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Era uma vez uma rua

Por: João Batista Freire

Dedicado a Pepe Mujica, que disse:

“O único vício bom é o amor, o resto são pragas”

Para que tenhamos o direito e a coragem de pensar com liberdade e independência. Não precisamos de autorização para pensar.

Percebo que há alguma confusão a respeito do termo “Pedagogia da Rua”, desde que o lancei anos atrás. A confusão, acredito, dá-se pela dificuldade em torno de dois conceitos que compõem o termo: “Pedagogia” e “Rua”. Comecemos pelo segundo.

Rua, eu a utilizo como metáfora. Quer dizer muita coisa. Rua são todos os lugares e momentos que me levam a aprender alguma coisa sem ter alguém encarregado de me ensinar. Rua é onde aprendi muitas coisas, algumas nunca respeitadas como saberes; na Rua aprendi a rir e chorar, aprendi a falar, aprendi a amar, aprendi também a odiar, aprendi coisas simples como contemplar, me aproximar, ver e ouvir, também tocar e degustar. Na Rua aprendi a ter medo, aprendi a ceder ao medo e a ter coragem de superá-lo. Aprendi a ser fiel e infiel, aprendi a chutar bola, a me esconder e procurar, a jogar bolinhas de gude, a brincar de casinha, de comidinha e de bonecas. Aprendi tantas coisas na Rua, coisas boas e coisa ruins, que não cabem todas aqui. Aprendi que para a Rua não há coisas boas e ruins, e é aí que moram a virtude e o perigo. A Rua é uma escola sem nome, uma professora invisível, sem intenções e julgamentos, um outro jeito de aprender, completamente diferente dos jeitos utilizados nas instituições encarregadas de educar as pessoas. Mas se na Rua há pessoas e eu aprendo com elas, elas me julgarão. Sim, mas são elas que julgam, não a Rua.

Assim que nascemos a família começa a nos ensinar. No começo ela ensina sobre segurança e comportamentos básicos e, em seguida, passa a incutir na criança seus conceitos morais, sua ideologia. Se seguíssemos assim, teríamos enormes chances de crescer e ser como nossos pais e familiares mais próximos. Mas não é como funciona. Mesmo nesse comecinho existe outro espaço de aprendizagem, que inclui a mãe, essa professora primordial, a professora que não sabe que é professora, aquela que ensina como se fosse nossa natureza ensinando. A mãe que semeia o amor que a sociedade deveria cultivar. Tem a mãe e tem os sons, pessoas falando, ruídos, objetos para tocar, sabores para degustar, muita, muita coisa que não pretende ensinar, mas que nos faz aprender. Porém, muito acontece fora da família, e o destino traçado por ela sofrerá desvios, cada vez mais precoces.

Pouco depois do nascimento, somos levados para creches e escolas. A escola começa cedo, aos dois anos de idade, os pais precisam trabalhar, alguém tem que cuidar. A escola também nos ensina comportamentos básicos, segurança e sua ideologia, que é a ideologia do estado e das corporações. A igreja faz de tudo para atuar na educação da criança, e o faz dentro e fora da escola. A instituição militar, com menos frequência, também. O esporte, quando a criança tem a oportunidade de aprendê-lo em instituições, é outro que exerce forte influência. Parte das escolas é de caráter privado, e ensinam, não só a ideologia do estado, mas também a ideologia dos interesses privados. Todos querem seu quinhão da criança que não tem nunca razão, é a criatura a ser medida, moldada, tosquiada. Querem formar nelas cidadãos que acatem as regras, as ordens, que sigam o destino traçado. Os conteúdos declarados pela escola – português, matemática, geografia, química… -, boa parte das vezes não passam de adereços. Nem todos os aprendem. A escola sabe disso, mas não se importa, porque os verdadeiros conteúdos não podem ser declarados, são o mapa de um destino. Por falta de outros significados, os conteúdos declarados pela escola serão avaliados em frequentes provas, infelizmente a maior razão para aprendê-los. Deveriam ter vínculos com as vidas dos alunos e, aí sim, seriam significativos. A questão a ser colocada é: aquilo que a escola ensina cai na prova ou cai na vida?

Um capítulo à parte, ou um texto à parte, deve ser reservado à educação exercida pelos meios de comunicação, especialmente, em nossos tempos, trazida pelos ventos da Internet. Ter um celular à mão deveria fazer parte do que chamo aqui de Rua, mas não, os conteúdos das telinhas foram quase todos sequestrados pelos interesses públicos e privados. Elas são a nova e mais poderosa ferramenta de educação atual. Por trás delas estão os educadores mais poderosos do planeta. Por trás delas atuam o estado, várias instituições e as corporações privadas, estas últimas, as mais agressivas, porquanto vendem seus celulares, que educarão as pessoas para que comprem seus aparelhos, entre eles os próprios celulares.

Parece que tudo conflui para que sigamos, pelo resto da vida, um roteiro traçado finamente, irrepreensivelmente, sem final feliz. Por qual motivo então, com tanta frequência, nos desviamos? Por qual motivo tantos de nós seguem caminhos tão diferentes dos sonhados por nossos pais, pelas corporações, pelo estado ou por outras instituições? Que ruídos desviantes são esses? São os ruídos da Rua.

Eu queria escrever este ensaio, mas me faltava inspiração. Precisei de ajuda e fui ler alguns autores. Li o que pensa Mano Brown, poeta e filósofo, alguém suficientemente sensível para entender o povo, para entender a Rua. Um extraordinário artista. Com palavras mais poéticas que as minhas e com mais sabedoria, ele descreve alguns dos ruídos: Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo”. “Às vezes eu penso que o Brasil foi construído em cima de uma pirâmide de injustiças”. “Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber”. “A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo”.  Não sou poeta, não sou compositor, não tenho arte, só posso escrever o que está ao meu alcance. E aqui me proponho a escrever sobre a Rua e seus ruídos desviantes dos caminhos tão bem traçados para todos nós.

