Antes de iniciarmos o texto em busca de responder à pergunta do título, permita-me me apresentar, pois estarei aqui no portal novamente depois de alguns anos, compartilhando reflexões frequentemente (pelo menos uma vez por mês). Por isso, considero importante contextualizar minha trajetória. Além disso, naturalmente, o futebol tem muito de contexto, e, por isso, também é importante que se entenda o contexto em que vou, neste texto, buscar responder à questão.
Atualmente, sou formado em Psicologia, pós-graduado em Gestão de Pessoas e Lideranças, e estou Scout do FC Dallas, da MLS, na América do Sul, desde outubro de 2022. Mas acho relevante voltar ao início da minha história para compreender toda a questão.
Desde muito cedo, sou um aficionado por futebol. Como muitos brasileiros, também sonhei em ser jogador de futebol, mas meu fraco desempenho, já nas aulas de Educação Física, me mostrou rapidamente que isso não seria possível. Sendo assim, já aos 12 anos, decidi que gostaria de trabalhar com o esporte e me coloquei a estudar, com todas as minhas forças, o jogo e tudo o que se envolvia nele.
Muito graças a esta instituição e ao professor João Paulo Medina, pude começar, já aos 12 anos, a fazer cursos e me aprofundar em tudo aquilo que dizia respeito ao jogo, tentando absorver todo conhecimento possível.
Ainda bem cedo, pude fazer estágios importantes na minha trajetória (passei por uma importante agência de jogadores por um período relativamente longo, além de clubes como o Novorizontino — onde fiz um estágio de observação com Eduardo Barros, então treinador da equipe Sub-20 — e na equipe Sub-20 do Corinthians, que era liderada pelo treinador Osmar Loss). Até que, depois de muito estudar e ter algumas boas oportunidades de estágio, aos 20 anos, recebo o convite para ajudar a estruturar e desenvolver, junto com outros profissionais, o Departamento de Análise de Desempenho na base do clube, o qual a direção da época havia entendido ser importante possuir.
Logo de início, mesmo com certo conhecimento técnico do jogo e já com o pensamento sistêmico sobre as partes (técnico, tático, físico e psicológico) que compõem o futebol, um detalhe tomava conta da minha cabeça, já nas minhas primeiras semanas de clube: como posso querer analisar o jogo sem entender melhor sobre cada um destes meninos que jogam as partidas? Eu já sabia que a parte mental tinha bastante relevância, mas, ao me deparar com vários jovens (e, claro, muitos colegas de trabalho) de muitas culturas e idades diferentes com quem convivia por lá, essa questão foi ficando cada vez mais forte em mim, até que, nas minhas primeiras semanas de SPFC, defini fazer Psicologia.
Essa escolha me acompanhou, desde então, em todas as etapas da minha carreira. Tive a honra, durante a minha faculdade, após três anos e meio trabalhando na base e tendo contato com diversas categorias, de subir para a equipe profissional do SPFC como analista de desempenho (onde, posteriormente, migrei para o departamento de Scout). É claro que, naquele momento e contexto específicos, as perguntas se modificaram um pouco, mas a inquietação de tentar sempre me aprofundar e entender sobre o indivíduo que joga o jogo permanecia. Todos que um dia foram meninos apenas, mas, ali, já homens com outra exposição social e relação com o futebol, em relação à maioria dos meninos com quem convivi em Cotia (ainda que parte deles fosse oriunda de lá), eram indivíduos em um contexto completamente diferente — e era importante entender isso para entender o jogo.
Ao todo, entre base e profissional, análise de desempenho e mercado, foram sete anos de SPFC e, embora tenha vivido em contextos e perspectivas diferentes, a busca por entender (e a importância dada aos) indivíduos que jogam o jogo sempre esteve muito presente na minha cabeça. A faculdade foi me respaldando com mais e mais conhecimento para lidar com as diferentes questões que, no fim, buscavam por um entendimento mais complexo do jogo e de suas partes em constante interação.
Mesmo depois de aceitar o desafio de deixar o SPFC e mergulhar em um novo desafio em um clube internacional, a busca por entender o indivíduo que joga o jogo permanece sempre presente, ainda que em um contexto diferente.
