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O que faz de uma competição esportiva um produto valorizado? A competitividade em jogo

Rafael Castellani e Lucas Alecrim

O título que trouxemos para esse texto não reflete, de fato, nosso maior interesse com as discussões e reflexões que pretendemos trazer. Afinal, nosso intuito maior não é saber ou discutir se o que faz de uma competição esportiva ser mais valorizada é a qualidade do gramado, a audiência (e, consequentemente, o que gera de direitos de transmissão), o “match day”, o número de torcedores nos estádios, o quanto ela gera de receitas aos clubes, patrocinadores e emissoras de televisão, dentre outros aspectos que, certamente, são muito importantes para fazer desta competição um produto valorizado. Nosso objetivo, é analisar um dos critérios que também nos ajuda a responder a essa questão, entretanto, que tem mais relação com os clubes/equipes e torcedores/espectadores do que com os “players” mais relacionados ao mercado: a competitividade entre as equipes.

Quão competitivo foi o Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino, o Brasileirão 2023, em relação às principais competições do futebol europeu? Não há como discordar que, como produto, Bundesliga (Alemanha), La liga (Espanha), Premier League (Inglaterra), Serie A Tim (Itália) e Ligue 1 (França), estão muito à frente do Campeonato Brasileiro. No entanto, do ponto de vista da competitividade, nenhuma das competições citadas teve, ao menos nesta última temporada (nosso foco de análise), a quantidade de equipes disputando o título, buscando acesso às competições internacionais e lutando pela permanência na série principal, tal qual que vimos no Campeonato Brasileiro em 2023.

Nenhuma das grandes competições do futebol (as “big five” da Europa) europeu chegou às duas rodadas finais com CINCO equipes disputando o título. Nenhuma chegou à última rodada com três equipes “fugindo” da zona de rebaixamento. Longe disso!

E a competitividade¹ que estamos buscando valorizar neste texto não se restringe às chances de título. Afinal, em nenhuma dessas competições nomeadas de “Big Five”, tantos clubes “lutavam”/disputavam nas duas últimas rodadas para não serem rebaixados à série inferior. SEIS equipes ainda tinham chances reais de ficarem com as duas últimas vagas de clubes rebaixados na penúltima rodada. Na última rodada, tendo 3 clubes já matematicamente rebaixados, outros três clubes ainda tentavam garantir a permanência na série A.

¹ Apesar de não ser nosso foco para este texto, poderíamos também valorizar a competitividade do Brasileirão 2023 a partir do equilíbrio entre as equipes nas partidas. Ter equipes campeãs do Campeonato Brasileiro lutando para não serem rebaixadas. O campeão Palmeiras, inclusive, perdeu pontos para equipes da “zona de baixo” da tabela.

O gráfico abaixo nos ajuda a visualizar esses dados e entender esse cenário que faz do Campeonato Brasileiro de 2023 o mais competitivo mundialmente na atual temporada.

Ao pensarmos em título, as únicas competições que mantinham até a penúltima rodada uma incerteza quanto à equipe que seria campeã foram a alemã e a inglesa. Na Bundesliga (Alemanha), o Borussia Dortmund e o Bayern de Munique travaram, como de costume, uma “batalha” recorrente pelo título. Esse duelo só foi finalizado na última rodada, na qual o time de Dortmund não aproveitou a chance jogando em casa contra o Mainz e permitiu que o Bayern de Munique sagrasse campeão e continuasse com sua hegemonia de onze anos em território germânico.

Já naquele que é considerado por grande parte dos especialistas o melhor campeonato de futebol do mundo, a Premier League, Arsenal e Manchester City duelaram acirradamente até a 37a rodada, na qual o time de Pep Guardiola garantiu o título da temporada 2022/23 ao vencer o clássico conta a equipe do Chelsea.

Mesmo o time inglês fazendo do último jogo da competição nacional de forma festiva, nas outras competições exemplificadas, os campeões já realizavam suas comemorações nas rodadas com maior antecedência: Barcelona – La Liga (Espanha), Napoli – Serie A Tim (Itália) e PSG – Ligue 1 (França). Para quem tem o hábito de acompanhar os principais campeonatos europeus, sabe que a última temporada do futebol europeu não fugiu muito do usual. Apenas na Itália que houve o time do Napoli regressando ao topo após mais de 20 anos.

Por sua vez, a competição brasileira tinha, com chances de títulos ao início da penúltima rodada, Palmeiras, Flamengo, Atlético Mineiro, Grêmio e a equipe que por mais rodadas esteve na liderança, chegando a abrir 13 pontos de vantagem sobre o segundo colocado, o Botafogo. Na última rodada, no entanto, ao empatar em casa com a equipe do Cruzeiro, restou ao Botafogo disputar com o Grêmio, em partida contra o Internacional, a última vaga de acesso direto à Libertadores da América.

Quem diria que o clube que possuía 13 pontos de vantagem para o segundo colocado iria sequer brigar pelo título na última rodada e ter que “se contentar” em ficar com a vaga indireta para a Taça Libertadores? Esse é o futebol. E é justamente por ser um jogo², e consequentemente imprevisível, que é tão apaixonante.

² João Batista Freire e Rafael Castellani, um dos autores deste escrito, publicaram texto recentemente sobre esse assunto, intitulado “Os falsos profetas no futebol”. Texto disponível em: https://universidadedofutebol.com.br/2023/11/22/os-falsos-profetas-do-futebol/

Na parte de baixo da tabela, o gráfico acima nos mostra que na penúltima rodada das competições exemplificadas, muitas equipes já estavam matematicamente destinadas às séries inferiores de suas respectivas competições. Por exemplo, no Brasileirão 2023, mesmo tendo três times já rebaixados antes da última rodada, três equipes disputaram seu último jogo do campeonato perspectivando não ocupar essa última vaga em aberto. Em relação aos “big five”, a exceção é a La Liga (Espanha) que, mesmo tendo duas equipes já rebaixadas ao término da penúltima rodada (Espanyol e Elche), seis equipes tiveram chances verdadeiras de irem para a divisão inferior do torneio: Valladolid, Celta de Vigo, Almería, Getafe, Valencia e Cádiz.

A competitividade do Brasileirão 2023 foi tamanha que, se não bastasse a inesperada perda do título por parte da equipe do Botafogo que chegou a abrir 13 pontos de vantagem para o segundo colocado na virada do turno, ainda corria na última rodada o risco de ficar fora da “zona direta de libertadores”, algo concretizado ao seu término, afinal, disputava com o Grêmio a última vaga de acesso direto à próxima edição da competição sul-americana.

Esperamos que a próxima temporada do Campeonato Brasileiro possa ser tão competitiva quanto a de 2023, sem deixar de continuar evoluindo para que se torne, também, um produto melhor para clubes, patrocinadores e investidores e, principalmente, outro grande desafio, mais assegurado como direito de acesso ao esporte e lazer para os torcedores, independente da classe social.

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MARX, QUEM DIRIA, CHEGA AO FUTEBOL. MAS SERÁ QUE TEMOS O QUE COMEMORAR?

Karl Marx é, sem dúvidas, um dos maiores e mais importantes pensadores e filósofos da era moderna! Apesar do tempo histórico de seus escritos, suas ideias, até hoje, carregam traços de contemporaneidade. Que a teoria marxista nos ajuda muito a compreender a sociedade que vivemos, sobretudo devido ao modo de produção capitalista que nos guia, não temos dúvidas.

No âmbito da área acadêmica da Educação Física brasileira, já se faz presente estudos voltados à economia política do esporte.

Já que nosso tema é o futebol, vale destacar livro publicado por Wagner Matias, jovem pesquisador do grupo de pesquisa e formação socio-crítica em políticas de esporte e lazerAvante – da Faculdade de Educação Física da UnB, que aos seus 37 anos de idade sucumbiu, em 2021, à pandemia sanitária – e política – que nos atingiu de modo avassalador.

Sua Tese de Doutorado, A economia política do futebol e o “lugar” do Brasil no mercado-mundo da bola, defendida em dezembro de 2019 – no ano seguinte publicada em livro pela editora Appris sob o título Futebol de Espetáculo -, se reporta à forma espetacularizada do futebol e não do espetáculo em si ou mesmo do futebol de alto rendimento. O futebol de espetáculo é uma mercadoria especial permeada pela presença dos veículos de comunicação (sobretudo pela televisão), grandes grupos econômicos e financeiros, com um público consumidor e atletas vistos como mercadorias. Assim, o livro procura desvelar o que está sendo o futebol espetacularizado no contexto do capitalismo tardio: com alguns clubes e ligas globais cobiçados por grandes grupos econômicos, acompanhados por bilhões de pessoas em todo o planeta, produtor de força de trabalho do atleta e de espetáculos, capaz de produzir mais-valia e, também, de ser um “palco” de valorização e de fonte de criação de outros produtos.