Onde aprendemos o que sabemos? Uma parte aprendemos na família e nas instituições, embora estas não declarem o que verdadeiramente pretendem nos ensinar. A família e a escola, por exemplo, tomam como referência de educação aquele que ensina, muito mais do que aquele que aprende. Se é para traçar um destino irrevogável, o destinatário não deve interferir. O resto do que sabemos, e é muito, aprendemos na Rua, esta sim, sem a intenção de exercer controles, sem plano de destino traçado e sem tomar como referência aquele que ensina, até porque não há um visível que ensine. Na Rua o ponto de vista do processo educacional é aquele que aprende. Fora esse o ponto de vista da escola e de outras instituições teríamos uma revolução. Lembro, nesse ponto, de minha infância na escola, preso ao meu meio metro quadrado de carteira, sonolento e balançando as pernas sob a mesa, único movimento possível. Até quando a professora me pilhava nesse movimento proibido e batia com a régua na carteira para me lembrar que qualquer movimento seria castigado. Ela era muito querida, mas tinha que seguir a regra da régua. Não foi por falta de boas professoras que não aprendi, mas porque não via sentido no que aprendia, a não ser porque caia na prova. Dona Jaci e Dona Célia eram quase nossas mães. Mas todo movimento que não fosse com as mãos era proibido. Mesmo assim aprendi com elas uma boa porção de bondade e carinho, mas não matemática e português. Quem sabe essas matérias do coração não deveriam ser as protagonistas, dando à matemática e português o papel de coadjuvantes? Quando Dona Jaci pegava em minha mão para desenhar as letras, deixava marcas que nunca se apagaram. Isso era educação para a vida.

Embora a Rua esteja fortemente influenciada pelas redes sociais, uma vez que boa parte das pessoas nada faz sem uma tela à frente do rosto, é nela que aprendemos a maior parte do que precisamos saber para viver nossos dia-a-dias. Raramente nos perguntamos de onde veio o conhecimento para construções tão extraordinárias como o samba, o futebol brasileiro e a capoeira. Não foram passes de mágica. Aprendemos a fazer essas coisas do mesmo modo como uma criança aprende a resolver sozinha um quebra-cabeças, a rolar por um gramado, a medir forças com uma colega, a assobiar ou a andar de bicicleta – basta que ela tenha um modelo inicial em mente ou à sua frente para iniciar a aprendizagem. Como aprendemos a fazer o incrível cálculo prático que nos permite atravessar uma rua movimentada evitando os carros? Milhares ou milhões de exemplos possíveis atestam a competência da Rua para nos ensinar a viver, para o bem ou para o mal. Ou alguém acha fácil aprender a traficar drogas? A Rua é, no sentido de nos ensinar a viver, depois da mãe, a grande professora de nossas vidas, a professora invisível, e a única em que o ponto de vista para aprender é o nosso próprio.

A Rua pode ser uma rua mesmo, dessas por onde passamos todos os dias, ladeada por calçadas. No meio dela passam carros de todos os tipos, pode ser asfaltada, calçada por pedras, ser de terra ou areia, ser chamada de rodovia, avenida, servidão, viela ou somente rua. A Rua pode ser o quintal de casa onde as crianças se reúnem sem a presença de adultos, pode ser o pátio da escola, a quadra do condomínio, o quarto de dormir, a mesa do bar, a festa, o encontro fortuito entre pessoas etc., ou seja, qualquer espaço onde podemos aprender sem a presença de pessoas ou instrumentos autorizados a ensinar. A Rua é habitada por crianças e por gente grande. Ensina a todos. As ruas da minha vida foram muitas, entre elas o pátio da minha primeira escola, uma pequena área de cimento de minha casa, e o campinho de terra onde chutei bola pela primeira vez. Interessa-me, neste estudo, acima de tudo o meu campinho de terra e os outros onde milhares de meninos e meninas do Brasil brincam de jogar bola. Porém, como se trata de diminuir as dúvidas sobre o que vem a ser Rua, não me aprofundarei na complexidade do jogo de bola nas ruas do meu país. O fato é que, nessa Rua, eu e meus amigos aprendíamos, e muito. Aprendi mais nela que na escola. Sei disso pelo que sei hoje. E sei que eu queria aprender na Rua mas não queria aprender na escola. E, ao longo de minha vida, não tenho dúvidas de que aprendi mais nas tantas ruas da Rua que nas tantas escolas por onde passei. E, mesmo nas escolas, quando mais aprendi foi quando consegui transformar a escola em Rua. Provavelmente o caso mais extraordinário de educação da Rua é a aprendizagem da língua materna. A criança, de maneira geral, aprende a falar nos primeiros dois anos de vida, em família. Não há ninguém na família responsável por lhe ensinar a língua. Porém, ao fim desses dois anos ela fala suficientemente bem sua língua para se comunicar com sua família. Aprende pelo convívio, aprende repetindo o que ouve, aprende por se divertir com sons até se tornar habilidosa em articular tais sons, aprende por relacionar os sons com os efeitos deles, aprende porque é necessário, aprende porque faz sentido falar no contexto da família, aprende porque está aprendendo de seu ponto de vista no grupo familiar. Aprende com método, com técnicas,  e isso poderia inspirar todas as outras aprendizagens formais, mas isso não acontece. Essa maneira de aprender se repete em todos os outros grupos de que a criança participará. Assim como essa aprendizagem da fala foi lúdica, as demais em grupos infantis também serão. Nas pequenas sociedades lúdicas a criança recebe, em troca de seus esforços, de suas renúncias, prazer, o prazer que o lúdico confere. E por ser gostoso ter essa sensação, ela tende a repetir o que fez, o que deu certo. E quando erra, por não ter a mesma sensação, ela busca corrigir o erro para obter o retorno prazeroso e poder repetir a ação causadora do prazer. Não foi assim que todos nós aprendemos a língua materna? Os sons produzidos e ouvidos pela criança são fonte de prazer, que precisa ser mantida, e a única forma de manter tal prazer é repetir e repetir tais sons. O resultado é o desenvolvimento da extraordinária habilidade de articular sons, que viram vocábulos, que viram palavras, que viram frases… A mesma lógica é válida para aprender qualquer coisa, do futebol à astrofísica, o que me faz pensar em uma Pedagogia da Rua, uma pedagogia inspirada nas aprendizagens das crianças em suas Pequenas Sociedades Lúdicas.

