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O que queremos do treinador Fernando Diniz? Mudança!

Meses atrás, quando o Campeonato Brasileiro de 2020 ainda estava em curso e Fernando Diniz era treinador do São Paulo, pensamos escrever algo sobre ele, sobretudo, sobre o que Diniz representa para o futebol. O tempo passou, desistimos da ideia, Fernando Diniz foi demitido e o futebol brasileiro continuou em sua rotina costumeira, ele, Diniz, sendo, inclusive, mais um número na alarmante estatística das mudanças de treinadores em equipes brasileiras.

O que, então, fez-nos voltar a debater esse assunto e escrever sobre ele? A recente declaração do jogador Daniel Alves, entre todos os atletas em atividade, hoje, o mais vencedor, com passagens pelos maiores clubes do mundo.

Em entrevista ao site do jornal inglês “The Guardian”[1], Daniel Alves disse: “o Brasil é um cemitério de treinadores e jogadores. Nosso sistema se baseia nas coisas serem sempre as mesmas. Quando você tenta algo diferente, as pessoas ficam contra você, por que se funcionar isso vai mudar o sistema”.

Justificada nossa iniciativa, voltemos ao tema central do texto. E se você esperava, ao ler o título deste texto, que defenderíamos a demissão de Diniz como treinador da equipe do São Paulo Futebol Clube, ou que entraríamos no debate recentemente colocado pela mídia acerca da nomenclatura que define o pensamento do treinador Fernando Diniz como “dinizismo” ou “dinismo”, ou então, que discutiríamos suas opções de escalação, substituições ou esquemas táticos, no comando das equipes que comandou, provavelmente se frustrará.

Entendemos que a expressão, “dinizismo” ou “dinismo”, é sacada do dicionário daqueles que temem, no futebol, mais que tudo, mudanças. Esses termos têm sido utilizados, na maioria das oportunidades, de modo pejorativo, com a intenção de depreciar o jovem e talentoso treinador e seu trabalho.   

Nossa intenção, antes de tudo, é debater sobre o que representam os pensamentos de Fernando Diniz em seu contexto mais abrangente. Se pudéssemos sintetizar em uma palavra o que representam seus pensamentos, ela seria: mudança!

E é justamente por representar a mudança, que ele tanto incomoda grande parte daqueles que integram o contexto do futebol brasileiro, sobretudo, a mídia, torcedores e dirigentes esportivos. Afinal, de que mudança estamos falando? São várias! Vamos a elas.

A primeira delas, e talvez a mais importante, é a concepção de sujeito que ele possui. Fernando Diniz não entende os atletas como peças, coisas, produtos, como máquinas que têm que render a qualquer custo. Para ele, o jogador de futebol, como outro ser qualquer, é um ser de necessidades, com emoção, com sentimento, com valores, dotado de subjetividade, e que erra, como também acerta. Diniz busca, cotidianamente, desenvolver o atleta, mas não de forma dissociada da sua condição de ser humano. Para Diniz, o jogador é, ao mesmo tempo, indivíduo e sociedade, grupo, coletivo.

A segunda mudança, mais nitidamente observável no campo de jogo, refere-se ao modo como opera (faz funcionar) o grupo de jogadores. Diniz consegue implementar algo fundamental do ponto de vista do funcionamento da equipe: constituir uma identidade grupal, sem que os atletas percam sua identidade pessoal. Em outras palavras, incentiva o trabalho coletivo, a coesão, fortalece o que popularmente é conhecido como entrosamento, ao mesmo tempo que busca e promove o desenvolvimento pessoal de cada sujeito, jogador de futebol, neste caso. Não é tarefa fácil essa de buscar a harmonia entre o indivíduo e o coletivo, daí a necessidade de tempo para realizar o trabalho. Fernando Diniz imagina a arte do futebol não apenas no talento deste ou daquele jogador, mas também no grupo; que a arte de jogar futebol esteja tanto no coletivo quanto no individual.

A própria maneira como promove a organização da sua equipe em campo reflete uma mudança drástica no pensamento habitualmente observado no âmbito do futebol profissional. Ele organiza, “desorganizando”. Ao ver um centroavante vir realizar a saída de jogo, um lateral entrando na área para finalizar ou um zagueiro para cabecear um cruzamento, por exemplo, grande parte da mídia, torcedores, dirigentes, e até alguns jogadores, se incomodam. Se incomodam, pois não compreendem sua forma de organizar. A sua organização parte da desestruturação da equipe adversária. Ele incomoda, porque muda. E se muda, gera ansiedade e, consequentemente, resistência. E como forma de resistência, há, além da estereotipia, a crítica corrosiva.

Diniz sabe que o jogo de futebol, como a vida, é imprevisível. Especialmente em situações como as apresentadas no jogo de futebol, a imprevisibilidade é, para ele, a marca mais visível. Sua equipe precisa, portanto, saber lidar com o imprevisível, produzir surpresas e defender-se delas.

