Categorias
Sem categoria

Estrutura ganha jogo?! Mas que estrutura?

Crédito imagem: Pedro Souza/Atlético

O resultado de uma equipe dentro de campo é fruto de tudo o que o clube produz na sua totalidade. Claro que alguns departamentos tem uma influência maior do que outros. Mas todos que trabalham em uma instituição esportiva tem a sua parcela de contribuição no que acontece dentro das quatro linhas.

Fixar os olhos apenas no campo e na bola pode ser perigoso. Principalmente se esse olhar for o do dirigente. Investir, por exemplo, quase que a totalidade do orçamento em salários para jogadores e desprezar outros profissionais que talvez não tenham a mesma visibilidade e relevância para o torcedor, mas que são fundamentais para potencializar a performance pode ser um erro fatal.

Vamos a uma situação hipotética, mas que é muito frequente no Brasil: um clube médio declara que ainda não tem verba para criar um departamento minimamente estruturado e aparelhado de Análise de Desempenho e Mercado. Esse mesmo clube, porém, gasta milhões para contratar um jogador baseando-se apenas no “olhar clínico” de algum dirigente estatutário “abnegado” e “apaixonado” pelo clube. E em muitos momentos esse mesmo caro jogador pode se machucar (o que faz parte) e demorar além do necessário para se recuperar. Se voltarmos o olhar para o departamento médico, talvez esse clube possa estar defasado em termos operacionais e estruturais. E quando esse jogador volta, mesmo que tardiamente, pode ser que ele fique um certo tempo sem jogar bem, apesar de estar clinicamente recuperado. Buscando o staff da instituição não encontramos um psicólogo, para auxiliar o jogador na parte mental. Mais alguns meses e esse clube começa a atrasar salários porque as despesas estão maiores do que as receitas…já viu um filme parecido?

Perceba que o analista, o médico e o psicólogo não são agentes famosos para o mundo externo do futebol, não podendo servir de muletas para alguns dirigentes no famigerado argumento de ‘dar uma resposta para a torcida’ na primeira crise, mas esses profissionais são extremamente importantes para a performance esportiva. E eu poderia citar inúmeros outros profissionais que não têm visibilidade, mas são pessoas fundamentais no sucesso esportivo. Ou se o advogado não for competente o clube não pode perder pontos por alguma irregularidade?! O gerente de logística não pode prejudicar a recuperação dos atletas escalonando mal voos, hotéis e campos para treinar em jogos fora de casa?!

Não estou aqui pregando que o torcedor conheça todos os funcionários do clube que ele torce. Meu foco está nos gestores. Nos tomadores de decisão. Esses têm que entender de todo o processo, entender da complexidade que é o jogo de futebol e saber que a vitória começa fora de campo. 

A torcida resta desconfiar do processo e da estrutura se na primeira crise for contratado um medalhão… a felicidade momentânea pelo reforço pode virar frustração lá na frente…

Categorias
Sem categoria

Fluxos migratórios no futebol de base brasileiro

INTRODUÇÃO

Por que fluxos migratórios? 

O desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes no processo de formação de jogadores e jogadoras é uma ocorrência bastante documentada por meio de produção acadêmica, jornalística e de estudos independentes. Entre as principais violações relatadas estão o distanciamento escolar e da família, a sobrecarga nos treinamentos e o abuso sexual.

Para aqueles que amam o futebol e mesmo para os que se preocupam com o futuro de nossa sociedade e país esse assunto merece atenção pois impacta um número significativo de jovens, sendo uma questão que extrapola a esfera do esporte, atingindo nossa sociedade como um todo. 

Mas afinal, qual o tamanho do futebol de base no Brasil?

Publicado em 2019, o relatório: educação e as categorias de base, mostrou que existiam no ano anterior 448 clubes em atividade nas categorias sub-15, primeira com competições oficiais em idade na qual é possível, legalmente, alojar jovens jogadores, ou superiores. Tal número equivale a cerca de 40 mil jovens, em uma estimativa bastante conservadora baseada em entrevistas com profissionais de 7 clubes profissionais de diferentes níveis esportivos do país. Destes, 35 mil, também de forma estimada* atuavam em clubes sem o Certificado de Clube Formador – CCF, sinal de alerta para a garantia dos direitos desses jovens, como aprofunda o referido documento. 

*As escolhas dessas estimativas estão explicadas de maneira detalhada no relatório.

No documento citado também são apresentadas estimativas, ainda de acordo com as entrevistas com os profissionais dos 7 clubes, sobre o número de jovens que transitam pelo país participando de processos seletivos in loco. Também de maneira conservadora e que vamos extrapolar no relatório de agora, o número encontrado foi de 13 mil jovens ao ano.

É em relação a esse contingente, em conjunto com os aprovados que passam a viver longe de suas cidades e estados de origem, que vamos direcionar nossas maiores atenções no presente estudo. 

Distanciamento escolar 

Mencionamos nos primeiros parágrafos outros tipos de violações frequentemente citadas em estudos sobre as categorias de base do futebol. Entre eles, o distanciamento escolar talvez seja o mais fácil de se observar e mensurar, por isso escolhemos nos debruçar sobre ele, especificamente, para ilustrar como o regime de albergamento, os alojamentos, podem ser prejudiciais para o desenvolvimento de jovens jogadores e jogadoras, lembrando que todas as outras violações listadas podem vir a reboque, estando menos documentadas ou recebendo menos atenção dos envolvidos no processo de formação. 

Quando estudados os centros de treinamento e formação de jogadores e o distanciamento do ensino formal o que se percebe é que ele acontece tanto literalmente, com a não presença nas aulas, quanto de uma forma menos objetiva. Estudos publicados por Melo e colaboradores em 2010 apontam que jovens jogadores provenientes de outras cidades e estados que vivem em regime de albergamento em clubes do Rio de Janeiro são os que detêm maior número de reprovações e de atraso escolar quando comparados aos futebolistas em formação que vivem com a família. Também segundo os pesquisadores, quanto maior a faixa etária, mais os jovens são levados a estudar no período noturno. Em outro estudo, realizado por Marques e Samulski em 2009, com 186 jogadores de 18 anos, também é apontado o atraso escolar e dificuldades para conciliar a escola e a carreira esportiva, sendo que mais da metade da amostra parou de estudar em algum momento para se dedicar ao futebol.

Desde então, algumas melhorias, como a própria regulamentação do CCF, vêm sendo implementadas no processo de formação de jogadores, com destaque para o cada vez mais valorizado trabalho das, na maioria mulheres, profissionais do Serviço Social. De qualquer maneira, o tema continua merecendo nossa atenção. 

Tendo em vista a falta de dados sobre o tamanho do futebol de base no Brasil e a necessidade de especial atenção para os jogadores e jogadoras que deixam seus lares para buscar um espaço no futebol profissional, realizamos um levantamento sobre as cidades de origem de jogadores de 12 clubes das séries A e B do campeonato brasileiro de futebol masculino.

OS DADOS DO ESTUDO

O estudo tem dados enviados por 12 clubes das séries A e B do campeonato brasileiro de futebol masculino. Ao todo, foram coletadas as informações de 1680 jogadores nascidos entre 2000 e 2012, sendo 256 menores de 14 anos, ou seja, que não podem legalmente serem alojados. 

Em relação a seus estados de origem, dos 1680 jogadores listados, 718 são de estados distintos dos clubes de onde atuam, assim como 39 dos 256 menores de 13 anos.