A competência da Rua para ensinar é extraordinária, e estou convencido de que isso deve-se ao fato de que, na educação da Rua (reparem que não estou falando de pedagogia da Rua), quem aprende, aprende de seu ponto de vista. Na Rua, não há ensino, há aprendizagem (e não estou pregando que não haja ensino nas escolas e outras instituições). Essa educação é tão eficaz que os meninos brasileiros do começo do século XX, pobres pretos e brancos, moradores das periferias das cidades, inventaram um novo jeito de jogar futebol: o futebol brasileiro, que encantou o mundo por décadas. Foram criadores apenas de um dos fenômenos culturais mais importantes do século XX e um dos maiores fenômenos culturais da história do Brasil. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa, desde que o método respeite aquele que aprende. E isso remete para uma particularidade da educação, que é a formação de grupos. De maneira geral, na infância, a Rua constitui grupos, que chamarei aqui de Pequenas Sociedades Lúdicas. Não é só em grupos que se aprende, mas, especialmente na infância, é por fazer parte de grupos lúdicos que a criança mais aprende. No grupo, as aprendizagens realizadas fazem sentido, aquilo que a criança faz tem sentido dentro do grupo. Ela aprende aquilo que a faz se sentir pertencendo ao grupo, aprende aquilo que a confirma, que lhe confere identidade, que eleva sua autoestima. O lúdico e a autoestima são os motores das pequenas sociedades lúdicas.

Pronto, isto é Rua. Não é suficiente, mas é o possível em um pequeno texto.

Posto isso, podemos passar à outra parte do termo, isto é, Pedagogia. A pedagogia é um arranjo de elementos que orienta um processo educacional, cujas raízes são realizações práticas. O modo como o observador enxerga tais realizações o conduz a descrever e interpretar o fenômeno ao seu modo, donde resultam muitas teorias educacionais, às vezes, sobre o mesmo fenômeno, se os observadores forem vários. Essas teorias resultantes das observações práticas, arranjadas de modo a pretender orientar processos educacionais, nós as chamamos de pedagogias. Elas comportam um modo de educar, um método. Portanto, uma pedagogia é uma teoria da educação, assim como uma metodologia é uma teoria do método. Daí resulta que não podemos falar de uma pedagogia da Rua enquanto as crianças aprendem nas suas ruas, mas sim de uma educação da Rua. Ou seja, a Rua educa, mas a rua não tem uma Pedagogia. Ela não tem uma pedagogia, mas pode e deve inspirar pedagogias, porquanto sua eficácia é inegável. A criança aprende com imensa eficácia a língua materna, orientada por esse método da Rua (método no sentido de procedimentos, de maneira de fazer as coisas), e não aprende, de maneira geral, o que lhe pretende ensinar a escola. Não por falta de tempo, pois que são quatro horas por dia, duzentos dias por ano, durante doze anos de escolaridade (até que se conclua a adolescência). O ambiente escolar é constituído por prédios fechados, salas retangulares fechadas, repletas de carteiras simetricamente dispostas, onde terão que se sentar as crianças, em seus exíguos espaços de movimentação de meio metro quadrado. Isso não é ambiente para criança aprender, a não ser comportamentos morais, passividade etc. Na Rua, com suas pequenas sociedades lúdicas o ambiente é completamente diferente, a criança aprende o que não lhe ensinam, e aprende muito bem, para o bem ou para o mal. Esse modo de aprender, se inspirasse uma pedagogia, eu a chamaria de Pedagogia da Rua, que poderia ser adaptada, inclusive, ao ambiente escolar, caso houvesse interesse da escola em verdadeiramente ensinar para um bem viver, para um mundo melhor, mais justo. Nessa Pedagogia da Rua, diferentemente do que ocorre na educação da Rua, há quem ensine, porém, o modo de ensinar deve ser completamente diferente do que ocorre tradicionalmente na escola. Há ensino, mas o ponto de vista, a referência, é o do aluno, o de quem aprende, e não o de quem ensina. Vamos ensinar Matemática, por exemplo, mas vamos tomar como referência o modo de aprender do aluno, para então ajustar nosso modo de ensinar. Vamos ensinar Futebol, mas vamos tomar como referência o ponto de vista de quem aprende.