Aliás, estes foram, também, pontos destacados por Daniel Alves em sua entrevista ao “The Guardian”: “Diniz está à frente da maioria dos treinadores […] Suas ideias e o trabalho que está fazendo. Você pode dizer ‘ele não ganhou o título’, mas não estou falando sobre isso. Eu estou falando sobre futebol. Eu o admiro muito. Ele se preocupa com as pessoas, tem muitas ideias sobre futebol e sabe o que quer do futebol.

Outro ponto importante para entendermos o pensamento de Fernando Diniz passa pela compreensão e valorização do processo. O futebol profissional é extremamente imediatista. Quer resultados “pra ontem”! Ao confrontar essa compreensão e apostar e valorizar o processo, Diniz propõe mais uma mudança. E vale repetir… a mudança incomoda. O imediatismo no futebol brasileiro tem destruído jogadores e técnicos.

No futebol brasileiro, para construir uma equipe, os técnicos possuem jogadores jovens, inexperientes, recém-saídos das equipes de base e alguns veteranos, até com experiências internacionais, mas que já não conseguem bons contratos na Europa, embora talentosos e dedicados. Diante disso, no processo de formação e desenvolvimento da equipe, é preciso fazer um trabalho artesanal, treinar exaustivamente, conversar permanentemente com o grupo, conversar com cada um separadamente, detectar e superar suas limitações e dificuldades, entender seus problemas e ajudar a superá-los. Tudo isso demanda tempo. E um tempo que o futebol profissional precisa entender, valorizar e respeitar, mas não o faz. Não se constrói uma equipe, em que boa parte dos jovens ainda precisa aprender a ser jogador, de um dia para outro. É necessário ter tempo para isso, tempo que não costumam dar a treinador nenhum, com raras exceções.  

Os jovens jogadores em formação passam anos nas categorias de base, em muitos casos, ainda sendo treinados a partir de uma pedagogia tecnicista, driblando cones, repetindo gestos, movimentos e ações que nunca ocorrerão nos jogos. A pedagogia implementada por Diniz em seus treinos (e por poucos outros treinadores das categorias de base e equipes profissionais), já relativamente bem difundida no âmbito acadêmico, mas ainda pouco discutida nos campos de treino e debates jornalísticos, está muito distante disso. Ao defendê-la, Fernando Diniz propõe outra mudança. E novamente, como já dissemos, a mudança incomoda.

Poderiam alegar alguns leitores: “ah, mas com Diniz o São Paulo não ganhou nada!”. E sem o Diniz, o que ganhou nos últimos anos? Não é isso, portanto, o que está em jogo. Nos demais clubes também raramente se ganha. Todo torneio admite apenas um vencedor. Perdoa-se com mais facilidade a “surra” de 8 a 2 que tomou o Barcelona, do que qualquer derrota das equipes comandadas por Fernando Diniz.

Há anos cobramos do futebol brasileiro aquele estilo e desempenho que décadas atrás encantava o mundo: um futebol bonito, alegre, imprevisível, ofensivo e, quando alguém se propõe a caminhar nesse sentido e realizar as mudanças necessárias, as pessoas se incomodam e o criticam insistentemente.  

Há quem diga, principalmente parte da crônica e mídia esportiva, que os conceitos, ou filosofia, como se diz no senso comum futebolístico, trazidos por Fernando Diniz refletem-se no fracasso de suas realizações dentro de campo. Tais afirmações fundam-se exclusivamente em avaliações negativas de resultados em partidas específicas, eliminações ou os poucos títulos conquistados. Se tomarmos como referência o modelo e o sistema futebolístico que está posto, faz sentido. Sobretudo se não perdermos de vista que o futebol faz parte do sistema capitalista predatório de produção. Como dissemos acima, não se valoriza o processo e sim, exclusivamente, o rendimento e resultados imediatos, o lucro, para os quais os jogadores precisam ser, mais do que nunca, máquinas. Produtos! O modo de ver um jogador no trabalho de Diniz e no modo de produção da máquina que dirige o futebol são diametralmente opostos.

Entretanto, entendemos que fracassado estará o futebol brasileiro se não voltarmos a atenção para os sinais dados por Fernando Diniz e, aqui e ali, por um ou outro técnico. O futebol brasileiro atual não está pobre tecnicamente só porque nossos maiores talentos emigram para a Europa, mas também porque empobrecemos o modo de jogar. Jogar para não perder apenas é bem diferente de jogar para jogar bem. 

E é a valorização desse novo olhar que incomoda muita gente que atua no futebol profissional. Isso foge ao script tão bem montado no futebol brasileiro. O problema é que é mais fácil manter essa “cultura” do que confrontar a estrutura mecanicista, limitada e conservadora que mantém esse futebol brasileiro viciado na mesmice e na burocracia estéril.

Diniz representa o futebol atrevido, o futebol que gosta da bola e da brincadeira, o futebol audacioso, que não teme o risco e sabe que é ele que mantém a tensão encantadora do jogo. Diniz representa aquele futebol que pode vencer de 4 a 1, tomando somente um gol de um dos melhores ataques da América e pode ser eliminado em seguida, apesar da vitória, tomando 3 de um time bem menos expressivo e qualificado; representa um futebol que sabe que atacar é tornar-se vulnerável, mas que se não atacar, o jogo perde o sentido.