Levando para a prática, para tornar mais palpável o meu raciocínio, considere que, como Scout de um grande clube do Brasil (hoje uma potência econômica, principalmente em relação aos demais países da América do Sul), eu esteja analisando e observando um jogador que vem se destacando em um clube médio do Uruguai. Ao analisar esse jogador, é fundamental tentar observar a parte humana para entender se o desempenho que ele mostra na sua equipe local pode, de fato, ser traduzido em outro contexto. Algumas perguntas são importantes, como, por exemplo: quais as diferenças culturais entre os clubes? Quais as diferenças culturais entre os países? Os comportamentos esperados pelo clube que está recebendo o atleta aparecem, de alguma forma, no seu clube atual? Se possível, entender como é aquele indivíduo no seu dia a dia? Todas essas questões são tão ou mais importantes do que atributos técnicos ou táticos de um atleta, para entender se a adaptação ao contexto e ao ambiente é possível e, a partir daí, consequentemente, possa-se buscar o melhor rendimento possível. Esse entendimento só me foi plenamente possível de ser levado em conta com a seriedade que exige (não de forma rasa), com a ajuda da Psicologia.
Portanto, mesmo entendendo que todos os outros componentes que ainda busco sempre estudar (físico, técnico e tático) são fundamentais e estão em constante interação, posso dizer que a minha escolha por fazer Psicologia como faculdade (e seguir estudando toda a parte mental) foi muito importante para me ajudar, como analista, a entender mais sobre o jogo e, consequentemente, na minha visão, o principal fator do futebol, que, apesar de se ajustar a diferentes contextos, sempre estará presente numa partida: a pessoa que compõe o jogador(a).
No dia 15/07/2025, a Universidade do Futebol realizou uma roda de conversa conduzida por Maurício Rech — mestre em Psicologia e Saúde, educador, pesquisador e ex-diretor executivo de futebol profissional e de base.
O evento exclusivo contou com a participação de especialistas nacionais e internacionais das áreas de futebol e psicologia, incluindo:
Psicólogos
Psiquiatras
Diretores de futebol
Coordenadores (técnicos, metodológicos e de performance)
Atletas profissionais
Mães de atletas
Assistentes sociais
Representantes de clubes como São Paulo, Red Bull Bragantino, Internacional-RS, Grêmio, Vasco e da Federação Paulista de Futebol estiveram presentes.
Este artigo sintetiza os principais debates e conclusões do encontro.
Introdução
A saúde mental no futebol é, ainda hoje, uma dimensão frequentemente negligenciada, apesar da crescente evidência científica que sustenta sua importância para o rendimento desportivo e bem-estar dos atletas. O professor Medina, iniciou a roda de conversa, destacando a urgência de integrar a saúde mental no cotidiano dos clubes, rompendo com o paradigma tradicional que prioriza exclusivamente o desempenho físico e técnico. A proposta deste resumo é refletir, com base em testemunhos e evidências científicas, sobre a centralidade da saúde mental no futebol contemporâneo, apresentando desafios, práticas emergentes e caminhos possíveis para uma cultura desportiva mais humana e sustentável.
Maurício Rech, cuja trajetória profissional transita entre a advocacia desportiva e a psicologia aplicada ao desporto, representa uma voz qualificada nesse debate. Ao suspender temporariamente o futebol em 2014 e retornar em 2023 com uma nova formação em psicologia, neurociência e saúde, Rech exemplifica como a experiência prática pode ser enriquecida com conhecimento científico, contribuindo para transformar o ambiente futebolístico.
Fundamentos Científicos da Saúde Mental
Ao contrário da tradição cartesiana que nos ensinou a ver o ser humano como um ser predominantemente racional, a neurociência contemporânea tem revelado que somos essencialmente emocionais. Emoções influenciam a tomada de decisões, moldam comportamentos e afetam o rendimento em contextos de alta pressão, como o desporto. A investigadora brasileira Susana Herculano contribuiu significativamente para esta compreensão ao demonstrar que o cérebro humano possui aproximadamente 86 mil milhões de neurónios, formando cerca de quatro bilhões de conexões sinápticas — uma rede intrincada que sustenta não apenas funções cognitivas, mas sobretudo emocionais.
