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Raymond Verheijen, o homem que entendeu o que é o futebol!

A segunda vez que ouvi o nome do holandês Raymond Verheijen – RV –  foi em 2010 quando eu ainda era o preparador físico do Al Ain FC dos Emirados Árabes e o meu preparador físico assistente, o irlandês Mike McDermott, me contou sobre um estágio que havia feito com ele antes da Copa do Mundo da África do Sul, Ele me mostrou uma planilha de autoria do RV com uma progressão de conteúdos em campos reduzidos que poderia ser usada ao longo de toda uma temporada.

Antes disto, eu já havia lido alguma coisa sobre o excepcional trabalho feito pelo RV como consultor de performance – preparador físico –  na seleção da Coréia do Sul, na Copa de 2002, envolvendo a grande polêmica levantada por jornalistas italianos, insinuando que no confronto entre os dois países pelas oitavas de final, os coreanos pudessem estar dopados, tamanha foi a superioridade física demonstrada pelos orientais na prorrogação, levando-os à vitória e a alcançar o maior feito de sua história chegando às semifinais da competição.

Em 2016, encontrei na internet um anúncio de seu livro “How simple can it be?” – “Mais simples do que isto?” em tradução livre – que imediatamente me chamou a atenção. Li a resenha do livro, fiquei curioso e procurei então saber onde encontrá-lo. Assim que me chegou às mãos, devorei o livro! Empolgado, percebi que era tudo o que eu gostaria de ter escrito e, ao chegar às páginas finais, fui ficando até meio pesaroso por já estar acabando! A partir dali me tornei um fã e descobri no site da antiga World Football Academy – WFA, agora renomeada para Football Coach Evolution – FCE, que eles promoviam cursos em vários países ao redor do mundo, mas que nunca haviam realizado um no Brasil…

Sendo assim, me lancei na empreitada de tentar trazer os cursos da então WFA para o Brasil, idealizando contribuir com a elevação do nível de nosso futebol, principalmente após o colossal vexame do Brasil na Copa de 2014.

Realizamos então o nosso primeiro curso o “Football Periodisation” no Rio de Janeiro em Fevereiro de 2017. Sucesso absoluto! Na tarde do terceiro e último dia, pude testemunhar nos semblantes da maioria dos 50 alunos participantes, uma certa emoção e um sentimento de reflexão geradas por aquele evento. RV consegue sistematizar aquilo que tem a intenção de transmitir com pleno embasamento, muita simplicidade e uma didática simplesmente fenomenal!

Meses depois, fui convidado por ele para ir à Europa para fazer os seus cursos de verão: Football Coaching Mentorship, em Amsterdam, Football Periodisation Expert Meeting, na AD Benfica, em Lisboa e Football Periodisation Personal Development, também em Lisboa. Já no primeiro dia do curso em Amsterdam, fui para o meu quarto ao final do dia absolutamente emocionado! Cheguei a chorar e me perguntei: “Mas que diabos está acontecendo? Vim fazer um curso de futebol! Por que estou tão tocado assim?”. A resposta estava na excelência do conteúdo e nas respostas para vários dos meus questionamentos de anos e anos atuando no futebol!

Em seu livro mais famoso – “Football Periodisation”, para muitos uma verdadeira “Bíblia” do futebol, RV começa discorrendo de modo filosófico sobre uma chamada “Teoria do Futebol” – linguagem do futebol, ações e hierarquia do futebol – que serve como um embasamento perfeito para a compreensão e aceitação de seus conceitos e propostas, passando a seguir por temas como  performance, condicionamento, fisiologia, métodos de treinamento e modelo de periodização no futebol, mostrando os “o quês, porquês e como”, conteúdo, sequências, métodos, tamanhos de campo, número de jogadores, tempos de jogo, tempos de pausa, número de séries etc. Ele faz questão de enfatizar que não se trata de uma “receita de bolo”, mas sim de uma estruturação lógica que pode ser útil como norte no planejamento e organização dos treinamentos visando construir um time sempre em estado de alto condicionamento e simultaneamente de baixa fadiga, independente de cada contexto ou fator externo enfrentado por cada treinador.