Na Rua, não é a idade que define a entrada da criança. Ela participa de grupos de crianças que são, aproximadamente, da sua idade, mas vai conviver com mais novos e mais velhos, também. Outro critério é o interesse que ela demonstra, de acordo com sua vontade de participar do grupo, do tipo de brincadeira que se realiza nele etc. Também existe a questão da oportunidade, do local onde reside, da escola que frequenta e assim por diante. A criança pode permanecer no grupo ou sair dele. Pode sair e pode voltar. Pode ser convidada ou pode ser excluída. Quando ela está na sua pequena sociedade lúdica onde a brincadeira principal é, por exemplo, o futebol, ou, como elas costumam chamar, o jogo de bola, ela vai entrando aos poucos, observando os mais velhos e os mais habilidosos jogarem, aguardando oportunidades, submetendo-se ao que lhe reservam, experimentando, errando, acertando, atrevendo-se, recuando, levando as aprendizagens para casa, exercitando-se sozinha para depois voltar mais confiante para o grupo etc. Quando erra, não é castigada, pode tentar quantas vezes quiser, quando acerta é aplaudida, pode rir ou chorar com acertos e desacertos, pode receber críticas e comentários dos colegas, pode conversar sobre o jogo quando ele termina. Acima de tudo, ela quer participar do grupo. Podemos dizer que essa adaptação ao grupo é o jeito que as crianças desenvolvem para irem, aos poucos, tornando-se parecidas com o grupo; sem deixar de ser elas, tornam-se, também, a cara de sua pequena sociedade. Claro que várias crianças, em suas fantasias, aspiram ser, um dia, jogadoras de futebol. Mas não creio que seja isso que as mantenha no grupo. Elas possuem essas e muitas outras fantasias. O que elas mais aspiram é ser integrantes do grupo, pertencer a ele, fazer coisas dentro do grupo que as tornem aceitas, que as reforcem, que lhes confiram identidade, que lhes elevem a autoestima. Seu grupo é a coisa mais importante de suas vidas fora da família. E nada será mais importante que serem aceitas nele, que fazerem parte dele. É sua grande oportunidade de se sentirem bem, de terem a autoestima elevada, de serem reconhecidas. Talvez isso não ocorra na família ou na escola, mas na sua pequena sociedade lúdica elas podem ser reconhecidas e aceitas como são, mesmo não sabendo que, com o tempo, elas serão tão mais aceitas quanto mais parecidas com o grupo se tornarem. Se a brincadeira mais importante de um grupo for o jogo de bola, como era no meu caso, nada me fortalecia mais no grupo que aprender a jogar bola. E tudo eu fazia para aprender bem e ser aceito, ser reconhecido. Pensando no que ocorre hoje com a Internet, os grupos, ou pequenas sociedades lúdicas, continuam ensinando muito, e as crianças e jovens de tudo fazem para ser aceitos neles, mesmo que isso lhes custe dissabores e, em alguns casos, a própria vida.

Todas essas coisas são elementos para inspirar uma Pedagogia da Rua. Reparem que há um método nas aprendizagens obtidas na Rua. Não falo aqui do método científico, ou do método usado por adultos para realizar certos trabalhos e apresentações. Falo de método como maneira de fazer as coisas, como uso de técnicas, de gestos para realizar as intenções. Não se aprende ao acaso. Há intenções, há caminhos melhores e piores, há imitações, repetições, exercitações isoladas, temores, audácias, exibicionismo, timidez, porém, ao modo de cada criança. Esse modo de ser de cada criança é o modo de ela ser no grupo, não um modo isolado, destituído de influências nas relações dentro do grupo. Portanto, o modo de ser de cada um é também o modo do grupo, o modo de ela ser no grupo. Sim, não podemos negar as crueldades, o bullying e outras aberrações que conduzem ao sofrimento e ao crime dentro dos grupos. A Rua não tem compromisso com algum tipo de moral. Eventualmente ela repete a moral que vem dos mais velhos, dos adultos, da família, mas não há na Rua um julgamento moral ao modo da família ou da escola. Na Rua há também castigos, repressões, mas as crianças resolvem isso ao seu modo, sem pressões externas. Na Pedagogia da Rua, por outro lado, não se repetirá a crueldade da Rua. Na Pedagogia da Rua perde-se o ambiente da Rua, mas pode-se criar, de outra maneira, a Pequena Sociedade Lúdica. Pode-se compreender que o ponto de vista da aprendizagem é o do aluno. Ele deve ser o protagonista. Os professores podem participar de outra maneira, mais indiretamente, mais sugerindo, mais propondo problemas, mais criando situações, mais fazendo rodas de conversa, mais levantando as opiniões dos alunos, mais ajudando, mais acolhendo, mais perguntando. Na pedagogia da Rua, assim como na educação da Rua, sempre estão em destaque alguns pontos que são fundamentais: o lúdico, o grupo e o interesse do aluno. Na Pedagogia da Rua deve-se trabalhar com uma educação moral de autonomia, levando os alunos a discutirem regras e a criarem as regras necessárias aos seus jogos.

               Os exemplos aqui descritos, a maioria sobre futebol, são apenas ilustrações de uma educação inspiradora de pedagogias que, se aplicadas a outros ambientes educacionais, podem se mostrar muito mais eficazes que as pedagogias escolares, geralmente destituídas de sentido para os alunos. A educação processada na Rua pode ser inspiradora se ficarmos atentos ao modo como se dá essa educação e aos seus efeitos.

Não se trata, portanto, apenas de melhorar a maneira de ensinar futebol ou outro esporte. Quando abordo uma possível Pedagogia da Rua, penso em uma outra maneira de educar o ser humano, nas escolas ou em quaisquer outras instituições. Penso naqueles que já fizeram algo semelhante, como Paulo Freire, entre outros. Por ser brasileiro, o educador que sempre me aparece primeiro é Paulo Freire. O tempo passou, envelheci, e continuo nascendo a cada dia sempre que me empenho por alguma coisa. E as coisas pelas quais mais me empenho são aquelas que me fazem ser aceito nos meus grupos, nas sociedades que habito, das menores às maiores. Tenho a família, tenho os amigos, tenho o meu bairro, minha cidade, meu estado, meu país e meu mundo.

A criatura humana, dada sua fragilidade anatômica, carece do grupo para tornar-se forte. Talvez mais que qualquer outra criatura, estar em grupo é sua chance de sobrevivência. Apesar da fragilidade anatômica, o sistema nervoso da criatura humana é excepcional e produtor de um instrumento extraordinário, que é a imaginação. Sua imaginação lhe permite compreender sua própria fragilidade e a necessidade de estar em grupo. Porém, isso dependerá de educação. Portanto, qualquer educação individualizante enfraquece a criatura humana. Quando livres, as crianças buscam formar grupos, e isso não se dá por acaso, é da natureza humana. Uma educação coerente com a criatura humana deveria entender que toda educação deve ser coletiva. O ser humano não precisa resolver seus problemas sozinho, ele pode resolvê-los coletivamente, sempre com ajuda. A escola, de maneira geral, pratica uma educação individualizante. Na educação da Rua ocorre, tanto educação coletiva quanto individualizante. Porém, no caso das crianças, elas buscam sempre formar grupos e aprender umas com as outras.