Neste contexto, a psicologia positiva, particularmente através do modelo PERMA (Positive Emotion, Engagement, Relationships, Meaning, Achievement), assume um papel relevante. Longe de promover uma visão irrealisticamente otimista da vida, o PERMA enfatiza o uso de forças pessoais como ferramentas para enfrentar desafios e alcançar equilíbrio emocional. No futebol, a sua aplicação pode significar maior resiliência, coesão de grupo, e motivação intrínseca, fatores fundamentais para o sucesso sustentado.
Experiências Práticas e Casos Reais
O testemunho de Gabriel Bussinger, treinador em início de carreira, ilustra como a insegurança e a ausência de autoconhecimento podem comprometer a liderança e a dinâmica de grupo. Ao adotar um estilo autoritário, fruto do medo de perder o controlo do balneário, Gabriel reconheceu posteriormente a importância da gestão emocional e do desenvolvimento da inteligência emocional como pilares para uma liderança eficaz.
De igual modo, Deis Chaves compartilhou os impactos psicológicos do colapso institucional vivido num clube profissional, salientando a fusão entre paixão e trabalho no futebol como um fator agravante para o adoecimento psíquico. O seu relato reforça a urgência de criar ambientes desportivos que respeitem os limites emocionais dos profissionais.
Élio Carravetta, por sua vez, define o treino desportivo como um processo de “neuroaprendizagem”, onde o desenvolvimento cognitivo e emocional é tão determinante quanto a habilidade técnica. Atletas como Cafu e Michael Jordan são exemplos de sucesso baseado não apenas em talento, mas em domínio emocional e capacidade de aprendizagem adaptativa.
Desenvolvimento Infantil e Ambiente Seguro
A neuroplasticidade — capacidade do cérebro de modificar-se em resposta à experiência — desfaz o mito de que “pau que nasce torto não endireita”. Tal conceito é essencial no contexto do futebol de formação, onde jovens atletas estão em processo de maturação cerebral. No entanto, a exposição prolongada ao stress, especialmente durante a infância, pode comprometer essa plasticidade, afetando negativamente o desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental.
Estudos demonstram que o stress crónico, frequentemente presente em crianças oriundas de contextos de vulnerabilidade social, gera alterações estruturais no cérebro. Tais alterações estão associadas a maiores índices de ansiedade, défice de atenção e comportamentos desregulados, influenciando diretamente o percurso desportivo e de vida desses jovens. Assim, a criação de ambientes seguros, afetivos e previsíveis é uma condição sine qua non (indispensável) para a promoção da saúde mental e do rendimento desportivo.
Relatos de Experiências no Futebol de Formação
Os relatos sobre o futebol de formação são particularmente preocupantes. Fabrício Vasconcellos descreve situações de atletas marcados por tragédias familiares, como pais assassinados e mães viciadas. Estes jovens, frequentemente rotulados como indisciplinados, são, na verdade, produtos de um sistema que os expõe a traumas sem oferecer suporte emocional. O resultado são trajetórias marcadas por instabilidade, inadaptação e, muitas vezes, abandono precoce do desporto.
Ana Teresa Ratti, mãe de um atleta de 13 anos (na data do acontecimento), criticou a prática de separar precocemente as crianças das suas famílias. O caso do seu filho, único selecionado entre mais de mil candidatos, revela a pressão desproporcional imposta a jovens atletas. A comparação com um modelo existente num clube europeu — que integra escola, família e clube — sugere caminhos mais humanos e sustentáveis para a formação e desenvolvimento do potencial desportivo dos atletas.
Modelos Inovadores e Alternativas
O modelo adotado pelo Red Bull Bragantino, apresentado por Leandro Floriano, representa uma alternativa à cultura dominante do sofrimento e da pressão de crescimento precoce no futebol. Ao manter os jovens atletas nos seus núcleos familiares até aos 13 anos, o projeto visa promover uma infância saudável e proteger os jovens das pressões desmedidas do alto rendimento.
Este modelo também desafia a narrativa comum de que o sucesso exige sofrimento. A ideia de que “sem dor não há ganho” normaliza práticas abusivas e negligencia os danos psicológicos a longo prazo. Ao contrário, uma cultura de bem-estar e suporte pode gerar atletas mais resilientes, motivados e preparados para os desafios do desporto profissional.
