigos e amigas.
Talvez aqui esteja um dos motivos importantes porque, inacreditavelmente, ainda não sejamos treinadores e treinadoras cobiçados pelos europeus. Veja bem, não defendo que sejamos espectadores passivos da agenda futebolística europeia (o que me parece absolutamente pernicioso), mas algo parece desafinado quando nossos atletas despertam tamanho interesse e nós, treinadores, não. É muito provável que os atletas sejam tão visados porque ainda carregam consigo, apesar dos novos tempos, uma herança futebolística que não se perde de uma hora para outra, um patrimônio cultural do qual devemos ser absolutamente orgulhosos, pois o futebol brasileiro talvez tenha causado o maior dos incômodos futebolísticos do século passado, com o drible, a finta e a inteligência que pareciam imbatíveis, e que despertaram o desenvolvimento das mais diversas estratégias e metodologias que pudessem nos superar – o que aconteceu. Ainda que implicitamente, havia ali um jogar próprio, autônomo, que nos caracterizava com nação e que, evidentemente, nos fazia únicos.
Me parece que podemos avançar neste sentido quando pensamos na nossa formação como treinadores e treinadoras. Podemos, sem quaisquer dúvidas, elaborar um pensar futebolístico próprio, um idioma que nos caracterize tanto como nação, quanto como indivíduos. Ao meu ver, passamos por uma pequena involução neste sentido, na medida em que estamos excessivamente admirados com o que se produz lá fora e, em alguma medida, afrouxamos ligeiramente alguns dos nossos mais importantes músculos reflexivos, que se veem perdidos quando precisamos transpassar as ideias de outrem para a nossa prática, o nosso contexto. Imaginem vocês, com a riqueza cultural que nos é peculiar, quantas possibilidades ainda temos para o nosso futebol e para o nosso esporte? Quanta originalidade está aqui, adormecida, à espera de um toque de autonomia que nos faça ser não uma mera cópia alheia, mas a mais elaborada versão do nosso pensar e do nosso ser?
Há um enorme horizonte pela frente, no futebol e fora dele, e é preciso explorá-lo.
Pelos outros e por nós mesmos.