Dia: 15 de dezembro de 2020
Por muito tempo o viés físico tomou conta de toda análise mais aprofundada sobre futebol. Principalmente aqui no Brasil. Somos um dos melhores nesse quesito no mundo. Não há dúvida disso. Muito por conta da enorme preparação, estudo e dedicação dos profissionais dessa área nascidos por aqui.
Membro fixo e obrigatório há muito tempo de qualquer comissão técnica minimamente estruturada, sempre era o preparador quem ditava a maior parte de uma sessão de treino. O técnico dava o conhecido ‘coletivo’. Onze contra onze. Sem campo e/ou regra adaptada para forçar um maior número de situações-problemas de jogo que precisasse ser melhor trabalhada. Havia a ideia de que com os jogadores bem condicionados fisicamente o melhor a se fazer era deixá-los jogar.
Apesar da evolução das metodologias e de um aprimoramento no olhar para entender o que se passa dentro das quatro linhas ainda está na nossa cultura um resquício dessa herança física de entender futebol. É comum ainda ouvirmos que determinada equipe não está rendendo porque está mal fisicamente. Ou que tal jogador ‘morre’ no segundo tempo.
Tais observações, porém, desprezam o caráter complexo e sistêmico que caracteriza o jogo de futebol. Nem no aspecto individual, muito menos no coletivo, apenas uma valência é determinante para explicar determinado resultado. A parte física é uma variável do jogo, mas está longe de ser a única. O que mais chama a atenção é, junto com o físico, os aspectos táticos, técnicos e emocionais. Um drible por exemplo: precisa de um preparo do corpo para ser executado, mas também do gesto técnico, da orientação tática (ou para o lado ou para frente ou para trás) e do emocional, com a coragem. Contudo podemos aprofundar a análise e trazer que essa simples ação também carrega componentes cognitivos, espirituais, antropológicos, sociais e etc.
Uma equipe bem treinada, com comportamentos coletivos claros, bem definidos e executados com excelência se desgasta pouco fisicamente para cumprir o objetivo do jogo, que é fazer mais gols que o adversário. Correr demais na maioria das vezes escancara a falta de mecanismos bem coordenados. ‘Raça’ não é correr muito. Tem mais essa ‘raça’ que o torcedor tanto adora aquele jogador que sabe exatamente as funções que tem que executar e um repertório vasto para resolver com eficácia os problemas inesperados que todo jogo carrega.
Romper paradigmas é necessário para construirmos o novo. O futebol brasileiro está evoluindo, sem dúvidas. É raro vermos os jogadores correndo em volta do campo para jogar melhor o jogo. A especificidade já impera na maioria dos clubes. Para melhor jogar futebol mais se deve treinar futebol, com foco em melhorias deliberadas e planejadas. E não melhorar a velocidade, aumentar carga no supino e no leg press com fim nessas próprias atividades. Um futebol de excelência requer treinos de excelência. E também análises mais conectadas com o caos sistêmico que o jogo carrega em sua própria natureza.
*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol
No futebol, a surpresa que vem em caixinhas pode ser uma derrota inesperada, e assim tentamos compreender os fracassos de equipes que poderiam ser vencedoras. Futebol é um jogo de xadrez, e as peças tem personalidade, ego e podem agir influenciadas pelos seus desejos. Isso faz com que entrosamento e união de equipe sejam ingredientes ocultos de vitórias e ajudem a conquistar campeonatos. Jogadores fortemente ligados por um propósito de equipe podem atuar de forma diferenciada para vencer e superar desafios. No entanto, se agem com base em motivações de desempenho individual exaltando o nome que vai às costas antes de atuar pelo nome da frente da camisa, podem resumir seu desempenho a destaques individuais em oposição às tentativas de superação de uma equipe, e assim uma promessa vencedora de equipe campeã sucumbe ao egocentrismo e à individualidade.
Os times milionários e repletos de craques surpreendem de diversas maneiras. Jogadores valiosos como Ronaldo Fenômeno, Roberto Carlos, Figo, Zidane, Casillas, estrelavam o galáctico e aparentemente imbatível time do Real Madrid, tido como um dos favoritos em qualquer competição que disputasse, teve desempenho irreconhecível na temporada de 2002/2003(1). Outro caso, o time com o “ataque dos sonhos” do Flamengo de Romário, Sávio e Edmundo, teve igualmente desempenho desastroso no ano de 1995, após ser comemorado pela torcida e anunciado pela imprensa como imbatível, pois tinha “o melhor ataque do mundo”(2).
Podemos então afirmar que uma equipe com destacados jogadores juntos nem sempre significa garantia de time vencedor? Os exemplos citados anteriormente dão força a esse tipo de interpretação.
Um dos fatores que respondem a essa questão beira o óbvio para uma modalidade coletiva como é o futebol. É preciso haver conexão entre os membros de uma equipe. O neurocientista Daniel Goleman(3), reconhecido mundialmente pela sua publicação ‘Inteligência emocional’, afirma: “fomos programados para nos conectar”. Para Goleman, sempre que interagimos com alguém o cérebro cumpre sua função de mostrar-se sociável a outro cérebro. Essa ponte, segundo o autor, permite afetar ou influenciar as pessoas com quem interagimos em via de mão dupla, pois influenciamos e somos influenciados. A empatia é o potente ingrediente.