Perspectiva Internacional dos jovens atletas
Na sua intervenção, André Encarnação abordou a difícil adaptação dos atletas estrangeiros e mais especificamente de jovens atletas brasileiros em Portugal, destacando a ausência familiar como um fator crítico para a saúde emocional e o desempenho desportivo nos primeiros tempos no novo país. As dificuldades de integração cultural, as barreiras linguísticas – no caso dos atletas provenientes de países não pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – e as mudanças alimentares, são elementos que agravam o sentimento de isolamento e dificultam o sucesso desportivo. Por outro lado, revelou que a constante evolução tecnológica facilitou o contacto e reduziu o sentimento de distância familiar, isto quando comparado com o seu início da atividade profissional em 2010.
A pressão por resultados imediatos em clubes estrangeiros também contribui para elevar os níveis de stress e ansiedade entre os jovens atletas. Trata-se de uma nova realidade – independentemente de ser melhor ou não do que a da sua proveniência – sendo a mesma conhecida pelas ações de scouting que realizou nos países dos atletas selecionados. A ausência de suporte psicológico adequado nesse processo de transição internacional, reforça a importância de um acompanhamento emocional contínuo e individualizado para os atletas e staff do clube que os acolhe.
Soluções e Caminhos
A psicoeducação desponta como ferramenta estratégica para transformar a cultura do futebol. Ao capacitar atletas, treinadores e gestores para reconhecer e lidar com as próprias emoções, promove-se uma maior autoconsciência e empatia. Esta abordagem é especialmente eficaz quando integrada em programas de formação continuada, permitindo a atualização constante de práticas e valores.
A mudança, no entanto, deve começar em nível individual. Como um “trabalho de formiguinha”, requer que profissionais conscientes encontrem aliados dentro das estruturas dos clubes, formando redes de apoio e disseminação de boas práticas. A capacitação contínua é uma exigência ética e estratégica: profissionais bem formados são capazes de construir ambientes mais saudáveis, produtivos e humanos.
Conclusão
A saúde mental no futebol precisa deixar de ser uma exceção para se tornar uma prioridade. As evidências científicas, os relatos de profissionais e os modelos alternativos apresentados neste artigo demonstram que o bem-estar psicológico não é apenas compatível com o alto rendimento — ele é, de facto, uma das suas condições mais importantes.
Romper com a cultura do sofrimento, da pressão para um crescimento precoce e da negligência emocional exige coragem, investimento e compromisso com o ser humano que existe por trás de cada atleta. É necessário reconfigurar o futebol como espaço de desenvolvimento integral, onde corpo, mente e emoção coexistam de forma equilibrada. Atualmente a saúde mental é imposta como uma das maiores urgências sociais, o futebol — com sua visibilidade e poder simbólico — tem a oportunidade e a responsabilidade de liderar essa transformação dos jovens atletas à escala global. A mudança de paradigmas depende de todos os gestores desportivos, desde as escolas, clubes de formação aos clubes de topo, de modo a salvar e guardar o talento e promover o desenvolvimento desportivo, intelectual e social de todos os atletas.
1. Será de referir, antes do mais, que os treinadores e os jogadores treinem e se treinem como se joga, ou seja, de modo competitivo, tendo em conta os factores de rendimento (físicos, técnico-tácticos, psicológicos e morais), todos igualmente importantes e incluindo neles o treino invisível. Há, no treino, fatores quantitativos e qualitativos. Saber interpretar a quantidade de ácido láctico; manejar os dados obtidos, através da pulsometria; entender os resultados dos exames médico-desportivos dos atletas – tudo isto (são exemplos, entre outros) permite dar prioridade ao quantificável. Mas, o essencial é invisível aos olhos e, por isso, dificilmente quantificável. Assim, como é possível medir-se a capacidade de comunicação de um treinador, ou a sua liderança? Há dimensões da subjectividade de fundamental importância, na profissão de treinador e no desempenho desportivo. É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser. Luís Alonso Perez, conhecido por Lula nos meios do futebol: “coube a ele comandar o maior time de futebol de todos