Categorias marxistas desenvolvidas com vistas à compreensão do modus operandi do modo de produção capitalista, são acionadas com maestria pelo jovem pesquisador. Dentre elas, optamos por destacar uma, qual seja, a de mais-valia, para refletirmos sobre os jogadores de futebol. Afinal, se o esporte é produção humana, se o futebol é parte constituinte de nossa cultura e se o atleta profissional desta prática social representa um papel de destaque em nossa sociedade, entendemos pertinente tecermos considerações sobre os trabalhadores da bola e a forma ganha pela força de trabalho que traduzem.

Não fomos longe buscar o entendimento de “Mais-valia”. Recorremos – vejam só! – ao preparaenem.com. Nele, a garotada que está buscando ingresso na educação superior saberá que mais-valia é um conceito criado por Karl Marx para explicar o lucro dentro do capitalismoSegundo Marx, a mais-valia é o excedente de trabalho realizado pelo trabalhador que não é pago pelo capitalista, mas é apropriado por ele na forma de mercadoriaA mais-valia é, portanto, um processo de exploração da mão de obra assalariada que gera valor de troca para o capitalista.

Muitos pesquisadores, dentre eles os dois autores deste texto, têm se dedicado e refletir sobre o processo de coisificação e mercadorização do jogador de futebol. Como vendem sua força de trabalho, seu “pé-de-obra”? Muitos dos estudos e textos publicados corroboram a ideia de que o jogador de futebol é entendido e tratado por grande parte daqueles que compõem o contexto do futebol profissional como uma coisa, uma mercadoria e um produto que pode ser comprado, vendido, trocado e descartado tão logo perca seu valor-de-uso (outra categoria marxista).

Não à toa, referências às equipes futebolísticas como máquinas e dos seus jogadores como peças, são bastante comuns, até mesmo entre os próprios atletas. Ainda que alguns, sejam eles integrantes de comissões técnicas, dirigentes, jornalistas e acadêmicos, venham se esforçando para romper com esse olhar e, principalmente, humanizar a relação com o jogador, não nos resta dúvidas que a força do mercado, na lógica do modo de produção capitalista, é significativamente mais poderosa.

Assim, ao invés de humanizarmos as relações trabalhistas entre jogadores de futebol e os clubes esportivos, dando ao trabalhador maior autonomia e poder em relação à sua força de trabalho estamos, cada vez mais, reforçando seu atributo de mercadoria. O jogador de futebol é visto atualmente como um dos principais ativos dos clubes, afinal, são importantes fontes de receita, tanto para os clubes associativos quanto, e principalmente, para os clubes empresas e Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).

E para que esse ativo se torne ainda mais lucrativo para os clubes e agentes, os contratos passaram agora a explicitar em suas cláusulas um percentual de ganho futuro com a… mais-valia do jogador. Ou seja, se o clube que comprou os direitos federativos de um atleta, o revender para outro clube por valor superior ao pago, o clube vendedor receberá um percentual referente a este lucro obtido.

Sim, nessa história, o trabalhador da bola também leva a sua parte. E, em alguns casos, essa parte representa valor tão exorbitante que mascara a realidade da absoluta maioria de atletas, cujos rendimentos não ultrapassam os 5 salários mínimos.

Como vimos, Marx chegou ao futebol para que entendamos melhor como ele, futebol, se insere na lógica capitalista. Falta agora chegar com seu espírito revolucionário para que também o futebol transcenda essa lógica por outra de natureza humanizada.

Texto por: Rafael Castellani e Lino Castellani Filho

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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UMA SELEÇÃO DE FUTEBOL EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE

No dia 4 de julho de 2023 a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) anunciou a contratação de Fernando Diniz e sua comissão técnica para comandar interinamente a seleção brasileira masculina principal de futebol. Escolha dupla, podemos dizer, porque também Fernando Diniz escolheu ser o técnico da seleção brasileira, considerando que ele tinha escolhas, uma vez que era, e continuou a ser, técnico do Fluminense F.C. Para nós, foi uma escolha acertada; não é segredo, para quem nos acompanha lendo nossos textos ou assistindo nossas aulas e palestras, nossa admiração pelo trabalho de Diniz. Recentemente publicamos “Quando o novo incomoda” e “O futebol como prática educativa”. Em ambos os artigos sugerimos que Fernando Diniz é um educador e representa o novo, a mudança.   

Diniz vai além da definição de esquemas táticos. Sua percepção de futebol não se limita a esquemas regidos por setas e cálculos matemáticos. Sua análise do futebol agrega ao racional uma profunda percepção emocional e social. Seus jogadores também são seus alunos e pessoas que existem fora do futebol. Sua equipe é um grupo social que tem vida própria enquanto grupo. É com essa perspectiva que o novo treinador da seleção brasileira de futebol ajudará seus jogadores e resolverem conflitos pessoais e profissionais, dentro e fora do campo. 

Diniz não esconde que muito de sua educação, no futebol e fora dele, foi realizado na rua. Foi nela que aprendeu o valor da criatividade. Ser criança jogando no asfalto, nos campinhos, na terra ou na lama ensina, a uns mais, a outros menos, a criatividade que os padrões rígidos das chuteiras e rotinas de exercícios de muitas escolas e equipes de base não permitem. O novo treinador da seleção brasileira conhece profundamente a rua e seus ensinamentos e sabe perfeitamente levar para suas equipes as virtudes dessa rua e a evitar seus vícios. 

Por sua vez, ao caracterizarmos Fernando Diniz como um agente de mudança, nutrimos nossa esperança de que o futebol brasileiro volte a ser encantador, alegre e criativo.  Muito se fala, há anos, da necessidade de retomarmos em nossa seleção o estilo de jogar tipicamente brasileiro. Aquele que nos dá identidade esportiva. Aquele que nos fez sermos reconhecidos mundialmente como o “país do futebol”. Se este está entre os motivos que balizaram a contratação de Fernando Diniz, a CBF acertou em cheio! Não há no Brasil, e provavelmente no restante do mundo, melhor treinador para alavancar a retomada de nossa identidade futebolística. 

Vale lembrar que, por exemplo, em 1958 fomos campeões mundiais de futebol com jogadores que aprenderam a jogar futebol na rua. Esse é um dos motivos de vermos equipes comandadas por Diniz enchendo nossos olhos com um futebol alegre e criativo. Isso não significa que as equipes desse competente técnico vencerão sempre, pois que futebol é um jogo, e um jogo é marcado, acima de tudo, pela imprevisibilidade. Há treinadores, e não são poucos, que jogam para não perder. Colocam o medo de perder como tema orientador de seus trabalhos. O resultado é um jogo tedioso, triste e feio. Diniz, por sua vez, não recusa o risco, sabe que ele faz parte do jogo, mesmo que o preço, por vezes, seja a derrota. 

Com um futebol parecido com os jogos de bola que tantos de nós praticamos nas ruas, nos campinhos de terra, nas quadras de cimento, o Brasil foi a grande estrela do futebol mundial, de 1958 a 2002. Nunca um país teve tal domínio no esporte mais popular do planeta. Um futebol que, trazido da Europa para os clubes da elite econômica das grandes capitais brasileiras, foi reinventado pela população mais pobre do Brasil. Essa população, encantada pela nova modalidade esportiva, que podia ser jogada com qualquer coisa que rolasse no chão sob o controle dos pés, foi a inventora de um novo jogo jeito de jogar futebol, um jeito tipicamente brasileiro. De 2002 para cá, fomos “perdendo o pé”, perdendo o nosso jeito de fazer diferente no futebol e nos tornando cada vez mais parecidos com europeus. E descobrimos que os europeus são melhores europeus que nós, embora alguns ainda não consigam perceber isso. 

