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Ensinar futebol a todos, ensinar bem o futebol a todos, ensinar mais que o futebol a todos

Por: João Batista Freire

Jogadores e jogadoras de futebol são mais que jogadores e jogadoras de futebol. São homens e mulheres, são seres humanos, são criaturas vivas. Assumem, ao nascimento (mesmo que não saibam disso), o compromisso de viver, de preservar a vida. Uma educação coerente com a natureza humana lhes ensinaria a nada fazer contra a vida e a tudo fazer a favor dela. De onde resulta uma espécie de compromisso ético primordial: nada contra a vida e tudo a favor da vida.

Treinadores e treinadoras de futebol, não importa se de equipes de base ou de equipes profissionais são professores e professoras, queiram ou não aceitar isso. Todos os professores e professoras, de futebol ou de qualquer outra matéria, ensinam a viver, fazendo isso de maneira consciente ou não. Seria melhor que assumissem que são professores e professoras e que sempre ensinarão mais que futebol, que ensinarão para a vida, e podem, com isso, causar benefícios ou danos, podem potencializar vícios ou virtudes.

É um erro enorme pretender ensinar futebol negligenciando o fato de que os jogadores, mais jovens ou mais maduros, são homens e mulheres, são seres humanos. O futebol não pode ser isolado da vida. O que se faz dentro do campo é viver, é realizar a vida. E não é necessário saber definir o que é a vida para lidar com isso. Deveríamos responder, quando nos perguntassem sobre ela, que viver é respirar, é chorar, é correr, saltar, sentar, comer, conversar, pensar… Viver é agir, é realizar a vida em cada ato. Não é necessário dar explicações complicadas sobre ela. Jogar futebol é viver, porque todo jogar é uma maneira sempre intensa de viver.

Anos atrás escrevi que devemos ensinar futebol a todos, ensinar bem futebol a todos e ensinar mais que futebol a todos. Aqueles a quem recusamos ensinar o futebol, porque avaliamos que não possuem talento para chegar ao estrelato, são, talvez, os que mais precisam aprender. Nossas falhas avaliações são incapazes de perceber talentos escondidos, aqueles que não se revelam de imediato. E se não formos capazes de reconhecer que somos educadores antes de sermos treinadores de futebol, negaremos a esses meninos e meninas a oportunidade de se educarem. É um direito humano aprender esporte, não importa se esse esporte é o futebol ou qualquer outro. Não recusemos ensinar o futebol a todos. Consideremos, inclusive, que um jogador maduro, com 38 anos de idade, ainda tem que aprender a jogar futebol, e ainda tem lições de vida a aprender. Ensinemos a todos, é a lição que vale.

Quanto a ensinar bem o futebol a todos indica que temos que nos preparar mais para ensinar melhor. Persiste, no campo do esporte, a ideia de que os talentos são natos, que não dependem de aprendizagens, mas apenas de desenvolvimento natural. Grande erro. O que sabemos sobre as coisas inatas? Sabemos distinguir entre o que é natural e o que é adquirido? Por mais que a ciência tenha avançado, ela ainda não nos responde adequadamente sobre isso. Entre os tantos erros que cometemos no esporte, um dos maiores é o ensino dele. Falhamos miseravelmente na pedagogia do esporte. No futebol, por exemplo, ainda somos piores em nossas metodologias que a rua. Por qual motivo crianças aprendem a jogar bola maravilhosamente bem quando brincam na rua ou em outros espaços, sem orientação de adultos, e sentem tanta dificuldade em aprender quando estão com professores e professoras? Claro que esse não é um problema só do futebol ou dos esportes. Uma criança aprende a falar sua língua materna com dois anos de idade, depois vai para a escola e fracassa na aprendizagem dos conteúdos da disciplina português. Passamos doze anos no ensino básico e nos tornamos analfabetos funcionais. Ensinar, quando se trata de fazê-lo nas escolas ou outras instituições, tornou-se um mistério. Provavelmente, entre outros problemas, isso ocorre porque o foco da educação é o da instituição, e não o do aluno. Na rua, ao contrário, o foco da educação é o aluno. Aliás, na rua não há aluno, há criança, há adolescente, há adulto, há a pessoa real. Na escola (e na escolinha de futebol etc.) não há criança ou adolescente, há aluno. Vamos imaginar uma criança chamada Lucas. O Lucas tem o direito de aprender futebol sem deixar de ser Lucas. É preciso que ele aprenda do jeito dele, porque o jeito dele é diferente do jeito de Antônio, Mário ou Pedro. Além disso, Lucas é criança e não pode ser tratado como adolescente ou adulto. E Lucas está aprendendo futebol para ter melhores recursos para viver, para dar conta de sua vida, o que é um projeto muito maior que aprender para jogar futebol. Futebol é meio e não fim. Lucas pode se tornar o melhor jogador de futebol do mundo, ou seja, ele pode ter extraordinário êxito no futebol…, mas pode fracassar na vida. Afinal, quando um jovem vai para uma equipe de base do futebol profissional, o ambiente da base deveria ser o de uma instituição educacional ou de uma incubadora de jogadores profissionais? Uma coisa é juntar novilhos numa fazenda para alimentá-los, garantir-lhes a saúde e aguardar que engordem para depois vendê-los com enorme lucro; outra coisa é acolher jovens em um centro de formação de futebol e bem educá-los para a vida, servindo-se do futebol como instrumento.