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Os diferentes estilos de futebol no Brasil

Por: Cristiano Bassoli

No Brasil, o futebol tem uma diversidade de estilos que muitas vezes reflete as características culturais, históricas e geográficas de cada região. Essa diversidade cria variações interessantes no modo como o esporte é jogado, de fato, muitos associam certos estilos de futebol a estados ou regiões específicas do país. Aqui estão algumas características dos estilos de futebol em diferentes partes do Brasil:

REGIÃO SUL (PARANÁ, SANTA CATARINA, RIO GRANDE DO SUL)

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Estilo de jogo: De força física e marcação intensa.

Características principais: O futebol do sul é conhecido por ser mais competitivo e focado na defesa e na organização tática. Times dessa região tendem a privilegiar uma postura mais defensiva, com muita disciplina tática, e a priorizar um jogo mais reativo. Isso é atribuído em parte ao clima mais frio e ao estilo de vida mais europeu, especialmente no Rio Grande do Sul.

REGIÃO SUDESTE (SÃO PAULO, RIO DE JANEIRO, MINAS GERAIS, ESPÍRITO SANTO)

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Estilo de jogo: Futebol de habilidade técnica e o famoso “futebol-arte”

Características principais: São Paulo é o estado com o maior número de clubes de destaque no futebol brasileiro. A capital paulistana, com vezes como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, desenvolveu um estilo que valoriza o jogo disciplina tática, o coletivo e a organização em campo, sem deixar de lado a habilidade técnica. Já no interior de São Paulo, os clubes também adotam uma forte estrutura tática, mas muitas vezes dependente de revelações jovens e de um jogo mais pragmático, focado no resultado. O estilo carioca é frequentemente associado ao drible, à criatividade e à leveza. Os jogadores do Rio têm tradição de habilidade individual e capacidade de improvisar em campo. Isso deu origem ao conceito do “futebol-arte”. Em São Paulo, o futebol é considerado um pouco mais pragmático, com vezes que costuma adotar uma postura mais equilibrada entre defesa e ataque, enquanto no Rio de Janeiro se valoriza mais a criatividade e a improvisação.

REGIÃO NORDESTE (BAHIA, PERNAMBUCO, CEARÁ, ETC.)

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Estilo de jogo: Futebol de muita garra e velocidade.

Características principais: No Nordeste, o futebol é marcado pela força física, intensidade e pela paixão dos torcedores. Times dessa região têm uma tradição de jogar de forma aguerrida, e jogadores com velocidade são muito valorizados. As condições climáticas mais quentes também influenciam o ritmo do jogo, com partidas muitas vezes mais rápidas e diretas.

Fatores culturais: A rivalidade intensa entre os clubes e a forte ligação com suas torcidas são características marcantes do futebol nordestino, onde a emoção e a intensidade se destacam.

REGIÃO CENTRO-OESTE (GOIÁS, DISTRITO FEDERAL, MATO GROSSO, MATO GROSSO DO SUL)

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Estilo de jogo: Futebol de transição rápida e com ênfase no ataque.

Características principais: Os times do Centro-Oeste tende a jogar um futebol mais ofensivo, com foco em transições rápidas do meio para o ataque. No entanto, a região ainda está em processo de consolidação no futebol nacional, se comparada a outras regiões mais tradicionais.

REGIÃO NORTE (PARÁ, AMAZONAS, ETC.)

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Estilo de jogo: Futebol de resistência e adaptação climática.

Características principais: O futebol no Norte é muito influenciado pelas condições ambientais, com campos mais pesados (principalmente durante a temporada de chuvas) e temperaturas muito elevadas. Os jogadores dessa região costumam ter uma grande resistência física e o jogo pode ser mais cadenciado, para suportar o desgaste causado pelo clima.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Esses estilos não são regras rígidas, mas sim tendências que refletem influências históricas, culturais e até climáticas. O futebol brasileiro, de forma geral, tem uma forte ênfase na criatividade, técnica e habilidade dos jogadores, embora os estilos possam variar de acordo com a região. O “futebol-arte”, que é mais associado ao Rio de Janeiro, contrasta com o futebol mais pragmático e tático de São Paulo. Essas variações tornam o futebol brasileiro muito rico e imprevisível, sendo uma das razões pelas quais o país tem uma das maiores tradições no esporte mundial. Dando continuidade à análise dos estilos de futebol no Brasil, é interessante observar como cada região e estado evoluíram ao longo do tempo e se desenvolveram para o cenário nacional com seus especialistas. Cada estado e região do Brasil contribuem com elementos únicos para o futebol nacional.

Esses estilos refletem a diversidade cultural e geográfica do país, criando uma variedade rica que se traduz em diferentes abordagens táticas, formas de jogar e, acima de tudo, na paixão dos brasileiros. Essa multiplicidade de estilos faz do futebol brasileiro algo único, onde tanto a técnica quanto a força, o improviso e a disciplina coexistem, tornando o Brasil um dos maiores celeiros de talentos no mundo do futebol.

Foto de capa: Lucas Andrade/Pexels

Imagem 1: Luiz Erbes/AGIF

Imagem 2: César Greco

Imagem 3: Felipe Oliveira/EC Bahia

Imagem 4: Roberto Corrêa

Imagem 5: Divulgação/Remo

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Torneios e campeonatos em escolas de futebol: “vilões ou mocinhos”?

Por: Rafael Castellani e João Batista Freire

Em nossos dois últimos textos, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol” e “A “miniaturização” do adulto no futebol”, publicados na Universidade do Futebol, abordamos assuntos que, apesar de extremamente importantes e há tempo presentes nas discussões entre aqueles que compõem o campo esportivo e debates acadêmicos, parecem ainda estar longe de um entendimento e, principalmente, de uma transformação da prática profissional cotidiana daqueles que trabalham como professores, treinadores e/ou gestores, em escolas de futebol.

