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Uma alternativa à captação?

Crédito imagem – Fluminense/site oficial

Imagine um menino de sete ou oito anos viajando o país, ele foi convidado por alguns dos maiores clubes de futebol do país para participar de avaliações, estão interessados em seu futebol. Se aprovado, o garoto dará o primeiro grande passo para se aproximar do sonho – muitas vezes mais da família do que dele – de se tornar um jogador de futebol. Enquanto vai tentando a sorte, o menino perde uma, duas, três semanas de escola, mas, a prioridade é a bola. Desse modo, segue o garimpo do futebol… Aprovando poucos, descartando muitos e criando um exército de andarilhos mirins.

Esse exército pode chegar a centenas de milhares. Quem tenta em um gigante também bate na porta dos menores, até parar em projetos nos quais é preciso pagar para jogar e viver, ou em alojamentos sem nenhuma condição de receber crianças de maneira digna.

Até os clubes mais reconhecidos por seu trabalho nas categorias de base no Brasil apostam suas fichas na captação — o garimpo — de jogadores. O objetivo é ENCONTRAR os melhores jogadores o mais cedo possível. A visão em relação ao que é processo de formação acaba sendo ainda bastante enviesada, o argumento para a escolha pelo ENCONTRAR é que reunindo apenas crianças da própria cidade o nível esportivo das equipes seria muito mais baixo. Por um lado é verdade quando dizem que as crianças estão sem tempo e espaço para brincar, que não é possível mais ficar tanto nas ruas, que os carros e a violência atrapalham, e os celulares são um concorrente e tanto… Diante de tantos obstáculos, é mais cômodo selecionar quem já chega “pronto” — estamos falando aqui de crianças e 8, 9 anos — mas esse não é o único caminho. É possível DESENVOLVER os melhores jogadores.

Como argumentar que não há material humano suficiente em São Paulo, no Rio, Brasília, Salvador, Fortaleza ou Belo Horizonte? Cada uma dessas cidades tem quase tanta gente, ou mais, quanto o Uruguai! Em cada capital brasileira, há ao menos tanta gente quanto na Islândia! Se o futebol deles foi bom e organizado o suficiente para manter seu melhor jogador — o meia Gilfy Sigurdsson — até os 16 anos, por que isso também não pode acontecer em qualquer estado brasileiro?

Defender que o nível dos jogadores de uma equipe formada apenas por crianças da própria cidade seria ruim é esquecer de duas coisas. Primeiro, para as crianças, o resultado de jogos e campeonatos está longe de ser prioridade. Segundo, o responsável por fazer uma equipe forte e por melhorar o nível de jogo do jogador é justamente quem está reclamando de sua qualidade de quem pode proporcionar experiencias ricas, de quem pode ensinar a jogar. Se há dificuldades, a solução é enfrenta-las, se o repertório motor das crianças já não é o mesmo, o trabalho nas escolas e, posteriormente, nas categorias de base pode ser o caminho para propiciar seu enriquecimento.

O futebol tem um potencial enorme para ajudar a transformar o país, o primeiro passo talvez seja o de olhar de maneira mais humana para o desenvolvimento de seus talentos, priorizando a formação e menos a captação. Ao invés de reduzir a idade da formação, como muitos defendem, e alojar jovens de diferentes partes do país cada vez mais cedo, clubes e federações poderiam concentrar seus esforços em dar oportunidade para que crianças e jovens se desenvolvam localmente. É preciso trabalhar com um número maior de jovens jogadores? Que tal estabelecer filiais, clubes ou escolas de futebol onde interessar, trabalhando com crianças, formando os seres humanos que futuramente irão integrar os elencos da base e até ocupar outras funções no clube ou virarão torcedores apaixonados? Tudo ao seu tempo, respeitando os momentos certos para o desenvolvimento das coordenações gerais e da especialização dos jovens jogadores. É possível fazer diferente!

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O que aprendi com as Olimpíadas

Crédito imagem – COI/Site oficial

O futebol é o tema central desse espaço, mas ele está sob um guarda chuva maior que é o esporte e tudo que envolve competição. E por mais que cada modalidade tenha suas particularidades é possível tirarmos ideias que são genéricas. Principalmente as relacionadas ao campo mental. 