Com isso chegamos ao terceiro princípio, aquele que diz que devemos ensinar mais que futebol a todos. O que significa ensinar para a vida enquanto se ensina futebol? Entre os grandes astros e estrelas do esporte, há fartura de exemplos de pessoas que se arruinaram na vida fora do esporte e outras que se tornaram exemplos de cidadãos e cidadãs. O quanto essas consequências para a vida dependeram da formação que tiveram no esporte? E o quanto aqueles que ensinam esporte se preocupam com isso? De maneira geral o público entende que um jovem que veio de uma situação de extrema pobreza e se tornou um astro no esporte, ganhando, com isso, muito dinheiro, está com sua vida resolvida. Longe disso, muitas vezes esse tanto de dinheiro tornou-se sua desgraça, arruinando seu caráter, e não resultou em benefícios sociais para ele e outros em torno dele. Sair subitamente de um estado de pobreza para um estado de opulência não garante realização de vida. Teríamos, portanto, que resolver essa questão de ensinar mais que o esporte a todos, de modo a ensinar, acima de tudo, a se conduzir bem na vida fora do esporte, a ser ético, a pesar bem os valores humanos e não só o dinheiro, a beneficiar-se e a beneficiar a sociedade. Porém, como conduzir isso jogando bola, aprendendo futebol? Porque não estamos falando de jogar bola em um momento e fazer discursos sobre a vida em outro momento. Trata-se de aprender para a vida enquanto se aprende futebol, enquanto se joga bola. Para isso teremos que entrar no campo da metodologia.

Há, entre outras, duas maneiras básicas de aprender a jogar bola. Para sermos mais específicos vamos falar, por exemplo, do passe. Primeiro em uma situação de acordo com a escola tradicional, de acordo com uma rotina de exercícios em uma escolinha de futebol ou em uma equipe de base. Vamos pensar em crianças de 11 a 12 anos. Nessa situação que estamos criando, elas farão o seguinte exercício: ficarão em duplas, uma de frente para a outra, distantes cerca de 5 metros entre elas. Ao sinal do professor, trocarão passes uma para a outra, com a parte interna do pé dominante, até que o professor mande parar. A cada vez que ele parar, ele dirá para se afastarem uma da outra um passo, aumentando a distância entre elas. Ao sinal do professor, novamente trocarão passes até ele pedir para parar. E assim sucessivamente, até chegarem a uma distância de 10 ou 11 metros umas das outras. Com esse procedimento é possível, inclusive, ter uma ideia razoável do número de passes dados por cada criança.

Vamos agora a uma situação não tradicional, em uma equipe de base de um clube de futebol ou em uma escolinha de futebol. A turma tem 16 crianças. O professor pede que formem uma roda, com a distância de dois braços entre cada aluno. Pede que mandem para o centro da roda um dos alunos que eles escolherem, ao modo deles. Em seguida diz para começarem uma brincadeira de bobinho, com quantos toques na bola quiserem. Depois de uns 3 minutos, o bobinho ainda não conseguiu sair do meio da roda. Então o professor para a brincadeira, coloca o problema e pede uma solução: como fazer para o bobinho não ficar tanto tempo na roda? Ouve as sugestões e escolhe aquela que for mais adequada para seu plano de aula (se não houver nenhuma boa sugestão, ele pode acatar uma má sugestão e mostrar depois que não houve solução. E então pedir novas sugestões). Suponhamos que os alunos sugiram colocar dois bobinhos. Aí o professor perguntará por que eles acham que é uma boa solução. Ouvidos os argumentos recomeçam a brincadeira. De fato, os bobinhos interceptaram a bola muito mais rapidamente. Mas há um problema que persiste: o aluno menos habilidoso continuou como bobinho muito tempo, porque quem tocava na bola era sempre um outro mais habilidoso. Como solucionar isso? Problema passado para os alunos, conversaram entre eles e sugeriram que não precisava sair da rola, necessariamente, quem tocasse na bola. Com a ajuda (o professor deve sempre interferir e ajudar, dando pistas) do professor concluíram que deveria sair o que estivesse há mais tempo na roda. A brincadeira recomeçou e, de fato, o rodízio de bobinhos aumentou. Passados mais alguns minutos, o professor novamente parou a brincadeira e deu mais um problema para os alunos. Ele queria aumentar a dificuldade do passe. Como fazer? Os alunos discutiram por mais ou menos 1 minuto e deram boas sugestões. Uma delas dizia que era só aumentar o número de bobinhos para três. Outra era dividir a roda em duas rodas. O professor sugeriu começar pela primeira. Isso facilitou para os bobinhos e exigiu passes mais cuidadosos dos que estavam formando a roda. Depois formou duas rodas e também o passe foi mais exigido.

Para não nos alongarmos muito, vamos analisar rapidamente as duas situações. Afinal, este é um texto breve e não um curso. As situações criadas servem apenas para ilustrar a ideia de ensinar mais que o futebol. Na primeira situação, pensando no jogo de bola ou de futebol, o exercício tradicional realizado está fora de contexto. Cumpre-se a ideia de que podemos treinar partes do futebol descontextualizadas para depois juntá-las, na expectativa de que se ordenarão para melhorar a qualidade do jogo. Sem dúvida, essa prática facilita o controle dos professores sobre os alunos e sobre a realização do exercício. Porém, trata-se de um passar sem outro objetivo que não cumprir as determinações do professor ou da professora. Não é um passar necessário em uma situação de jogo e o ato de passar da maneira como é realizado no exercício não acontecerá em uma situação de jogo. Quando os alunos e alunas estiverem jogando bola, o que mais farão durante o jogo é receber e passar a bola, porém, não da maneira como se exercitaram. Quem pensa a atividade nesse exercício é o professor ou a professora, e não os alunos. Do ponto de vista metodológico, é uma ação criada a partir do ponto de vista de quem ensina, e não de quem aprende. Não se trata da realização de uma aprendizagem de futebol para os alunos, mas da realização de um plano dos professores. Nessa prática, o jogo lúdico, se é que existe, consiste em passar a bola um para o outro, frente a frente. Não se realiza o passe para cumprir um objetivo maior dentro de um jogo maior. A inteligência dos jogadores restringe-se a cumprir a determinação de passar a bola com precisão para o colega à frente.