Entretanto, não basta querer retomar nossa identidade. Para isso precisamos ter no comando alguém plenamente identificado com isso. Em nossa opinião, Fernando Diniz é esse alguém. Diniz incentiva o drible, propõe o risco, estimula a criatividade e, quando seu jogador erra, faz com que ele tente de novo e de novo, para que a coragem de tentar supere o medo de errar. Nos times de Diniz, todos constroem, todos criam, pois que Diniz reconhece que seus jogadores não são menos inteligentes que ele. Enquanto boa parte dos treinadores preocupa-se, permanentemente, em controlar todas as variáveis do jogo, Diniz reconhece o caráter coletivo, caótico e imprevisível do futebol. Mais que procurar domesticar o jogo, ele procura lidar com sua imprevisibilidade. 

Para pessoas tão abertas ao risco e ao novo como Fernando Diniz e seu jovem auxiliar técnico Eduardo Barros, há, ainda, muito espaço para crescimento e amadurecimento. Sabemos que eles reconhecem isso e, juntos, seguirão evoluindo.

Texto por: Rafael Castellani e João Batista Freire

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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O QUE SE SABE SOBRE O FUNCIONAMENTO DE GRUPOS NO FUTEBOL?

Há mais ou menos 21 anos estudo os processos de grupo no âmbito do futebol profissional. Desde minha iniciação científica e primeiras participações em grupos de estudos relacionados ao futebol e à psicologia do esporte, preocupo-me com a importância dos processos de coesão de grupo, liderança, vínculos, papeis, comunicação, dentre outros. Trabalhos apresentados em congressos, artigos, minha dissertação de mestrado, minha tese de doutorado ou demais textos como esse, buscam refletir sobre essas temáticas. Entretanto, ainda não sei bem claramente o motivo, constato que são raros os que corroboram a necessidade de investir nessa temática. Poucos pesquisadores se debruçam sobre esse assunto. São raros os eventos científicos/acadêmicos que tenham essa temática dentre as prioritárias. São escassos os cursos que tragam os processos de grupo para dentro do seu planejamento pedagógico. São raros os clubes que se preocupam e voltem seus olhares e atenção a esses processos, de modo sério. 

Por outro lado, é cada vez mais comum notarmos na mídia esportiva reportagens ou manchetes que afirmam que determinado clube está com o “grupo rachado”. Que determinado treinador “perdeu o vestiário”. Que a manutenção de determinado treinador à frente da equipe está comprometida, pois não há mais clima para sua permanência. E o que se faz sobre isso? NADA! Troca-se o treinador ou vende/empresta/encosta determinado jogador e pronto. Bola pra frente! 

Fortunas são empenhadas para formar grandes equipes, mas quase nada se faz para compreender como se comportam os grupos e como se resolvem determinados conflitos de natureza grupal que comprometem, na maioria das vezes de modo decisivo, o rendimento da equipe e todo um planejamento traçado no início da temporada ou no início de um projeto de trabalho. 

São inúmeros os exemplos que poderia trazer para reflexão que tenham conflitos de natureza grupal como o cerne do problema de uma equipe. Talvez, o mais recente deles esteja relacionado à demissão do treinador Rogério Ceni da equipe do São Paulo e o que seu sucessor, Dorival Junior, em tão pouco tempo, deu conta de transformar. Trarei, então, esse caso para discutirmos e refletirmos juntos. À época dos principais acontecimentos, surgiu uma série de reportagens e inúmeros debates na televisão ou internet sobre os episódios que envolviam o treinador Rogério Ceni e os conflitos que a equipe do São Paulo vinha enfrentando quando ele ainda era o treinador. Como não faço parte do grupo, não vivo o dia-dia do clube e sequer tive a oportunidade de conversar com algum integrante da equipe, certamente qualquer coisa que eu diga sobre esse caso específico está comprometida. Me deterei, portanto, a tecer alguns comentários sobre isso tendo como referência o que é trazido pela mídia esportiva, sobretudo depoimentos de atletas que conhecem bem o contexto, “dialogando” com tudo o que venho estudando e produzindo academicamente nos últimos 20 anos. Meu interesse é mais discutir sobre os processos de grupo e menos de debater um caso ou exemplo específico.

Manchete do Globoesporte.com diz: “Ceni discute com Marcos Paulo em treino, e jogadores do São Paulo reclamam do técnico com diretoria”. Programa esportivo de opinião do portal UOL discute se “há clima para (a permanência) de Rogério Ceni”. Reportagem de Luiz Rosa ao mesmo portal trás como manchete: “atritos entre Ceni e elenco passam pelos treinos e contusões”. O portal SPFC.NET, que cobre os bastidores do clube, estampa reportagem com a seguinte manchete: “Com Ceni pressionado após novo tropeço, dirigente revela vestiário do São Paulo rachado”. Conforme jornalista que cobre o dia-dia do São Paulo, Jorge Nicola, “Rogério Ceni não tem mais clima dentro do São Paulo”.  

Sobre o Rogério Ceni e seu estilo de liderança, gostaria de tecer alguns breves comentários. Não é de hoje que é noticiado na mídia esportiva que o treinador costuma ter problemas de relacionamento com dirigentes dos clubes que representava ou com parte do grupo de atletas que comandava. À exceção do Fortaleza, onde não tenho conhecimento de notícias desta natureza, em todos os demais clubes que o Rogério Ceni passou, ele teve problemas relacionados ao modo como se relacionava com os jogadores. Cruzeiro, Flamengo e o último clube do qual foi treinador: o São Paulo. Não parece mera coincidência, concordam?  

Ceni tem uma personalidade “forte”. Diz o que pensa, não importa para quem ou quando. É uma pessoa muita trabalhadora. É estudioso. Exigente. Determinado. Vencedor. Sempre foi, ou procurou ser, protagonista nos clubes por onde passa. Tem tudo para ser um dos melhores treinadores do Brasil, não tenho dúvidas disso. Inclusive, já colhe, no seu breve currículo de treinador, vários títulos, alguns deles de muita expressão. No entanto, vejo comportamentos e atitudes dele enquanto líder, no âmbito dos processos de grupo, que precisam ser repensadas se quiser evitar problemas como esses que tem enfrentado sucessivamente nos clubes que defende. 

E isto que venho tentando problematizar neste texto não vale somente para o Rogério Ceni, mas para grande parte dos treinadores do futebol brasileiro. São reflexões, em formato de perguntas, que deixarei para cada um de nós pensarmos e buscarmos respostas. 

Pessoas importantes no processo de montagem das equipes, os treinadores sabem o que significa, do ponto de vista dos processos grupais, trabalhar com grupos de distintos tamanhos (pequenos, médios ou grandes)? Como lidar com aquele jogador que não tem espaço na equipe e, às vezes, sequer é relacionado para os jogos? Como manejar as relações dentro de grupo no qual pessoas, seres humanos (e não peças, dotados, portanto, de desejos, necessidades, subjetividades), não ocupam o papel que desejam? Como fazer com que todos caminhem em busca de um mesmo objetivo quando há privilégios não discutidos e aceitos por todos? Como estabelecer um vínculo de respeito e confiança com todos? 

Toda relação grupal passa pela confiança e boa comunicação entre seus membros. Como criar um vínculo de confiança, respeito e segurança se o treinador sequer conversa com seus atletas sobre suas decisões? Proteger o grupo é comportamento esperado de qualquer líder. Como garantir que seus jogadores se sintam protegidos e acolhidos se em situações de fracasso, derrota ou erros, são expostos publicamente?

Nenhum grupo é formado “do dia para a noite”. Para que um grupo funcione e trabalhe de modo eficaz e produtivo, ou entre em tarefa, como nos diz Pichon-Riviere (2005)[1], ele precisa de tempo para vivenciar experiências distintas e passar por algumas fases fundamentais, permitindo, por exemplo, que se consolide o sentimento de pertença, de pertinência, de tele (conceitos pichonianos), ou seja, que passe por determinados estágios de desenvolvimento e amadurecimento enquanto grupo. Como garantir isso se não é dado ao jogador condições para que ele experimente todas essas fases do processo de formação de grupo? Como garantir que um atleta recém-chegado ao clube se sinta incluído, parte, e importante para o grupo, se sequer seu processo de adaptação é respeitado?  

Por outro lado, o que imaginam que acontece no grupo, consciente e inconscientemente,  quando um atleta acaba de chegar ao clube e antes mesmo de fazer um treino é escalado como titular em uma partida? Por mais importante e reconhecido que esse atleta possa ser, será que ele passou por todos os estágios capazes de integra-lo, de fato, ao grupo? E o que acontece com o atleta que até então vinha ocupando o papel de titular e, de um dia para outro, perde seu posto, seu reconhecimento, seu status, sua importância?  