Temos o jogo travado no campo, na quadra, na pista, na piscina e etc. E temos também o jogo da mente. E as Olimpíadas do Japão nos trazem grandes reflexões sobre para onde está caminhando o atleta de alta performance nesse mundo pandêmico e que se transforma em uma velocidade jamais vista. 

O ponto que mais me chamou a atenção – e aqui falarei de conceitos e não de pessoas – foi ainda a simplicidade. Ganhadores de medalhas olímpicas negando qualquer tipo de pressão que a magnitude desse evento naturalmente carrega afirmando que fizeram apenas o que estão habituados. Provas individuais afloram muito isso. Afinal, é mais vantajoso pensar que alí estão os olhares de todo o mundo e que qualquer falha será notada por milhões de telespectadores, que o resultado obtido pode ser a única chance de uma mudança radical de patamar de vida ou que trata-se apenas de mais uma ‘volta de skate’, mais uma ‘corrida na pista’ ou mais uma ‘nadada’?!

Não é trivial esquecer o entorno e focar apenas na tarefa a ser desempenhada, mas notei que quem tem essa habilidade é porque valoriza e tem um processo muito bem sedimentado. Contando que um ciclo olímpico tem quatro anos, são quarenta e oito meses de preparação. A competição irá refletir o preparo prévio de cada um. Atletas que acreditam na repetição, na melhora contínua, na auto avaliação de erros e acertos tendem a se dar melhor quando ‘é pra valer’. O estado de confiança não se gera apenas com otimismo e pensamento positivo. Isso também ajuda, entretanto sem um processo por trás se torna ineficaz.

E por fim destaco a capacidade de superação. Ninguém nasce campeão. Ninguém nasce o melhor do mundo. Ninguém nasce medalhista olímpico. E todo sucesso teve inúmeros fracassos anteriores. Várias derrotas que alguns encaram como o fim da linha e outros como oportunidades de fazer diferente. A habilidade de se levantar é fundamental para chegar no topo. E se a maioria quer resultado rápido, dá para afirmar que vai colocar a medalha no peito aquele que foca na tarefa, que acredita no processo prévio e que não se abala com as derrotas, entendendo que elas são fundamentais para pavimentar o caminho de glórias futuras.

Essas habilidades mentais que observei e pincei atentamente nesses dias de Jogos Olímpicos servem para qualquer modalidade, incluindo o futebol, e também para a vida de cada um de nós. Se o esporte reflete a sociedade, vamos nos inspirar nos vitoriosos. Se alguém conseguiu, qualquer um consegue!

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Princípios Pedagógicos – Não é só futebol e nem deve ser

Crédito imagem – Jogos estudantis da Bahia/Divulgação

O futebol por si só é gigante, mas não é nem maior e nem mais importante que outras dimensões da vida. Você concorda com essa afirmação? Na vida de quem é apaixonado(a) por futebol, é muito provável que esse fenômeno produzido pela cultura humana ocupe grande parte dos pensamentos e momentos mais marcantes de nossas histórias. Quem trabalha com futebol, especialmente, sabe bem o quanto este mercado te exige de dedicação e trabalho para que se alcance algum destaque. No entanto, o futebol por si só, o jogo bem jogado, o jogo bem analisado, a equipe bem treinada, os alunos e alunas desenvolvendo suas habilidades, a escola e o clube crescendo, são coisas importantes que almejamos e trabalhamos para que aconteçam. Contudo, se investigarmos mais a fundo sobre esse “core business” do nosso dia a dia, veremos que eles não podem estar isolados de outras dimensões da vida, tão ou mais fundamentais quanto ele.