Na segunda situação, quando os alunos brincaram de bobinho, o professor passou o protagonismo para os alunos. A situação, neste caso, é inversa à primeira. O ponto de vista educacional passou a ser o dos alunos. Não há somente ensino, mas igualmente aprendizagem. Os alunos não se restringiram a cumprir as determinações do professor, mas igualmente suas decisões. Do ponto de vista educacional os ganhos, para além do futebol são muito visíveis. Os alunos ganharam autonomia, e essa autonomia decorreu de reflexões sobre o jogo e decisões tomadas por eles. O jogo termina, mas os ganhos em autonomia não. Os alunos tiveram a oportunidade de aprender a ser autônomos, e o fizeram conscientemente, e quando se aprende com consciência, a aprendizagem pode ser estendida a outros contextos (sobre isso comentaremos em outros artigos). O professor deu problemas para os alunos resolverem. Eles conversaram entre eles e mostraram competência para fazer isso. E, de fato, resolveram o problema de como evitar que um deles ficasse muito tempo no centro da roda (situações como essa foram vividas por mim com meus alunos, não são mera ficção). Para resolver os problemas colocados, eles tiveram que pensar sobre a situação, imaginar como aconteceram, verbalizar, trocar ideias e sugerir hipóteses, que foram testadas na prática. Exercitaram a imaginação e o pensamento. O jogo de bobinho terminou, mas os alunos saíram dali com o pensamento fortalecido. Serão beneficiados por isso em outras situações de vida. Reparem num detalhe entre os problemas colocados pelo professor: ele advertiu que havia alunos que iam exercer o papel de bobinho e ficavam nele por muito tempo, e isso era constrangedor. Os alunos tiveram que resolver um problema que não se resolvia só com o pensamento, mas também com o sentimento de solidariedade. Trata-se de uma questão lógica, mas também afetiva. O professor estava preocupado com a educação geral desses alunos, com seu modo de viver em sociedade, tendo como campo de vivência um jogo de bola. Por fim, quando ao aprendizado do jogo de bola ou de futebol. O jogo do bobinho mobiliza para o futebol, acima de tudo, o passe e o desarme. Quantas vezes os alunos passaram e desarmaram? Nem eles nem o professor sabem isso. Mas podemos garantir que a quantidade é enorme. Mas não se trata só de quantidade. Os alunos passaram e desarmaram dentro de um contexto. Fazia sentido passar para cumprir o objetivo maior do jogo, tanto quanto desarmar. Isso não afronta a inteligência dos alunos, pelo contrário, alimenta-a.

Na primeira situação os alunos estavam aprendendo a passar bola uns para os outros, frente a frente, e não mais que isso. Os ganhos para o futebol serão muito pequenos, se houverem. Na segunda situação, considerando o jogo do bobinho, um dos pequenos jogos da família dos jogos de bola com os pés (1), os alunos aprenderam a passar e desarmar para cumprir o objetivo do jogo. E, da forma como a prática foi orientada, aprenderam, não só a jogar bola, mas a serem solidários, a pensarem melhor, a viverem com autonomia. E por constatarem que jogaram com êxito, puderam se sentir competentes, capazes de realizar, ingredientes para a elevação da autoestima.

Na primeira situação aprende-se a passar a bola para um companheiro à frente, sem obstáculos. Na segunda situação aprende-se a passar e a desarmar para o futebol e aprende-se além do futebol – aprende-se para a vida.

Referências: Scaglia, Alcides José. O futebol e as brincadeiras de bola: a família dos jogos de bola com os pés. São Paulo: Phorte, 2011.

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Diniz, o aliado do caos (parte 2): No caos há ordem

Por: Matheus Almeida

Alternativas e dinâmicas específicas na Gestão do Caos

Durante as partidas, de acordo com o modo que o adversário apresentava lacunas e possibilidades para o Fluminense de 2023-2024, Diniz e os atletas já se comunicavam para que se gerasse caos nesses setores, com a interação entre jogadores de características específicas no mesmo local do campo.

O primeiro gol do Fluminense na final da Libertadores contra o Boca é a prova disso. Diniz orienta Keno para que ele atravesse o campo e faça uma dobra com o ponta oposto Árias, para gerar combinação de velocidade, habilidade e quebra de linha pelo lado direito. Assim, Keno vai para o lado oposto entrar na “estrutura caótica” para se associar ao Árias e assim participam da jogada do gol.

Quando Diniz faz um padrão de substituição muito realizado (Saída de Ganso para entrada de Lima e saída de Marcelo para entrada de Diogo Barbosa) dois jogadores com características diferentes dos que foram substituídos entram na estrutura caótica. Assim, muda-se a forma do todo, pois as características que estarão se relacionando serão outras.