os tempos, o Santos Futebol Clube dos anos 50 e 60” (Maurício Noriega, Os 11 Maiores Técnicos do Futebol Brasileiro, Editora Contexto, S. Paulo, 2009, p. 79). Entre 1954 e 1966 treinou uma equipa onde pontificavam Pelé, Coutinho, Pagão e Pepe. E, no entanto, Lula nunca jogou futebol profissional, era motorista de táxi e falava uma linguagem com muitos erros gramaticais. Mas, teve um êxito espectacular como treinador dos juvenis do Santos e, daí, passou a treinador da equipa principal. Em 12 anos, conquistou 38 títulos! O que o distinguia dos demais treinadores? Os jogadores deliciavam-se com o que ele dizia e com a simpatia que manifestava por todos. A relação era sujeito sujeito e não sujeito-objecto. Por fim, sabia ler um jogo, como poucos. Os êxitos (e os inêxitos) do treinador não podem dissociar-se da sua personalidade e da sua conduta. Um treinador informado, mas sem qualidades de liderança e sem um admirável comportamento moral, não é um treinador eficaz.Já digo, há muito, que para saber de futebol é preciso saber mais do que futebol. Fazer- se respeitar, pelas qualidades de liderança e pelo comportamento moral – tudo isto, essencial ao treinador de futebol, é bem mais do que futebol…
Imagem 1
2. Mas não é também, trabalho inadiável, no desporto, a qualificação dos recursos humanos? Não há que promover e realizar um trabalho científico de excelência, visando o desenvolvimento desportivo? “Devemos saber combinar inteligência instrumental-analítica, donde nos vem o rigor científico, com a inteligência emocional-cordial, donde derivam as imagens e os mitos” (Leonardo Boff, Saber cuidar, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1997, p. 37). Segundo o “erro de Descartes”, a alma (a res cogitans) e o corpo (a res extensa) são substâncias distintas, dando primazia à razão e ao more geométrico, ou seja, ao modelo das ciências ditas exactas. Dizer que se deve pensar o mundo físico, no quadro de uma axiomática geométrica, significa reconhecer que algo desse mundo se torna impensável: a qualidade. Ora, é precisamente sob a influência de Descartes (1596-1650) que nasce a educação física, entendida como educação do físico, ou do corpo que outra coisa não era, na cultura ocidental, do que físico, ou seja, matéria. Portanto, o corpo deveria treinar-se, para obedecer com celeridade e aprumo aos ditames da razão. Por outro lado, em Descartes, para conhecer, é preciso dividir “em tantas parcelas, quanto possível e necessário, para melhor resolver as dificuldades”. Assim, o método, na educação física e no desporto, começou por ser analítico e quantitativo, tentando fazer de cada educando, ou de cada atleta, o homem-máquina, já que tudo o que é natureza nada mais é do que uma máquina. Aliás, o mecanicismo constituiu o pressuposto de toda a investigação científica. Era portanto o homem-máquina, que os números davam a conhecer, o grande objectivo da educação física e do treino desportivo. Deverá acentuar-se também criou uma íntima relação entre a classe burguesa ascendente, ou seja: os homens de negócios, e a matemática, entendida como método universal: é que o quadro próprio dos negócios é o cálculo. Enfim, a educação física, como educação de um físico que será tanto mais perfeito quanto mais se aproximar do funcionamento de uma máquina nasce depois de Descartes e o primeiro autor a utilizar a expressão “educação física” é um médico, Ballesxerd, que, em 1762, escreveu o livro “Educação Física para as crianças”. Ora, esta educação física, como educação do físico, e um treino visando o homem-máquina, chegam até meados do século XX…
Imagem 2
3. “Não nos podemos esquecer que a ciência moderna conferiu uma extraordinária importância à quantificação. Temos boas razões para crer que esse procedimento epistemológico de valorizar o quantitativo tenha raízes sociais. O que significa quantificar senão contar, medir e pesar? A quantificação pressupõe a posse dos métodos de cálculo, de balanças, de todo um equipamento material e mental (…). A ciência moderna nasceu num momento histórico em que a quantificação possuía uma significação fundamental na prática social” (Hilton Japiassu, A Revolução Científica Moderna, Imago, Rio de Janeiro, 1985, p. 129) é que a ordem e a quantificação interessam sobremaneira ao desenvolvimento do capitalismo! A educação física e a medicina, ambas produto, em termos modernos, do cartesianismo, apresentam, até meados