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A educação e o futebol brasileiro

No meio de 2019 publicamos o relatório categorias de base e a educação, apresentando alguns números das categorias de base no país e alertando sobre a necessidade de darmos atenção especial ao acesso à escola por parte do exército de jovens jogadores que existe no Brasil.

A educação foi também um dos temas de dois de nossos últimos bate-papos que você acompanha semanalmente no FutTalks. Ontem, com o executivo de futebol Rui Costa e na próxima quinta-feira, na entrevista com Mauricio Marques, coordenador técnico dos cursos da CBF Academy.

As falas de nossos dois convidados incentivaram reflexões importantes sobre como o ensino formal pode ter um impacto muito grande não apenas para os jovens que não atingem o alto rendimento, mas para aqueles que continuam no futebol tanto como jogadores, e, principalmente, como para treinadores e outros profissionais que atuam no futebol.

Ao destacar a necessidade de enxergar o futebol de maneira sistêmica, percebendo as correlações das suas diversas áreas para o objetivo final que é o bom desempenho esportivo, Rui Costa ilustrou, “ser competente na especificidade não é suficiente. Trabalhei com gente com pós-doutorado, mas que não consegue falar, por exemplo, sobre a floresta amazônica”, lamentando a hiperespecialização de alguns profissionais no futebol. Podemos encontrar um exemplo muito bem terminado do que o executivo do futebol defende no trabalho e resultados alcançados nos últimos anos pela seleção uruguaia de futebol.

Depois de uma longa crise sem títulos nem brilho no futebol internacional o Uruguai iniciou em 2006 um projeto de reformulação liderado pelo treinador Óscar Tabarez. O trabalho teve como fruto a recuperação do prestígio da seleção nacional, o desenvolvimento regular de jogadores de alto nível no futebol mundial – o país se mantém nos últimos anos entre os líderes de jogadores per capita atuando fora de seu território – e resultados expressivos nas competições internacionais, com destaque para o título da Copa América de 2011.

Curiosamente, assim como Rui Costa ao afirmar que muitos especialistas no futebol “não sabem falar sobre a floresta amazônica”, o jornalista Lúcio de Castro ao escrever sobre o trabalho desenvolvido na seleção uruguaia, descreve Oscar Tábarez como “um maestro e um líder capaz de discorrer sobre botânica, história, política e filosofia em um papo, além de deliciosas histórias sobre o futebol de ontem e hoje”. Falas que convergem ao sublinhar a necessidade de se conhecer e debater o futebol para muita além do campo, porque ele é sempre muito mais do que isso.

Aqui pegamos carona em uma outra passagem da entrevista de Rui Costa, quando o executivo fala de nossa carência na produção de conhecimento escrito sobre o futebol, para refletir sobre nosso país de maneira mais ampla. Ao longo de nosso bate-papo, Rui Costa lamenta a baixa produção literária sobre futebol no país, que vem a reboque dos nossos hábitos de leitura. Segundo o estudo “Retratos da leitura no Brasil”, de 2019, entre aqueles que possuem o hábito de leitura, o brasileiro lê menos de cinco livros por ano, mesmo que apenas uma parte deles, e 44% da nossa população sequer tem o hábito.

Esse dado é causa, mas também consequência. Causa, porque pode ser visto diretamente na maneira como transferimos o rico conhecimento do futebol que existe no país, de maneira artesanal e pouco estruturada. Como você poderá acompanhar no FutTalks da próxima quinta, movimentos para tentar formalizar esses conteúdos vem se fortalecendo no Brasil, tanto dentro da própria Universidade do Futebol, que ajudou a dar a largada para essa corrida em 2003, como liderado por outros atores. Consequência, porque é um reflexo da falta de estímulo à leitura e à educação de maneira mais ampla, que temos em nossas “categorias de base” do país, que são as escolas do nível fundamental.

Assim como no futebol, o país precisa valorizar a nossa base e ela está nas escolas, na base do ensino. Se quem só sabe de futebol, nem de futebol sabe, como diria o grande pensador do futebol Manuel Sérgio, precisamos que cada vez mais crianças e jovens consigam discorrer sobre “a Amazônia, botânica, história, filosofia” e muito mais. Com muitos “Oscar Tabarez” pelo país, quantos craques nas mais diversas áreas, inclusive no futebol, não conseguiríamos formar?

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É preciso ouvir os protagonistas do futebol! Ou não

Crédito imagem: reprodução/TV

Junho ou julho de 2020. Tínhamos, então, milhares de vítimas fatais do Covid no Brasil, quando escrevemos sobre a absurda decisão de retomar os campeonatos de futebol profissional. Mais recentemente, escrevemos sobre as lamentáveis aglomerações presenciadas na final da Copa Libertadores da América, ruas e bares lotados.

Na semana passada terminou o campeonato brasileiro de futebol. Flamengo campeão. Mas o sabor da conquista não foi o mesmo; estádios vazios, semblantes e discursos de atletas e dirigentes o confirmam. Óbvio! Como festejar um título no mesmo dia em que chegávamos a novo recorde… de mortes por Covid: 250.000 perdas.