Grande parte dos questionamentos e desavenças por parte dos atletas em relação aos treinadores se dá por não concordarem com suas condutas e, principalmente, com suas escolhas. Se sentir injustiçado é um dos principais motivos para que o atleta não se dedique como pode, e deve, nos treinos e jogos e, consequentemente, não obtenha o rendimento esportivo pelo qual ele foi contratado. Estamos falando, também, de motivação. Estamos de falando de motivos (ou ausência deles). Que motivos encontrará o jogador para treinar e jogar mais, e melhor, se, na sua visão, será, ou está sendo, injustiçado pelo treinador? Como acabar ou ao menos minimizar essa percepção de injustiça sem fazer com que o atleta entenda os motivos e saiba dos argumentos para suas escolhas? 

Voltando a falar do clube trazido neste texto como exemplo, o atual treinador, Dorival Junior, tem obtido resultados expressivos e nitidamente, mesmo à distância, é possível notarmos um melhor ambiente, algo confirmado em entrevistas e, consequentemente, um melhor desempenho individual e coletivo da equipe. 

Em reportagem ao GE[2], Dorival Junior afirmou que “[…] é normal você se preocupar com o lado tático, do técnico, físico, temos que abastecer nosso elenco em todos os aspectos, mas o principal é o lado humano, e esse lado humano tem que ser valorizado sempre”. Ao reportar sua atenção ao lado humano, Dorival explicita a necessidade de darmos atenção ao que pensam e sentem os jogadores. Estamos falando de psicologia do esporte, portanto. Estamos esclarecendo que os atletas são sujeitos (e não máquinas) que possuem desejos, necessidades, subjetividades. E que isso tem que ser notado e respeitado! 

Há quem entenda que treinador não deve ficar se justificando ou argumentando sob suas escolhas e decisões… Que treinador não deve ficar preocupado com atleta insatisfeito… Que treinador deve se preocupar somente com seus titulares e jogadores mais importantes tecnicamente… Que o treinador está acima do grupo e não no centro do grupo. Há quem entenda que jogador de futebol é muito mimado e, por isso, deve trata-lo com indiferença e ausência de empatia. Há quem entenda que jogador é uma máquina, uma peça e, portanto, deve render de qualquer jeito. 

Enquanto entendimentos como esses predominarem, continuaremos a ler frequentemente nas mídias esportivas que determinado grupo está rachado. Que determinado treinador perdeu o grupo. Que não há clima para determinado treinador permanecer no clube. Continuaremos a ver trabalhos que poderiam ser duradouros e eficazes sendo interrompidos por problemas de natureza grupal. 


[1] PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[2] https://ge.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/2023/07/21/dorival-explica-como-recuperou-confianca-do-sao-paulo-e-ve-time-criando-ambicao-por-conquistas.ghtml

Texto por: Rafael Castellani

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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COPA DO MUNDO FEMININA: HORA DO MUNDO OLHAR PARA ELAS

Se você ainda não compreendeu o novo e melhor momento global do futebol de mulheres, agora é a hora. Seja como torcedor, patrocinador ou investidor, esta modalidade vem crescendo exponencialmente nos últimos anos e vive em 2023 seu melhor momento.

Comece pela expectativa de público que ultrapassou 1 bilhão na última Copa em 2019 e este ano são esperadas 2 bilhões de pessoas com jogos transmitidos para 150 países em TV aberta e streaming. Imagine a enormidade de oportunidades que isto traz para engajar meninas no esporte em todo o mundo, para negócios adjacentes e para a visibilidade de marcas.

Em pesquisa recente, o IBOPE Repucom constatou que 48% dos internautas brasileiros conectados, ou seja, quase 57 milhões de pessoas, se declararam fãs da Copa do Mundo feminina. Para uma modalidade proibida por mais de 60 anos, esses números são incríveis e mostram que ainda há muito espaço para ser conquistado.

A premiação será a maior de todos os tempos: R$ 733 milhões para as equipes participantes. Este ponto é motivo de debate quando comparado à premiação da Copa do Mundo masculina, mas, aqui e em outras discussões de remuneração, há de sermos mais pragmáticos e buscarmos a sustentabilidade. É urgente e necessário o debate e a comunicação de todos os benefícios, retornos e quão estratégico é o futebol feminino. Porém, precisa crescer de forma rentável e sustentável para continuar atraindo jogadoras, torcedores, marcas e investidores.

Tudo citado acima é importantíssimo, mas o que verdadeiramente me atrai é o poder de transformação quando o futebol feminino ganha esta visibilidade global.

Convido ao acompanhamento desta Copa, atentos à riqueza de reflexões e debates que já estão nas pautas dos jornais e nas rodas de conversa. Convido você a um olhar mais sistêmico para o que acontece dentro e fora das 4 linhas.

São milhares de exemplos que tenho aprendido nos últimos anos. Cito alguns que me encantam no futebol feminino: equidade, inclusão, direito a gravidez durante a profissão, sonho de ser mãe retomado ao pendurar as chuteiras, conversa aberta para apoio ao combate à violência doméstica nas comunidades, desenvolvimento de caráter e coletivo jovem, abertura para um basta ao assédio sexual e moral e muito mais.

E termino dizendo que, para esta grande virada e a continuidade desta jornada de sucesso, foi e serão cada vez mais necessárias mulheres líderes e o apoio do que chamo de homens de “alma feminina”.

Boa sorte, meninas!

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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Se LIGA

Não é só sobre juntar os clubes de futebol. Não é só sobre negociar e defender os interesses dos clubes em negociações de direitos de transmissão de TV. Não é só sobre futebol brasileiro e sobre campeonatos e transmissões. Não é só sobre aumento de receitas. É muito mais que isso.

Em um cenário no qual as opções de entretenimento são abundantes, as formas de consumo estão mudadas, o poder das mídias sociais e dos influenciadores desafiam as mídias tradicionais e governança e integridade entram na pauta dos esportes, é preciso ir muito além quando se discute a necessidade, o impacto e o valor de uma Liga Nacional de Futebol.

Um bom ponto de partida para esta reflexão é lembrar que futebol não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Partindo da conjectura econômica, especialistas já projetam que se estivéssemos trabalhando melhor o produto futebol, nossa indústria já deveria estar faturando o dobro do que fatura hoje. Ou seja, o futebol brasileiro já deveria ter rompido a barreira dos 100 bilhões de reais de faturamento e estar alcançando algo próximo de 1,5% do PIB brasileiro que já é a importância do futebol e dos esportes em muitos países. Mais que isso, projeções feitas por estudiosos de uma Liga Nacional de Futebol, já projetam o potencial de crescimento para 3 a 5 vezes o que somos hoje.

O importante é ter consciência e construir esta jornada pois estas cifras são consequência e não ponto de partida. Mesmo que estudos, estruturações e articulações já estejam avançados e que investidores globais já estejam prontos para ajudar a impulsionar o crescimento e impactar todo o ecossistema do futebol, falta um passo essencial: o senso verdadeiro de coletividade onde clubes abram mão de discutir um percentual grande de negócio pequeno. Falta a visão de que um espetáculo não é feito de poucos clubes fortes, mas de muita disputa e da competitividade. Um espetáculo é feito do jogo e de todos as experiências vividas pelos torcedores, fãs e consumidores de futebol dentro e fora dos estádios de futebol.

Falta ainda a visão de que a distribuição mais inteligente dos direitos de transmissão da TV é apenas uma pequena parcela e se tornará ainda menos relevante quando todo ecossistema evoluir e começarmos a investir além dos jogos e a termos resultados para muito além disto, como em outras ligas como a NBA.

Desejo que indivíduos pensem e ajam no coletivo. Que disputas por poder e questões de ego sejam derrotadas em benefício de milhões de pessoas e milhares de negócios. Desejo que todo potencial de ganho econômico venha ancorado em uma governança forte, em fairplay financeiro, em visão global de promoção e comercialização dos direitos e, acima de tudo, em projetos concretos de investimentos sociais e em educação para o desenvolvimento de todos; desde atletas da base até treinadores e gestores que devem ser preparados para que voltemos a ser o país do futebol.

Se LIGA, pois há um cavalo selado passando na nossa frente. É agora, ou agora.