do século XX, as características da ciência moderna. E assim a ginástica, os jogos e os desportos destinam-se à formação de um corpo, máquina autêntica, mesmo quando ao serviço de grandes ideais sociais. O treino desportivo, ao longo da modernidade, mais propriamente a partir dos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, centrou-se em primeiro lugar na técnica, depois no treino físico e, por fim, no volume de treino. Num livro intitulado Metodologia do Treino Desportivo, da autoria da Associação Nacional de Treinadores de Basquetebol e editado pelo ISEF de Lisboa, em 1981, David Monge da Silva escreve: “Para detectarmos quais as tendências de evolução do treino, deveremos conhecer qual a situação actual, nos domínios da investigação. Com efeito, são os resultados desta que imprimem a orientação futura do treino. Neste momento, nos centros de investigação mais avançados, os estudos os estudos centram-se fundamentalmente nas seguintes áreas: técnicas de recuperação; métodos inabituais de treino” (p.67). Este texto, de há 30 anos atrás, permite que eu possa apresentar a minha teoria da motricidade humana ou, usando as palavras de Nietzsche, a minha “teoria da acção”. De acordo com este autor (que eu conheci, através de Júlio Garganta, no livro Olhares e Contextos da Performance nos Jogos Desportivos, editado pela Faculdade do Desporto da Universidade do Porto, pp. 150 ss.) no desporto, uma acção é um comportamento táctico. Para mim, a motricidade humana é a energia para o movimento intencional da transcendência (ou da superação). Assim, no corpo em acto, ou motricidade humana, o comportamento táctico encontra-se integral, mas superado. É que a transcendência (ou superação) é o sentido da vida. De facto, viver é uma tentativa incessante de superação. O desporto é um dos aspectos deste anseio inato de transcendência e portanto o treino desportivo persegue-a, prepara-a, antecipa-a, à luz do conhecimento do jogo.
Imagem 3
4. A Ciência da Motricidade Humana (CMH), por mim teorizada, foi apresentada, publicamente, nas minhas provas de doutoramento, em 1986. Porque estuda o movimento intencional da transcendência, é uma ciência social e humana. Aliás, a transcendência é uma dimensão especificamente humana, inédita nas demais criaturas, já que se afirma como ruptura e como projecto: ruptura, em relação ao mundo tradicional, que nos foi transmitido; projecto como criação de um mundo novo. São especialidades da CMH o desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação psicomotora, etc., ou seja, práticas onde se torna visível o movimento intencional da transcendência. José Mourinho, considerado pela FIFA o melhor treinador de futebol do mundo, no ano de 2010, foi capaz de transcender e transcender-se, criando um método anti-dualista e anti-cartesiano, longe dos métodos analíticos de treino e bem próximo do método da complexidade que a CMH defende. Em José Mourinho, a preparação dos jogadores, para a alta competição, subordina-se a um modelo de jogo, que se torna o elemento regulador das variáveis físicas, técnicas e psicológicas. Chama-se a esta metodologia a periodização táctica. Mas há mais: José Mourinho sabe que a prática desportiva se funda no sujeito, no humano na sua globalidade. Problematizá-la significa equacionar, não um físico, mas o Homem, em toda a sua amplitude e profundidade. Também no desporto não é pensando que somos, mas é sendo que pensamos. Em José Mourinho, a preparação do atleta é simultânea com a preparação do homem que o jogador é. No treino, que José Mourinho lidera, o físico, o técnico, o táctico, o psicológico e o moral são trabalhados ao mesmo tempo. “Por isso, a noção de organização passa a ser capital, dado que é através da organização das partes num todo que aparecem as qualidades emergentes e desaparecem as qualidades inibidas” (Edgar Morin e Jean Louis Le Moigne, Inteligência da Complexidade: Epistemologia e Pragmática, Instituto Piaget, 2009, p.43). Aqui, a organização obedece a princípios e a um determinado modelo de jogo. Portanto, José Mourinho tem uma forma de pensar (o pensamento complexo), um método (o método da complexidade, fundamentado em Edgar Morin) e tudo isto sujeito a um questionamento sistemático. Uma profissão é conhecida e respeitada, a partir do que produz, da qualidade do que produz, da utilidade do que produz e, sobretudo, da postura crítica diante do que produz.