Já em seu mais novo e denso livro, “Football Coaching Theory”, RV se aprofunda em estudos nas áreas da Psicologia e da evolução humana, aperfeiçoando suas teorias de modo ainda mais filosófico, mas igualmente embasado e prosseguindo em seu combate intransigente às subjetividades, achismos, ou meras experiências pessoais que ainda imperam no ambiente do futebol em todo o mundo. Assim, aborda temas como a linguagem, as referências e sub-referências universais do Futebol, “football thinking”, “football braining”, situações e referenciais no treinamento do futebol, competências no futebol, periodização da seleção natural no futebol, auto regulação de times e jogadores e seis princípios da evolução do treinamento do futebol.

RV é simplesmente genial, e como gênio, acabou por se tornar também controverso. Suas estratégias de “coaching”, algumas vezes não são compreendidas nem muito bem-vindas, por gerarem algum desconforto em situações às vezes constrangedoras para alguns alunos. Isto faz com que alguns o taxem como arrogante. Outro exemplo: No seu curso mais avançado, os seis dias do curso “WFA Football Evolution Pro Course – Tactics”, que cursei em maio de 2018 no Valencia CF da Espanha, as aulas começavam às 8:00 da manhã e terminavam invariavelmente às 3:00 da madrugada, TODOS os dias! Sim! Exatamente assim! Uma insanidade! RV não dorme… Ele medita!!! É sério!!! E a gente que se vire pra acompanhar o ritmo…

Ele é extremamente direto e deixa bem claro que sua intenção nos cursos nunca foi e nem será a de fazer amigos, mas sim a de elevar o nível dos profissionais que atuam no futebol e, consequentemente, elevar o nível do futebol como um todo.

RV se envolve frequentemente em contendas na mídia esportiva europeia com vários dos mais renomados treinadores ao questionar os métodos de trabalho adotados em alguns dos maiores clubes do mundo. Sua atuação como mentor da WFA/FCE, já promoveu mais de 300 cursos ao redor do planeta, tendo-a elevado à condição de mais respeitada instituição autônoma de capacitação de profissionais do futebol mundial! Clubes e seleções nacionais como: Barcelona, Chelsea, Manchester City, Glasgow Rangers, Zenith St. Petersburgo… Holanda, Argentina, Rússia, Coreia do Sul, País de Gales, dentre outros, também atestam o seu nível de excelência e merecida fama como uma das mentes mais brilhantes, ou talvez a mais brilhante do futebol mundial! Gênio é a melhor palavra para descrevê-lo!

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol

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Sobre o jogador inteligente como um leitor atento

No ano passado, escrevi neste mesmo espaço um artigo pensando um pouquinho sobre o que entendo ser o jogador inteligente. Foi uma minhas tentativas de tratar deste assunto que, a meu ver, é um dos temas no coração do debate que se avizinha nos próximos tempos: quanto mais avançamos nos conhecimentos táticos, técnicos, físicos e mentais do jogo, mais próximos ficamos do tema do humano – que não é sinônimo daqueles outros temas porque, na verdade, é anterior e maior do que eles todos. Não acho que seja possível pensar sobre a inteligência sem pensar sobre a humanização no futebol.

Isto dito, gostaria de sugerir algumas características mais específicas para a formação desse jogador inteligente. São apenas algumas sugestões, sem nenhuma pretensão de fechamento. Com o tempo, retomamos e refinamos esses temas.