Quando queremos que nosso trabalho prospere, ao redor da prosperidade sempre há pessoas e relações que a oportunizaram. Não podemos desejar o nosso sucesso no futebol sem considerar o processo de construção desse sucesso. Por trás de um título, por exemplo, há sempre diversas histórias de superação, companheirismo, esforço, autoconhecimento, sabedoria, amor, enfim, faculdades humanas extraordinárias que podem justificar o sabor da conquista, até mais do que um significante troféu na galeria da escola ou do clube. Da mesma forma, quando contribuímos na formação de um jovem ou uma jovem para que conquiste seu sonho de ser atleta, ou qualquer outro sonho, pelo menos eu, não estou preocupado apenas em fazer bem o meu trabalho e se reconhecido por isso. Há uma intenção genuína de ajudar o próximo. Uma das melhores formas que tenho de contribuir com a sociedade é a partir das minhas aulas e treinos, pois são os melhores momentos que tenho para influenciar positivamente a vida dessas pessoas. Contudo, eu não conseguiria fazer isso apenas ensinando futebol. Eu preciso “ensinar mais que futebol”. E é este o último princípio pedagógico que trataremos nesta série de artigos.

Da mesma forma que o futebol me possibilitou conhecer muito do que está no seu palco, evidente a todos apaixonados por este esporte, também me possibilitou conhecer os seus bastidores, o seu processo de construção. E esse processo de construção sobre tudo o que há de bom no futebol, pode estar presente na construção de coisas para além do futebol. O que eu quero dizer com isso?

Todas aquelas faculdades humanas presentes no processo de conquista de uma competição esportiva, citadas no início deste texto, podem ser importantes na construção de outras coisas na vida. Por exemplo, no futebol, nada se ganha sozinho ou sozinha. Há sempre muita gente envolvida trabalhando, melhor ou pior, mais ou menos, mas todos em busca de um objetivo comum. Essa capacidade de trabalho em equipe em prol de um objetivo favorece apenas o sucesso no futebol ou também para mais dimensões da vida? Em um matrimônio, por exemplo, saber tomar decisões em conjunto também faz parte do sucesso dessa relação? Quando você está em uma equipe e precisa tomar uma decisão em conjunto, você pode ter sua opinião superada por outra. Você precisa compreender que naquele momento a opinião que irá prevalecer não será a sua. Como você lidará com isso? Saber lidar bem com essa situação é algo que se aprende ou já nascemos sabendo? Por que não desenvolver a minha aula ou treino de futebol de modo a ajudar uma criança ou adolescente a saber também lidar melhor com esse tipo de situação?

Exemplos de situações presentes no futebol, que para você ter sucesso o processo te exigirá conhecimentos importantes para a vida, não faltam. No próprio jogo, a coragem de arriscar, o pensamento estratégico, a solidariedade, a ética, a empatia, a gana de vencer, saber aprender com as derrotas, enfim, elementos que são imprescindíveis para jogar bem a vida também estão presentes na vida cotidiana, para viver bem, e vice-versa. Isto quer dizer que o jogo de futebol, a minha aula e meu treino não estão desassociados da vida das pessoas que os frequentam. São parte dela como quaisquer outras. Porém, naquele momento, eu, enquanto educador, tenho uma grande influência sobre essas pessoas. Considerando ainda mais o meu caso, que pode ser o seu também, a maioria delas está na infância ou adolescência, logo, em etapas cruciais da formação humana. Portanto, eu não posso deixar passar a oportunidade de fazer com que a minha aula, além de ensinar a gostar de futebol, ensinar bem futebol a todos e a todas, também ensine mais que futebol.

Em meio às atividades de aula ou treino, em que os objetivos específicos são relacionados ao conhecimento do jogo, eu sei que no processo de aquisição desse conhecimento específico, terei a oportunidade de ensinar coisas que são importantes para além do futebol. Muitas vezes eu nem preciso sair do contexto do jogo, às vezes preciso. O que é interessante ficar claro é que esse conteúdo que transcende a prática esportiva precisa estar na consciência e, por vezes, planejado pelos(as) professores(as) e treinadores(as), escolas e clubes, em seus currículos de formação. Alguém pode questionar: “Mas como em meio às minhas atividades específicas eu vou ensinar autoconhecimento, por exemplo? Eu não tenho tempo para isso!”