No primeiro deles, anunciamos o objetivo de nos dedicarmos à cansativa tarefa de “desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições”. Esperamos ter introduzido e discorrido o suficiente para, nestes dois textos antecedentes, justificar e argumentar contra a especialização esportiva precoce no futebol a partir do desenvolvimento moral e cognitivo das crianças, reafirmando nosso entendimento de que o tempo, características e interesses das crianças devem ser respeitados. Criança deve ser tratada como criança!  

Partindo desse pressuposto, as competições (campeonatos e torneios) organizadas pelas escolas de futebol e por empresas especializadas em eventos esportivos são, talvez (numa “briga” ferrenha com os treinos/aulas), o maior exemplo de materialização da especialização esportiva precoce e do tratamento de crianças como miniaturas de adultos no futebol.

É um problema crianças de 6, 8, 10, 12 e 14 anos disputarem campeonatos? Não! Crianças competem desde o primeiro ano de vida e o comportamento competitivo, além de enraizado em nossa cultura, é da natureza humana. Crianças de até seis anos de idade, por exemplo, disputam seus brinquedos, seus espaços, seus familiares mais próximos, entre outras coisas, porque são, ainda, bastante autocentradas, consideram o mundo quase que exclusivamente de seu ponto de vista. A partir dos seis ou sete anos de idade, essa referência começa a mudar, mas ela leva ainda alguns anos para demonstrar maior capacidade de se colocar, com segurança, no ponto de vista do outro. Portanto, durante toda a infância é esperado que as crianças sejam competitivas nesse sentido. Para se ter uma ideia de como é difícil colocar-se no ponto de vista do outro, donde resultam, por exemplo, a compaixão e a solidariedade, não é raro encontrar adultos incapazes de fazer isso.

O problema, então, é disputarem campeonatos nos moldes adultos, com princípios, regulamentos e comportamentos semelhantes aos dos profissionais (dos treinadores/professores, da arbitragem e da família), assim como vemos costumeiramente em todo o país. O problema é reproduzir com crianças as mesmas condições pelas quais passam jovens e adultos nas competições de que participam, voltadas à alta performance.   

Com essa afirmação, esperamos liquidar o questionamento trazido como subtítulo deste texto: campeonatos e torneios de futebol para crianças e jovens não são, em sua essência, nem bons, nem ruins, ou seja, nem mocinhos, nem vilões, eles são aquilo que fazemos deles.

São vilões se crianças e adolescentes disputarem campeonatos com o único objetivo de vencer… se o foco estiver exclusivamente no desempenho esportivo e na conquista do primeiro lugar, passando por cima daqueles que deveriam ser os principais objetivos: a formação humana e integral (que comtempla a formação esportiva nos seus aspectos técnicos, físicos, cognitivos, psicossociais, morais etc.) das crianças que jogam futebol.

São vilões se colocarmos crianças de 6 a 12 anos para disputarem jogos oficiais em campos (oficiais), com dimensões (do campo e das traves, por exemplo) não adaptadas a cada faixa etária. Tamanho e peso da bola, tempo de jogo, dimensões do campo, tamanhos das traves, número de jogadores, quantidade de substituições possíveis, penalidades, pontuação, premiação, perfil da arbitragem…praticamente tudo tem que ser adaptado para cada categoria.

Talvez não haja maldade maior nessas situações do que levar uma criança para um jogo competitivo e deixá-la no banco de reservas o jogo todo, privando-a do prazer e da rica experiência de disputar uma partida de campeonato contra outras crianças. Não obstante, tão triste e motivo de indignação quanto, é presenciar xingamentos, palavrões e cobranças absurdas realizadas por parte dos familiares. Isso é, ou deveria ser, inaceitável!  

O propósito, as regras e os regulamentos dos torneios e campeonatos de crianças devem ser para crianças! Devem respeitar as características, interesses e necessidades das crianças. Devem ser coerentes com o propósito educacional de escolas de futebol.  Se em clubes profissionais, em suas categorias de base, a discussão passa pela necessidade de destinarmos foco à formação, esportiva que seja, e não na conquista de títulos, em escolas de futebol isso deveria ser indiscutível.

Afinal, a competição, tal como a consideramos neste texto, não tem o mesmo caráter quando se trata de jovens em formação para o alto rendimento, tampouco de adultos profissionais. Professores, educadores e gestores preocupados com o bom desenvolvimento integral da criança, pensam a competição de maneira mais abrangente, considerando-a, também, como oportunidade de tomá-la como referência de competência frente ao outro. Não é exatamente um medir forças, mas uma observação da própria força (no sentido de capacidade geral de realização) na relação com o outro. Entendemos, ainda, a competição, do modo como a consideramos aqui, uma excelente oportunidade para que as crianças aprendam, aos poucos, que sem o outro, sequer haveria competição, que é por existir o outro correndo ao seu lado (por exemplo), que ela pode disputar uma corrida de velocidade. Pensar a competição dessa forma é também pensar que, ao mesmo tempo, ocorre cooperação.  

Foto: pixabay

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A comunicação e a sua implementação pelo dirigente esportivo

Por: André de Souza Martins

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

O saber atual associado ao conceito de comunicação, aliado à importância assumida pela comunicação integrada no âmbito das estratégias de marketing, revelou-se decisivo para a aplicação desta abordagem direcionada a um segmento tão específico com é o do futebol profissional.

O desenvolvimento e crescimento de qualquer instituição (ou mesmo liderança desportiva) prende-se com a confiança que nela deposita o seu público. A conservação deste clima de confiança, que é, em grande parte, responsável pela consolidação de qualquer projeto, implica que se estabeleça, entre ambos, um diálogo ininterrupto, recorrendo aos diversos meios e canais disponíveis. Qualquer protagonista/entidade que queira manter uma imagem favorável junto do seu público de interesse terá de lhe dar informação sobre as suas atividades, o seu trabalho e a sua organização, concebendo, para o efeito, um sistema constante de comunicação cuidado e sempre dependente do contexto vivenciado.