Assim, a equipe se torna mais ofensiva em momentos em que se aplica a estrutura caótica nas beiradas, e também em momentos em que a equipe está com maior amplitude na construção, se organizando um pouco mais posicional (ainda com trocas de posição e muito peso na última linha adversária, mas sendo um ajuste estratégico específico que o Fluminense pode apresentar). A equipe, com essas substituições, passa a ter uma dinâmica mais veloz e vertical, com mais ataques à profundidade e mais rupturas de última linha em velocidade, principalmente com Diogo, que ataca mais o fundo que o Marcelo, assim como na grande chance criada por Diogo na final contra o Boca. Gestão dos elementos do sistema caótico.

Em questões estruturais, há muitas alternativas que podem ser aproveitadas fornecidas pela estrutura caótica, como é a busca do pivô, ou o giro caso jogadores em apoios frontais não recebam a bola, ficando de frente como opção, como no vídeo a seguir.

Vídeo 5. Padrão: Jogador sai de apoio frontal, fica de frente e ataca a profundidade como opção de passe.

Fonte: Globo

Nessa estrutura também se gera jogadas que se repetem, como por exemplo, a tabela 2×1 contra o lateral adversário com posterior domínio orientado para a área (como no movimento da expressão de jogo “bate para dentro” do basquete) em velocidade, seguido de cruzamento de retorno para o finalizador, como no vídeo abaixo.

VÍDEO 6. Padrão: Tabela 2×1 seguido de finalização

Fonte: Globo

Em documentário que mostra os bastidores da campanha do título da Libertadores do Fluminense em 2023, em uma das preleções Diniz, em tom de relembrar conceitos, diz aos seus atletas duas questões:

“Vamos dar ordem ao caos” […] “ficou na dúvida? Organiza. Organizou, Caos neles”. Fernando Diniz, Documentário Todo dia é 4 de Novembro da Globoplay

Dar ordem ao Caos, já abordei os motivos dessa fala. Mostra que Fernando Diniz tem conhecimento sobre a teoria do Caos no futebol e usa isso como base da sua ideia de jogo. No caos há ordem, os fractais são pequenos padrões que se repetem e dão ordem à uma estrutura caótica na interação entre os elementos do sistema.

Já o “organiza”, dito por Diniz, tende a se referir à ação coletiva de abrir os dois pontas, realizar uma saída a 3 com um apoio interno (3 +1), ou a 4 com dois apoios (4+2), Cano de 9 segurando zagueiros, laterais inicialmente abertos, ganso adiantado entre linhas, equipe com mais amplitude, aguardando o momento de saírem de suas posições para gerar a estrutura caótica, ou gerar situação de 1×1 em determinado lado do campo. Veja no vídeo.

VÍDEO 7 . Dinâmica ofensiva geral Fluminense

Fonte: CazéTV

Fragilidade

O sistema, porém, tem suas fragilidades. Uma delas é quando o adversário também leva muitos jogadores ao lado da bola, encaixando na estrutura caótica. Assim, a equipe busca retirar o lado, virar o jogo. Nesse momento, os jogadores da estrutura caótica permanecem onde estavam, e o adversário vai se movimentar para o lado que a bola foi lançada. Quando o Fluminense retira o adversário da sua estrutura caótica ele retorna à bola ao lado que a jogada estava, com a equipe em vantagem numérica e, com essa vantagem, consegue progredir em sua dinâmica. Ótima solução.

VÍDEO 8. Fluminense retira a bola da zona congestionada, e retorna a bola para a mesma zona após remover o adversário deste setor, agora atacando em vantagem numérica com a estrutura caótica posicionada

Fonte: ESPN

Entretanto, quando o adversário também leva muitos jogadores ao lado da bola e realiza encaixes agressivos nos jogadores da estrutura caótica e pressão forte na bola, dificulta para o Flu, como foi em alguns momentos contra o Manchester City, como foi contra o River Plate no primeiro tempo de jogo, no histórico 5×1 do Flu, e também contra o Palmeiras, na reta final do Brasileirão.

Quando o Fluminense perde a bola, está com seu lado oposto muito aberto. Caso o adversário esteja com jogadores posicionados e preparados para atacar esse espaço com velocidade e verticalidade, o Fluminense pode sofrer uma finalização ou até um gol. Como no vídeo abaixo.

VIDEO 9. River Plate encaixando a marcação com coberturas curtas | Palmeiras gera volume no lado da bola com marcações por encaixe, deixando apenas o jogador base da estrutura caótica livre, mas fechando suas linhas de passe, recuperando a bola e acionando jogadores no lado oposto | Man City gera volume no lado da bola com marcações por encaixe, forçando a bola longa, recuperando a posse já no lado oposto livre.

Fonte: ESPN, Globo e CazéTV

O jogo do Fluminense de Diniz tem seus riscos. Os treinadores não conseguem controlar tudo o que ocorre no jogo, e o jogo é caótico e imprevisível. Porém, alguns ajustes podem ser feitos, sem abrir mão do caos da maneira que se realiza, para que se possa ter uma maior proteção pós perda de bola, como por exemplo, fixar um volante à frente dos zagueiros, assim preencheria melhor o espaço vazio.