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No texto a que me referi acima, defendi que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas. Talvez pareça uma ideia um pouco incômoda, porque geralmente temos expectativas muito concretas: gostamos que as pessoas nos digam o que e como devemos fazer determinadas coisas. A mim, sinceramente, isso não me agrada muito: não apenas não acho que sou capaz de dizer o que uma outra pessoa deve fazer como, além disso, acho uma certa violência dizer o que um terceiro deve fazer – não por acaso, sugerimos. Quando pensamos que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas, pensamos portanto em algo que não é exatamente concreto, mas que pode se tornar um concreto ainda melhor dependendo do que fazemos com ele.

Se o jogador inteligente precisa ler, portanto falamos da visão. De fato a leitura de um jogo é bastante similar à leitura de um livro. O leitor distraído ou mesmo o leitor inexperiente geralmente deixam passar muitas coisas de um livro. Mas, além deles, há um outro tipo de leitor: aquele que acha que o sentido do texto está somente no texto. Só que pode não ser bem assim: o sentido de alguma coisa pode estar exatamente na coisa, mas está nas relações que fazemos com ela. Percebe? Porque se pensarmos assim, então o jogador inteligente será não apenas um leitor atento, um leitor por vezes ativo – ou seja, à procura de sentido, ao invés de à espera de sentido, mas um leitor também por vezes passivo – ou seja, que se deixa levar pelo jogo sem ser refém dele, e um leitor que sabe que o jogo, em si, diz muitas coisas, e não por acaso diz uma coisa diferente para cada um de nós.

Deixem-me dar um exemplo mais claro: na final da Eurocopa 2012, Espanha x Itália – cujo primeiro tempo, aliás, foi um atropelo espanhol, me parece haver ao menos um exemplo muito nítido do que entendo pela capacidade de ler as entrelinhas do jogo. Repare no print abaixo, que retirei do lance que dá origem ao segundo gol da Espanha, marcado por Jordi Alba.

Exato instante em que Fabregas passa a bola para Jordi Alba. Ali, já havia um clarão, mas era preciso ler bem… Imagem: Reprodução

A jogada parte de uma subida do bloco italiano, que resulta numa passe pelo alto de Iker Casillas, buscando Cesc Fàbregas no corredor esquerdo. É Fàbregas quem faz a parede para Jordi Alba, que recebe a bola ainda na intermediária defensiva. Neste instante, a linha-base da Itália, laterais e zagueiros, não apenas está desfeita – Abate havia deixado a linha para marcar Iniesta – como está bem adiantada, deixando cerca de 40 metros às suas costas. Aqui, me parece, está o claro exemplo da capacidade de ler nas entrelinhas: tenho a impressão de que Jordi Alba, logo após receber e passar a bola, leu o espaço que havia às costas da zaga e dali, leu o término da jogada: o jogador inteligente flutua no tempo e percebe o futuro antes de sê-lo. Assim que passa a bola, Alba inicia um sprint de cerca de 30 metros, que termina num passe magistral de Xavi, entre Barzagli e Abate, que por sua vez termina com a bola dentro do gol. Uma jogada admirável.

Um jogador desatento, ou um atleta cuja leitura é somente reativa, jamais teria visto o que Alba viu cinco ou dez segundos antes do gol. Quando penso nas entrelinhas, penso também nisso: existem informações que não estão explícitas, que não estão claramente dadas, mas que precisam de algum refinamento, de um certo esforço, de uma certa atividade mental que faz toda a diferença para quem joga o jogo. Para o leitor reativo poucos livros servem: ele sempre espera que o livro lhe diga alguma coisa.

Mas para o leitor ativo, por outro lado, todos os livros têm valor: ainda que o livro diga algumas coisas, a diferença está na relação desse leitor com o livro. Ali ele descobre algumas coisas, e olhando com atenção descobre outras, e olhando melhor mais outras, e quando junta tudo aquilo, de outras formas, surgem outras e outras e mais outras coisas. Agora imagine a potência disso não apenas no sujeito, mas no todo. Imagine a potência disso ao longo do tempo, no processo de formação das pessoas que jogam…

Sobre isso, seguimos em breve.