No âmbito organizacional, a comunicação assume um papel fulcral na criação e estabelecimento de laços, não só das relações internas, mas, também, na vertente externa, isto é, com os consumidores e stakeholders. A comunicação organizacional centraliza-se, por isso, na estruturação e melhoria da imagem corporativa da organização e/ou empresa, devendo ser compreendida como uma ligação entre a entidade e o(s) consumidor(es). Por tudo isto, a comunicação das organizações funciona como um fator diferenciador no que concerne à performance de uma empresa e ao seu posicionamento no mercado. O mundo da comunicação mudou e, assim sendo, o investimento em produtos publicitários nos grandes media já não é maioritário como outrora se verificava. O marketing direto, promoção de vendas, eventos, relações-públicas, Internet, etc., prosperaram em detrimento dos media tradicionais. A comunicação multicanal está bem-adaptada ao desenvolvimento dos mercados. No entanto, esta tipologia transversal a diversos canais é bem mais complexa de gerir e, por isso, deve existir coerência na formulação das mensagens.

“O agenciamento e a coordenação de um processo completo de comunicação requere uma comunicação integrada de marketing (CIM), planeamento de comunicação de marketing que reconhece o valor agregado de um plano abrangente, capaz de avaliar os papéis estratégicos de diversas disciplinas de comunicação e combiná-las a fim de oferecer clareza, coerência e o máximo impacto por meio da integração coesa de mensagens criteriosas.” (Kotler & Keller, 2013).

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A American Marketing Association define a Comunicação Integrada de Marketing (CIM) como “um processo de planeamento destinado a assegurar que todos os contactos com um cliente ou consumidor em potencial relativo a um produto, serviço ou organização sejam relevantes para essa pessoa e consistentes ao longo do tempo”.

A preparação eficaz de todo o processo de comunicação requer respostas inequívocas para três problemáticas fundamentais: o que dizer (estratégia de mensagem), como dizer (estratégia criativa) e quem deve dizer (fonte da mensagem). Verifica-se, por isso, que a eficiência da comunicação deriva de como a mensagem é exposta e, posteriormente, do próprio conteúdo que lhe está inerente. Uma comunicação ineficaz pode indicar que se escolheu uma mensagem errada ou que a mensagem certa foi transmitida insatisfatoriamente.

Conclui-se, desta forma, que a comunicação multicanal integrada tem por objetivo um melhor retorno dos investimentos de comunicação, aplicando uma estratégia baseada numa construção de canais diferentes, veiculando mensagens coerentes. É orientada para o cliente/consumidor e a sua eficácia passa pelas aptidões pluridisciplinares dos responsáveis que as dirigem e pelas próprias organizações.

A COMUNICAÇÃO NO DIRIGISMO DESPORTIVO

No contexto português, o fenómeno desportivo (futebol) funciona como elemento catalisador de afiliação, dedicação e paixão clubística, responsável pela generalidade das atenções que são, diariamente, conduzidas para os clubes. Esta realidade, que é partilhada pela esmagadora maioria dos emblemas que competem nos escalões profissionais do futebol português contribuíram, decisivamente, para construção da opinião pública veiculada no exterior da organização.

O dirigente desportivo está, atualmente, emparedado numa panóplia de temáticas, que não domina, mas que estão indelevelmente associadas à atividade desportiva e sobre as quais os adeptos esperam (e muitas vezes desesperam por) um posicionamento. Um dos problemas deste território é, pois, a sua (falta de) delimitação, dado que a multidisciplinaridade que o envolve levanta questões de natureza metodológica importantes para a sua sistematização.

Neste sentido, Manuel Queiroz (2009:13) considera que “a modernização do desporto – e da informação que gera – advém da sua transversalidade e da ligação que estabelece a outros campos científicos, como o Direito, a Economia ou a Saúde, que exigem outra preparação aos jornalistas” e, por conseguinte, a todos os outros atores.

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Além desta transversalidade, o dirigente desportivo está atualmente ciente que se move num ramo de negócio que, contrariamente a muitos outros, vive à base das emoções, tem ciclos de avaliação muito próximos (entre jogos) e têm de lidar com exposição mediática incomparavelmente superior a todos os outros sectores de atividade resultante da parafernália de jornais e sites especializados em futebol, programas de debate, blogs e, ainda, secções em todos os jornais generalistas. Para Hugo Gilberto e Manuel Fernandes Silva (2009:7) a comunicação em desporto é um produto multidisciplinar que tem de conviver com “erros de arbitragem, declarações de dirigentes, contacto com claques, blackouts e, ainda, com protagonistas que lidam de forma negativa com as notícias”.

Todo o processo comunicacional, tal como a própria formatação da mensagem, atualmente, é preparado à lupa, por profissionais especializados de forma a que o acompanhamento dos públicos externos seja um elemento definidor de notoriedade e, ao mesmo tempo, diferenciador no mercado mediático e publicitário. Assim sendo, optou-se por escalpelizar cinco princípios que devem ser tidos em conta pelo dirigente desportivo no que concerne à implementação de uma estratégia de comunicação: definição de objetivos, suportes de comunicação, definição de target, análise SWOT, definição de mensagem e cronograma de atividades.

OBJETIVOS

A definição de objetivos é um dos primeiros passos de qualquer campanha integrada de comunicação e serve, segundo Winters e Goodman (1984, p. 124), para determinar o caminho a trilhar durante a ação, devendo, por isso, estabelecer itens mensuráveis e quantitativos que, posteriormente, permitam uma avaliação eficaz.