Diniz sabiamente aborda que jogar contra clubes do mais alto nível te ajuda a desenvolver a equipe. Adversários como City geram problemas e aproveitam lacunas que os sul-americanos não conseguem aproveitar com frequência e eficiência, assim, jogos como os do Mundial, fazem Diniz visualizar falhas do sistema que não eram problemas até então, ou por vezes não eram percebidas. Começo a ver que o Dinizismo é um novo óculos para o futebol brasileiro, pois nesses últimos anos tivemos muita influência da escola europeia, que nos ajudou a compreender que estávamos atrasados em muitos processos, porém acabou colocando de lado o melhor que o jogo dos atletas brasileiro têm: a relação com bola em alto nível técnico (por isso a constante exportação para a Europa). Diniz vem para mostrar que, se havia uma defasagem tática no atleta brasileiro, existem maneiras que já conhecíamos, nas ruas, quadras e campinhos de terra, que contribuem para que a tática também evolua, e de um jeito genuinamente brasileiro.

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Futebol, um esporte transgressor

Por: João Batista Freire

É bastante incomum assistirmos o desenvolvimento de um talento para o futebol brasileiro nas chamadas “escolinhas de futebol”. Sem pretender desrespeitar as exceções que, certamente, existem, não há ambiente para desenvolver habilidades diferenciadas em futebol nessas escolinhas. Também não é muito frequente o desenvolvimento de talentos nas equipes de base dos clubes profissionais de futebol. Os meninos e meninas chegam a essas equipes, vindos dos mais diversos recantos do Brasil, cheios de habilidades, mas elas raramente crescem no ritmo que vinham crescendo em seus recantos, nas ruas onde aprenderam a jogar bola. Geralmente, só sobrevivem ao tempo consumido na base os excepcionais.

O futebol é, basicamente, um esporte de transgressões. Ele começa por ser uma espécie de transgressão biológica; somos animais bípedes, evoluímos para nos apoiarmos sobre os pés e manipular as coisas com as mãos. No futebol, ao contrário, manipulamos a bola com os pés. Os pés são as mãos dos jogadores de futebol. Além disso, enquanto os demais esportes com bolas as fazem transitar acima da linha de cintura, próximas à cabeça, no futebol a bola transita ao rés do chão, bem distante da cabeça. A maioria dos esportes exige paramentos especiais para serem praticados. No futebol pode-se jogar quase nu e descalço. Raramente se vê um esporte sendo praticado sem equipamentos e locais específicos. O futebol pode ser jogado em qualquer lugar, com ou sem grama, com terra ou areia, na lama, quase dentro da água, com chuva ou com sol, de dia ou de noite, com traves ou sem traves. No basquetebol, por exemplo, quando o árbitro marca uma falta, imediatamente todos se posicionam para aguardar a cobrança, sem discussões, e com raras exceções. No futebol não há marcação de falta indiscutível, todas as regras são relativas. É o único esporte em que falta pode não ser falta e não falta pode ser falta. O único esporte em que falta fora da área é uma coisa e falta dentro da área é outra. Por enquanto há nove pessoas encarregadas de fiscalizar as regras em cada jogo e, no futuro, talvez haja mais pessoas e equipamentos para isso.

Creio que não há erro maior no futebol que insistir em domesticar um esporte que é, naturalmente, transgressor. Queremos que os jogadores se comportem como se estivessem cumprindo rotinas cartoriais em um esporte que se mostra, desde suas raízes, avesso aos padrões estabelecidos.  

O que leva o futebol a ser tão transgressor? Se quisermos ainda podemos aumentar a lista das transgressões. Que tal pensar que boa parte dos esportes deriva de práticas lúdicas antigas em que as bolas representavam o sol e deuses, por isso manipuladas da cintura para cima e na direção desse sol e desses deuses? Homenagens ao deus, figura masculina, ao pai. Aí passamos ao futebol, com bolas manipuladas da cintura para baixo, na direção da terra, não do deus masculino, mas da deusa terra, do feminino, da mãe. Haja transgressão! Talvez tanta transgressão se deva ao fato de se tratar de um esporte de grande instabilidade. O chão, por onde rola a bola, por exemplo, por mais que a grama seja bem tratada, é repleto de irregularidades a desviar a trajetória da bola, a enganar o jogador, a surpreender o goleiro. Durante um ataque, o defensor torce para que o atacante repita as jogadas de sempre, neutralizadas com facilidade, e o atacante se desespera para conseguir fazer algo diferente que traia a expectativa do defensor.

Do ponto de vista das teorias da complexidade, nada, neste universo se repete. Nem as pedras são iguais a cada instante que passa. Teoricamente é impossível repetir ações. Porém, podemos realizá-las de modo que guardem bastante semelhança com anteriores. A arte de fazer com que sejam diferentes é o que torna o jogador de futebol eficiente, competente, decisivo. Ele pode trazer a bola da ponta direita para o bico da área e chutá-la ao gol cem vezes, mas fará o gol quando fizer isso com diferença suficiente para surpreender defensores e goleiro. Entre todas as transgressões possíveis no futebol, nenhuma será maior que a transgressão dos padrões estabelecidos, das rotinas, dos posicionamentos rígidos, das táticas engessadas. Treinar para lidar com a complexidade, com a imprevisibilidade, com a transgressão, essa é a questão básica que poucos ousam enfrentar. Em um esporte que tem o DNA da transgressão é preciso saber ser transgressor. Em um esporte que tem a imprevisibilidade exacerbada como núcleo, é preciso aprender a jogar com ela.