Lembre-se que o jogo faz parte da vida assim como as outras atividades humanas. Um maior autoconhecimento, por exemplo, fará alguém viver melhor em todas as situações de sua vida, bem como também o fará jogar melhor futebol. Por exemplo, uma criança é tímida, acanhada e entra numa escola de futebol. Uma ação simples para que essa criança comece a se sentir mais à vontade naquele grupo é incentivar para que as crianças da equipe comemorem juntas sempre que fizerem um gol. Este momento de celebração em grupo tende a fazê-la se sentir bem e pertencente àquele grupo, o que poderá ajudá-la a se soltar mais ao longo das aulas. Caso ela se transforme nas aulas nesse sentido, você acredita que ela jogará futebol melhor ou pior? Por outro lado, você acredita que ela será a mesma criança tímida fora desse ambiente? Pode ser que não fique tão à vontade quanto nas aulas de futebol, mas carregará consigo as transformações internas que as aulas lhe proporcionaram.

Em outra ocasião, podemos ter uma situação-problema do futebol, em que a intervenção do(a) educador(a) será fora do contexto de jogo. Uma atleta está passando por uma lesão que a tirou de jogos importantes da temporada. Será que a treinadora poderá realizar diálogos com ela que a farão persistir e se dedicar na sua recuperação e com isso voltar a campo em outro momento, em plena forma, confiante do seu potencial de jogar em alto rendimento? Caso esse processo seja cumprido com êxito e, de fato, ela volte bem aos campos, será que esse problema específico da vida dessa atleta não a terá transformado para ser mais capaz de reconhecer situações difíceis em que é necessário recuar para reconstruir o sucesso? Nesse sentido, gostaria de reforçar que o diálogo também é uma intervenção essencial para que essas transformações mais profundas aconteçam. Eles podem ser usados fora do ambiente de aprendizagem da aula ou do treino, mas também dentro, para trazer à consciência todas as situações do futebol, que no fim, não são apenas do futebol.

Com essa mensagem encerramos mais uma série de artigos. Espero que tenha gostado! Que essa minha intervenção pedagógica tenha te transformado de alguma forma e que essa transformação lhe inspire a transformar as vidas das suas alunas, alunos ou atletas, utilizando-se desses princípios pedagógicos também, assim como o Prof. João Batista Freire me inspirou ao escrevê-los.

Um forte abraço e até a próxima!

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Lições e alertas do skate olímpico

A disputa do skate nos jogos olímpicos chamou atenção do público pela pouca idade de muitos dos atletas. Entre eles, o destaque foi Rayssa Leal, brasileira medalhista de prata que cativou o mundo com seu carisma, sorriso e leveza. Aos 13 anos e 204 dias completados ela se tornou uma das medalhistas olímpicas mais jovens de todos os jogos e também uma das grandes histórias da atual edição.

Rayssa é conhecida como a fadinha do skate, por ter viralizado nas redes ao aparecer com sete anos em um vídeo fantasiada de fada acertando manobras e desde então foi crescendo no esporte até alcançar a conquista na última semana. A alegria que esbanjou ao longo da competição foi um forte sinal de como a experiência dos jogos para ela, e aparentemente, para a maioria dos seus colegas, foi divertida e positiva. Entretanto a “invasão de menores” que o skate proporcionou pode ter algumas consequências negativas no longo prazo que merecem ser discutidas.

O resultado de Rayssa e de tantos e tantas jovens atletas pode se explicar muito menos pela pouca idade do que pelo estágio de desenvolvimento da modalidade, ainda estreante no programa olímpico e pelas próprias características do esporte, que não exige tanto das aptidões físicas, a potência, velocidade e força, demandando mais da habilidade dos competidores. Entretanto, a mensagem que pode ficar para o público é a de que quanto antes começarem os treinamentos, melhores os resultados esportivos. É aí que mora o perigo.

Isso não é verdade nem para o desempenho nos esportes e muito menos para a vida desses jovens.

O treinamento especializado, quando acontece antes do momento adequado, é classificado por pesquisadores como especialização precoce, e é altamente prejudicial para o desenvolvimento das crianças, inclusive em relação ao desempenho esportivo. De modo geral, a especialização precoce acontece quando o esporte passa a ser uma obrigação para a criança, os resultados viram a prioridade e existe uma sobrecarga física e mental sobre ela.