Imagem 4
5. Passemos a escutar o próprio José Mourinho: “Treino para mim só é bom, quando se consegue operacionalizar o que é a ideia-chave, isto é, o treinador tem de encontrar exercícios que induzam a sua equipa a fazer o que se faz no jogo” (A Bola, 2003-1-10). “O mais importante numa equipa é ter um determinado modelo, determinados princípios, conhecê-los bem, interpretá-los bem, independentemente de ser utilizado por este ou por aquele jogador. No fundo, é aquilo que eu chamo organização de jogo” (A Bola, 2002- 2-2). “A equipa que eu desejo é aquela que, num determinado momento, perante uma determinada situação, todos os jogadores pensam da mesma maneira” (revista Dragões, Janeiro de 2002). “Defendo a globalização do trabalho, a não separação das componentes físicas, técnicas, tácticas e psicológicas, embora para mim o psicológico seja fundamental” (revista Única do Expresso, 2004-11-27). Um jornalista da revista Ideias & Negócios (Junho de 2003) questionou José Mourinho que era, nesse ano, treinador do F.C.Porto: “O treinador, Felipe Scolari, diz que o sucesso deum jogador é feito em 50% por preparação física, em 25 por cento por técnica e em 25 por cento por psicologia. Concorda?”. Resposta pronta de José Mourinho: “Discordo totalmente. Eu digo que, para haver sucesso, numa equipa de futebol, a equipa tem de estar cem por cento preparada. E quando eu digo cem por cento não consigo dissociar aquilo que é físico, daquilo que é táctico, daquilo que é psicológico. Para mim, um jogador é um todo, tem características físicas, técnicas e psicológicas, que tenho de desenvolver como um todo. Não consigo separar. Eu não faço trabalho físico. E, quando dizem que o Porto está muito bem preparado fisicamente, refuto isso totalmente. O Porto utiliza uma metodologia que rompe com todos os conceitos tradicionais do treino analítico” À SportTV, no dia 2003-5-14: “Nós começámos esta época e, desde o primeiro dia, trabalhámos tacticamente”. – Ao jornal Record (1999/2/7): “Quando vejo referências às pré temporadas das nossas equipas e me mostram imagens dos atletas a correr, a trabalhar no espaço que não é o campo de futebol, da praia ao campo de golfe, dou comigo a pensar que são métodos ultrapassados, para não dizer arcaicos”. “Os meus treinos não são treinos demorados, não ultrapassam a hora e meia, mas com muita dinâmica e um tempo útil altíssimo”. Para o José Mourinho, a intensidade de esforço significa muita concentração: “correr por correr tem um desgaste energético natural, mas a complexidade desse exercício é nula. E, como tal, o desgaste, em termos emocionais, tende a ser nulo também, ao contrário das situações complexas, onde se exigem aos jogadores requisitos técnicos, tácticos, psicológicos e de pensar as situações – isso é que representa a complexidade do exercício e conduz a uma concentração maior” (Público, 2002/7/14). Sublinho, neste passo que, no arrolamento das minhas ideias sobre o treino em José Mourinho, a responsabilidade não é do treinador do Real Madrid, pois que elas me nasceram da leitura de livros que desta problemática se ocupam. Há nelas uma construção lógica, ou mental, do que encontro em obras várias.
Imagem 5
6. As ideias de José Mourinho informam profundamente os seus jogadores, porque ele tem qualidades de liderança, sabe ler o jogo e sabe comunicar para poder motivar. A liderança, a leitura de jogo e a motivação nem todos os treinadores as fazem, com mestria. E assim um conhecimento teórico do desporto é insuficiente, se não se têm as qualidades humanas típicas de um líder. Um ponto a salientar: porque o ser humano é um ser cultural, não há futebol sem filosofia. É que, em todas as grandes equipas de futebol, há um pensamento prévio que as informa. Compreende-se assim porque se fala da filosofia que subjaz ao jogo do Barcelona. Onde há futebol, há filosofia, ou seja, há uma tentativa de racionalizar, incluindo o que não é racionalizável. No futebol, há causalidade (causa) e caosalidade(caos), há pensamento e vivência. A realidade(neste caso, o futebol) é mais do que pensamento e mais do que a linguagem. Esta serve, sobre o mais, para motivar e explicar que o mais importante ainda está dizer e… fazer!