De tal maneira consolidou-se uma cultura de medo do enfrentamento do que é, na realidade, o futebol, que o que mais se assiste nele, das equipes de base aos grandes clubes, é a mesmice modorrenta de jogadores guardando posições como se fossem robôs guiados por inteligência artificial. Nada é mais punido que a transgressão dos esquemas pré-estabelecidos. É o que tem matado o futebol dos meninos e meninas talentosos nas equipes de base. Punir a transgressão é matar a galinha dos ovos de ouro do futebol. O sonho de todo marcador no futebol é o posicionamento rígido dos jogadores adversários. A transgressão do posicionamento é o inferno dos defensores. Não defendo que as regras de relacionamento entre as equipes em cada partida sejam transgredidas, pelo contrário, devem ser obedecidas. Porém, mesmo nesse caso, a transgressão persistirá. A tarefa dos árbitros seguirá árdua.

E então, para não me alongar muito, vamos ao fecho. Como ser coerente com as características do jogo de futebol e aprender a ousar, a transgredir, a ajustar-se ao que o futebol realmente é? Comecemos pelo fato de que os jogadores de uma equipe deveriam ser os mais diferentes possíveis uns dos outros. Uma boa equipe não é formada de jogadores com o mesmo comportamento, mesma habilidade, mesmo tamanho, mesma personalidade. Pelo contrário, quanto mais diferentes uns dos outros, maiores as possibilidades de um conjunto harmonioso que saiba lidar com a imprevisibilidade e a transgressão aos padrões. Pensemos na questão da imprevisibilidade. Vamos considerar uma equipe de futebol como uma pequena sociedade. Trata-se de uma sociedade que, por menor que seja, tem uma estrutura extremamente complexa. E, pela dinâmica do jogo, a surpresa será sempre a regra. Surpresa significa novidade. Os jogadores terão que aprender a conviver com o novo, o inusitado. Que não esperem que as coisas se repitam. Que não treinem para lidar com rotinas, com o igual. Porém, só há uma saída para isso. Precisam aprender a produzir autonomia e criatividade. Algo que não acontecerá se a autoestima dos jogadores estiver baixa. Tarefa número um dos treinadores, portanto: elevar a autoestima dos jogadores. Algo que precisará ser feito durante os treinamentos, durante conversas informais, durante as refeições, no vestiário, nas entrevistas e durante e após os jogos, entre outras situações possíveis. Autoestima é a palavra-chave do sucesso.

Foto de capa:  Nelson Coelho/Placar

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Diniz o aliado do caos (parte 1): caos, jogo e seres humanos

Por: Matheus Almeida

Durante 2023, andei refletindo com maior profundidade e engajamento os trabalhos de Fernando Diniz, principalmente o Fluminense da temporada 2023. Já havia tido contato com alguns conceitos do “Dinizismo” em 2017, por meio de uma palestra de Eduardo Barros, seu assistente técnico, na época no Audax, mas nunca havia concentrado meus estudos em Diniz. No Fluminense que foi campeão da libertadores e vice mundial em 2023, algo necessita ser destacado: O modo como jogam transcende a bola, é algo maior, uma filosofia coletiva com valores e princípios humanos muito presentes e, justamente isso que fazem a tática e as ideias de jogo, de fato, acontecerem em campo. Em minha análise, existem duas grandes bases para o “Dinizismo”: Valores Humanos e Caos, sendo o caos, uma maneira muito peculiar de lidar com ele. Sem essas duas coisas, acredito que o “Dinizismo” não existiria.

Valores Humanos como sustentação da tática

Como exemplo, é impossível uma equipe, no jogo mais importante para o clube, a final da libertadores contra o Boca Juniors, nas partidas da semifinal do mesmo torneio contra o Internacional, ou então no Mundial de Clubes contra o melhor time do mundo em 2023 (o Manchester City de Pep Guardiola), realizar uma saída curta, dinâmica, com trocas de posição para encontrar jogadores livres, se não houver coragem, solidariedade, dedicação nos treinos e nos jogos, e prazer em ousar e jogar dessa maneira, não importa o contexto.

Diniz já deixou isso bem claro em entrevista coletiva após o jogo contra o Internacional, vencido por 2×0, válido pela 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023, ressaltando que esses valores humanos são fundamentais para que o jogo proposto por suas equipes aconteça:

“[…] Então hoje acho que, preponderantemente, o time entrou muito agressivo, muito solidário. Jogar futebol, pra mim, é quando as relações humanas, elas conseguem, dentro do campo acontecerem. Nosso jogo é um jogo muito solidário, precisa de muitas coisas, precisa vontade para fazer, precisa disposição para fazer, precisa inteligência para fazer, então essas qualidades humanas, elas faltaram no jogo do São Paulo, aí a parte tática ela não funciona. Quando falta essas coisas a parte tática não corrige, essas coisas quando têm elas corrigem falha tática, mas falta de interesse em ganhar, a parte tática nunca corrige esse tipo de falta, ao contrário sim, quando a gente está com muita vontade, muito focado, jogando de uma maneira solidária, a gente pode errar alguma coisa taticamente como a gente errou hoje, taticamente sempre tem erro, mas a gente corrige de uma outra forma, porque essas coisas são mais importantes do que a parte tática […]” – Fernando Diniz coletiva após a 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023.