As relações empáticas são potencialmente nutridoras desse tipo de conexão, ainda que em interações mais simples e rotineiras como o cotidiano de treino ou em tarefas executadas pelos jogadores sob o comando de um técnico. Vamos um pouco mais além, pois consideramos também a emoção como fator determinante. O fator emocional é outro ingrediente que se mistura às experiências dos relacionamentos interpessoais. Se há uma força que sustenta as relações entre pessoas, sob emoção essa força se amplia, como mostrou Jürgen Klopp ao provocar uma experiência inusitada de superação aos jogadores do Mainz05 no início de sua carreira como treinador em 2001. O técnico, tomado como “diferente”, desde então, levou seus jogadores para enfrentar desafios da natureza, em um local próximo a um lago na Suécia, e ali vivenciaram juntos problemas e obstáculos totalmente diferentes para um jogador de futebol, o que os levou a nutrir um senso único de cooperação e ajuda mútua, com resultados positivos para coesão do grupo(4).
Em um ambiente de treinamento ou competição, jogadores que superam situações e problemas de diversos tipos com motivações conjuntas para buscar soluções aos desafios, tendem a estabelecer uma relação profunda de força mútua. Essas trocas potentes que miram a solução dão consistência aos elos emocionais de ligação entre membros de uma equipe, pois no jogo esportivo são as pessoas que importam para construção da solução de um problema. Aqui é legítimo afirmar que “sozinhos somos bons, juntos somos fortes”. Basta dar sentido positivo e produtivo ao significado de “juntos”, como a equipe se mostrar unida ou entrosada, compartilhando maneiras de perceber o jogo através dos pensamentos e ações.
As interações interpessoais operam como moduladores da experiência vivida, redefinindo aspectos-chave de nossa função cerebral à medida que orquestram nossas emoções. Significados positivos e construtivos vão levar o jogador a vivenciar emoções que alicerçam a experiência com ganhos e aprendizados. Em um ambiente esportivo, como é o futebol, se faz importante a capacidade de intervenção dos técnicos e treinadores para que auxiliem os jogadores a atribuir significados que levem a uma experiência geradoras de vínculos que possam se fortalecer no convívio em treinos e competições.
A Neurociência aponta que há uma variedade diferente de células cerebrais, os neurônios-espelho, que são capazes de detectar tanto os movimentos que a outra pessoa está prestes a fazer quanto seus sentimentos, e instantaneamente nos preparam para imitar os movimentos e sentir junto, como se soubéssemos o que se passa com a outra pessoa. Entendemos assim que o modo como nos conectamos com os outros tem uma importância inimaginável.
O conceito de empatia se refere também ao nível cognitivo. Quanto mais forte é nosso relacionamento com uma pessoa, maior a nossa propensão a sermos abertos e atentos a ela. Quanto mais história pessoal compartilharmos, mais prontamente sentiremos o que ela sente e mais parecidos serão os nossos pensamentos e reações a qualquer situação que surgir.
A empatia abre as portas para os relacionamentos autênticos e mais profundos, baseados no respeito de como as pessoas percebem o mundo e formam suas concepções sobre maneiras de pensamento ou conduta. Nos momentos empáticos, sentimos que a outra pessoa sabe como nos sentimos, e assim nos sentimos compreendidos.
Essa conexão é potencialmente impactante, já que ativam os relacionamentos saudáveis que representam estados de bem estar, ao passo que os relacionamentos tóxicos podem atuar como alavanca para o afastamento emocional entre pessoas. Algumas equipes percebem isso e buscam a mudança, conhecida como ‘virar a chave’, como foi o caso da Itália e sua vitoriosa campanha na Copa de 1982 na Espanha, ameaçada em seu início pela instabilidade emocional de seu grupo que se rendia a fatores extracampo. A equipe de Enzo Bearzot viveu a expressão de seu potencial e rumou à conquista da Copa quando um senso único de corações e mentes brotou no jogo contra a Argentina, e depois consolidou essa nova condição contra o Brasil no inesquecível jogo do estádio Sarriá, em Barcelona.
Estamos chegando ao momento em que os treinadores e técnicos necessitam desenvolver e expressar habilidades de gestão de pessoas, além das competências clássicas que os levam a dominar o conhecimento do jogo, tanto teórico quanto prático. Técnicos reconhecidos pela sua liderança e comando de grupo são revelados pelas frases como “tem o time nas mãos”, “é bom de vestiário”, o que nos leva a investigar sobre o que poderia significar ser inteligente com relação às necessidades coletivas do mundo esportivo do futebol. Disse Cristiano Ronaldo: “A experiência me fez entender que jogando em equipe e sendo solidário, se alcançam os maiores objetivos”(5).
Bibliografia consultada
(3) GOLEMAN, D. Inteligência social: a ciência revolucionária das relações humanas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.
(5) PERCY, A. Pensar com os pés. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. p-110