Nessas situações a prática esportiva pode ser entendida como um trabalho. As consequência desse tipo de relação com o esporte observadas com maior frequência são a extenuação mental e o abandono da prática, ou seja, muitos talentos acabam sendo desperdiçados. Para o desenvolvimento dessas crianças outros prejuízos podem ser listados, como o distanciamento escolar, por exemplo.

Isso quer dizer que crianças não podem praticar esportes? Absolutamente não, podem e devem!

Quando observamos a relação dos e das skatistas nesses jogos olímpicos com o esporte, o que se pôde perceber é que muitos deles pareciam estar aproveitando o momento, se divertindo, inclusive com a performance dos rivais – que são mais colegas do que rivais! Ou seja, o grande ponto não é quando começar um esporte, mas sim como. Se a prática é prazerosa, sem obrigações, ela é benéfica para o desenvolvimento e potencializa o talento, como Rayssa demonstrou tão bem. Crianças devem brincar, não trabalhar.

O limite de idade

Para diminuir a precocidade dos seus participantes nos jogos olímpicos, a Federação Internacional de Ginástica (FIG) estipulou o limite para 15 anos e em 1997, subiu a idade para 16 anos. Temos aqui a ponderação de que a medida cerceia, de certa maneira, o direito de atletas talentosos a colocar suas habilidades à prova quando estiverem à altura da competição. Por outro lado, a medida ajuda a prevenir a especialização precoce e seus impactos negativos na vida dos jovens atletas. Quanto mais cedo for permitido que crianças disputem competições adultas e alcancem resultados excepcionais, mais cedo adultos irão buscar extrair o máximo delas, o que costuma ser trágico para seu desenvolvimento. Sob a ótica da garantia dos direitos das crianças, o limite mínimo de idade nas competições adultas acaba sendo, em geral, positiva.

E aqui, vale lembrar que estamos nos pautando pela priorização dos direitos das crianças. Se pensarmos exclusivamente no resultado de uma competição, talvez especializar possa até fazer sentido em alguns momentos… É possível ganhar de diversas formas, mas muitas vezes, algumas simplesmente não valem a pena.

Que Rayssa, e que todas e todos que venham depois dela continuem por aí voando, felizes. Vencedores ou não.

Colaborou com o desenvolvimento dessa coluna Marcelo Massa, doutor em Iniciação esportiva, Treinamento a longo prazo e Talento esportivo pela Universidade de São Paulo – USP.

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Alguns entraves que atrasam o desenvolvimento do futebol brasileiro

Crédito imagem – Robson Mafra/AGIF/CBF

Quando se analisa o jogo de futebol praticado no Brasil, logo surgem percepções otimistas de que nosso campeonato – equilibrado e com muitos favoritos ao título – deveria ter maior aceitabilidade no mercado internacional e ser comercializado com cifras mais robustas. Entretanto, ao se observar com maior atenção ao ambiente no qual se insere, emergem alguns aspectos que parecem nos impor uma desvantagem quando comparados com outros países. Não pretendo exaurir essa discussão, mas apenas levantar aqueles que, a meu ver, poderiam ser enfrentados como prioridade.

 O primeiro que se apresenta no topo da lista é o calendário. São inúmeras competições – estaduais, regionais, nacionais e continentais – espalhadas pelas 52 semanas de um ano. Como não se pode aumentar esse número, logo surge um problema, pois, ao se inserir as 4 semanas de férias e outras 4 de preparação, sobram 44 apenas para uma quantidade absurda de partidas. Não entrarei no mérito de importância de uma ou de outra disputa, mas apenas salientar que essa carga excessiva de exigência – física e mental – inerentes a uma partida de futebol faz com que se tenha reflexos na qualidade do jogo no futebol brasileiro; sobretudo com a baixa intensidade e a qualidade discutível na maioria das partidas disputadas no país. A diferença com as existentes em outras localidades, não se resume apenas a qualidade dos jogadores, mas também ao nível de preparação e de descanso dos atletas.