Nino, zagueiro do Fluminense campeão da Libertadores, que recentemente foi vendido ao Zenit, disse em carta de despedida, publicada no blog “The Players Tribune”, algo que se refere diretamente ao “Dinizismo” como uma filosofia de vida, além do campo:

“Esse cara (Fernando Diniz) me ensinou muita coisa, mas me ensinou principalmente a enxergar certas coisas que realmente importam de outro jeito. Eu tinha medo de fracassar. E talvez eu tenha transformado esse medo no meu combustível pra não fracassar. Mas é pesado viver assim. Então o que é fracassar? Falam muito em “dinizismo”, que o dinizismo isso, o dinizismo aquilo. Pra mim o dinizismo é ter outra perspectiva sobre tudo, enxergar o mundo e a vida de outro jeito. Pra isso é preciso ter coragem. E amigos” – Nino em The Players Tribune

Além dos valores humanos, outra base fundamental do “Dinizismo” é a ideia de caos ser muito presente no jogar das suas equipes.

Caos, o aliado do “Dinizismo”

Ricardo Drubski, em participação no podcast Charla, comenta que conversou com Eduardo Barros, Auxiliar Técnico de Fernando Diniz desde outros clubes. Segundo Drubski, Eduardo o disse que Diniz faz uma Gestão do Caos. Isso é muito interessante.

Diniz mostrou seu poder de influência com suas ideias, inclusive nas transmissões de jogos do Fluminense ou da Seleção Brasileira, pois até narradores e comentaristas começaram a falar sobre o caos nos jogos das equipes de Diniz, um conceito muito profundo sobre o jogo, que nas universidades, como na Unicamp, já se estudava e, que por meio do treinador, começaram a entrar no entendimento da imprensa.

Sobre a gestão do Caos, o Fluminense apresenta o que, para mim, seria uma “estrutura caótica”, geralmente nas beiradas, onde busca aglomerar muitos jogadores do lado da bola, com no máximo dois atletas para a retirada no lado oposto do campo. Nessa estrutura caótica, há a paralela cheia, apoios, jogadas e movimentações coordenadas, como se fossem geradas quadras de futsal onde está a bola. Um jogo caótico, mas com padrões, pois no caos, há ordem.

Diria eu que Diniz é um aliado do Caos, pois, pelo menos vendo de fora, se aproxima do Caos da mesma maneira que se aproxima de seus atletas para que a equipe crie fortes laços interpessoais. As equipes de Fernando criam laços fortes com o Caos.

A Teoria do Caos tem como objeto de pesquisa os sistemas não-lineares, buscando entender eventos aparentemente aleatórios, imprevisíveis e desordenados, sensíveis a pequenas alterações, sendo possível encontrar padrões no Caos como o pesquisador Gleick traz em 1989, mencionado por Rodrigo Leitão em sua Tese de Doutorado em 2009. Essas pequenas alterações são abordadas na ideia de “Efeito Borboleta”, de Edward Lorenz, ao observar que o sistema computacional que utilizava para fazer previsões climáticas chegou a resultados distintos partindo de mesmas condições iniciais, devido a uma diferença de casas decimais depois da vírgula, algo muito pequeno, que com o passar dos resultados, começa a gerar grandes alterações nos cálculos. (Leitão, 2009)

No caos há padrões, mas para observar a complexidade contida no caos é necessária a ideia de fractais, pequenas partes de um todo, que são a forma e conteúdo de sua figura maior (Leitão, 2009). As partes são a imagem do todo e o todo é a imagem das partes como na figura abaixo, o todo, triângulo maior, e seus fractais, triângulos cada vez menores.

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EDUARDO BARROS E FERNANDO DINIZ NA FINAL DO MUNDIAL DE CLUBES. FOTO DE LUCAS MERÇON /FLUMINENSE FC | EDIÇÃO DE MATHEUS ALMEIDA

Em um sistema caótico, a complexidade é presente, sendo o termo Complexidade, sinônimo da interação de elementos, cada qual com sua característica individual, se relacionando entre si, e formando uma organização específica da combinação daquelas características dos elementos, dando forma a um todo (Morin, 1997).

Para simplificar, vamos pensar de modo prático. Se em um espaço reduzido no campo, houver uma situação de 3×3 e, em uma equipe o trio for formado por Messi, Neymar e Suárez, ocorrerá uma combinação de características individuais, que, ao se relacionarem, formam um todo específico que se expressa no jogar deste trio contra seus adversários. Porém, se nesse trio, substituirmos Neymar por Thiago Silva, muda-se as características de um dos seus elementos, muda-se o todo e o modo como esse todo jogará. Relacionando as interações do trio com as interações do trio rival, percebe-se que o jogo de futebol é muito complexo e caótico e não se pode controlar o caos, mas geri-lo, como faz Diniz de modo muito peculiar.

Diniz, em suas equipes, busca gerar uma estrutura caótica, mas que apresenta padrões, fractais que se repetem e organizam esse caos. A “Estrutura caótica” de Diniz pode ser composta, segundo minha análise, por:

  1. Valores Humanos como sustentação das interações táticas;
  2. Características dos jogadores se relacionando formando um todo específico naquele pequeno espaço de campo;
  3. Posicionamentos, movimentações e jogadas coordenadas para o funcionamento da estrutura caótica que visa atrair o adversário em direção à bola e liberar jogadores livres nas costas da pressão

A principal ideia da equipe de Diniz, atacando, é atrair a pressão para a bola e libertar jogadores livres nas costas dessa pressão em vantagem posicional. Isso se observa no macro, quando o Fluminense faz uma saída de bola curta, sustentada, com muitos jogadores próximos à primeira fase de construção, induzindo o adversário a subir o bloco de marcação e pressionar sua saída de bola. Essa dinâmica acontece também nos seus fractais, nos espaços reduzidos, próximos à bola, onde o fluminense também busca atrair a pressão e quebrar linhas com passes e triangulações.