Assim, o futebol não se resume ao seu saber. A realidade excede sempre o que se sabe. Um treinador, como Jorge Jesus, tem a teoria da sua própria prática e, porque tem uma prática de mui tos anos, tem a teoria que criou mais a prática de todos os dias. Mas não é a cultura a aliança do saber e da vida?
Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/
Um funcionário de cartório recebe de seu chefe imediato a tarefa de elaborar uma planilha de custos do mês de maio. Em dois dias ele entrega o trabalho pronto, seu chefe fica satisfeito e elogia o trabalho. Eufórico o funcionário sai correndo e gritando, rola no chão em cambalhotas, é abraçado por seus colegas, arranca a camisa e cai no choro. Agora o mundo real: depois de preencher corretamente a planilha o funcionário volta discretamente para sua sala, arruma suas coisas e vai para casa descansar da rotina que cumpre, fielmente, há vinte anos.
Continuemos no mundo real, jogo decisivo, Copa do Brasil, o vencedor vai para a final. Último minuto da prorrogação, zero a zero, a bola teima em não entrar, eis que, de repente, o craque do time, salário milionário, finta o zagueiro, rompe o ferrolho, encobre o goleiro e faz a bola dormir no fundo da rede. Ele arranca a camisa (toma cartão amarelo), sai correndo e gritando, rola pelo chão em cambalhotas, é abraçado por seus colegas, a torcida vai à loucura, ele chora copiosamente, o jogo termina e nosso craque vira herói, o comentário quase exclusivo por toda a semana que antecede a final.
O funcionário do cartório e o funcionário do grande clube de futebol, o primeiro mal pago, o segundo milionário. A diferença de salário seria a diferença da alegria diante do gol? Ambos cumpriram suas obrigações profissionais. O jogador terminou sua tarefa tanto quanto o funcionário do cartório, não haveria o que comemorar… ou haveria? Nenhuma tarefa de rotina profissional produziria tanta alegria.
Por mais que alguns insistam em dizer que o futebol profissional deixou de ser jogo para ser apenas uma profissão, diante do gol os jogadores insistem no contrário. Jogador é contratado profissionalmente para jogar bem e produzir vitórias, títulos e lucros para seu clube, em troca de salários, alguns deles, altíssimos. Jogador não é contratado para rir ou chorar, para comemorar gols e vitórias com choros, risos, cambalhotas, abraços, beijos, gritos. Jogador não é contratado para brigar com adversários, para festejar com a torcida, para brincar com a bola, para se exibir. Tudo isso que ele faz e para o que não é contratado profissionalmente escapa à profissão, faz parte do jogo, é lúdico. O lúdico é o grande poder, a tentação que nos tira da rotina, que nos faz transgredir regras, que produz as deliciosas irresponsabilidades que temperam nossa vida e a faz valer a pena. O craque, esse que fez o gol decisivo, já fez mais gols que planilhas e ofícios fez o funcionário do cartório em suas rotinas. Fazer gol para o craque é rotineiro. Não é a rotina de gols que o jogador comemora, não é o cumprimento da obrigação que o faz chorar, é o lúdico, é o tanto de lúdico que não está em seu contrato. Não há paixão no documento que ele assinou ao se transferir para o clube, a paixão está no compromisso que nenhum jogador assina, o compromisso com o próprio jogo. Ele não recebe um tostão para isso, ele não presta contas disso ao patrão, mas a si mesmo, aos companheiros, à torcida e ao próprio jogo.
O futebol, como outros esportes, é a boa profissão, embora não consiga se livrar das imundícies que o invadem, trazidas por aqueles que cultuam, acima de tudo, o lucro e seus subprodutos, entre eles, a corrupção. É a boa profissão porque não é só profissão, é também jogo, festa, diversão, lúdico, comemoração da vida. Que fossem assim os cartórios, as agências de publicidade, os escritórios de engenharia e de advocacia, os consultórios médicos e as salas de aula. Quando exercemos um ofício e somos apaixonados por ele, parte do trabalho vira jogo.
Profissão e trabalho têm a ver com promessa, compromisso, esforço, tarefa. Jogo tem a ver com a ação em si mesma, com diversão, com risco, com imprevisibilidade, com vertigem. Juntos formam o casamento perfeito. A festa do artilheiro ao fazer o gol decisivo é uma festa de casamento.