Em relação aos fluxos migratórios, ou as origens e destinos dos jogadores temos os seguintes dados:

Origem dos jogadores 

Nascidos entre 2000 e 2007 – 12 clubes

SUL – 3 clubes

13 do norte (4,333333 por clube)

29 do nordeste (9,666667)

26 do centro oeste (8,666667)

85 do sudeste (28,33333)

33 do sul (11)

França 1 (0,33)

Namíbia 1 (0,33)

Portugal 1 (0,33)

Espanha 1 (0,33)

Paraguai 1 (0,33)

Equador 1 (0,33)

Camarões 1 (0,33)

SUDESTE – 5 clubes

14 do norte (2,8 por clube)

100 do nordeste (20)

53 do centro oeste (10,6)

110 do sudeste (22)

42 do sul (8,4)

3 dos Estados Unidos (0,6)

1 do Panamá (0,2)

1 da Bolívia (0,2)

1 da Colômbia (0,2)

CENTRO-OESTE – 1 clube

4 do norte

13 do nordeste

14 do centro oeste

14 do sudeste

2 do sul

NORDESTE – 3 clubes

4 do norte (1,333333)

27 do nordeste (9)

11 do centro oeste (3,666667)

51 do sudeste (17)

5 do sul (1,666667)

1 do Paraguai (0,3333)

Nascidos entre 2008 e 2012 – 5 clubes 

SUDESTE – 4 clubes

6 do norte (1,5 por clube)

17 do nordeste (4,25)

11 do centro oeste (2,75)

13 do sudeste (3,25)

3 do sul (0,75)

1 da Itália (0,25)

51(12,75 por clube) de fora do estado de origem/205 (51,25) no total

NORDESTE – 1 clube

6 do nordeste

1 do sul

7 de fora do seu estado de origem/51 no total

O funil

Os números do relatório: educação e as categorias de base com suas estimativas conservadoras apontam que temos:

40 mil jogadores de base no Brasil (1)

35 mil deles atuando em clubes sem CCF (0,875 para cada um do total da base)

10 mil alojados (0,25 para cada um do total da base) 

13 a 224 mil perambulantes que viajam realmente pelo país (0,325 a 5,6 para cada um do total da base) 🡪 30 a 500 jovens participando anualmente das semanas de avaliação para ingresso nos clubes brasileiros de variados níveis esportivos.

Com base nesses números temos, de acordo com o novo levantamento temos os seguintes dados:

Jogadores nascidos de 2000 a 2012

Total = 1680 (140 por clube) x 40 de série A e B = 5600 x 1000 tentando ingresso para cada um que tem êxito (Damo, 2005 e Toledo 2000) = 5,6 mi tentaram ingresso apenas nesses clubes.  

5600 x 0,25 = 1400 alojados nos 40 clubes das séries A e B

5600 x 5,6 perambulantes (escolhemos o máximo relatado nas entrevistas de 2019 por estarmos analisando clubes de elite, das séries A e B) = 31360 ao ano saem da sua cidade de origem anualmente para serem avaliados, ao menos uma vez em clubes.

Fora do seu estado de origem = 718 (59,83 por clube – 42,7%) x 40 de série A e B = 2393,2 x 1000 = 2,39 mi fora do seu estado de origem tentaram ingresso – Todos avaliados in loco? Não! Muitos são avaliados e sondados em seus estados e cidade de origem antes de viajarem de fato. 

Jogadores nascidos de 2008 a 2012 – jogadores com 13 anos (7º ao 8º ano do ensino fundamental) ou menos de 5 clubes das séries A e B masculinas, do nordeste e sudeste.

Total = 256 (51,2 por clube) x 40 de série A e B = 2048 x 1000 = 2,05 mi tentaram ingresso

51,2 por clube x 40 clubes = 2048 x 5,6 perambulantes por jogador a base = 11469

Fora do estado = 39 (7,8 por clube – 15,2%) x 40 de série A e B = 312 x 1000 = 312 mil fora do estado tentaram ingresso. Todos in loco? Não! 

Observações e discussões

– Estudo publicado em janeiro de 2021 de autoria de Israel Teoldo e Felippe Cardoso demonstra que o número de habitantes e o IDH da cidade de origem dos jovens jogadores impactam na identificação e desenvolvimento de jogadores no Brasil, o que pode ajudar a explicar o maior número de jovens originários do sudeste fora de seus estados nas categorias de base dos clubes estudados. 

– Em relação aos números do presente relatório um ponto de destaque é que estamos falando de um topo de pirâmide em relação ao “mercado de jogadores mirins”. Tendo CCF ou não – a maioria dos clubes que participaram desse levantamento possui o documento, independentemente da estrutura e condições de vida que os clubes oferecem aos integrantes de suas categorias de base, o grande ponto de preocupação é o que se passa com a vida dos perambulantes, principalmente os não aprovados. Essa preocupação deve ser extrapolada para aqueles que perambulam em busca de oportunidades em toda a cadeia produtiva do futebol brasileiro. Ou seja, para além dos mais de 31 mil – 11 mil menores de 13 anos – que viajam em busca de oportunidades nos 40 clubes das séries A e B, quantos outros são avaliados pelos mais de 400 clubes que mantém categorias de base ativas no Brasil? A quais tipos de violações de direitos tais crianças e jovens estão expostas? De quem é essa responsabilidade?

– Com o aumento exponencial da circulação de recursos no futebol feminino, é uma tendência que essa rede de captação tenha cada vez mais uma maior intensidade, aumentando o fluxo de meninas por conta do futebol pelo Brasil e, possivelmente, expondo essas crianças e jovens às violações de direitos já observadas no caso do futebol masculino. 

Como discutido ao longo do seminário “O ensino do futebol – Uma alternativa à captação”, existem caminhos que podem ajudar a diminuir esse fluxo de menores pelo país, com uma gestão mais humanizada das categorias de base, priorizando a Pedagogia de Futebol e não a captação de talentos.

Referências

Análise da carreira esportiva de jovens atletas de futebol na transição da fase amadora para a fase profissional: escolaridade, iniciação, contexto sócio-familiar e planejamento da carreira. Marques, M. P. Samulski, D. M.

Do dom a profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França 2005. Doutorado na UFRGS. Arlei Sander Damo, 2005.

Lógicas no futebol. Luiz Henrique de Toledo, 2000

Onde há fogo, há fumaça. Indústria de Base, 2019.

Perfil educacional de atletas em formação no futebol no Estado do Rio de Janeiro. Leonardo Bernardes Silva de Melo e colaboradores, 2010

Relatório: educação e as categorias de base. Universidade do Futebol, 2019.

Talent map: how demographic rate, human development index and birthdate can be decisive for the identification and development of soccer players in Brazil. Israel Teoldo e Felippe Cardoso, 2021.

Categorias
Sem categoria

Um momento de liberdade: o jogo

Dando continuidade ao texto publicado em 24 de setembro 2020 sobre coisas que aprendi na rua Pernambuco, tenho me questionado sobre a infância, sobre o brincar e o jogar nessa época da vida. Aqui vou utilizar o termo brincar com referência ao momento lúdico e livre vivido pelas crianças, e quando me refiro ao jogo, quero tratar das atividades que tem regras como premissa para a prática. Comecei uma breve pesquisa no campo dos estudos culturais e percebi que pode ser possível fazer uma aproximação dessa base teórica com o que tem sido debatido sobre a pedagogia da rua, o brincar e o jogar na infância.

As relações de poder que perpassam a sociedade cooptaram a educação, utilizando a pedagogia como ferramenta na conformação do sujeito idealizado. “A pedagogia vai corresponder ao conjunto de saberes e práticas postas em funcionamento para produzir determinadas formas de sujeito” (CAMOZZATO; COSTA, 2013, p. 26). A educação contaminada por essa lógica está presente nos mais diversos âmbitos da vida, desde a família, até à mídia.

A relação de domínio se dá na disputa de interesses diversos que atravessam o âmbito social. Buscando dar essa ou aquela direção às pessoas, esse jogo de poder opera por meio de uma determinada pedagogia, em especial, a institucionalizada. Nesse sentido, o que Camozzato e Costa (2013) buscam, é revelar que existe uma “vontade de pedagogia”, ou seja, o motor de uma pedagogia que atravessa, entre outros espaços, as instituições educativas, ainda com objetivo de manter a relação de domínio. Nas palavras das autoras conceito que se torna “dizível” se considerarmos que as condições culturais contemporâneas erigem constantemente pedagogias que cruzam a esfera social e acionam um conjunto de forças para intensificar e refinar, por via das pedagogias, as aprendizagens necessárias a tornar-nos governáveis. (CAMOZZATO; COSTA, 2013, p. 23).

Nesse sentido, seria a pedagogia da rua uma possibilidade de resistir a essa “vontade de pedagogia” que perpassa as relações sociais? Uma tentativa de resposta ao questionamento surge da observação de que quando uma criança brinca com outras, relações e aprendizagens se estabelecem ali, de forma pouco ou nada controlada e com a mínima ou nenhuma interferência externa (de adultos).

Entrar nesse estado de jogo pode abrir espaço para a construção de mecanismos de problematização do modelo de controle fomentado pela “vontade de pedagogia”. É que a lógica interna de algumas modalidades como o futebol, por si, são fonte de desafio e prazer, o que parece ser fator determinante para motivar uma criança a participar daquele momento e adentrar nesse mundo outro, como uma espécie de realidade paralela que acontece naquele instante e ao longo da disputa do jogo.

Esses portais que levam a “realidades paralelas”, simbolizam passagens da criança por momentos únicos na vida, em que cada brincadeira e cada jogo possibilita esse tempo outro, deixando marcas que se manifestarão ao longo da trajetória individual, como as estratégias de negociação de regras e de punições em caso de seu descumprimento. Em especial, a disponibilidade de entrar em relação com o outro em benefício do prazer da brincadeira e/ou do jogo.

O fomento a esse(s) espaço(s) do brincar nos proporciona pensar que é necessária a preservação da infância, em especial daquela que tem o brincar como elemento central, e que os(as) adultos(as) possam proteger e também usufruir desse(s) espaço(s), buscando refúgio nesse mundo outro, onde prevalece a possibilidade de construção coletiva em prol do desejo comum.

Assim, o esporte como fenômeno social, principalmente na pedagogia da rua e pela prática lúdica na infância, assume uma condição de potencial fomento de sociabilidade e construção subjetiva que não se pauta pelo modelo de controle da “vontade de pedagogia”, mas, pelo contrário, promove e incentiva a prática esportiva livre de objetivos docilizantes.

Referência

CAMOZZATO, Viviane Castro; COSTA, Marisa Vorraber. Vontade de pedagogia: pluralização das pedagogias e condução de sujeitos. Cadernos de Educação. UFPel. n.44, jan-ab. 2013. Disponível em http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/view/2737. Acesso em: 18 jan. 2021.

Categorias
Sem categoria

Saiba o que é a marcação por zona e veja como funciona

“A organização defensiva é, acima de tudo, uma questão de defender com lucidez. Aquilo que se deve fundamentalmente procurar é fechar os espaços e assim condicionar os adversários.” (FRADE, 2002).

Nas últimas semanas, recebi vários e-mails sobre questões relacionadas à marcação por zona. Por isso, resolvi antecipar a discussão sobre essa temática.

Antes mesmo de iniciarmos a reflexão acerca da marcação zonal, precisamos discutir o que é a marcação por zona aplicada ao futebol e destacar que ela é parte fractal da organização defensiva da equipe.

Marcação no futebol: conheça 5 formas básicas

A marcação pode ser definida como o ato ou resultado de marcar um espaço e/ou um adversário direto (adaptado de AMIEIRO, 2005).

Partindo dessa definição, podemos discutir cinco formas básicas de marcação em relação ao espaço e ao adversário:

  1. Marcação zonal: age sobre o espaço.
  2. Marcação individual: age sobre o jogador adversário.
  3. Marcação individual por setor: cada jogador é responsável por um espaço e pelo jogador adversário que estiver dentro do local.
  4. Marcação mista: utiliza tanto a marcação zonal quanto a individual, que se alternam em circunstâncias específicas do jogo.
  5. Marcação híbrida: apresenta características da marcação zonal e individual, ao mesmo tempo que estas se manifestam em decorrência da estratégia da equipe.

Cada um desses tipos de marcação tem inúmeras outras referências que a orientam, mas não vamos discuti-las neste momento.

Nosso foco agora é: o que é marcação por zona. Nesta, cada jogador administra um espaço do campo que se modifica em função da bola, de seus companheiros e dos gols.

Marcação por zona: entenda como funciona

O objetivo da marcação é otimizar a ocupação espacial da equipe, deixando o “campo pequeno” para o adversário que ataca.

Na região onde a bola se encontra, a busca é pela criação da superioridade numérica, sem desguarnecer o lado oposto do campo que deve permanecer “vigiado” pelos jogadores mais próximos deste setor.

A região onde a bola se encontra é chamada por alguns autores de “lado forte”, e a região oposta é chamada de “lado fraco”. Em cada uma dessas regiões há uma preocupação diferente por parte da equipe e varia conforme o modelo de jogo de cada uma delas.

É imprescindível conquistar os espaços do jogo de forma estratégica

Para Nuno Amieiro, em seu livro “Defesa à zona no futebol”, ocupar os espaços do jogo de forma inteligente criando superioridade numérica na região da bola é um dos fatores fundamentais para “controlar” os adversários.

Além de criar superioridade numérica na região da bola e “vigiar” o lado oposto a ela, na marcação por zona se preconiza a presença de linhas escalonadas que servem como coberturas e visam, com isso, “aumentar” o caminho entre a bola e o gol.

Vale destacar ainda que na marcação por zona a atenção do jogador não deve ser apenas na ocupação do seu espaço mas também no desenvolvimento de seu jogo como um todo, levando em conta as demais referências do modelo de jogo.

Na marcação por zona, o que se busca é uma marcação coesa, dinâmica, homogênea com o intuito de fornecer uma referência coletiva comum aos jogadores dentro da organização defensiva da equipe.

Por fim, não trago nenhuma atividade prática para vocês, mas venho propor que me enviem sugestões para o desenvolvimento desse conceito.

Na próxima coluna, vou apresentar alguns desses exercícios propostos por vocês a fim de trocarmos informações sobre nossos treinos: acredito que essa troca é fundamental para todos nós.

Perto de finalizar, eu trouxe uma frase de Ayrton Senna, grafada em seu capacete histórico, diante do qual passo todos os dias quando vou para o campo de treino:

“Há um grande desejo em mim de sempre melhorar. Melhorar é o que me faz feliz. E sempre que sinto que estou aprendendo menos, que a curva de aprendizado está nivelando, ou seja, o que for, então não fico muito contente. E isso se aplica não só profissionalmente, como piloto, mas como pessoa.”

Conheça o curso “Mapa de jogo” da Universidade do Futebol

O curso “Mapa de jogo: desvende a complexidade do jogo de futebol”, da Universidade do Futebol, mostra a importância de enxergar o jogo com um fenômeno multidimensional e como essa visão implica os ambientes de treino e jogo.

São abordados tanto aspectos macro, como a lógica e as competências básicas do jogo, quanto os aspectos micro, como as regras de ação para cada posição dos jogadores de futebol.

Para mais informações, entre em contato conosco agora mesmo.

Até a próxima!

Gostou deste artigo sobre marcação por zona? Então, confira outros títulos que separamos para você:

Categorias
Sem categoria

Esquema tático: saiba como estruturar a linha defensiva

O modelo de jogo, como sabemos, é o norte que orienta as ações dos jogadores nos diferentes momentos da partida.

Esse norte é balizado por inúmeras referências que se integram e se relacionam complexamente. Dessa forma, o esquema tático é uma das referências e não a única dentro do modelo.

Esquema tático: é preciso ter estratégia para ser efetivo

Sendo uma das referências, o esquema tático de futebol não garante por si só a “ofensividade” ou a “defensividade” de uma equipe, ou seja, jogar com três atacantes não quer dizer que minha equipe é ofensiva, ou jogar com cinco na linha de defesa quer dizer que estou na retranca.

Isso tudo depende de como o esquema tático está se relacionando e sendo utilizado para o cumprimento do modelo e dos objetivos dentro do jogo.

Contudo, não podemos negar que essa referência é fundamental (será? Podemos jogar sem um esquema tático?) para a estruturação do espaço do jogo e precisa ser desenvolvida no dia a dia de treino.

Estratégias do futebol: como implementar um esquema tático?

Para que o esquema seja treinado é preciso antes de tudo que ele seja definido com o modelo de jogo da equipe.

Não vamos definir aqui todo o modelo de jogo e apresentar um processo completo para o desenvolvimento do esquema tático em especial.

Vou definir a dinâmica que envolve a linha defensiva dentro do 1-4-4-2 em linha e apresentar três atividades para o seu desenvolvimento.

Volto a destacar que dentro do 1-4-4-2 existem diversas possibilidades e vou explorar uma delas.

Modelo de jogo hipotético: entenda como funciona

Em meu modelo de jogo hipotético, pensando na “linha de 4” defensiva, minha equipe irá se comportar a partir de uma marcação zonal com a participação do goleiro como um elemento que fará a cobertura dos defensores.

Além disso, a linha defensiva terá como princípio operacional de defesa a recuperação da posse de bola nas laterais do campo e impedir progressão na região central, onde os jogadores devem direcionar a jogada para as laterais.

Quando a bola entrar nos corredores do campo, os laterais devem pressionar a bola e os demais jogadores da linha devem se movimentar, a fim de criar uma linha de três jogadores atrás do atleta que realiza a pressão.

(Vejam que um modelo de jogo contém muito mais conteúdos, mas utilizarei apenas esses dentro da organização defensiva, para fins didáticos.)

Sendo assim, posso elaborar algumas atividades para desenvolver o modo de jogar específico de minha linha defensiva.

Vale a pena destacar que essa linha não deve ser confundida com linha de impedimento, pois sua dinâmica não busca deixar o adversário nessa condição, mas sim neutralizar o ataque adversário.

Atividade 1

Descrição

  • Atividade de 4 x 4 + coringa, em que o objetivo das equipes é fazer o gol nos golzinhos adversários.

Regras e pontuação

  • Região central do campo: dois toques na bola;                    
  • Gol nos golzinhos vale 1.

Atividade 2

Descrição

  • Atividade de 4 + goleiro + coringa x 5, em que o objetivo da defesa é recuperar a bola nas laterais do campo e fazer um passe para o coringa posicionado no meio-campo. O ataque deve fazer o gol.

Regras e pontuação

  • A linha defensiva não pode realizar desarmes na região central do campo, enquanto os jogadores do ataque só podem dar dois toques na bola nesse espaço. Dentro da área e nas laterais do campo é livre.
  • O gol vale 3.
  • Fazer o passe para o coringa vale 1.

Atividade 3

Descrição

  • Atividade de 4 + goleiro x 6.

Regras e pontuação

  • Defesa marca ponto quando recuperar a bola nas faixas laterais do campo (1 ponto) ou quando trocar cinco passes (1 ponto).
  • Ataque marca ponto quando fizer o gol no gol oficial (3 pontos) ou nos golzinhos (1 ponto).

Defender é mais do que correr atrás do seu adversário.

Por conta disso, o curso Tática no Futebol da Universidade do Futebol é uma excelente oportunidade para quem deseja ficar por dentro de conceitos fundamentais, como a estratégia, a tática e o modelo de jogo.

No curso, além de você ser apresentado aos princípios de defesa e ataque, os conteúdos da formação são exibidos de forma didática e bem fundamentada.

Para mais informações, entre em contato conosco agora mesmo.

Até a próxima!

Gostou deste artigo sobre esquema tático? Então, confira outros títulos em nosso blog

Categorias
Sem categoria

Princípios Pedagógicos – Quero ensinar futebol a todas e todos

Crédito imagem – Jogos estudantis da Bahia/Divulgação

No texto da semana passada escrevi uma frase, que se não lembrar de nada dele, lembre-se disso: todos podem ser felizes jogando futebol. Esta frase refere-se à vasta possibilidade de o futebol incluir as pessoas, de diferentes características, de forma funcional ao jogo, proporcionando prazer em jogar e se sentir parte de um grupo. Nesta semana, vamos utilizar esse mesmo raciocínio, mas buscando avançar ainda mais. Para além da natureza do jogo, vamos abordar a capacidade de um(a) professor(a) ou treinador(a) de incluir todas e todos do seu grupo, de maneira funcional, nas suas aulas ou treinos.

Não é raro, em escolas de futebol, encontrarmos turmas heterogêneas, em que convivem meninos e meninas, alguns mais habilidosos, outros menos, outras gordinhas, magrinhas, altos, baixas, de famílias com maior poder aquisitivo, outras de menor, de diferentes culturas, origens, credos etc. Os professores e professoras dessas escolas recebem tamanha diversidade para dar sua aula ou treino de 1h a 2h, aproximadamente, tendo ainda o desafio de fazer com que todos participem plenamente.

Se trocarmos o foco das escolas de futebol e formos para as aulas de educação física escolar ou para os projetos sociais, encontraremos o mesmo cenário de diversidade. Diante dessa realidade, temos ao menos duas posturas opostas. A primeira do(a) professor(a) que não acredita que todos têm a capacidade e o direito de aprender futebol (ou qualquer modalidade esportiva). E a segunda em que o(a) professor(a) não só acredita que todos têm a capacidade e o direito de aprender futebol, mas também encara como o seu dever fazer com que todos se insiram plenamente na aula, sendo estimulados a se desenvolverem de maneira equivalente.

Quando o(a) profissional escolhe o primeiro caminho, subjetivamente ou declaradamente, separa a turma entre os seus preferidos, aqueles com maiores conhecimentos prévios para a prática do futebol, e o restante da turma, que recebe o papel de coadjuvantes naquele ambiente de aprendizagem. A consequência dessa escolha é uma menor quantidade e qualidade de estímulos e feedbacks de apoio, instrução ou correção àqueles do grupo preterido. Essa postura, certamente, prejudicará a potencialidade desse grupo de se desenvolver com as aulas ou treinos, tanto para o futebol, quanto para a vida fora dele. Ela pode ter impactos negativos sérios para essas crianças e adolescentes, já que se sentirão menos capazes, rejeitados e desrespeitados. Por outro lado, esse(a) profissional, ao olhar apenas para o grupo de alunos(as) “talentosos(as)”, pode sobrecarregá-los(as) com uma carga excessiva de cobrança por desempenho, ignorando uma série de outros conteúdos importantes para a formação humana integral.

No entanto, se o(a) professor(a) decidir pelo segundo caminho, possivelmente ele(a) terá mais trabalho e terá que ser um(a) melhor profissional, pois olhará para todos igualmente, cada um com suas potencialidades e limitações, sempre buscando dar os estímulos e feedbacks necessários para que todos consigam se desenvolver. Essa é postura que busco aplicar em minhas aulas e treinos. Ao lado do Princípio Pedagógico de “ensinar a gostar de futebol”, discorrido na semana passada, há outro de “ensinar futebol a todos”*, que ecoa em minha consciência sempre que me levanto para trabalhar.

Desafio aceito! Quero ensinar futebol a todas e todos! Mas e agora? Que estratégias posso utilizar para conseguir fazer com que as diferenças sejam aceitas e complementares ao ambiente de aprendizagem de minha aula ou treino? O pilar básico que tento construir é criar uma cultura de colaboração e respeito às diferenças. Isso será importante para todas as atividades e para a vida das crianças e adolescentes. Vivemos em uma sociedade diversa. Se os meus alunos e alunas aprenderem a respeitar essa diversidade dentro do nosso ambiente de aprendizagem, eles e elas terão mais condições de transferir esse comportamento para além desse ambiente. Essa cultura, para ser fortalecida, deve ser alimentada em todas as oportunidades, com o diálogo e atitudes que demonstrem a importância de se respeitar o outro com as características que tiver, da mesma forma como os outros devem respeito a você, com as características que que lhe são próprias. 

Em paralelo a essa intervenção mais direta ao objetivo da inclusão e respeito às diferenças, existem outras estratégias eficazes para se garantir que todos(as) os(as) alunos(as) recebam estímulos adequados aos seus respectivos desenvolvimentos. Um dos caminhos pedagógicos interessantes para isso é dar problemas possíveis de serem solucionados por eles. Costuma funcionar fazer com que a criança sinta, rapidamente, que é capaz de fazer coisas que não sabia que era. Desta forma, ela aprende a sensação de sucesso relacionada ao futebol. No entanto, sabemos que o esporte não se faz apenas de experiências de sucesso. Nem toda hora ela irá conseguir alcançar o objetivo traçado. Há tarefas que são mais desafiadoras, ou mesmo em atividades competitivas, ela pode perder para a outra equipe ou criança adversária. O que fazer para a criança não perder o seu interesse em continuar naquele ambiente de aprendizagem, mesmo quando se depara com derrotas e fracassos?

É preciso que ao longo da aula ou treino haja uma enorme possibilidade e variedade de sucesso. Jogos e brincadeiras variadas, individuais e coletivas, com diferentes objetivos e funções para ela exercer, com revezamento de funções, demandas motoras etc. Enfim, são estratégias necessárias para que todos vivenciem diversas experiências, entre elas algumas exitosas, outras não. Essa pluralidade de experiências lúdicas facilita à criança e ao adolescente se inserirem de maneira funcional no ambiente de aprendizagem. Além de promover um fator determinante para a aprendizagem, que é o volume de repetições de movimentos em contextos variados, você também estará proporcionando, se trabalhar com jogos e brincadeiras, a experiência de aprendizagem integral à criança e ao adolescente, que irão lidar com as emoções, com situações-problemas, com as relações interpessoais etc.

Soluções para superar o problema de incluir a todas e todos na aula ou treino não faltam. Você deve saber várias delas, se compartilha desse mesmo princípio pedagógico. Portanto, é uma questão de querer, se preparar e exercer o direito de todos(as) os(as) alunos(as) e atletas de participarem plenamente do ambiente de aprendizagem liderado por você. Mas antes de encerrar este texto, gostaria de deixar a seguinte reflexão: o Princípio Pedagógico de “ensinar futebol a todos” se aplica apenas às turmas de iniciação que normalmente há grupos heterogêneos? Em categorias de base também não há diversidade? Como proporcionar que todos se sintam parte importante do grupo em uma equipe principal do futebol de alto rendimento? Quais são as estratégias para esses ambientes?

Penso que esse princípio pedagógico deve ecoar na consciência de todos os educadores que levantam para trabalham com futebol! Qual a sua opinião?

Categorias
Sem categoria

Intensidade no futebol é isso mesmo?

Crédito imagem – Site oficial UEFA

O termo intensidade tem sido muito usado nas análises de jogos e equipes do futebol brasileiro. Se cobra um time para ser intenso ou se elogia um treinador por fazer seus jogadores serem intensos dentro das quatro linhas. Reconheço que reduzir assuntos complexos e traduzi-los em termos simples e de fácil entendimento é mais do que uma virtude e sim uma obrigação em qualquer processo de comunicação. Porém isso não pode ser suplantado pelo correto entendimento e a consequente assertiva exposição do tema. E a intensidade tem sido definida de maneira muito equivocada nas discussões por aqui.

Ainda se fala que uma equipe é intensa quando ela corre muito em campo. Jogadores que correm (!) são taxados como intensos.

Há uma herança, aqui, dos brilhantes preparados físicos da nossa história que foram os primeiros a estudar e documentar o que acontecia dentro das quatro linhas. Porém, esses estudos sempre vieram com um viés físico. Nada mais natural já que eram os preparadores quem colhiam os dados e conseguiam as conclusões. 

Mas ao falar de futebol dentro de um sistema complexo precisamos entender que a parte física é uma das vertentes do jogo. Temos ainda a técnica, a tática, a emocional, a cognitiva e poderíamos expandir para o social, filosófico, antropológico e etc. O jogo é tudo isso junto e ao mesmo tempo. Então como podemos classificar uma equipe e um jogador como intensos apenas ao olhar o desempenho físico?

Acredito que uma equipe intensa seja aquela que resolva os problemas do jogo da forma mais eficaz e com o menor gasto de energia possível. Quando um time está bem treinado e os setores estão bem ajustados o desgaste é menor para atingir a eficácia. É necessário correr mais quando não se sabe nem o que, nem onde e nem como fazer dentro de campo. Não à toa, José Mourinho disse que um dos jogadores mais intensos com quem ele trabalhou foi Deco. E venhamos e convenhamos, Deco nunca foi um jogador fisicamente acima da média. Mas a capacidade de pensar e executar acertadamente as ações do jogo em um curto espaço e em pouco tempo faziam dele um jogador intenso.

Por tudo isso, ao ver um jogador correndo muito e se desgastando mais do que o necessário não vamos mais chamá-lo de intenso. Há nessa situação tudo, menos essa intensidade complexa que me refiro…

Categorias
Sem categoria

Sobre o jogo de futebol como espaço de contradição

Crédito imagem – Redes sociais Mesut Ozil

Por mais de uma vez, conversamos aqui sobre a importância não apenas de refinar o nosso pensamento sobre o jogo de futebol – mas isso se diz em todo lugar – mas especialmente de particularizar o nosso olhar: este é um tempo de homogeneidade, em que pensamos cada vez mais igual, falamos coisas cada vez mais parecidas, treinamos cada vez mais igual e, evidentemente, jogamos cada vez mais igual. A meu ver, o refinamento do olhar e do pensamento sobre o jogo de futebol e sobre a vida vivida é uma subversão, uma revolta, uma tentativa de pensar por si mesmo muito mais do que de pensar pelos outros. Não por acaso, aliás, não há uma forma universal de se pensar o futebol: há, na verdade, formas infinitas.

Mas uma forma particularmente interessante de pensar o futebol, sobre a qual gostaria de falar, é pensar o futebol como espaço de contradição. Acho interessante quando vejo e ouço pessoas dizendo que esperam ‘coerência’ dos outros, como sinal de avaliação moral, porque embora seja de fato necessária uma certa dose de coerência entre o que se diz e o que se faz ao longo do tempo, também é preciso considerar que ninguém é uma entidade estática: as pessoas estão em movimento, e as contradições da vida vivida não deixam de ser sinais de movimento, de fluidez e da contingência da vida. De um modo que a incoerência, dependendo do ponto de vista, pode perfeitamente ser uma virtude, mais do que um vício. Bom, no jogo de futebol acho que se passa um fenômeno muito parecido – com as suas particularidades, é claro.

Duas nítidas da contradição inerente ao jogo estão nessas passagens atribuídas ao Guardiola: uma, mais antiga, sobre a intenção de se atacar propositalmente por um lado para, mais tarde, finalizar do outro – como se os corredores laterais, que aparentemente poderiam ser opostos, negações um do outro, fossem na verdade complementos, condições de existência um do outro. Outra passagem, essa mais recente, é aquela em que ele diz que ‘se quero chegar adiante, passo para trás’ – ou algo do tipo. Reparem que se trata da mesma situação anterior: o passe para trás não é uma negação da verticalidade, mas eventualmente uma condição, um requisito da subida no campo. Quando falo desse caráter contraditório do jogo (e nem sei se contradição é a melhor palavra), falo justamente dessa intencionalidade do fazer X em busca de Y – mas dessas interações e retroações que existem entre um e outro, inclusive de um modo que, mais tarde, pode-se perfeitamente fazer o contrário.

Se nos exemplos anteriores pensamos a contradição a partir do espaço, me parece que também podemos pensá-la a partir do tempo. Aceleração e a pausa não são variáveis mutuamente excludentes, mas muito mais faces integradas entre si. De um ponto de vista prático, acho um tema particularmente importante, porque vivemos num tempo de culto à intensidade e de falência da pausa. Se entendermos que a pausa é apenas e tão somente uma recusa da intensidade – ao invés, por exemplo, de um espaço de criação – vamos seguir com problemas para interpretar um jogador como Mesut Ozil, para citar um estrangeiro, ou Jean Pyerre, para citar um brasileiro. O tempo do jogo, o ritmo de uma certa elaboração ofensiva, ou mesmo o ritmo de uma transição (seja ela ofensiva ou não), não aumenta ou diminui como fim nele mesmo, ou melhor, não precisa ser assim: o aumento e diminuição do tempo do jogo pode ser um recurso com fins de contradição, ou seja, aumento o tempo do jogo num setor, justamente para reduzi-lo em outro (o que pode ser particularmente interessante na saida da pressão numa transição ofensiva, por exemplo), da mesma forma como baixo o tempo do jogo para atrair um ou mais adversários e logo depois subir o tempo em zonas mais vulneráveis do campo. O que quero dizer é que o futebol, como espaço de expressão humana, não me parece que pune a contradição individual e coletiva (e claro que falo de um ponto de vista especialmente tático-técnico) mas a premia: o futebol sabe do peso do engano, e sabe que a contradição pode ser mais virtude do que vício.

De um ponto de vista estrutural, acho que também há expressões bastante claras desse viés de diferença e de contradição. Vejam o problema da amplitude, por exemplo. Embora o jogo de futebol tenha um alvo relativamente pequeno (em comparação com a área de jogo) e centralizado – o que faz com o que o futebol tenha uma certa característica endógena e centrípeta, tenha uma tendência ao centro – reparem que uma das soluções que criamos na fase ofensiva foi a abertura do campo em largura. A amplitude, como sabemos, não bem é sinônimo de abrir o campo em largura máxima: amplitude é a distância entre os dois jogadores mais abertos de uma dada equipe no espaço efetivo de jogo. Ou seja, amplitude não é apenas amplitude máxima. É perfeitamente possível lançar mão de amplitudes submáximas – e mesmo assim jogar bem futebol. Mas se levarmos em conta aquela homogeneidade de pensamento de que falávamos no começo, não surpreende que seja tão comum encontrar equipes que abram o campo muito e sempre, como forma de criar espaços por dentro, nos vazios intrasetoriais do adversário. Abre-se o campo para, mais tarde, fechá-lo.

Mas o jogo vai criando mecanismos de homeostase, e um deles, que me parece cada vez mais claro, é um preenchimento maior da linha-base de defesa, com equipes se defendendo não apenas em linhas de cinco, mas em linhas de seis. Nesse caso particular, reparem que o argumento de abrir o campo para buscar espaços intrasetoriais perde força, porque a linha de seis é naturalmente densa por dentro e larga por fora, de um modo que abrir o campo apenas por hábito pode ser menos um veneno e muito mais um remédio para a defesa: é justamente o que ela quer. Nesses casos – e podemos falar disso muito mais detalhadamente num outro momento – sinto que uma das soluções está justamente na contradição da contradição, não mais em mecanismos de ataque cujo fundamento está em abrir para fechar, mas que fecham para eventualmente abrir: restringem a largura para eventualmente inutilizar os dois extremos-laterais da linha de seis. Percebem as contradições? Se a linha defensiva é mais curta, abrimos o campo; mas se a linha defensiva é mais longa e preenchida por dentro, podemos fechá-lo. A diferença não como negação, mas como afirmação.

Sinto que ainda não esgotamos o tema por aqui, mas por hoje é suficiente. Enquanto isso, pensem que o tema não se restringe ao futebol – na verdade, é mais fácil trazermos o entendimento das contradições da vida vivida para o futebol do que o contrário.

O que, sendo via de mão dupla, não deixa de ser uma possibilidade de novas contradições.

Categorias
Sem categoria

O que queremos do treinador Fernando Diniz? Mudança!

Meses atrás, quando o Campeonato Brasileiro de 2020 ainda estava em curso e Fernando Diniz era treinador do São Paulo, pensamos escrever algo sobre ele, sobretudo, sobre o que Diniz representa para o futebol. O tempo passou, desistimos da ideia, Fernando Diniz foi demitido e o futebol brasileiro continuou em sua rotina costumeira, ele, Diniz, sendo, inclusive, mais um número na alarmante estatística das mudanças de treinadores em equipes brasileiras.

O que, então, fez-nos voltar a debater esse assunto e escrever sobre ele? A recente declaração do jogador Daniel Alves, entre todos os atletas em atividade, hoje, o mais vencedor, com passagens pelos maiores clubes do mundo.

Em entrevista ao site do jornal inglês “The Guardian”[1], Daniel Alves disse: “o Brasil é um cemitério de treinadores e jogadores. Nosso sistema se baseia nas coisas serem sempre as mesmas. Quando você tenta algo diferente, as pessoas ficam contra você, por que se funcionar isso vai mudar o sistema”.

Justificada nossa iniciativa, voltemos ao tema central do texto. E se você esperava, ao ler o título deste texto, que defenderíamos a demissão de Diniz como treinador da equipe do São Paulo Futebol Clube, ou que entraríamos no debate recentemente colocado pela mídia acerca da nomenclatura que define o pensamento do treinador Fernando Diniz como “dinizismo” ou “dinismo”, ou então, que discutiríamos suas opções de escalação, substituições ou esquemas táticos, no comando das equipes que comandou, provavelmente se frustrará.

Entendemos que a expressão, “dinizismo” ou “dinismo”, é sacada do dicionário daqueles que temem, no futebol, mais que tudo, mudanças. Esses termos têm sido utilizados, na maioria das oportunidades, de modo pejorativo, com a intenção de depreciar o jovem e talentoso treinador e seu trabalho.   

Nossa intenção, antes de tudo, é debater sobre o que representam os pensamentos de Fernando Diniz em seu contexto mais abrangente. Se pudéssemos sintetizar em uma palavra o que representam seus pensamentos, ela seria: mudança!

E é justamente por representar a mudança, que ele tanto incomoda grande parte daqueles que integram o contexto do futebol brasileiro, sobretudo, a mídia, torcedores e dirigentes esportivos. Afinal, de que mudança estamos falando? São várias! Vamos a elas.

A primeira delas, e talvez a mais importante, é a concepção de sujeito que ele possui. Fernando Diniz não entende os atletas como peças, coisas, produtos, como máquinas que têm que render a qualquer custo. Para ele, o jogador de futebol, como outro ser qualquer, é um ser de necessidades, com emoção, com sentimento, com valores, dotado de subjetividade, e que erra, como também acerta. Diniz busca, cotidianamente, desenvolver o atleta, mas não de forma dissociada da sua condição de ser humano. Para Diniz, o jogador é, ao mesmo tempo, indivíduo e sociedade, grupo, coletivo.

A segunda mudança, mais nitidamente observável no campo de jogo, refere-se ao modo como opera (faz funcionar) o grupo de jogadores. Diniz consegue implementar algo fundamental do ponto de vista do funcionamento da equipe: constituir uma identidade grupal, sem que os atletas percam sua identidade pessoal. Em outras palavras, incentiva o trabalho coletivo, a coesão, fortalece o que popularmente é conhecido como entrosamento, ao mesmo tempo que busca e promove o desenvolvimento pessoal de cada sujeito, jogador de futebol, neste caso. Não é tarefa fácil essa de buscar a harmonia entre o indivíduo e o coletivo, daí a necessidade de tempo para realizar o trabalho. Fernando Diniz imagina a arte do futebol não apenas no talento deste ou daquele jogador, mas também no grupo; que a arte de jogar futebol esteja tanto no coletivo quanto no individual.

A própria maneira como promove a organização da sua equipe em campo reflete uma mudança drástica no pensamento habitualmente observado no âmbito do futebol profissional. Ele organiza, “desorganizando”. Ao ver um centroavante vir realizar a saída de jogo, um lateral entrando na área para finalizar ou um zagueiro para cabecear um cruzamento, por exemplo, grande parte da mídia, torcedores, dirigentes, e até alguns jogadores, se incomodam. Se incomodam, pois não compreendem sua forma de organizar. A sua organização parte da desestruturação da equipe adversária. Ele incomoda, porque muda. E se muda, gera ansiedade e, consequentemente, resistência. E como forma de resistência, há, além da estereotipia, a crítica corrosiva.

Diniz sabe que o jogo de futebol, como a vida, é imprevisível. Especialmente em situações como as apresentadas no jogo de futebol, a imprevisibilidade é, para ele, a marca mais visível. Sua equipe precisa, portanto, saber lidar com o imprevisível, produzir surpresas e defender-se delas.

Aliás, estes foram, também, pontos destacados por Daniel Alves em sua entrevista ao “The Guardian”: “Diniz está à frente da maioria dos treinadores […] Suas ideias e o trabalho que está fazendo. Você pode dizer ‘ele não ganhou o título’, mas não estou falando sobre isso. Eu estou falando sobre futebol. Eu o admiro muito. Ele se preocupa com as pessoas, tem muitas ideias sobre futebol e sabe o que quer do futebol.

Outro ponto importante para entendermos o pensamento de Fernando Diniz passa pela compreensão e valorização do processo. O futebol profissional é extremamente imediatista. Quer resultados “pra ontem”! Ao confrontar essa compreensão e apostar e valorizar o processo, Diniz propõe mais uma mudança. E vale repetir… a mudança incomoda. O imediatismo no futebol brasileiro tem destruído jogadores e técnicos.

No futebol brasileiro, para construir uma equipe, os técnicos possuem jogadores jovens, inexperientes, recém-saídos das equipes de base e alguns veteranos, até com experiências internacionais, mas que já não conseguem bons contratos na Europa, embora talentosos e dedicados. Diante disso, no processo de formação e desenvolvimento da equipe, é preciso fazer um trabalho artesanal, treinar exaustivamente, conversar permanentemente com o grupo, conversar com cada um separadamente, detectar e superar suas limitações e dificuldades, entender seus problemas e ajudar a superá-los. Tudo isso demanda tempo. E um tempo que o futebol profissional precisa entender, valorizar e respeitar, mas não o faz. Não se constrói uma equipe, em que boa parte dos jovens ainda precisa aprender a ser jogador, de um dia para outro. É necessário ter tempo para isso, tempo que não costumam dar a treinador nenhum, com raras exceções.  

Os jovens jogadores em formação passam anos nas categorias de base, em muitos casos, ainda sendo treinados a partir de uma pedagogia tecnicista, driblando cones, repetindo gestos, movimentos e ações que nunca ocorrerão nos jogos. A pedagogia implementada por Diniz em seus treinos (e por poucos outros treinadores das categorias de base e equipes profissionais), já relativamente bem difundida no âmbito acadêmico, mas ainda pouco discutida nos campos de treino e debates jornalísticos, está muito distante disso. Ao defendê-la, Fernando Diniz propõe outra mudança. E novamente, como já dissemos, a mudança incomoda.

Poderiam alegar alguns leitores: “ah, mas com Diniz o São Paulo não ganhou nada!”. E sem o Diniz, o que ganhou nos últimos anos? Não é isso, portanto, o que está em jogo. Nos demais clubes também raramente se ganha. Todo torneio admite apenas um vencedor. Perdoa-se com mais facilidade a “surra” de 8 a 2 que tomou o Barcelona, do que qualquer derrota das equipes comandadas por Fernando Diniz.

Há anos cobramos do futebol brasileiro aquele estilo e desempenho que décadas atrás encantava o mundo: um futebol bonito, alegre, imprevisível, ofensivo e, quando alguém se propõe a caminhar nesse sentido e realizar as mudanças necessárias, as pessoas se incomodam e o criticam insistentemente.  

Há quem diga, principalmente parte da crônica e mídia esportiva, que os conceitos, ou filosofia, como se diz no senso comum futebolístico, trazidos por Fernando Diniz refletem-se no fracasso de suas realizações dentro de campo. Tais afirmações fundam-se exclusivamente em avaliações negativas de resultados em partidas específicas, eliminações ou os poucos títulos conquistados. Se tomarmos como referência o modelo e o sistema futebolístico que está posto, faz sentido. Sobretudo se não perdermos de vista que o futebol faz parte do sistema capitalista predatório de produção. Como dissemos acima, não se valoriza o processo e sim, exclusivamente, o rendimento e resultados imediatos, o lucro, para os quais os jogadores precisam ser, mais do que nunca, máquinas. Produtos! O modo de ver um jogador no trabalho de Diniz e no modo de produção da máquina que dirige o futebol são diametralmente opostos.

Entretanto, entendemos que fracassado estará o futebol brasileiro se não voltarmos a atenção para os sinais dados por Fernando Diniz e, aqui e ali, por um ou outro técnico. O futebol brasileiro atual não está pobre tecnicamente só porque nossos maiores talentos emigram para a Europa, mas também porque empobrecemos o modo de jogar. Jogar para não perder apenas é bem diferente de jogar para jogar bem. 

E é a valorização desse novo olhar que incomoda muita gente que atua no futebol profissional. Isso foge ao script tão bem montado no futebol brasileiro. O problema é que é mais fácil manter essa “cultura” do que confrontar a estrutura mecanicista, limitada e conservadora que mantém esse futebol brasileiro viciado na mesmice e na burocracia estéril.

Diniz representa o futebol atrevido, o futebol que gosta da bola e da brincadeira, o futebol audacioso, que não teme o risco e sabe que é ele que mantém a tensão encantadora do jogo. Diniz representa aquele futebol que pode vencer de 4 a 1, tomando somente um gol de um dos melhores ataques da América e pode ser eliminado em seguida, apesar da vitória, tomando 3 de um time bem menos expressivo e qualificado; representa um futebol que sabe que atacar é tornar-se vulnerável, mas que se não atacar, o jogo perde o sentido.

O grande desafio de Diniz talvez seja, como ele mesmo costuma atestar em suas entrevistas, manter a regularidade e acabar com a oscilação das suas equipes, às vezes dentro de um mesmo jogo. Enquanto não conseguirmos efetivar em larga escala as mudanças que ele representa para o futebol, Diniz precisa de resultados para provar que está certo. E neste contexto que está posto atualmente, falar em resultados, é falar em títulos. E para conquistar títulos, ele precisa de oportunidade e tempo para trabalhar. Tempo para que compreendam e assimilem as mudanças que defende.  


[1] https://www.theguardian.com/football/2021/may/01/dani-alves-barcelona-brazil-lionel-messi-manchester-city-world-cup-2022

Categorias
Sem categoria

RH no futebol – a humanização e o futuro do jogo

Créditos – Rubens Chiri/SPFC

Os recursos humanos, ou RH, é uma área que tem tido cada vez mais atenção na administração das empresas e engloba, entre outras atividades o treinamento, que é a capacitação de curto prazo, como por exemplo o aprendizado para trabalhar com determinada ferramenta ou software e o desenvolvimento, mais relacionado à capacitação de longo prazo, como o alinhamento com a cultura e valores da empresa.

Na gestão dos clubes de futebol, a área também tem ganhado relevância, mas não com a velocidade esperada, como explica a psicóloga Juliana Mazepa psicóloga, pós-graduada em Gestão Estratégica de Pessoas e líder do grupo de estudos sobre Neurociência e Desempenho na Universidade do Futebol, “no futebol o RH ainda é visto como uma área de departamento pessoal, que faz pagamento de folha, questões burocráticas. Não existe nos clubes a área, ou sub-áreas do RH, o chamado T&D, que é o treinamento e desenvolvimento, que contempla a análise de perfil comportamental, direcionamento de carreira, análise por competências, desenvolvimento de competências, sinergia de grupo, treinamento de líderes e gerentes, fortalecimento da cultura organizacional, tudo isso que já acontece em grande parte das empresas, mas não no futebol. É essa mudança que precisa acontecer definitivamente”, conclui.  

Ainda para Juliana, é importante que os clubes estejam atentos ao treinamento e desenvolvimento dos profissionais de todas as áreas do clube, tanto daqueles que participam dos setores relacionados às atividades-meio, como o marketing e a gestão, como às atividades-fim, o trabalho dos treinadores, por exemplo, “os clubes poderiam aperfeiçoar esses processos começando pela análise de perfil comportamental, quando é feito o alinhamento do desejo e o talento profissional que a pessoa tem com a necessidade do clube. Esse olhar de alguém especifico para o desenvolvimento de carreira é com certeza uma área que os clubes vão precisar explorar, obrigatoriamente. Se a gente quer elevar o nível do resultado em campo, da performance do atleta, a gente precisa elevar o nível técnico e comportamental de todas as pessoas que trabalham no entorno”, explica.

O conceito de atividade-meio e atividade-fim no futebol são aprofundados no curso Gestão Técnica no Futebol, nossa próxima turma terá matrículas abertas em maio

Os cargos técnicos no futebol, em especial o dos treinadores, são aqueles que acabam sendo mais impactados pela pressão por resultados e, consequentemente, apresentam uma maior rotatividade. Um estudo do pesquisador Matheus Galdino, publicado recentemente na Universidade do Futebol e que você pode acessar aqui, mostra como o Brasil é um destaque negativo nesse sentido, sendo o líder mundial no ranking de troca de técnicos.

É por conta desse cenário um tanto “caótico” que o treinador Eduardo Barros classifica como “utópico” o estabelecimento de um plano de carreira para treinadores atualmente no Brasil. Ele também aponta como um fator que dificulta o estabelecimento desse plano a heterogeneidade de patamares pelos quais os treinadores são reconhecidos e iniciam as suas trajetórias. “É muito difícil estabelecer objetivamente como é o planejamento de carreira do treinador. Ele precisa entender quem ele é, quais competências ele tem e não tem, quais formações ele precisa. Ela vai se iniciar de diferentes formas, pela escolinha ou até pelo profissional, dependendo do nível do treinador em questão”, analisa.  

No FutTalks #52, Thiago Scuro conta como o Red Bull Bragantino busca sanar a descontinuidade dos trabalhos com a análise de mercado voltada para treinadores, por meio do estudo de modelos de jogo e estilos de liderança de potenciais substitutos – Acompanhe a entrevista na íntegra.

Como exemplo de treinadores que já contavam com certo prestígio no meio e conseguiram uma inserção mais acelerada em clubes de elite, temos Rogério Ceni, que assumiu o São Paulo em 2017 e atualmente comanda o Flamengo.  Na outra ponta temos como exemplo de profissional que iniciou pelas categorias menores o treinador Zé Ricardo, que subiu da categoria sub-15 até o profissional do mesmo clube, se estabelecendo como treinador elite do futebol brasileiro desde então. A evolução da carreira de Zé Ricardo ilustra bem um dos modelos incidentais de progressão de carreira mais comuns no futebol brasileiro e mundial que é a escalada entre as faixas etárias de um ou mais clubes.

Rogério Ceni em ação pelo Flamengo. Crédito: Marcelo Cortes/Flamengo

Levando em consideração as diferentes demandas de trabalho e características dos jogadores e jogadoras em faixas etárias tão distintas como o sub-15 e o profissional, uma das discussões que podem ser levantadas acerca do planejamento de carreira de treinadores é a possibilidade de progressão, inclusive financeira, dentro de uma própria faixa etária. Afinal, é bastante compreensível que determinado treinador seja mais propenso a lidar com todo o ambiente que envolve o trabalho em um sub-15 e menos com as demandas do profissional, e vice-versa. Sobre a questão Zé Ricardo acredita que “é legítimo que a maioria dos profissionais queira subir na carreira e vislumbrar uma trajetória no profissional, mas creio sim existir treinadores que são especialistas em determinadas faixas etárias e que poderiam, se assim fossem devidamente valorizados e remunerados, ser de ótima valia para o clube na formação de seus atletas. Os clubes poderiam, e deveriam, participar mais disso. São poucos os exemplos de intercâmbios entre profissionais para uma melhor formação deste. Imagino que não seja fácil, mas certamente seria um investimento que retornaria em forma de um melhor atleta no seu profissional. E isso como se sabe, não é pouco. A realidade me parece mais no sentido de um profissional ter que buscar por seus meios, essa formação”, opina o treinador.

“Em funções de gestão e coordenação tentei criar um ambiente que permitisse o desenvolvimento do profissional, mas acho que isso não é o mesmo do que uma criação formal de um plano de progressão de carreira, vejo isso ainda como utópico pensando no nosso futebol, dada as mudanças de gestão que são muito frequentes. Falta aos nossos clubes de maneira geral, uma visão mais clara de médio e longo prazos, que permita a criação de fato de um plano de carreira institucional, uma política do clube pensada não só para o treinador mas para todas as funções da área técnica e diretiva de um clube” – Eduardo Barros

Apesar de não existir, pelo menos por hora um plano de carreira efetivamente estruturado para treinadores, Eduardo Barros conta sobre algumas iniciativas no futebol brasileiro que ao menos buscaram caminhar nesse sentido, “participei efetivamente de dois movimentos nessa direção. O primeiro foi em 2015 no Coritiba, sob a gestão inicial do João Paulo Medina. Fui um dos líderes técnicos das categorias de base e o primeiro grande movimento que nós fizemos no clube foi o de diminuir a disparidade entre os treinadores de toda a cadeia do sub-11 ao sub—20. A ideia era a de implantar uma progressão de carreira que respeitasse o perfil do profissional e que permitisse que ele pudesse ter reconhecimento até financeiro na própria categoria, sem necessariamente ter que subir de categoria para ter esse reconhecimento. Esse movimento também foi feito no Athletico Paranaense em 2019 e 20 sob a gestão do Paulo André como diretor de futebol de forma muito semelhante”, aponta.

A formação de jogadores

Essa falta de planejamento de carreira na área técnica encontrada em grande parte dos clubes também pode acabar influenciando negativamente um outro processo fundamental da vida de um clube que é o desenvolvimento de seus jogadores, já que é difícil estabelecer um trabalho de longo prazo sem uma qualificação dos profissionais que caminhe na mesma direção e com trocas tão frequentes no comando do trabalho. Gabriel Puopolo, que é psicólogo das categorias de base do São Paulo Futebol Clube destaca a necessidade da formação integral, ou de uma priorização do desenvolvimento humano dos jogadores e jogadoras nas categorias de base e como esse trabalho pode render frutos aos clubes, “falar de desenvolvimento humano não é sobre criar um PHD em física, tampouco lordes ingleses, mas sobre o desenvolvimento da capacidade de processar informação, de compreender a relevância do papel do jogador na sociedade, que ele aprenda a trabalhar em equipe, a ser autônomo e a tomar decisões em sua vida. Tudo isso impacta dentro de campo, principalmente na perenidade e manutenção desse desempenho ao longo do tempo. Se eu quero que um jogador renda por bastante tempo, de maneira mais sustentada, preciso estar atento ao desenvolvimento dele como pessoa”, defende.

Pensar mais nas pessoas, tanto nos jogadores, como nos demais profissionais envolvidos direta ou indiretamente no que acontece dentro do campo de jogo, pode ser o caminho para a necessária evolução do futebol brasileiro.