Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil
A imagem a seguir oferece uma representação visual sobre o sistema de competências voltado ao trabalho dos treinadores profissionais no alto rendimento do futebol do Brasil. Embora a ilustração forneça ao mesmo tempo uma visão geral e detalhada das principais competências junto às suas respectivas habilidades necessárias à valorização do treinador no futebol brasileiro, ela expõe prioritariamente a complexa realidade vivida pelos treinadores profissionais que transitam pelo território nacional.
Para capturar a essência do seu trabalho, a representação visual foi desenhada no formato de uma complexa roda cuja engrenagem apresenta encaixes e lacunas a fim de defender a natureza recursiva, construtiva e dinâmica na prática da profissão. Enquanto as conexões retratam a constante interação que existe no trabalho do treinador, os espaços em branco representam as inevitáveis lacunas e desencontros que também compõem o fluxo de trabalho diário, afinal todo e qualquer observador que não participa diretamente do processo de treinamento esportivo tende a sofrer limitações em como percebe a atuação do treinador.
Fundamentalmente, a ideia prioritária ao se visualizar a roda de competências diz respeito a uma engrenagem em movimento, cujos componentes não podem e nem devem ser arbitrariamente distinguidos em relação a sua ordem de importância, posição ou peso. Portanto, um treinador competente está sempre em movimento no alto rendimento do futebol profissional. Ele busca fortalecer suas qualificações, equilibrar suas oportunidades de aprimoramento e suprir suas deficiências com os recursos ao seu alcance no contexto onde trabalha. Ainda assim, o círculo externo simboliza como os resultados dos jogos em janelas de curto prazo mantêm a roda girando independente da eventual ausência de qualquer competência entre os componentes da engrenagem interna. Ou seja, a entrega de resultados positivos é o que possibilita o movimento dos treinadores no Brasil.
A fim de replicar os testemunhos dos próprios entrevistados, o texto apresenta uma série de palavras e frases entre “aspas” que destacam as informações devidamente associadas ao processo de análise do conteúdo qualitativo neste estudo acadêmico. Ademais, citações individuais com maior aprofundamento também foram utilizadas para enaltecer em detalhes algumas das experiências dos profissionais. Conforme antecipado na PARTE 1, vale lembrar que o anonimato dos entrevistados e suas menções específicas sobre clubes e pessoas permaneceram confidenciais.
1. DEFINIR VISÃO E ESTRATÉGIA
Reconhecida como uma competência que norteia o processo de treinamento, a capacidade em definir visão e estratégia não apenas possibilita ao treinador ter condições “para implementar suas ideias de jogo e persuadir os atletas a confiarem nele”, como também fortalece suas habilidades de liderança e gestão “fora do campo”. Conforme destacado pelos membros de comissões técnicas, “além de treinar a equipe, o treinador precisa ser um bom gestor”, porém “muitos treinadores decidem o que será treinado ou feito de acordo com o ambiente do dia, sem planejar e organizar o trabalho com projeções de jogos e um calendário que possa se refletir diretamente na comissão com antecedência”. De certo modo, essa competência mostra como os treinadores devem se atentar a macrocomponentes para guiar o seu trabalho com liderança, gestão e estratégia no alto rendimento. Abrangendo os argumentos mais recorrentes dos entrevistados, definir visão e estratégia se relaciona a saber planejar e também gerir o tempo.
Visto que os treinadores se encontram intrinsicamente dedicados a um processo de treinamento construtivo e recursivo, os profissionais que operam no alto rendimento devem saber planejar o seu trabalho de uma maneira profissional e estratégica. Sobretudo pela ausência de dirigentes profissionais no planejamento e na supervisão do processo de aprimoramento esportivo no Brasil, os treinadores devem se posicionar como as figuras de liderança em seus respectivos clubes. Para atender as demandas que surgem dentro e fora do campo ao longo da temporada, eles devem se esforçar para planejar, antecipar e organizar estrategicamente a carga de trabalho junto à equipe multidisciplinar que integra o clube onde estão empregados. Um dos entrevistados detalhou o raciocínio que os treinadores devem levar em consideração no alto rendimento:
“O treinador precisa ter planejamento. Não dá para você chegar hoje em dia sem sentar para saber quantas competições vai disputar, quantos dias estão disponíveis para se preparar em cada competição, quando elas terminam, quais são os prazos para entender o que é possível e o que deve ser feito. Você pode chegar e colocar o jogador para treinar, mas qual é o seu objetivo? Com quais objetivos você está fazendo aqueles treinamentos? Tudo é subsequente, tudo é planejamento. Então, diariamente e a cada semana você vai confirmando o trabalho, o volume, a intensidade, as distâncias, as individualidades. Isso entra no planejamento do treinador. Ele não pode chegar e aleatoriamente apontar os treinos técnicos ou táticos. Onde você quer chegar? Ele planeja os exercícios com os objetivos do trabalho. Tem que saber e realmente ter o planejamento. Qual o tempo de recuperação entre uma carga e outra? Se você planeja, você sabe o produto final do treino. Não dá para entrar hoje e aplicar treinos soltos, pois a probabilidade de errar é muito grande. Se começou errado, esse erro vai vir à tona em qualquer momento.”
Os profissionais entrevistados também enfatizaram que gerir o tempo se caracteriza como uma competência que possibilita suportar a frequente congestão de jogos do futebol brasileiro, exigindo dos treinadores uma capacidade em saber abordar o desgastante fluxo de trabalho com questões logísticas que afetam jogadores e comissões técnicas. Particularmente entre os clubes do Brasil, ao conseguir administrar o tempo, os treinadores podem se aproximar dos objetivos organizacionais enquanto trabalham com e entre os indivíduos que compõem a equipe multidisciplinar. Cientes de que se encontram constantemente confinados pela “falta de tempo para treinar e recuperar jogadores” durante a temporada, os treinadores de futebol no Brasil devem ser competentes para influenciar o rendimento esportivo de suas equipes utilizando habilidades estratégicas na gestão, monitoramento e respostas às restrições do calendário competitivo. Ao contrário do que o pensamento convencional deseja encontrar em um cenário de treinamento estruturado e progressivo, dois dos entrevistados explicaram como a congestão de jogos no calendário anual se manifesta contra o desenvolvimento dos treinadores que operam no país:
“O processo é muito abrangente, muito importante, só que a gente não consegue treinar. A gente não tem tempo para treinar. Você se organiza dentro de vídeos num processo mais didático de fala, de conversa. O calendário é cheio de maratonas loucas de jogos seguidos. Você acaba sendo um recuperador de atletas e um gerenciador de vaidades. Nós vamos a cada jogo. O treinador tem que ser um mágico, gerenciar a vaidade, tentar passar os seus conceitos e o seu entendimento do jogo de uma maneira muito rápida, porque não há tempo. Você consegue dar alguns estímulos, a gente tenta recuperar o atleta, trabalha com quem pode e não pode treinar, com quem está ou não jogando.”
“Atletas não são máquinas. Eles não conseguem ter intensidade jogando cinco, seis jogos sem tempo de descanso. A recuperação emocional e neurológica é mais demorada do que a física. O atleta pode até se recuperar do ponto de vista muscular, mas não de um estresse emocional. Até eu como treinador percebo que a minha mente foge da beira do campo com a sequência de jogos, passando do sexto, sétimo jogo toda quarta e domingo. Um calendário mal construído impacta em tudo, inclusive no trabalho e no desenvolvimento do treinador. Se eu não consigo treinar fica mais prático eu aplicar um jogo pragmático porque eu não sou mais treinador, eu sou um ‘gerente de qualidades’.”