Muito importante dizer, porém, que o modo como se gera essa vantagem posicional é muito peculiar devido à mobilidade e trocas de posição, pois os jogadores que podem aparecer no setor da bola nas costas da pressão não necessitam ser um meia ou um ponta que jogam no lado em que a bola está, mas podem ser o ponta do lado oposto, que atravessou o campo para estar alí, ou outro jogador de outra posição.

A estrutura caótica gerada no lado da bola em espaço reduzido tem posições base para abrir a marcação adversária e gerar um corredor no meio deste pequeno espaço de campo, onde o Fluminense irá atrair a marcação para a bola e para fora, abrindo este corredor, que pode ser ocupado por qualquer jogador visando receber nas costas da pressão.

Vídeo 1. O todo está para as partes assim como as partes estão para o todo

A “Estrutura Caótica” de Diniz apresenta muitos jogadores atacando os espaços na paralela. Esse padrão pode ser chamado de paralela cheia, com o seguinte posicionamento inicial: Dois, três ou até quatro jogadores podendo se posicionar na paralela, pelo menos dois jogadores de apoio, por dentro em suas diagonais, um pivô e um jogador na base da estrutura como passe de retorno.

Vídeo 2. A estrutura Caótica (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

Os jogadores saem das suas posições para formar essa estrutura inicial, num jogo “aposicional” (chamo assim não para rotular, mas para compreender que os jogadores não se mantêm em suas posições, buscando gerar vantagem numérica no setor da bola, próximos à essa estrutura caótica). Pode-se perceber que se busca inicialmente de um a dois passes na paralela, em seguida, passes para os apoios internos, sempre de frente para o jogo, buscando tocar e passar da linha da bola, ou ocupar um espaço vazio dentro dessa estrutura caótica, gerando uma nova linha de passe. Os jogadores buscam aproximar desta estrutura caótica e podem formar triângulos ou “escadinhas”, com tabelas e corta-luzes para gerar situação de 3º jogador e infiltração.

VIDEO 3. Escadinha gerada com Marcelo circulando pelo meio e aproximando da bola

Fonte: Globo

Outro detalhe são as trocas de posição no setor da bola. Uma mecânica frequente é quando a bola está com o zagueiro, lateral vem por dentro, meia ocupa o espaço deixado pelo lateral, recebe a bola, em caso de manutenção de posse, faz o passe horizontal para o lado oposto e troca com o zagueiro, que ocupa a beirada. Veja no vídeo.

Vídeo 4. Trocas de Posição (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

(Esse texto continua na parte 2, semana que vem, sobre o tema “Diniz: No Caos Há Ordem)

Até lá!

📷 Foto de capa: Matheus Lima/Vasco da Gama

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Imaginem uma semana sem surpresas

Por: João Batista Freire

Imaginem uma semana de futebol em que todos os times favoritos vençam, nenhum pênalti seja registrado, jogadores não reclamem, técnicos não deem entrevistas polêmicas, técnicos não sejam demitidos, nenhum jogador se machuque, nenhuma jogada diferente chame a atenção, que os gols consignados sejam comuns, que não haja nenhuma goleada, nada de temporais alagando campos, torcidas bem-comportadas, que árbitros não cometam erros. A partida de futebol em campo seria apenas um detalhe. O que alimentaria os debates nas redes de rádio, televisão e internet ao longo da semana? O que alimentaria as discussões nos botecos? Que coisa chocha, não? Tudo normal. Imaginário vazio. Ah, o imaginário! É nele que mora o verdadeiro jogo. E o futebol, mais que qualquer outro esporte, é um estupendo alimentador de imaginação. Talvez venha daí seu enorme sucesso de público e de crítica.

Tal semana aqui descrita nunca existiu, para sorte e graça do esporte bretão, caso contrário ele desapareceria da face da terra. O futebol, como de resto, nenhum esporte, sobreviveria com a assepsia do incomum. O futebol é um jogo, um acontecimento lúdico, portanto, uma fonte inesgotável de alimentos para a imaginação. E nada há de mais rico na espécie humana que a imaginação. É ela que nos distingue, acima de tudo, dos outros animais. Não somos nem superiores e nem inferiores aos outros animais, somos apenas diferentes. Cada animal tem, na sua diferença, o instrumento decisivo de sobrevivência. A diferença que permite ao ser humano sobreviver é a imaginação – no resto ele é fraco. É por isso que não lhe basta o comum. Ele precisa do diferente, do inusitado, do imprevisível, do contraditório. E é aí que aguardamos, e até torcemos, tanto pela vitória de nosso time do coração, quanto pelo gol de bicicleta, pelo erro do árbitro, pelo temporal que alaga o gramado, pelo corte súbito de energia elétrica, pela contusão que afasta o craque do time, pela briga nas arquibancadas, pela expulsão do zagueiro, pelo frango do goleiro, pela goleada por sete a um, pelo choro sofrido dos derrotados na final do campeonato. Não é o futebol a questão maior, é a imaginação, que precisa ser alimentada. Essa imaginação que, durante a infância, constitui o principal motor da atividade das crianças, que as obriga a brincar em todos os momentos possíveis, até mesmo nos intervalos entre as misérias. Os seres humanos precisam brincar, as crianças em qualquer lugar, os adultos quando lhes sobra tempo e espaço. O futebol, em alguns países, é uma grande brincadeira.

Se parássemos de alimentar a imaginação, decretaríamos o fim da espécie humana. E aqueles que dominarem nossas imaginações, dominarão o planeta.