Um campeonato que nada ajudou ao futebol. Mas ajudou ao vírus, disseminando-o. Centenas de atletas, integrantes de comissões técnicas, dirigentes, árbitros, repórteres, todos contaminados e levando o vírus para milhares de pessoas, que desenvolveram ou não a doença, mas tornaram-se transmissores em potencial. Não há como saber quantos ficaram doentes, quantos morreram, quantos guardarão sequelas.

Ontem, quatro de março de 2021, pior momento desde o início da pandemia. Mais uma meta macabra foi alcançada: 1840 mortes em 24 horas. Ouvimos o desabafo de uma pessoa do futebol, o atual treinador do América Mineiro, Lisca. Desabafo desesperado! Ele disse, e concordamos, ser um absurdo a realização da primeira fase da Copa do Brasil. Nessa fase, clubes dos mais diversos pontos do Brasil se deslocarão para outros totalmente diferentes; clubes do interior do Pará poderão jogar no interior do Rio Grande do Sul, outros do Mato Grosso poderão jogar no Rio de Janeiro, um leva e traz de vírus descontrolado. Enquanto discutimos as possibilidade de lockdowns, a CBF divulga a tabela da Copa do Brasil. Suponhamos times infectados pelo vírus, sem sintomas ainda, deslocando-se por todo o território nacional, potencializando a tragédia.

Em seguida, Renato Portaluppi, atual treinador do Grêmio, questionado sobre a opinião do colega, diz ser admirador de Lisca, mas não concordar com seu desabafo. Para Renato Gaúcho, o “futebol é o local mais seguro”, durante a pandemia.  O treinador do Grêmio afirmou que, quando os times jogam, as pessoas ficam em casa, isoladas, sem aglomerações. O futebol ofereceria segurança contra o vírus, portanto, por manter as pessoas em casa, longe do contágio.

O futebol é pedagógico, inevitavelmente, para o bem ou para o mal. E profundamente didático. Educa nos momentos em que as pessoas estão abertas, apaixonadas, disponíveis. Lisca e Renato, cada qual à sua maneira, educam um grande público, assim como outros técnicos, jogadores, dirigentes, jornalistas. O futebol tem sido uma escola de brasilidade, contribuindo para formar o que temos de melhor e o que temos de pior.

No caso do pronunciamento de Lisca, porém, Renato não entendeu a mensagem, ou fez que não entendeu. O argumento de Lisca é irretocável: o futebol não pode se tornar o transportador oficial do Covid-19. E nunca isso será tão verdadeiro quanto na primeira fase de disputas de jogos da Copa do Brasil; em nenhum outro campeonato, maior diversidade de grupos brasileiros realizarão trocas, de cultura ao vírus. Ao dizer isso, Lisca é didático, educa as pessoas para o gravíssimo problema da pandemia. O argumento de Renato Gaúcho é frágil, tosco, sem sustentação lógica ou científica: o futebol garante o isolamento social das pessoas, diz ele. E completa: durante os jogos as pessoas ficam em casa. Os fatos não confirmam Renato; durante alguns jogos, as pessoas se juntam, abertamente ou clandestinamente, em bares, restaurantes, ruas, portas de estádios, quase sempre sem qualquer dos cuidados necessários para evitar o vírus. Os jogadores, durante a Copa do Brasil, terão contato com pessoas dos mais diferentes pontos do Brasil. Antes que saibam, por exemplo, que estão contaminados pelo vírus, o terão transmitido para um número incalculável de pessoas. O argumento de Renato reforça a tese de não praticar o isolamento social.

Se Lisca e Renato são didáticos em sua, consciente ou não, prática educacional, Renato tem alcance muito maior; mais famoso, técnico de um dos mais poderosos times da América do Sul, muito mais frequente nas telas de tv, redes sociais e rádios do país. A palavra de Lisca marcará durante algum tempo, ele teve boa oportunidade. Já a palavra de Renato marcará por muito mais tempo, ele terá muito mais oportunidades de passar sua mensagem.

Lisca e Renato demarcam com bastante nitidez uma linha que divide hoje o Brasil entre os que se posicionam a favor da vida e os que se posicionam contra ela ou demonstram indiferença. Vivemos um momento em que todos nos vemos pressionados a tomar posição em relação ao tema da vida. Vida ou morte? Vida ou falência da empresa? Vida ou lucro?

Retomando o título deste texto, é preciso ouvir os protagonistas do futebol, e eles são, em nossa opinião, os atletas e integrantes das comissões técnicas. Mas é preciso ouvi-los com certa dose de criticidade, consciência, sabedoria e empatia. Que possamos ouvir mais vozes como a do Lisca, ou do Abel Ferreira, treinador do Palmeiras. Que o futebol nos eduque para o bem!

Que vidas sejam preservadas!

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol