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Sobre o jogador inteligente como um leitor atento

No ano passado, escrevi neste mesmo espaço um artigo pensando um pouquinho sobre o que entendo ser o jogador inteligente. Foi uma minhas tentativas de tratar deste assunto que, a meu ver, é um dos temas no coração do debate que se avizinha nos próximos tempos: quanto mais avançamos nos conhecimentos táticos, técnicos, físicos e mentais do jogo, mais próximos ficamos do tema do humano – que não é sinônimo daqueles outros temas porque, na verdade, é anterior e maior do que eles todos. Não acho que seja possível pensar sobre a inteligência sem pensar sobre a humanização no futebol.

Isto dito, gostaria de sugerir algumas características mais específicas para a formação desse jogador inteligente. São apenas algumas sugestões, sem nenhuma pretensão de fechamento. Com o tempo, retomamos e refinamos esses temas.

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No texto a que me referi acima, defendi que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas. Talvez pareça uma ideia um pouco incômoda, porque geralmente temos expectativas muito concretas: gostamos que as pessoas nos digam o que e como devemos fazer determinadas coisas. A mim, sinceramente, isso não me agrada muito: não apenas não acho que sou capaz de dizer o que uma outra pessoa deve fazer como, além disso, acho uma certa violência dizer o que um terceiro deve fazer – não por acaso, sugerimos. Quando pensamos que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas, pensamos portanto em algo que não é exatamente concreto, mas que pode se tornar um concreto ainda melhor dependendo do que fazemos com ele.

Se o jogador inteligente precisa ler, portanto falamos da visão. De fato a leitura de um jogo é bastante similar à leitura de um livro. O leitor distraído ou mesmo o leitor inexperiente geralmente deixam passar muitas coisas de um livro. Mas, além deles, há um outro tipo de leitor: aquele que acha que o sentido do texto está somente no texto. Só que pode não ser bem assim: o sentido de alguma coisa pode estar exatamente na coisa, mas está nas relações que fazemos com ela. Percebe? Porque se pensarmos assim, então o jogador inteligente será não apenas um leitor atento, um leitor por vezes ativo – ou seja, à procura de sentido, ao invés de à espera de sentido, mas um leitor também por vezes passivo – ou seja, que se deixa levar pelo jogo sem ser refém dele, e um leitor que sabe que o jogo, em si, diz muitas coisas, e não por acaso diz uma coisa diferente para cada um de nós.

Deixem-me dar um exemplo mais claro: na final da Eurocopa 2012, Espanha x Itália – cujo primeiro tempo, aliás, foi um atropelo espanhol, me parece haver ao menos um exemplo muito nítido do que entendo pela capacidade de ler as entrelinhas do jogo. Repare no print abaixo, que retirei do lance que dá origem ao segundo gol da Espanha, marcado por Jordi Alba.

Exato instante em que Fabregas passa a bola para Jordi Alba. Ali, já havia um clarão, mas era preciso ler bem… Imagem: Reprodução

A jogada parte de uma subida do bloco italiano, que resulta numa passe pelo alto de Iker Casillas, buscando Cesc Fàbregas no corredor esquerdo. É Fàbregas quem faz a parede para Jordi Alba, que recebe a bola ainda na intermediária defensiva. Neste instante, a linha-base da Itália, laterais e zagueiros, não apenas está desfeita – Abate havia deixado a linha para marcar Iniesta – como está bem adiantada, deixando cerca de 40 metros às suas costas. Aqui, me parece, está o claro exemplo da capacidade de ler nas entrelinhas: tenho a impressão de que Jordi Alba, logo após receber e passar a bola, leu o espaço que havia às costas da zaga e dali, leu o término da jogada: o jogador inteligente flutua no tempo e percebe o futuro antes de sê-lo. Assim que passa a bola, Alba inicia um sprint de cerca de 30 metros, que termina num passe magistral de Xavi, entre Barzagli e Abate, que por sua vez termina com a bola dentro do gol. Uma jogada admirável.

Um jogador desatento, ou um atleta cuja leitura é somente reativa, jamais teria visto o que Alba viu cinco ou dez segundos antes do gol. Quando penso nas entrelinhas, penso também nisso: existem informações que não estão explícitas, que não estão claramente dadas, mas que precisam de algum refinamento, de um certo esforço, de uma certa atividade mental que faz toda a diferença para quem joga o jogo. Para o leitor reativo poucos livros servem: ele sempre espera que o livro lhe diga alguma coisa.

Mas para o leitor ativo, por outro lado, todos os livros têm valor: ainda que o livro diga algumas coisas, a diferença está na relação desse leitor com o livro. Ali ele descobre algumas coisas, e olhando com atenção descobre outras, e olhando melhor mais outras, e quando junta tudo aquilo, de outras formas, surgem outras e outras e mais outras coisas. Agora imagine a potência disso não apenas no sujeito, mas no todo. Imagine a potência disso ao longo do tempo, no processo de formação das pessoas que jogam…

Sobre isso, seguimos em breve.

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Sobre os problemas do jogo ideal – e do treino perfeito

Vocês sabem que há um vídeo relativamente famoso do José Mourinho, que salvo engano meu data de 2010, no qual ele faz uma observação muito interessante sobre o planejamento de um treino, talvez até uma previsão, que transcrevo literalmente abaixo. Ali, ele defende que qualquer pessoa que quiser montar um treino de qualidade pode fazê-lo, com dois ou três cliques num computador. Ele diz o seguinte:

O conhecimento está ao alcance de todos. (…) Você é jornalista, mas se amanhã disserem que tem que dar um treino à uma equipe, você só não estrutura um bom treino (…) só não organiza, se não quiser. (…) Uma coisa é o conhecimento que está ao alcance de todos, outra é a capacidade de produzir o próprio conhecimento. O fato do conhecimento estar ao alcance de todos é uma contribuição enorme para a preguiça mental. 

Lembro de ter assistido a esse video em algumas aulas do Prof. Alcides Scaglia, há cerca de cinco anos, mas hoje, com outros olhos, também vejo a questão de uma outra forma. Mourinho, diretamente ou não, ataca um problema fundamental, especialmente no processo de organização dos nossos treinos, seja no microciclo semanal, ou mesmo no médio/longo prazo. Vamos chamá-lo de problema do jogo ideal.

Aqui, entenda jogo ideal da seguinte forma: um determinado jogo – ou exercício, aplicado dentro de um treinamento, a partir do qual o treinador espera um resultado ótimo – sendo que a expectativa pelo resultado está estritamente ligada ao jogo aplicado. Se você preferir, é uma expectativa estritamente ligada ao método  Por exemplo, um treinador viu um jogo de manutenção da posse do Jurgen Klopp, com 6×6+1 num espaço de 30x25m, ficou encantado com o resultado (eventualmente desconsiderando o nível dos jogadores que um clube do tamanho do Liverpool têm à disposição) e replicou exatamente a mesma coisa no seu próprio treino, numa equipe sub-15 do interior do Brasil. Só que, por algum motivo, o jogo não deu muito certo. Ou seja, no mundo das ideias era um jogo maravilhoso, mas na realidade não foi. A conta não fecha.

Basicamente, é um dilema pelo qual todos nós, envolvidos com o processo de treino, já passamos por diversas vezes. De fato, Mourinho tem razão quando denuncia um certo comodismo, que nos atinge às vezes, que faz com que pensemos que um certo jogo ou um certo exercício tem propriedades quase que mágicas, sendo essas propriedades coisas do próprio jogo, como se fosse um jogo universal, de modo que aquele mesmo jogo, se aplicado em qualquer outro lugar, com quaisquer outros atletas, teria rigorosamente os mesmos resultados. Só que aqui, talvez nos escapem pelo menos duas coisas importantes: vamos chamar a primeira de movimento, e vamos chamar a segunda de sentido

Quando me refiro ao movimento, penso da seguinte forma: as coisas, como as vemos, não são – elas estão. Portanto, não existe apenas um caráter de transitoriedade nas coisas – que faz com que elas possam estar de um jeito, depois de outro, como também existe um certo caráter de não-essência, o que significa que se um determinado jogo deu muito certo em um determinado treinamento, não é que a causa tenha sido o jogo em si, mas seja, talvez, a qualidade das relações que se criam dentro do próprio jogo. É disso, afinal, que falamos quando falamos de complexidade: as qualidades daquilo que é tecido junto. Se jogarmos dois jogos de 6×6+1 em 30x25m, com os mesmíssimos jogadores, a mesmíssima comissão técnica, em dois dias seguidos, vocês sabem tanto quanto eu que serão dois jogos completamente diferentes. Um jogo nunca será igual ao outro – e para isso basta lembrarmos da básica premissa da imprevisibilidade, que está no coração do jogo. 

Por isso é tão importante a segunda variável que apresento, que é a variável do sentido. Um jogo será tanto melhor – o que não significa que seja mais legal, são coisas muito diferentes – quanto mais refinadas forem as nossas capacidades de atribuir sentido ao que nos acontece. Ou seja, é preciso que tanto nós, treinadores e profissionais do futebol em geral, quanto os próprios atletas envolvidos no processo – que se alimentam da nossa capacidade pedagógica, que todos tenhamos sempre a mente a importância de refinar a nossa capacidade de dar sentido às coisas – justamente porque, como dissemos acima, as coisas não são, elas estão. O que faz com que uma jogo deixe de ser uma coisa e  passe a ser outra não é o jogo em si, mas exatamente o sentido que damos a ele. Se meu modelo de jogo está baseado na retração do meu bloco defensivo  em busca de contra-ataques, será que um jogo manutenção da posse de 6v6+1 em 30x25m, como vimos numa sessão qualquer do Klopp, pode, de fato, fazer sentido no meu processo? Veja bem, talvez até possa, mas isso está diretamente relacionado com a nossa capacidade de dar sentido – e de fazer, sutilmente ou não, com que nossos atletas deem sentido – ao processo de treino.

Assim, gostaria de propor a vocês que saíssemos um pouco, nos nossos processos de treino, dessa ideia de jogos ideais, ou mesmo dos treinos perfeitos, de modo que nós não nos demos muito ao direito de apenas reproduzir um determinado jogo ou exercício que chegou até nós, como se o segredo estivesse no jogo em si. Qual é o seu modelo de jogo? Quais são as suas filosofias enquanto treinador? Quais são os princípios e/ou os conteúdos que você gostaria de trabalhar naquela semana e naquela sessão? Para muito além do seu método, quais são as suas didáticas? Qual é, honestamente, a nossa capacidade atual de dar sentido aquilo que nos acontece? 

Pois este é um ponto realmente decisivo, sem o qual ficamos muito limitados – assim como podem ficar nossos treinamentos.

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Sobre o fazer do futebol no distanciamento social

Vocês sabem que o distanciamento social, por razões óbvias, acabou se tornando um enorme desafio para todos nós, que somos diretamente dependentes do campo do futebol para o nosso trabalho. A despeito disso, tivemos que encontrar algumas soluções nesse período, seja para manter os atletas conosco, do ponto de vista afetivo mesmo, seja para mantê-los consigo mesmos de outras formas – a partir de outros olhares sobre o jogo, por exemplo.

Neste texto, gostaria de apresentar a vocês algumas das atividades que fizemos com nossos atletas na Elleven Futebol Studio – academia de formação de atletas onde trabalho, em Campinas. Em condições normais, antes do distanciamento, fazíamos quatro treinos semanais. Nossos garotos têm em média 16 anos de idade, e a partir dos treinos e das competições que disputamos, se preparam ou para ingressar nas categorias de base de clubes em âmbito estadual/nacional, ou então para realizarem intercâmbio esportivo. No distanciamento, optamos por fazer trabalhos físicos diários (via treinamento funcional planejado e aplicado por nós mesmos, acompanhado ao vivo), ao mesmo tempo em que mantivemos um encontro semanal, para falarmos de questões relativas ao jogo. É sobre esses encontros que gostaria de falar com vocês.