Soma-se a isso, a estrutura física colocada à disposição dos times para a ocorrência das partidas. Não me refiro aos aspectos externos, mas sim ao palco principal do espetáculo: o gramado. Esse item onde se transcorre toda a disputa, não recebe a atenção que deveria e, muitas vezes, é relegado a um segundo plano. Não desprezarei o aspecto da diferença climática de um país continental que impacta na sua conservação. Contudo, para os atletas, se apresentarem em campos sem um nível adequado para a prática de excelência – como a maioria em uso no Brasil – consiste em um desafio técnico, físico e médico: passes e chutes são afetados no aspecto técnico; uma sobrecarga física é exigida para a prática do jogo; e um risco maior de lesões preocupa a muitos.

No decorrer do espetáculo, um outro aspecto triste que se vê no país do futebol é a busca constante por se querer levar vantagens de forma pouco honesta em todos os lances. Seja através dos jogadores, a todo momento, se jogando em campo na tentativa – algumas grotescas – de simularem faltas ou agressões; ou de seus treinadores, sempre à beira do campo, aos berros e palavrões reclamando a cada decisão contrária por parte da arbitragem; protagonizando péssimos exemplos a seus jogadores e aos torcedores. Um vexame deprimente que parece sem solução, mas comum a todos os clubes que se apresentam no futebol brasileiro. Atitudes pouco profissionais que nos envergonham, pois na maior parte dos países, tais comportamentos são condenados por torcedores e pela imprensa.

Por último, mas não menos importante, temos os horários dos jogos. Partidas são disputadas em horários sem qualquer respeito ao fuso horário. Como vender um campeonato cujas partidas se iniciam as 22h para o público europeu? Ou querer realizar jogos às 11h da manhã em um dia de verão, algo que afeta significativamente a dinâmica do jogo? Esse equacionamento, que deve levar em consideração os anseios das emissoras que investem recursos em sua produção, precisa ser gerenciado também para a comercialização externa. Sem essa visão de mercado, o produto ‘futebol brasileiro’ continuará afastado dos principais consumidores desse esporte no planeta.

Esquece-se que um estádio lotado cria uma atmosfera esportiva mais acalorada, o que deixa a disputa dentro e fora de campo mais interessante. Um fator importante que impacta diretamente nas finanças dos nossos clubes, pois muitos deles ainda tem grande parte de suas receitas vinculadas às bilheterias em dias de jogos. Menos dinheiro, menos investimentos, menos qualidade no time, piores resultados, menor o interesse da torcida, menos público no estádio, menor atratividade do produto.

Querer equiparar o nosso principal campeonato às melhores ligas de futebol disputadas no mundo é desejável, contudo, é preciso ter a nítida noção de que esses países que estão à nossa frente no quesito ‘qualidade do jogo’ foram muito bem-sucedidos em seus planejamentos de enfrentar as dificuldades que os impediam de evoluir na prática do futebol.

La Liga, Premier League, Bundesliga e Ligue 1 não são apenas nomes de competições criadas para se comercializar a preços maiores suas partidas de futebol. Todas elas adotaram estratégias racionais de construção do calendário de jogos; têm especial atenção ao palco disponibilizado para a ocorrência da partida; não toleram simulações de jogadores e mau comportamento de treinadores à beira do campo; e decidem, em comum acordo com as emissoras conveniadas, o horário das partidas tendo como objetivo principal o melhor para a visibilidade dos clubes e da competição. Um olhar econômico para um produto nacional que tem interesse comercial.

Não se conseguirá elevar o futebol brasileiro ao nível das principais competições mundiais sem equacionar, enfrentar e resolver os inúmeros problemas que nos impedem de reconquistar o status de referência na prática do futebol. Hoje, infelizmente, deixamos de ser vistos e temidos, pois sabem que nossa técnica não consegue sobreviver à ausência de um mínimo de planejamento – dentro e fora do campo – para a prática profissional do futebol.

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O jogo tem vida

Crédito imagem: Coritiba/Twitter

Dentro de um jogo, o que é a finalização? A habilidade de chutar ou arremessar a bola em um alvo predeterminado para pontuar? E o drible? A habilidade de conduzir a bola mantendo o seu controle durante o processo? E o passe?

