Pensemos aqui, para começo de conversa, em uma situação absolutamente comum para quem já mergulhou no processo de treino: depois de fazer o melhor planejamento, estabelecer o mais correto modelo de jogo e materializar um processo elogiável, sua equipe enfrenta um adversário sabidamente mais forte. Independentemente do resultado, faz um jogo equânime e a impressão, para atletas e comissão técnica, é absolutamente positiva. No jogo seguinte, após uma semana de treinamentos ainda melhor, um profundo estudo do adversário, talvez uma estratégia até mais detalhada, sua equipe enfrenta um dos mais fracos adversários do campeonato. E faz um jogo péssimo, para desgosto de atletas, comissão, diretoria, torcida, imprensa. Ora, qual é a sua equipe, de fato: a do primeiro jogo ou a do segundo?
Nenhuma das duas, evidente. Especialmente em momentos de crise – no futebol, não são poucos – é mais do que comum desenvolvermos teorias racionalmente aceitas para explicar os fenômenos que se materializam no jogo. Mas o meu ponto aqui é outro: há uma face do jogo, de tamanho bastante razoável, que é absolutamente invisível. Assim como a psicologia nos mostra que existe uma (pequena) mente consciente e uma (imensa) mente subconsciente – onde costuma residir o essencial -, também parece haver, no jogo, uma dimensão visível, alcançável aos olhos, mas também um outro lugar, uma face absolutamente relevante que está ali, nós sabemos, mas que não pode ser vista. E talvez não possa sê-lo porque o jogo opera sob regras muito particulares, diferentes daquelas que regem o nosso próprio funcionamento como indivíduos. O jogo tem vida própria, e uma das grandes potências do jogar é exatamente a imersão em um lugar que não é nosso: uma espécie de locação, um empréstimo de nós mesmos aos outros e ao jogo. Durante aquele tempo, estamos a ele submetidos.
Aqui, leitores e leitoras, me parece inegável um importante golpe no positivismo. Quanto mais reduzirmos o jogo aos fenômenos que nos são visíveis (lembrando aqui que os olhos nunca são neutros, pois carregam as paixões de quem os têm), provavelmente andaremos em círculos, uma vez que as nossas explicações, quando confrontadas com a natureza do jogo, podem soar belas na aparência, mas são limitadas na episteme. Repare então como é complexo nosso desafio: ao mesmo tempo em que precisamos aprimorar, cada vez mais, nosso olhar sobre o visível (nossos colegas analistas de desempenho não nos deixam mentir), também é preciso não apenas reconhecer, como perscrutar aquilo que não nos é dado aos olhos. Mas como enxergamos no escuro?
Evidente que não é simples, mas há um caminho. Os olhos só enxergam na presença da luz. Se ela não nos é dada, é preciso então que nós mesmos a façamos. A face visível do jogo está ali, iluminada, nos dizendo que faltam linhas de passe disponíveis no corredor central quando a bola está no flanco esquerdo do primeiro terço. Mas quando a luz não nos estiver dada – e talvez aqui esteja um dos grandes desafios na formação de treinadores e treinadoras -, é preciso trazê-la sob outras formas: para além do exercício da racionalidade (que não se encerra na ciência, diga-se), é preciso também ter os sentidos apurados. Assim como o bloqueio da visão estimula o desenvolvimento dos outros sentidos, a face invisível do jogo nos obriga a procurar uma outra face de nós mesmos. É preciso desenvolver enorme sensibilidade, dos sentidos e sentimentos, é preciso trazê-las, ao lado da razão, para o campo das interações, é preciso viver para muito além do jogo, reconhecer que o jogo não é linear, é preciso esgotar os limites do ato de treinar (e tentar superá-los), ao lado da modéstia de aceitar quando o jogo for maior, quando a racionalidade não der conta da sua inteireza. O filósofo, disse alguém, é aquele que enxerga bem à noite. Quantos de nós, treinadores e treinadoras, estamos nos preparando para enxergar no escuro?
Outro dia, conversando com os amigos do Terra, pontuei que um dos problemas que me parecem centrais na alta taxa de trocas de treinadores do futebol braslieiro (90% dos clubes da Série A trocaram de treinador em 2018) reside exatamente em um descompasso entre o que se espera dos treinadores e o que os treinadores, de fato, podem entregar. Ora, nós treinadores não somos mágicos (o mágico controla a própria magia, o treinador está sob o domínio do jogo), menos ainda nas condições estruturais que nos estão postas. Ao mesmo tempo, é preciso que nós, treinadores, não nos coloquemos como mágicos: por maiores que sejam os nossos saberes, o jogo tem sabores próprios, tem razões que escapam à nossa razãos. Em alguma medida, me parece que pegamos emprestado do liberalismo econômico uma manca espécie de meritocracia, que coloca sob treinadores e treinadoras uma crença incorrigível de que o trabalho, maior e melhor, tende a ser incorrigivelmente recompensado pelo jogo. O problema é que o mérito, na ausência de igualdade, vira adorno. E pior: há uma série de forças, várias delas invisíveis, agindo sobre o nosso trabalho, agindo dentro do próprio jogo. Quanto mais tentarmos confrontá-las, com os nossos limitados poderes, me parecem maiores as chances de insucesso.
Por outro lado, se tentarmos entendê-las, o jogo vira.
Mas é preciso enxergar no escuro.
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