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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Sobre a ecologia da ação no futebol – e outras ideias

Crédito imagens: Redes Sociais Fiorentina

Na última semana, vocês vão se lembrar, falávamos aqui sobre uma certa transição no nosso pensamento sobre futebol: se houve um tempo em que o jogo era bem mais pertencente aos jogadores, por uma série de razões, hoje parece claro que o jogo pertence, na sua maioria, aos treinadores. Não por acaso, tomou-se como imperativo que o rendimento de uma equipe num campo de futebol é especialmente reflexo da qualidade de um certo sistema de ideias. Sobre isso, meus argumentos são dois: I) embora as ideias sejam importantes, elas ainda são secundárias dentro da cadeia de forças do jogo e II) a crença inquestionável nas ideias, ainda que sem querer, patrocina o sistema doentio de demissão de treinadores no futebol profissional – afinal, numa análise simplista, se uma equipe não tem performance, deve ser pela falta de ideias do treinador. Bom, vamos falar um pouquinho mais disso.

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Numa entrevista dada à Folha de São Paulo, em 1994, o Edgar Morin – muito citado, nem sempre lido – foi perguntado sobre um conceito importante da sua obra, chamado ecologia da ação. Ele respondeu o seguinte:

“Desde que você começa uma ação, política por exemplo, ela vai escapar progressivamente ao seu controle para entrar num jogo de interação e retroação no meio em que ela se produz. (…) Ninguém pode determinar as consequências futuras da ação. Há um princípio de incerteza fundamental.“ 

Não há uma linha sequer da resposta que fale diretamente sobre futebol – mas para o bom entendedor, um pingo é letra. O escape progressivo ao nosso controle e a consequente entrada num jogo de interações e retroações é precisamente o que se passa no jogo de futebol, e podemos sentir isso num único exercício de uma única sessão de treino. De um ponto de vista do jogo – não apenas do jogo de futebol, mas do jogo (sobre o qual o professor Alcides Scaglia escreve tão bem), que antecede ao jogo de futebol – é imperativo considerarmos que um determinado sistema de ideias, que baseia uma série de comportamentos individuais e coletivos, é uma variável significativa, mas num sistema de inúmeras outras variáveis. Se de fato quisermos lançar mão de um pensamento complexo, em que tudo está tecido junto, num sistema de profundas interações e retroações, entre onze companheiros e onze adversários, sendo cada um dos vinte e dois sujeitos absolutamentes diferentes, então é preciso localizarmos bem as ideias – não porque não sejam importantes, é óbvio que são, pois porque há outras forças, para além das ideias, se afirmando e se negando continuamente no campo de jogo. Embora todos nós, como sujeitos humanos, tenhamos nossas ideias (por isso, aliás, não há quem seja ‘deserto de ideias’) é preciso considerarmos que o jogo, inclusive enquanto antecessor da cultura (Huizinga) também tem um sistema de ideias próprio, absolutamente alheio à razão humana. É bem verdade que sim, o jogo pode ser sensível às nossas respostas, mas isso não significa que a narrativa do jogo está exclusivamente sob nosso controle.     

Como a boa ciência e a boa filosofia dos séculos XIX e XX nos mostraram (Bachelard, Popper, Nietzsche…), o funcionamento das coisas pode não ser exatamente fruto de causalidades – como disse o Morin ali em cima, há um princípio de incerteza fundamental. Não é por acaso que tenta-se impor uma certa ordem humana à profunda incerteza do mundo – inclusive como reconhecimento sutil da nossa mais profunda fragilidade. E para saber disso, vejam bem, não é preciso termos lido ninguém: por que raios quando éramos crianças e jogávamos bola na rua, criávamos tantas jogadas ensaiadas, de tudo quanto é jeito, e nenhuma delas dava certo? Por que, quando mudávamos de casa ou de escola, e jogávamos pela primeira vez com um grupo novo, éramos capazes de jogar tão, mas tão bem futebol, como se conhecêssemos aquelas pessoas de vidas passadas? E por que depois, quando já conhecíamos de fato, quando estamos cheios de conhecimentos, em um time cheio de ideias, que atrai-fixa-liberta, que ocupa espaços entrelinhas ao mesmo tempo em que oferece amplitude máxima com os extremos no segundo terço do campo, que treina as mais impressionantes sequências ofensivas, com tudo quanto é tipo de apoio, mobilidade, ultrapassagem, segundo homem, terceiro homem, quarto homem, superioridades numéricas, posicionais, qualitativas etc etc – porque mesmo assim somos perfeitamente capazes de entrar em campo e não jogar absolutamente nada?  Porque o controle do jogo jogado não é apenas nosso – é do jogo. Quando defendo, como vários outros colegas, que o jogo seja visto como um microcosmo da vida que se vive, quero dizer exatamente isso: da mesma forma como a vida vivida não depende apenas da qualidade das nossas ideias – muito pelo contrário, há um mundo de forças agindo e retroagindo sobre nós, basta olharmos o nosso tamaninho sanitário -, o jogo jogado também não é reflexo exclusivo das ideias. Não por acaso, aliás, considere-se que a qualidade do jogo que se joga, individual e coletivamente, possa sim ter relação muito importante com o sentido que se dá à vida que se vive.

Mas não nos esqueçamos que mesmo o sistema de ideias é dependente de uma certa harmonia do sujeito. Sabendo disso, não me surpreende nem um pouco, embora me sensibilize bastante, a carta do Cesare Prandelli, que se demitiu da Fiorentina na última terça-feira. Embora ele não seja suficientemente claro sobre os problemas que enfrenta, deixa nas entrelinhas se tratar de algo emocional, razoavelmente profundo e eventualmente grave. Enquanto isso, a Fiorentina amargava apenas o décimo quarto lugar na Serie A italiana. De um ponto de vista simplista, não seria difícil atribuir uma suposta falta de ideias ao Prandelli – mas considerando o todo, será mesmo que uma análise dos comportamentos tático-técnicos da equipe, por mais minuciosa que fosse, daria conta da complexidade do problema? Não me parece.

Este é um terreno importante, que tangenciei na semana passada, que é o terreno da humanização do treino e do jogo de futebol. Vejam bem, o futebol não é um mundo à parte do mundo da vida, é parte inseparável da vida que se vive. E especialmente a partir do final do último século, foi se criando com ainda mais força essa noção de que nós, pessoas humanas em movimento, devemos ser sujeitos de performance: vejam, por exemplo, a facilidade com que se reproduz esse discurso da produtividade doentia – com seus rituais mirabolantes – assim como a facilidade com que naturalizamos, de alguma forma, a noção de que somos empresas de nós mesmos, cuja finalidade última é nos garimparmos cada vez mais.

Numa sociedade de performance, tudo aquilo que não é performático não será apenas questionado, mas será excluído – ou, numa linguagem moderna, convidado a se reciclar, como se recicla um resíduo qualquer. É precisamente aqui que se encontra a importância da humanização, não apenas porque as circunstâncias do mundo estão nos fazendo esquecer de como se trata gente como gente (e vocês sabem muito bem as coisas que se passam no futebol) mas também porque grande parte do jogo que joga e da vida que vive, como estávamos dizendo, estão para além do controle humano. Tendo em conta que um dos braços desse sistema é o individualismo, a partir de uma profunda convicção de que as vontades individuais são capazes de controlar as vontades do mundo, não surpreende que, diretamente ou não, façamos leituras tão individuais no futebol: se um dado jogador não rende, talvez seja porque não quer. Se uma dada equipe não rende, num futebol tão demasiadamente marcado pelas ideias (como faziam os cartesianos, diga-se), é porque elas eventualmente estão em falta.

Mas, lembrem-se, talvez não seja exatamente isso.

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Sobre o controle do jogo jogado e o papel da intuição

Crédito imagem: Redes sociais/Marco Van Basten

Há poucos dias, o diário El País publicou uma entrevista bastante agradável com o holandês Marco van Basten, um dos grandes jogadores da sua geração e de todos os tempos, na qual ele comenta, com alguma nostalgia, sobre o futebol da sua época de jogador e particularmente da lesão que o levou à breve retirada dos gramados, ainda jovem. Na mesma entrevista, van Basten faz alguns comentários muito interessantes, embora não exatamente populares, sobre a sua visão do futebol que se pratica hoje em dia – mais especificamente sobre o papel da intuição nos jogadores de elite e sobre a real influência dos treinadores no desenvolvimento de atletas e na organização de equipes competitivas. Vamos conversar um pouco mais sobre isso.