O passe, podemos dizer, é a habilidade de chutar ou arremessar a bola para um colega de equipe. Aqui está a fresta por onde começo a explicar por que acredito que o jogo é algo vivo. Diferentemente dos exemplos no primeiro parágrafo, não tem como excluir a outra pessoa na explicação da ação do passe. Isso é porque é incontornável que o passe seja compreendido mais como uma interação do que ação. Em outras palavras, depende de alguém para realizar o gesto técnico do passe assim como alguém para receber.

Faça um exercício simples: em uma sala fechada e com alguém perto, amasse uma bolinha de papel e com a pessoa te olhando de frente jogue a bolinha para ela. Agora, a pessoa sem a bolinha vira de costas e a outra joga a bolinha sem avisar. O passe ficou quase impossível. Sem a disposição da outra pessoa para receber o passe, ele não existe.

Podemos dizer o mesmo para a finalização, afinal quem ataca tentará marcar ponto, então a goleira da equipe adversária está constantemente interferindo onde finalizar, como e quando. Igualmente no drible, pois são as adversárias os grandes desafios para quem conduz a bola, comunicando (com e sem intenção ao mesmo tempo) com a atacante sobre como, quando e para onde tentar driblar. Isso segue com todos os outros fundamentos nos jogos.

Foi mais ou menos a partir daí que o genial Paco Seirul-lo disse que no futebol não existem ações, mas interações. Os jogadores estão constantemente reagindo às mais diversas situações de jogo, prestando atenção na bola e nos adversários. Como o próprio Seirul-lo diz, “o futebol é um fenômeno complexo (…) de interação, imprevisibilidade, auto-organização dos organismos e variabilidade, onde os critérios de causa única e cumulativos não tem lugar” (Seirul-lo, 2017 p. 31). Porém, gostaria de dar aqui meio passo adiante.

O jogo se dá em um continuado processo de improvisação por parte dos jogadores. Para ajudar aqui trago o antropólogo Tim Ingold, que explica o improviso como “seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam” (Ingold, 2012 p. 38). Ingold entende que a vida – e digo que o jogo também – se forma por um emaranhado de fios vitais que se entrelaçam, não para alcançar um fim, mas para seguir em frente. As coisas são formadas por uma malha de fios, que se atravessam e cruzam, sem começo ou fim. Por isso que no jogo, o passe, finalização ou drible não estão isolados do todo. Existem colegas de equipe, adversários, bola… e é aqui que começo a dar o meio passo além de Paco Seirul-lo.

Voltemos à bolinha de papel para sairmos da sala e imaginar o mesmo exercício um ambiente aberto. Agora tem o vento ou a chuva interferindo o passar da bolinha de papel. Ou seja, existem elementos que estão fora do nosso controle atravessando o lançamento da bolinha no ar. Tim Ingold em seu artigo usa o exemplo de uma pipa: em uma sala fechada, é impossível dela voar, porque não basta a interação entre Eu e o objeto; é necessário o vento para que a pipa ganhe vida e vire o que ele chama de pipa-no-ar. Na mesma lógica escrevi logo no início “dentro de um jogo”
para pensarmos aqui.

Antes de continuar, um momento para esclarecer: é lógico que um jogador tem mais ou menos habilidade individual para realizar o gesto técnico do passe, finalização, drible, cabeceio, etc. Maior habilidade técnica pode permitir uma gama mais vasta do que fazer no jogo. Não se trata disso, mas sim destacar que a jogadora está jogando um jogo. Seguimos.

Em um jogo de futebol de campo, não estão jogando apenas 22 pessoas. A bola (lembra da icônica Jabulani em 2010?), o tempo, a grama, a torcida e como bem lembrou Hudson Martins em sua coluna, a fortuna, tykhe ou simplesmente imprevisibilidade também jogam. Ou melhor, diria que nós jogamos o jogo assim como o jogo joga com seus jogadores. A imprevisibilidade é mencionada por Paco Seirul-lo, por isso que qualquer contribuição que eu possa dar aqui é ínfima comparada com tudo que Seirul-lo já fez. Ainda assim, acredito que seja válida e por isso escrevo essa breve divagação.