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Em linhas gerais, acredito que um encontro não começa nem termina nele mesmo. O que isso significa? Significa que são melhores os encontros que começam muito antes do próprio encontro e que terminam muito depois do próprio encontro – como se o tempo pudesse ser alargado de alguma forma. Como os nossos encontros aconteciam às quintas-feiras à tarde, basicamente a minha ideia era, sutilmente, sempre adiantar o início e atrasar o término. Fizemos isso a partir da noção de materiais complementares: geralmente na quarta-feira de manhã (portanto, cerca de 30 horas antes do encontro) os atletas recebiam um ou dois conteúdos já diretamente relacionados com o tema da nossa conversa. Considere como exemplos de conteúdos a carta escrita por Romelu Lukaku para o Player’s Tribune, um artigo analisando a evolução posicional de Kevin de Bruyne ou os melhores momentos de Espanha x Itália, na final da Euro 2012.  Os conteúdos sempre eram escolhidos a partir de uma conjunção entre linguagem acessível e material de qualidade. Para uniformizar o material, inclusive do ponto de vista estético, recorremos algumas vezes ao Outline, cujo serviço é de bom nível.

Independentemente do conteúdo que enviássemos, sempre havia um formulário a ser preenchido pelos atletas – ainda antes do encontro. Neste preenchimento, a ideia não era exatamente fazer perguntas binárias, que terminassem no certo/errado, mas trazer à tona perguntas abertas, que lhes fizessem pensar em como articular em palavras o próprio pensamento – também como uma forma de fazê-los perceber que era possível, naquele espaço, ser quem são e dizer o que desejavam.

Basicamente, gostaria que os atletas tivessem voz e que se sentissem responsáveis, ainda que implicitamente, pela articulação dos encontros. Quando penso no processo de humanização, sobre o qual já falamos aqui diversas vezes, penso muito nessa capacidade de dar voz, de dar ouvidos, de dar nossa atenção mas, especialmente, de darmos aos atletas e às pessoas a faculdade de simplesmente serem quem são, evitando ao máximo quaisquer tipos de julgamentos ou represálias. Quanto mais sinceros os atletas forem consigo mesmos e com o mundo, a meu ver melhores jogadores serão, uma vez que as máscaras que os defendem do mundo também existem para, de alguma forma, defendê-los de si mesmos. Sair dessa armadilha é uma tarefa inegociável.

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O encontro presencial durava cerca de 90 minutos. Como vários de vocês, usamos para os encontros o Zoom, aplicativo de reuniões online. Também como vários de vocês, usamos o Zoom na versão gratuita, o que significa que tinhamos um limite de 40 minutos na utilização da sala. Do ponto de vista de organização, isso basicamente nos trouxe duas consequências básicas: em primeiro lugar, precisaríamos fazer algo como dois ‘tempos’ de 40 minutos, com uma pausa entre eles para fechamento e reabertura da sala. Em segundo lugar (e isso envolve um certo detalhismo da minha parte), decidi abrir a sala precisamente às 17h28, dois minutos antes do início do encontro. Se abrisse às 17h25, como gostaria de fazer, perderia três minutos de debate que talvez fossem a fronteira exata entre uma certa possibilidade de expressão dos garotos ou mesmo o momento de alguma fala nossa que pudesse fazer alguma diferença na formação deles. Repare que esses pontos parecem se tratar de detalhes muito pequenos, mas que não podem ser ignorados.

Em linhas gerais, uma estrutura básica de encontro seria a seguinte: meus colegas de comissão – João Torniziello Rodrigues, Giovanna Morandim, Matheus Figo, Marcelo Matsuguma, Luiz Claudio Matsuguma – e eu fazíamos uma introdução de cerca de cinco a dez minutos, dando informes, fazendo perguntas mais genéricas e etc. Depois, avançávamos para o conteúdo propriamente dito, dividido em duas partes, pelos motivos que citei acima. Nas duas partes, invariavelmente, gostaria que todas as pessoas da sala pudessem falar – portanto, num encontro ideal, todos na sala tinham pelo menos dois espaços de fala. Em uma das partes, normalmente recorríamos a um vídeo, de algum jogo determinado (preferencialmente de 2015 para trás – gostaria de fazê-los pensar que havia futebol antes do que que existe hoje), com cerca de seis a oito minutos de duração. Não raro, trazíamos um vídeo de um jogo, propriamente dito, seguido de um outro vídeo sem relação aparente com o futebol (mas cuja relação era articulada a partir da nossa própria conversa), como esse brilhante TED conduzido pelo Apollo Robbins, a partir do qual discutimos a ideia do futebol como um jogo de atenção. 

Embora fossem muito claras as separações entre as duas partes do encontro, acho importante observar que não havia uma hierarquia entre elas, assim como não havia uma hierarquia entre os encontros – basicamente, a ideia era que os encontros estivessem sempre encadeados, mas que esse encadeamento ficasse implícito, subentendido, pois a própria capacidade de interpretar o que está nas entrelinhas é parte do processo pedagógico. Este, aliás, me parece um benefício da distância de uma semana entre um encontro e outro – com isso, havia tempo suficiente para digerir os encontros anteriores e preparar o terreno para o próximo , sem nos esquecermos daquele alargamento do tempo, a que me referi anteriormente.

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Como disse, gostaria apenas de fazer uma introdução às nossas atividades, como compartilhamento de experiências mesmo. Em breve, trago o relato de um encontro inteiro, deixando mais claras algumas escolhas pedagógicas que fizemos ao longo do tempo e apresentando alguns dos acertos e mesmo dos equívocos que eventualmente cometemos nesse período.

Continuamos em breve.

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O treino (não) precisa ser legal – uma reflexão

Crédito: Marcello Casal Jr/ABr

Bom, já conversamos algumas vezes sobre o quanto o processo de treino caminha junto do processo de ensino e do processo de aprendizagem. Ou seja, de fato há muitas semelhanças entre treinadores/treinadoras e professores/professoras. Isso me parece bastante positivo, uma vez que não apenas nos ajuda a pensar sobre as pontes que inevitavelmente existem entre diferentes profissões, como também nos faz perceber que, para ser treinador ou treinadora, é preciso um certo tipo de saber, do ponto de vista pedagógico – seja ele intuitivo ou não.

Mas, isto dito, sinto que nós ainda temos alguns palpites perigosos quando pensamos no tipo de sentimento que os nossos processos de treino devem despertar. Inclusive, porque hoje se reproduz velozmente este discurso próximo do que se entende por educação centrada no aluno ou, no caso do futebol, da educação centrada no atleta. Não raro, este mesmo discurso transita para uma outra coisa, próxima disso que se tem chamado de desenvolvimento positivo, algo razoavelmente difundido nos círculos acadêmicos – mas que não é exatamente o que me interessa aqui. O que me interessa é o seguinte: por que raios o treino, centrado no atleta, precisa ser legal? Quem disse que a educação ou o treino, para que sejam bons, precisam ser legais?

Este é um problema muito importante, porque não se separa de um debate fundamental, que é o das metodologias de treinamento. Pois, veja bem, talvez você concorde comigo que um processo de treino essencialmente técnico, baseado na técnica, principalmente na iniciação esportiva, parece ter outras preocupações que não o prazer. Na verdade, um processo essencialmente técnico tem, como uma das suas premissas, a noção de que a performance de um atleta depende especialmente do domínio de certas qualidades técnicas – geralmente chamadas de fundamentos. Embora também não seja o ponto deste texto, indico aos amigos um vídeo do amigo Lucas Leonardo, que discute muito bem os problemas de se pensar o treino de fundamentos – no futebol e em outras modalidades.

O que me interessa aqui é que existe, mesmo nos colegas que preferem metodologias mais próximas dos jogos (ou mais próximas da complexidade, daquilo que é tecido junto) uma ideia de que um dos motivos porque treinamos a partir de jogos, sejam eles pequenos ou grandes jogos, é porque é algo mais prazeroso, ou mais agradável, ou mais legal, ou qualquer outra coisa neste sentido – como se o processo de treino, ou como se própria educação, existisse apenas para ser prazerosa, agradável ou legal e, mais do que isso, como se o processo de treino e a educação existissem para gerar uma felicidade imediata, instantânea. Embora seja um pensamento corrente, talvez seja um pensamento muito problemático. A educação, veja bem, não deve ser um fardo, não existe para deixar a vida pior e mais triste, nós sabemos disso, mas isso também não significa que a educação (e o processo de treino) deva existir como ração de prazeres pequenos e imediatos, muito menos que deva existir somente para fazer aquilo que o aluno/atleta quer que seja feito: pelo contrário, a educação existe para fazer o que deve ser feito. E quem decide o que deve ser feito, pensando na formação do aluno ou do atleta no longo prazo, não é o aluno ou o atleta (que, se soubesse disso, não seria aluno): são justamente treinadores/treinadoras e professores/professoras. Repare como faz ainda mais sentido pensar nos treinadores como professores.

Jorge Larrosa, um filósofo que tenho lido bastante nos últimos tempos, tem um ótimo texto sobre isso, num livro intitulado El Profesor Artesano. Ali, ele defende a importância de uma educação livre, que não esteja presa a supostas obrigações de agradar o educando (especialmente quando a educação é paga – repare aqui nas escolinhas de futebol), mas sim de ensinar o que deve ser ensinado. Quando fazemos educação apenas de um ponto de vista utilitário, quando alunos/atletas são apenas clientes, a consequência imediata é que os alunos/atletas vão encarnar a noção de que a educação serve para agradá-los, que o mundo serve para agradá-los, e que portanto tudo aquilo que não os agrade na hora, de imediato, tudo aquilo que não seja prazeroso, agradável ou legal, deve ser imediatamente descartado. Basicamente, saem da sala de aula ou do treino entediados ou mesmo irritados, ainda que não verbalizem, porque não faz sentido quando o mundo não gira ao seu redor e não faz deles felizes no instante. Não é preciso ir muito longe para sabermos o quão absurdo isso pode ser.

Ao mesmo tempo, não perca de vista o que eu disse acima: o processo de treino não tem que ser monótono, chato, entediante. E, se me permite, não perca de vista que o processo de ensino e aprendizagem de um atleta não se resume ao treino. A nossa relação, enquanto treinadores e treinadoras (ou profissionais do futebol em geral) com os atletas precisa ser uma relação de desafio. A nossa função é causar um tremor, causar um incômodo, causar um certo tipo de fissura, algo parecido com o que sentimos quando lemos um livro muito bom, ou quando assistimos um filme ou uma série que nos tira o chão, ou quando conhecemos alguém muito interessante, que faz de nós outra pessoa além de nós mesmos. O atleta precisa se sentir estremecido, inquieto, desafiado. Por muitas vezes, isso vai sim significar repetição (contextualizada, mas repetição), disciplina, desconfortos físicos e emocionais, conflitos com os outros e consigo mesmo – e assim sucessivamente. A educação precisa ser desconfortável. Ao mesmo tempo, é justamente o desconforto do instante que permite um certo tipo de florescimento, que permite que se crie um outro mundo no médio prazo. Se quisermos nos sentir bons treinadores, pelo menos é como eu vejo as coisas hoje, não temos que nos preocupar em ficar fazendo coisas legais e agradáveis, como inclusive somos induzidos a fazer, mas temos que fazer o que tem de ser feito, dentro dos conteúdos que julgamos importantes (e não me refiro apenas aos conteúdos tático-técnicos), com as dúvidas que achamos pertinentes, com os desconfortos que achamos pertinentes, fazendo a roda rodar. E isso também significa, se me permitem, que podemos não ser tão queridos, pelo menos não de cara. Se queremos ser queridos por todos e por todas, aliás, talvez tenhamos aqui um problema razoável.

Vamos retomar este assunto num outro momento. Por ora, gostaria apenas de sugerir o quão prejudicial pode ser pensar no processo de treino como algo obrigatoriamente legal. Talvez isso não seja tão legal assim.

Seguimos em breve.