O grande desafio de Diniz talvez seja, como ele mesmo costuma atestar em suas entrevistas, manter a regularidade e acabar com a oscilação das suas equipes, às vezes dentro de um mesmo jogo. Enquanto não conseguirmos efetivar em larga escala as mudanças que ele representa para o futebol, Diniz precisa de resultados para provar que está certo. E neste contexto que está posto atualmente, falar em resultados, é falar em títulos. E para conquistar títulos, ele precisa de oportunidade e tempo para trabalhar. Tempo para que compreendam e assimilem as mudanças que defende.  


[1] https://www.theguardian.com/football/2021/may/01/dani-alves-barcelona-brazil-lionel-messi-manchester-city-world-cup-2022

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Diferencial do Futebol Brasileiro – um olhar sobre a iniciação no futebol

Crédito imagem – Lucas Figueiredo/CBF

Se ainda há, no futebol brasileiro, algum diferencial destacadamente positivo em comparação a outras nações, ele se situa na faixa etária entre o nascimento e os 10 a 12 anos de idade para os meninos e, um pouco mais, talvez entre 12 e 15 anos, para as meninas. Ao longo desta série de textos argumentaremos a respeito disso. Neste primeiro, porém, daremos alguns passos atrás para fazer uma análise do nosso futebol, que nos ajudará a construir esses argumentos.

Por muitos anos o futebol brasileiro dominou o cenário futebolístico mundial. Especialmente entre as décadas de 1950 e 1970, a hegemonia foi total. De 6 Copas do Mundo possíveis, o Brasil chegou à final em quatro, conquistando 3 delas. Um domínio técnico avassalador. Em outro período também nos destacamos em termos de resultados. Entre 1994 e 2002, o Brasil participou das três finais, vencendo duas. No entanto, nos últimos quatro ciclos mundiais estivemos mais distantes do topo da modalidade. Será que aquele foi o último período de glórias canarinhas? Esperamos que não. Mas é importante que façamos uma reflexão crítica e constante sobre todo o processo do futebol brasileiro, que vai muito além do desempenho das nossas seleções nacionais, masculinas, femininas e de base, embora elas deem alguns indicativos. É possível que consigamos nos próximos anos seleções fortes que cheguem às finais e conquistem títulos importantes. Mas como profissionais do futebol, queremos mais. Precisamos de muito mais do que isso.

Escrevo este texto como uma provocação para pensarmos no processo como um todo do futebol brasileiro – e, por que não, talvez, do esporte brasileiro? – como uma autoanálise nacional, que exige uma volta em nossa linha do tempo para buscarmos compreender de onde vieram os nossos sucessos e de onde vieram as nossas mazelas e traumas.

Minha intenção aqui é chamar a atenção para um período muitas vezes esquecido, pouco pensado e debatido no futebol brasileiro, que é a iniciação esportiva. O começo da vida esportiva das crianças, que, dentre elas, surgirão craques do atletismo, skate, surf, voleibol, natação, basquetebol e, em especial, do futebol. Meninos e meninas com talento extraordinário que brilha os olhos de quem é apaixonado pelo jogo mais popular do país. Ao percorrer as diversas regiões e cidades brasileiras encontramos inúmeros exemplos dessas crianças atualmente, como ocorreu, também, na história do Século XX, provavelmente, em ainda maiores proporções que nos dias de hoje.

Seria um erro científico apontar que essas crianças nasceram com o dom de jogar futebol. Seria, inclusive, um erro estratégico pensar assim. Pois, caso assim fosse, não teríamos o controle de potencializar ou atrapalhar esse processo. Apenas esperaríamos o talento aparecer para inseri-lo em nossas equipes. Talvez, essa estratégia tenha funcionado por muitos anos. No entanto, o mundo está globalizado e os conhecimentos sobre a formação de jogadores inteligentes para o jogo, atleticamente bem preparados e equipes competitivas está cada vez mais difundido. Por isso devemos refinar essa estratégia para acompanharmos essas evoluções, sem deixar de reforçar os nossos diferenciais positivos históricos, que nos trouxeram até o patamar a que chegamos em alguns períodos, para que o futebol brasileiro continue nos encantando e nos dando alegrias. Além disso, devemos enxergar o esporte, e o futebol brasileiro, em especial, como uma potente estratégia de educação das crianças, visando um melhor desenvolvimento humano e social de que o Brasil tanto carece.

Mas como podemos fazer tudo isso? Por que comecei o texto dizendo que nosso diferencial reside entre os 0 e 10 a 12 anos para os meninos e entre os 0 e 12 a 15 anos para as meninas? O que acontece nesse período de vida dessas crianças e adolescentes para que eles possam aparecer em escolas de futebol e clubes como talentos?

As respostas dessas perguntas estão relacionadas à forma como, historicamente, aprendemos a jogar futebol. Vale a pena fazermos essa autoanálise coletiva, para o bem do nosso esporte e, sobretudo, para o bem das crianças e jovens que se inserem nele!

No próximo texto continuaremos essa reflexão!

Até lá!