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Aqueles que acompanham há mais tempo a produção do professor Alcides Scaglia, provavelmente já se depararam com uma observação, que já foi pauta de algumas das nossas conversas, na qual ele defende a importância de devolver o jogo ao jogador. Se levarmos em conta que pelo menos as duas últimas décadas trouxeram uma grande mudança na natureza do nosso entendimento sobre o futebol de elite – mudança talvez sintetizada numa transição mais consistente do centro do debate, dos talentos individuais para a organização coletiva -, não surpreende que hoje nos seja normal dar cada vez mais peso ao nosso ofício de treinadores e treinadoras. Deliberadamente ou não, fazemos isso de um modo que os jogadores passem, de fato, a serem vistos como secundários, dependentes das decisões dos treinadores. Sobre isso, van Basten disse uma coisa interessante, que cito em tradução livre:

“Hoje se uma equipe joga bem ou mal, atribuímos ao treinador. E realmente não sei qual é a influência do treinador. Pouco a pouco, temos esquecido do verdadeiro papel que têm os jogadores. O LIverpool é Klopp, o Madrid é Zidane, o City é Guardiola…”

No dia anterior à publicação deste texto, Abel Ferreira, treinador do Palmeiras, deu uma excelente entrevista ao Seleção Sportv. Num determinado momento, disse algo como ‘vocês atribuem tudo ao treinador’ – fazendo evidentemente uma observação à imprensa, mas não apenas – o que não deixa de ser verdade, nós de fato nos acostumamos a atribuir tudo ao treinador, e não deixa de sê-lo, também, por um efeito colateral daquele deslocamento de que falávamos acima: se, por um lado, é muito importante pensarmos o coletivo, por outro é razoável não tropeçarmos na curvatura da vara, de um modo que a capacidade decisória dos jogadores seja completamente escanteada, enquanto as decisões de treinadores e treinadoras passem a carregar um peso (inclusive emocional) cujas repercussões são altamente prejudiciais. Apenas como exemplo, um discurso que transfere todo o peso da performance ao treinador talvez seja patrocinador oficial da cultura de demissões em massa no Brasil.

Curiosamente, o próprio van Basten faz uma referência parecida, quando diz tacitamente que não sentia prazer trabalhando como treinador porque tinha muitas dificuldades em ter o real controle das situações, da mesma forma como não sabia (e diz ainda não saber) qual a real influência de um treinador no rendimento de uma equipe. Não deixa de ser um momento oportuno para se falar disso, porque embora estejamos cada vez mais animados por uma suposta evolução do pensamento e da prática do futebol, tenho a sensação de que estamos nos deixando levar por um tipo de discurso que não é exatamente moderno. Vejam, por exemplo, como tornou-se comum dizer que uma determinada equipe, que por algum motivo não alcança um nível ótimo de performance, é um ‘deserto de ideias’. Aquela transição do individual para o coletivo, cuja repercussão é um sobrepeso da real influência de um treinador, chegou a um ponto em que passamos a realmente acreditar que a performance, seja ela aguda ou crônica, é um reflexo único e exclusivo da qualidade das ideias que a antecedem – logo, se uma equipe não joga bem, só pode ser pobre de ideias.

Não deixa de ser um contrassenso bastante significativo, especialmente num momento em que dizemos valorizar tanto o pensamento sistêmico – e, justamente por isso, nos dizemos defensores do jogo. Ora, a premissa básica do jogo (e isso está em autores basilares da área, como Johan Huizinga e Roger Caillois) é a imprevisibilidade. O jogo tem regras e tem um espaço previamente definido, o jogo é uma espécie de suspensão temporária da realidade (razão pela qual podemos falar num estado de jogo – inclusive como parte importante de um ambiente de jogo e de um ambiente de aprendizagem) mas, junto disso tudo, o jogo é imprevisível. Não bastasse isso, o jogo de futebol ainda se constitui num ambiente de violentíssima complexidade, não apenas pelo alto número de atores envolvidos (e portanto de interações), mas por ser um jogo coletivo de invasão do campo adversário, por ser jogado com os pés ao invés das mãos, por ter uma regra absolutamente genial, como o impedimento, que pode restringir conscientemente o espaço efetivo de jogo – e são todos fatores que deveriam nos levar ao seguinte ponto: embora um determinado conjunto de ideias seja, de fato, importante na articulação da identidade de uma equipe, a complexidade do jogo é tão demasiadamente grande que não apenas não me parece possível atribuir às ideias a responsabilidade por um certo nível de performance (seria uma inferência reducionista de causa/consequência), como também me parece uma certa armadilha cognitiva sobre o real controle que exercemos sobre o jogo jogado e sobre a vida que se vive. Imaginem vocês, por exemplo, o que significa dizer que um sujeito em situação de miséria extrema está onde está por falta de ideias – ou porque ‘não se esforçou o suficiente’. Não parece muito adequado.

Por isso, não deixa de ser importante considerar a fala do van Basten sobre não se sentir no controle – porque o controle é de fato mais uma sensação do que qualquer outra coisa. Aqueles de nós que trabalham com metodologias baseadas em jogos, sejam eles grandes ou pequenos, conceituais ou contextuais, sabem perfeitamente que o jogo, ainda que planejado, não é um experimento meticulosamente controlável. Pelo contrário, nós até podemos definir uma série de condições iniciais, que chamamos carinhosamente de regras, mas depois de submetidas ao jogo, as nossas expectativas se reduzem à uma espécie de aposta. Falei disso algumas vezes e mantenho: é muito provável que o jogo jogue conosco mais do que jogamos com ele, de um modo que o que nos cabe, como treinadores e treinadoras, não é tentar controlar o jogo, mas sim refinar a capacidade de resposta individual, grupal e coletiva aos problemas que ele nos apresenta. Pelo mesmo raciocínio, acho imperativo termos claro que o processo de treino, por mais cuidadoso e sistematizado que o seja (inclusive considerando os riscos da hipersistematização, como escrevi aqui), não deve ser visto como uma espécie de coleira que domestica o jogo – pensamento que, na minha modesta opinião, vai nos levar para o buraco -, mas como uma espécie de aposta, da mesma forma como fazemos diversas apostas (ora intuitivas, ora metódicas) na vida cotidiana. Nosso controle, sabemos bem, tem limites.

Não surpreende, aliás, que cause espanto quando se fala elogiosamente sobre a intuição, como fez o van Basten na entrevista: nós chegamos num ponto tal em que tudo aquilo que fuja de uma certa noção de racionalidade é imediatamente escanteado. Mas será mesmo que a tomada de decisão de um jogador ou mesmo de nós, treinadores e treinadoras à beira do campo, é fruto de extensas deliberações racionais, do chamado sistema descendente (Daniel Goleman), ou é fruto de um caminho mais curto, profundamente intuitivo, inclusive fruto de séculos e mais séculos de evolução antropológica? Em tempos de crenças muito grandes na razão, talvez seja preciso repensarmos o lugar da intuição: a questão é de que modo vamos interpretá-la nos nossos processos formativos. Superestimar a intuição (por exemplo, se a confundirmos com um dom divino – podemos falar disso num outro momento) já se mostrou um caminho inadequado, mas subestimar o papel da intuição na tomada de decisão, especialmente se considerarmos a importância da experiência no seu refinamento, também não me parece um caminho muito fértil para o futebol de hoje e de amanhã.

Seguimos em breve.

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Sobre os desafios do conhecimento e as armadilhas do complexo

Crédito imagem – Site Manchester United/Divulgação

Nos últimos quinze ou vinte anos, mais precisamente depois do surgimento e das extensas publicações sobre um sujeito tão particular como José Mourinho, houve de fato uma mudança significativa no perfil das novas gerações de profissionais do futebol. Me lembro do professor Manuel Sergio – de quem Mourinho foi aluno, diga-se – escrevendo que Rene Descartes, patrocinador oficial do racionalismo, promoveu uma espécie de corte epistemológico no pensamento moderno, e me parece que o Mourinho, obviamente guardadas as devidas proporções, também marca uma espécie de corte, menos epistemológico e mais geracional. De forma bastante sucinta, acho que a ascensão do Mourinho trouxe consigo ao menos duas grandes mudanças: I) passou-se a acreditar, de maneira mais concreta, que formar-se profissional do futebol não dependia especialmente da empiria, da experiência adquirida (como atleta, por exemplo) ao longo do tempo, mas tem uma variável importantíssima de episteme, conhecimento adquirido a partir do estudo diligente do jogo de futebol; e II) passou-se a acreditar, de maneira muito mais concreta, que era possível tornar-se um treinador de excelência, em nível internacional, ainda muito jovem. A rápida ascensão de Pep Guardiola, poucos anos depois, inclusive como uma espécie de contraponto ideológico do próprio Mourinho, reforçaria este ponto.

A literatura que se produziu desde então – vejam as biografias do próprio Mourinho, por exemplo – traz para o debate, de um ponto de vista bastante prático, isso que chamamos de complexidade: qualidade daquilo que é tecido junto. O pensamento complexo não é exatamente uma novidade na história do pensamento, mas não deixa de representar uma ruptura importante no pensamento e na prática do futebol: seja a partir das metodologias de treinamento (e aqui, acho particularmente importante citar os microciclos estruturados, via Paco Seirul-lo, que são um contraponto velocíssimo à periodização dos russos, bastante voltadas para as modalidades individuais/olímpicas), seja pelo entendimento inseparável das fases do jogo de futebol, ou mesmo pelas tentativas de estruturação multi/inter/transdisciplinar de determinados clubes – com todas as dificuldades que isso implica e também com toda a distância que existe entre o falar e o fazer. São pelo menos alguns dos exemplos concretos disso que chamamos, especialmente por herança do Thomas Kuhn, de mudança de paradigma. 

Mas repare também nas armadilhas deste processo: por exemplo, é bastante difícil articularmos um pensamento e uma prática complexas se não cuidarmos, muito atentamente, das relações todo-partes. No livro Cabeça Bem-Feita, que inclusive indico como uma introdução ao tema, o Edgar Morin apresenta sete princípios para uma reforma do pensamento ou, como ele mesmo escreve, “sete diretivas para um pensamento que une; (…) princípios complementares e interdependentes”. A título de curiosidade, falamos do princípio sistêmico, princípio hologrâmico, princípio do circuito retroativo, princípio do circuito recursivo, princípio da autonomia/dependência, princípio dialógico e, por fim, o princípio da reintrodução do conhecimento em todo o conhecimento. Não vamos nos estender em cada um dos princípios aqui, mas me permitam citar novamente uma passagem absolutamente fundamental do Blaise Pascal, nas suas Meditações, que ilustra muito precisamente o ponto do Morin e de qualquer um de nós que deseje articular um tipo de pensamento e de prática vinculado a um outro paradigma:

“Como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e imperceptível, que liga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.”

Se nos propusermos a adotar pensamento e prática complexos, seja a partir da simultaneidade das variáveis táticas, técnicas, físicas e mentais no processo de treino, seja pela interpretação de padrões individuais, setoriais e coletivos a partir da união e não da separação, ou mesmo se adotarmos uma prática que reconheça os infinitos constituintes de cada uma das pessoas que compartilham conosco as rotinas de trabalho e de vida, sejam atletas, comissão, gestores e imprensa, que são um mundo de razão, paixões, crenças, hábitos e vontades absolutamente particulares, se nos propusermos de fato a um fazer complexo (ao invés de um mero falar complexo), então precisamos ter claras não apenas a impossibilidade de separação todo-partes como também o risco, cada vez maior, de nos afogarmos em discursos e práticas que percam a noção de falibilidade (ou seja, precisamos confrontar as nossas próprias certezas) mas especialmente discursos e práticas que nos façam confundir o saber das partes com a hiperespecialização.

Por exemplo, se me proponho a fazer a análise de um gol, desde o instante em que minha equipe recuperou a posse a da bola até o instante em que a bola ultrapassa a linha, será que é realmente prudente dizer que há uma ou duas causas específicas que determinam o gol? Será que é de fato possível afirmar que a causa do gol foi, digamos, a localização do nosso lateral-direito, que controlou a profundidade 1m abaixo do ‘ideal’, orientação corporal levemente imprecisa, flexão de joelhos cerca de 3° abaixo da ‘ideal’ (portanto, num centro de gravidade ligeiramente mais alto), de um modo que não lhe foi possível responder precisa e imediatamente ao movimento do ponta, disposto a 1m da linha lateral (para atrair o lateral e eventualmente criar uma lacuna entre lateral e zagueiro – dano intrasetorial na primeira linha de defesa), cuja recepção orientada, com o pé mais próximo do gol e no sentido oposto ao movimento do marcador, superou um oponente e atraiu mais uma vez, por um breve instante, a atenção do zagueiro central e também de um dos volantes – será que é de fato prudente afirmarmos que foi aquela primeira ação do lateral, um metro distante do ‘ideal’, que justifica um gol ocorrido dez ou quinze segundos depois, portanto antes da ocorrência de pelo menos mais de uma centena de ações individuais, setoriais e coletivas? A meu ver, é justamente esse o desafio do conhecimento, especialmente quando se propõe a ser complexo: é claro que os pormenores do jogo de futebol são absolutamente importantes e não deixam de ser basilares para todos nós que trabalhamos na área, cada um no seu contexto. Mas também considere, inclusive da forma como descrevi o exemplo acima, que o particular não existe dissociado do geral (ou, se você preferir, que os sub-princípios não existem dissociados dos princípios) e que a fronteira que separa o pensamento complexo de um pensamento especializado, ainda que sob nova roupagem, pode ser muito mais tênue do que pensamos. Sobre isso, aliás, me permitam citar novamente o Morin, no mesmo livro a que me referi anteriormente, agora sobre os riscos de um pensamento hiperespecializado:

A fronteira disciplinar, sua linguagem e seus conceitos próprios vão isolar a disciplina em relação às outras e em relação aos problemas que se sobrepõem às disciplinas. A mentalidade hiperdisciplinar vai tornar-se uma mentalidade de proprietário que proíbe qualquer incursão estranha em sua parcela de saber. Sabemos que, originalmente, a palavra “disciplina” designava um pequeno chicote utilizado no autoflagelamento e permitia, portanto, a autocrítica; em seu sentido degradado, a disciplina torna-se um meio de flagelar aquele que se aventura no domínio das ideias que o especialista considera de sua propriedade. (p.106)

Por isso, o cultivo de um outro pensamento e de uma outra prática no futebol serão tanto melhores quanto menos perdermos de vista que as partes só são possíveis em relação com o todo, assim como o todo só é possível em profunda relação com as partes (que também são relação, e não mera soma). De um ponto de vista do falar, não parece tão difícil. Mas, de um ponto de vista do fazer, me parece que ainda precisamos nos cuidar muito, não apenas para não cairmos nos mais diversos tipos de armadilhas cognitivas, que estão sempre à espreita, mas especialmente para reconhecermos que ainda sabemos muito pouco, e que portanto há um enorme caminho pela frente caso queiramos, de fato, falar e fazer do futebol e da vida que se vive uma obra de união – e não mais de separação.

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Qual o lugar da experiência na formação de treinadores e atletas?

Crédito da imagem: FC Bayern/Divulgação

Não faz muito tempo, nós começamos aqui uma série sobre o processo de articulação de filosofias de treinadores – de futebol, mas não apenas. Ali, apresentei um pouquinho do meu entendimento sobre as filosofias, porque elas devem ser pensadas no plural, ao invés do singular, e de que forma isso pode se converter em práticas mais refinadas.

No texto de hoje, gostaria de falar um pouco mais disso, mas agora tratando de um outro ponto, não apenas importante na articulação de filosofias, mas na própria formação de treinadores e de atletas de futebol: a experiência. Mais precisamente, gostaria de apresentar uma outra forma de pensar e de sentir a experiência e de que modo essa outra forma de pensar e de sentir pode ser decisiva nos nossos processos formativos.

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O termo experiência não é novo, muito pelo contrário: é uma palavra relativamente batida não apenas na literatura mais científica de formação de treinadores, mas também nas nossas práticas cotidianas. Outro dia mesmo, assistindo a um comentário do Jamie Carragher, ex-zagueiro do Liverpool e da seleção inglesa, o via dizer que grandes treinadores do futebol internacional só chegam ao mais alto nível pelo elevado grau de experiência acumulado. Não deixa de ser um pensamento com o qual todos nós simpatizamos de alguma forma: pessoas experientes teriam um grau de conhecimento que pessoas menos experientes, por sua vez, não têm.

Este sentido de experiência, a que o Carragher se refere, está muito claramente associado à uma noção mais clássica de experiência: perícia adquirida a partir da prática sistemática de uma certa atividade ao longo do tempo. O sujeito experiente, via de regra, é aquele que acumulou horas e horas e horas de prática em uma atividade bastante específica, e são as horas de prática naquela atividade que o fazem chegar aos mais altos degraus de performance. Um pianista, como repetimos naquele exemplo já batido, não se faz pianista correndo em volta do piano, mas tocando piano por milhares de horas. Na literatura científica, especialmente a partir do trabalho do sueco Anders Ericsson, é isso que se chama de prática deliberada, cujo grau de especificidade é bastante razoável. Um livro que populariza bem esse conceito é o Fora de Série, do Malcolm Gladwell – onde aparece, com exemplos famosos, a hipótese das dez mil horas de prática para se chegar à excelência.

É bem verdade que certas atividades exigem um grau de especificidade maior do que outras. Muito bem, qual seria o grau de especificidade do futebol? No bom livro Range (traduzido no Brasil como ‘Por que os generalistas vencem num mundo de especialistas’), o também jornalista David Epstein nos dá uma pista interessante: segundo ele, citando um psicólogo chamado Robin Hogarth, haveria basicamente dois tipos de ambientes: ambientes generosos e ambientes perversos. Os ambientes generosos seriam aqueles nos quais a experiência, de um ponto de vista clássico, pode ser suficiente: a prática hiperespecializada permite o reconhecimento intuitivo de um determinado número de padrões repetitivos (pense no jogo de xadrez, por exemplo). Por outro lado, nos ambientes perversos, o nível de complexidade parece tão demasiadamente elevado que a prática especializada, ao invés de facilitar, limita a aprendizagem. Segundo o próprio Epstein:

“Quando conhecemos as regras e as respostas, e elas não mudam com o tempo – xadrez, golfe, música clássica -, podemos defender a prática hiperespecializada ao estilo de gênio desde o primeiro dia. Mas esses são modelos pobres para a maioria das coisas que os humanos querem aprender.”

Quando pensamos num autor como Claude Bayer, muito importante no nosso entendimento pedagógico dos Jogos Esportivos Coletivos, e mais especificamente na noção de habilidades fechadas e habilidades abertas – sendo as abertas aquelas que florescem em ambientes de elevado grau de incerteza e complexidade – fica mais ou menos claro em que ambiente se encontra o futebol e onde nós, profissionais do futebol, devemos nos encontrar.

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Embora a experiência possa sim ser a perícia adquirida pela prática sistemática, pode ser que não seja apenas isso. Na verdade, de um ponto de vista histórico, a palavra experiência foi sendo modelada e mesmo banalizada pelo uso constante. No mestrado, buscando referências que me ajudassem a pensar o futebol de outras formas, encontrei um autor maravilhoso, chamado Jorge Larrosa, que apresenta uma outra interpretação para a experiência: ao invés de prática sistemática, a experiência seria ‘isso que me passa’. A experiência, em primeiro lugar, não seria exatamente uma consequência das escolhas do indivíduo, mas sim um acontecimento externo, alheio à nossa vontade e aos nossos saberes e, mais especificamente, um tipo de acontecimento que não pode ser produzido ou fabricado por nenhum de nós – essa, diga-se, é a diferença entre experiência e experimento. Em segundo lugar, a experiência tem uma dimensão de ida e de vinda, um certo caráter reflexivo: embora venha de fora, ela só pode se fazer em nós, enquanto sujeitos. Por fim, repare que o corpo seria uma espécie de território de passagem da experiência, daí que a experiência tenha um viés pedagógico, não exatamente pelo número de supostas experiências que se têm, mas pelo sentido que somos capazes de dar às experiências, porque elas nos deixam uma espécie de marca, de cicatriz. No mestrado, aliás, estudei exatamente a importância dessas cicatrizes nos nossos processos de articulação de filosofias de treinadores de futebol.

Reparem que são de fato duas visões muito diferentes da experiência, e que as diferenças entre elas residem num ponto muito simbólico: se, de um lado, a experiência é vista de um ponto de vista quantitativo (horas de prática) do outro ela é vista de um ponto de vista qualitativo (sentido). É simbólico porque vai no coração de vários dos temas que são tão importantes em ambientes como a própria Universidade do Futebol: para citar dois exemplos, o pensamento complexo nos mostra que não basta saber mais – é preciso saber melhor, religar os saberes (Morin). Do treinamento, sabemos que a carga não é mais apenas física, é também tático-técnica e mental, ao mesmo tempo, e que tão ou mais importante do que o volume é a intensidade: a qualidade dos estímulos, de um ponto de vista individual e coletivo.

Mas para se fazer experiência, desse outro ponto de vista, mais qualitativo, é preciso fazer uma outra inversão: se a experiência, enquanto prática sistemática, presume uma afirmação das nossas próprias vontades, dos nossos saberes e poderes, por outro lado a experiência enquanto isso que me passa só pode acontecer se estivermos abertos: o sujeito demasiadamente fechado, seguro de si, que se sente poderoso e até mais forte do que a própria vida, dificilmente será capaz de fazer experiência, porque a experiência presume exatamente o contrário – um razoável grau de modéstia (especialmente de um ponto de vista do conhecimento, saber que não se sabe de tudo) e especialmente um reconhecimento das próprias fraquezas e limitações. Se você preferir: o sujeito da experiência é, necessariamente, frágil. E de um modo que é da fraqueza que nascem as suas próprias forças.

Afirmações como a do Carragher, que citei acima, não estão de todo equivocadas: em certas atividades, é de fato preciso ter muitas horas de prática para apresentarmos um certo grau de perícia. Mas, no caso de ambientes como o do futebol, o tipo de habilidades que nos são requeridas são outras, muito mais abertas do que fechadas, o que significa que é perfeitamente possível tornar-se experiente sem um elevado número de horas de prática num determinado contexto: veja, por exemplo, o que fizeram nos últimos vinte anos sujeitos como José Mourinho, Pep Guardiola (ambos absolutamente inovadores ainda muito jovens), André Villas-Boas, Julian Nagelsmann e mesmo um sujeito como Hans-Dieter Flick – não exatamente jovem de um ponto de vista clássico, e mesmo assim supostamente inexperiente como treinador principal num gigante como o Bayern de Munique. E vejam o exímio e corajoso trabalho (o que dizer do comportamento agressivo da linha de quatro na fase defensiva?) feito por ele até agora. Embora inexperiente de um ponto de vista tradicional, quantitativo, Flick provavelmente soube dar um sentido muito refinado ao que se passou na sua vida – e talvez fosse muito ‘experiente’ como treinador principal sem sabê-lo.

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Algumas das possíveis relações entre a experiência, enquanto isso que me passa, e a formação de treinadores e treinadoras estão apresentadas neste artigo, em que faço uma introdução ao tema. O curioso é que esse tipo de inquietação veio menos de curiosidades teóricas do que das minhas próprias experiências como treinador, a partir das apostas que vamos fazendo na prática. E isso, na verdade, tem um caráter duplo: ao mesmo tempo que foi me ficando visível que a experiência não era necessariamente a prática sistemática e hiperespecializada, também vai me ficando visível que pensar a experiência de uma outra forma tem repercussões fundamentais no processo de formação de atletas.

Por exemplo, um processo pedagógico que considere o saber da experiência precisa ter claro que a experiência nunca é universal – mas sempre subjetiva. Ou seja, ainda que tenhamos os mais refinados processos pedagógicos e metodológicos, não podemos perder de vista que, numa mesma situação, para dois jogadores diferentes, pode ser que nenhum dos dois faça experiência ou que, então, ambos façam experiências absolutamente diferentes. Um mesmo jogo, de 6×6+2, num espaço de 30x20m, será absolutamente diferente para cada um dos 14 jogadores envolvidos. Ter em conta esse grau de subjetividade de experiência – que não deixa de se relacionar, de alguma forma, com o princípio da individualidade biológica – e fazer dele concreto, a partir do ensino e aprendizagem de estratégias mais refinadas para se dar sentido às experiências que se faz (e vejam que aqui me atenho apenas às experiências no ambiente de treino, ainda não falamos das experiências de vida) é um problema absolutamente importante a ser solucionado no planejamento, aplicação e avaliação das nossas sessões de treino e no desenho dos nossos processos pedagógicos. Aqui também aparecem, por exemplo, as relações todo/partes, de que tanto falamos a partir das consultas do Edgar Morin.

Pensar a experiência de uma outra forma não nos fará campeões de nada de um dia para o outro. Mas provavelmente nos fará pensar melhor. E são esses movimentos, como bem sabemos, que refinam o pensamento, o sentimento e especialmente a prática do futebol – de hoje e de amanhã.