Os limites entre jogadores e jogo são porosos, forçando processos complexos de habilidade em quem joga o jogo para que o ambiente seja considerado como parte da dinâmica de seus gestos no jogo. O jogador sente, ouve e olha ao mesmo tempo que joga, caracterizando um movimento de atenção, que só é possível quando o jogador ou jogadora é capaz de responder contínua e fluentemente a perturbações do ambiente, sem a necessidade de interromper a ação (Ingold, 2010 pp. 17-18). Ou seja, é quando o jogador faz parte do jogo, deixando-o fluir por si que a habilidade mais refinada pode ser executada.

Através dos movimentos de atenção que o jogo vai ganhando vida, através dos fluxos e contrafluxos que atravessam seus jogadores e jogadoras. Um jogo é onde “aconteceres” se entrelaçam, se transbordam e se refazem em síncopes. Por sua autotelia e relações humanas, além da sua imprevisibilidade, que Paco Seirul-lo mesmo reconhece e por isso digo que estou no máximo dando meio passo além, acredito que no jogo o que existem são itinerações. Jogadoras e jogadores transitam pelo jogo mais do que o controlam. Na transição, também o transformam, tecendo fios vitais que o atravessam, e é no “dar forma”, na contínua improvisação que reconhecemos como jogar, que o jogo está vivo.

Bibliografia
Ingold Tim Da transmissão de representações à educação da atenção [Periódico] // Educação. – Porto Alegre : [s.n.], jan./abr. de 2010. – pp. 6-25. Ingold Tim Trazendo as coisas de volta à vida [Periódico] // Horizontes Antropológicos. – Porto Alegre : [s.n.], jan./jun. de 2012. – pp. 25-44.

Martins Hudson Universidade do Futebol [Online]. – 31 de mar. de 2021. – 29 de jul. de 2021. – https://universidadedofutebol.com.br/2021/03/31/sobre-o-modelo-de-jogo-como-um-organismo-vivo/.

Seirul-lo Francisco Vargas O treinamento dos esportes em equipe [Livro]. – [s.l.] : Mastercede, 2017.

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O peso do grupo no futebol

Crédito imagem – Ari Ferreira/Red Bull Bragantino

É interessante observar equipes jogando melhor, com mais desempenho, vencendo jogos e ao mesmo tempo apresentando um decréscimo nos índices físicos mais, digamos, tradicionais. Ou então, um time que treinou a semana toda ser esmagado no segundo tempo por outro que teve uma viagem desgastante e um jogo decisivo nesse mesmo intervalo de tempo – o senso comum diz que o time que só treinou deveria estar mais “inteiro”.

Poderia colocar tantos outros exemplos, porém aqui me valem mais as ideias e conceitos do que propriamente casos específicos. O jogo de futebol não pode ser fragmentado. Não existe um time melhor fisicamente que o outro. Não há um ‘nó tático’ de um treinador em outro. Os melhores jogadores tecnicamente podem juntos não gerar uma equipe melhor. Assim como estar mentalmente mais preparado pode não representar mais vitórias. Porém ao combinarmos esses elementos encontramos a beleza da complexidade, muitas vezes imperceptível aos olhos da maioria, que carrega um jogo de oposição e invasão, como o futebol.

A equipe que joga melhor mesmo com seus jogadores levantando menos peso na academia demonstra estar tão bem taticamente e tão confiante nos movimentos a serem executados que o referencial físico passa a ser outro. Ou o jogador que não tem o gesto técnico tão apurado, mas uma destreza que é física, porém também mental, de personalidade, de atitude proativa e positiva para resolver problemas, que acaba sendo mais útil do que outros tecnicamente mais qualificados. Ou quantos times em que declaradamente o ambiente de trabalho não era bom, com rusgas fora de campo, mas que nas quatro linhas a sinergia técnica e tática acoplada a uma boa combinação física era tão grande, que as vitórias vinham naturalmente…

Quando digo aos quatro ventos que ‘o todo é maior que a soma das partes’, que o futebol é um jogo complexo, que a preparação deve ser transdisciplinar, é por essas e outras… não cabe mais analisarmos ‘compartimentos’. Um time campeão não se faz com os melhores jogadores. Mas sim com a melhor combinação possível entre todos os seus elementos.