Faz algumas semanas, mas não muito tempo, que tenho cultivado o hábito de não olhar redes sociais, nem assistir televisão, nem consumir qualquer tipo de informação antes de um certo horário – por volta das dez horas da manhã. Quando faço isso, tenho a sensação de que as primeiras horas do dia são realmente minhas, investidas em mim. Tenho tido algum sucesso neste sentido. Mas na última sexta, sem perceber, liguei a TV pela manhã. Era cerca de 8h30.
Nas primeiras linhas do adorável Variações Sobre o Prazer, Rubem Alves admite uma espécie de derrota para o livro que acabara de escrever. Segundo ele, o livro venceu porque, em linhas gerais, causou muito sofrimento ao autor. Todas as tentativas de escrever com ordem e coerência, um pouquinho que fosse, eram em vão, de modo que ele, assim como também fizera o filósofo Ludwig Wittgenstein, preferiu escrever o que lhe vinha à mente, ao invés de criar uma linearidade qualquer. Escreveu o que era possível de ser escrito naquele instante.
Durante o dia, impossível não se sentir tocado. Os depoimentos das famílias, os detalhes que surgiam, a impotência… a sobriedade e o respeito de um Marcelo Barreto, que conduzia a cobertura com absoluta responsabilidade, transmitindo uma confiança inquestionável. Quando me dei conta, havia me suspendido temporariamente de mim mesmo, pois não havia outro lugar que não fosse aquele, e se nós não estivéssemos lá de alguma forma, atentos ao que se passava ali, tudo aquilo viria até nós. As coisas são assim, às vezes.
Se Wittgenstein, Rubem Alves e tantos outros têm problemas em situações aparentemente menores, não teríamos nós também? Nas tragédias, principalmente. Talvez sejam duas dificuldades principais. A primeira é que situações raras e graves exigem imensa sensibilidade. Nós sabemos o que a gente sente, mas dos outros, sabemos pouco. Este exercício de empatia, para quem deseja se aventurar a viver a vida, não sai da primeira página do manual. A segunda dificuldade é que, passados alguns dias, é muito difícil dizer o que ainda não se disse. Muito já foi dito, muito ainda será. Mas há algo importante: mesmo que as coisas, em si, sejam parecidas, elas se dizem de inúmeras maneiras.
Por que nos sentimos tão impotentes de vez em quando? Não deve haver apenas um motivo. Devem ser vários. Imagino um deles: nossa racionalidade só vai até a página três. Dali em diante, nosso livro está em branco. E então não há muito o que fazer, por mais que tenham nos treinado para racionalizar, suprimir o coração e seguir os descaminhos do pensamento. É como se houvesse uma barreira, uma parede tão alta e resistente que nenhum argumento, mesmo o mais poderoso, pudesse superá-la. Aí recorremos ao coração. Não como se fosse um recurso secundário. Na verdade, é como se fosse a alternativa original.
Lidar com as nossas criações, sejam elas quais forem, é realmente muito difícil. Elas podem se tornar maiores do que nós mesmos. Isso denota uma espécie de pequenez, com quem precisamos conviver diariamente. O problema é que nós não sabemos disso quando somos muito jovens. Um garoto de quatorze ou quinze anos, que já não é mais criança, mas também é muito jovem para a vida adulta, não tem a obrigação de saber da vida em detalhes. Não deveria ter muitas obrigações, na verdade: se um garoto ou garota nessa idade abre mão da família, dos amigos, das alegrias inerentes à descoberta da vida, é porque carrega amores muito grandes. Deve sonhar muito alto.
Mas isso é maravilhoso. O sonho, pelo menos a priori, tem uma vantagem muito grande sobre o real: ele não tem limites. Não existem barreiras nem paredes – o sonho é livre! Talvez seja por isso que nossas ideias, vez ou outra absurdas, parecem igualmente maravilhosas. Não importa que elas estejam próximas ou distantes do real, elas nos confortam. O sonho faz da vida o que ela ainda não é: às vezes o próprio sonho é tão real que nós mesmos nos confundimos. Quando se sonha, nós somos quem somos ou somos quem sonhamos ser?
Blaise Pascal, filósofo francês, tinha um aforismo interessante sobre a pequenez. Ele dizia que os humanos são caniços– finos pedaços de cana – muito frágeis, mas com uma vantagem: são caniços pensantes (pensamento, aliás, que nos permite sonhar). Depois de uma certa idade, este sentimento de pequenez, de limitação e fragilidade perante a vida, só não nos toca se não quisermos – ou se não estivermos suficientemente atentos. Mesmo quem ousamos chamar de ídolos, mesmo as referências que tivermos na arte de viver, são pessoas exuberantes na aparência, mas igualmente frágeis. O que também significa que podemos, por um ou mais erros de cálculo, julgar-nos maiores do que somos. Se quem sonha carrega grandes amores, quem se vai sonhando, ama na mesma medida.
O futebol não é um fim. O futebol não se encerra em si mesmo. Não é como um cão que persegue o próprio rabo. Para se saber de futebol, o futebol não basta. O futebol é um meio. Nós queremos, através dele, chegar a algum lugar – talvez a nós mesmos. É uma criação, um caminho dentre tantos outros possíveis, que compartilhamos com tantos colegas. Alguns estão realmente próximos, outros distantes. Mas os sonhos são os mesmos. Por isso, em momentos de enorme tristeza, nosso sentimento é inconstante: por um lado, somos muito frágeis. Por outro, somos frágeis juntos. Se um de nós nos deixa, perdemos uma parte de nós mesmos. Se vários nos deixam, o que nos resta?
Nos resta seguir.
Para chegar ao sonho, é preciso voar. É preciso saber voar. Por enquanto, temos o privilégio de voar e retornar em segurança. Um dia, nosso voo será apenas de ida. E então, para manter-se o equilíbrio, alguém voará por nós. O que não significa que teremos ido embora.
Significa, então, que aquele voo é para sempre.
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Texto inteiramente dedicado às memórias e às famílias dos garotos Arthur Vinicius, Athila Paixão, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Samuel Thomas Rosa e Vitor Isaías. Além deles, também Ronaldo Quattrucci e Ricardo Boechat.