Todo este processo inicial, que confere objetivos gerais à iniciativa, representa os alicerces em que vai assentar todo o plano e parte, invariavelmente, de uma análise contextualização rigorosa e pragmática ao espectro económico-social, à concorrência e, sobretudo, à performance da marca (resultados desportivos). Por outro lado, os objetivos específicos são passíveis de concretização num determinado eixo temporal, com um custo associado, e permite a associação da comunicação aos resultados financeiros obtidos (Castro, 2002).

Se em qualquer outro sector de atividade, que não tem associado uma carga emocional tão vincada este procedimento obedece já a um conjunto de alíneas significativo, no caso do futebol profissional, que vive muito do espectro sentimental, este tende a ser ainda mais complexo e está, invariavelmente, associado ao desempenho desportivo da equipa e aos tais ciclos curtos de avaliação. A idealização de um plano integrado de comunicação no futebol profissional não pode, por isso, descurar o contexto que o clube atravessa porque pretende, invariavelmente, manter ligada à sua falange de apoio e, posteriormente, fazê-la comungar dos ideais pretendidos.

SUPORTES DE COMUNICAÇÃO

Os clubes de futebol são, na sua grande maioria, empresas cujo alcance ultrapassa largamente as margens do país onde competem, devido uma legião de sócios/adeptos que, graças às plataformas digitais de comunicação, acompanham e participam no seu quotidiano.

Neste sentido, e de forma a responder eficazmente aos desafios lançados pela digitalização, os clubes estão, atualmente, dotados com uma panóplia de ferramentas que permite criar e manter lanços com os seus públicos de interesse como são website institucional, contas verificadas nas principais plataformas digitais de comunicação (Youtube, Facebook, Linkedin, Twitter, Instagram e TikTok), canais de televisão, newsletters, revistas ou jornais. Além de todos estes instrumentos de comunicação controlada, os protagonistas têm, ainda, de lidar com conferências de imprensa, flash-interviews e entrevistas one-to-one.

Contudo, o contacto direto com os associados/simpatizantes continua a ser fundamental para uma franja considerável do target. Por isso, um plano de comunicação que exalte as potencialidades destas plataformas permite, em primeira instância, marcar a agenda de informação, abranger todo o universo que segue a marca e, por fim, agir eficazmente perante as necessidades dos públicos.

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DEFINIÇÃO DE TARGET

Do inglês “Target”, significa “alvo”, mais precisamente o público-alvo que a organização pretende atingir.

A definição do target é um factor primordial na definição da Estratégia (de marketing e comunicação) do clube, sendo importante que a divulgação da nossa oferta seja realizada às “pessoas certas” para obter mais resultados e reduzir os custos. Deve-se, assim, pesquisar, delimitar o público, destacar a oferta e observar, para se poder definir a Estratégia de Comunicação.

Os serviços desportivos encontram-se projetados diretamente para os sócios que, apesar de fazerem parte do público-alvo, têm personalidades e ideias muito diversificadas. Importa, neste sentido, perceber a relação que se quer estabelecer entre clube e adepto/sócio, nomeadamente no que toca às campanhas promovidas para fidelizar de novos adeptos e, por conseguinte, torná-los sócios ativos e integrá-los no quotidiano da instituição. O objetivo é, então, captar público maioritariamente jovem para criar uma ligação longa e fidelizar aqueles que já são sócios do clube.

ANÁLISE SWOT

A Análise SWOT é uma ferramenta utilizada para traçar um diagnóstico de uma empresa ou organização, e que, através da exploração dos seus pontos fortes e fracos, permite agir eficazmente ao nível da gestão e do planeamento estratégico. Esta análise permite, a quem a coloca em prática, uma perceção correta de todo o contexto que norteia a organização, já que, na sua génese, contempla o ambiente interno (forças e fraquezas) e externo (oportunidades e ameaças). As forças e fraquezas são determinadas pela posição atual da empresa e relacionam–se, quase sempre, com fatores internos. Já as oportunidades e ameaças são antecipações do futuro e estão relacionadas a aspetos externos.

O ambiente interno pode ser controlado pela empresa, uma vez que resulta, quase exclusivamente, de estratégias de atuação definidas pelos seus elementos. Desta forma, e durante a análise, quando é percebido um ponto forte, este deve ser ressaltado ao máximo. Ao invés, perante um ponto fraco, a organização deve agir para controlá-lo ou, pelo menos, minimizar seu efeito. Já o ambiente externo está mais fora do alcance da organização. Ainda assim, apesar de não poder controlá-lo tão eficazmente, a empresa deve conhecê-lo e acompanhá-lo com frequência, de forma a aproveitar as oportunidades e evitar as ameaças.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

O timing é um dos aspetos mais importantes aquando da aplicação de um plano de comunicação empresarial eficaz. É necessário ter em consideração diversos fatores que poderão afetar a compreensão por parte do público-alvo, da nossa estratégia, que possam colocar em perigo a sua implantação e, em último caso, fazer com que os nossos públicos reajam com aversão às nossas propostas. O melhor exemplo deste princípio são as campanhas de angariação/renovação de associados que são, invariavelmente, lançadas no início das épocas, altura em que os adeptos têm mais esperança em bons resultados desportivos.

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CONCLUSÃO

O futebol há muito que saltou as linhas que delimitam o campo e é hoje um fenómeno social à escala planetária que apenas encontra paralelo em pontos do globo muito específicos com raízes culturais profundas.

Assim sendo, as instituições desportivas e, por conseguinte, os seus líderes têm estratégias cada vez mais direcionadas para as massas, confirmando, de resto, a premissa de que o futebol é um evento social e uma modalidade de excelência. Este é, contudo, um mercado muito específico onde, por exemplo, o conceito tradicional de concorrência, pura e dura, não existe, contrariamente ao que se verifica noutros sectores de atividade. Os adeptos/sócios não mudam de clube, estão fidelizados e o grande desafio do dirigente é criar condições para que o relacionamento não esfrie e, dessa forma, rentabilizar financeiramente a ligação levando, por exemplo, à compra de lugares anuais, equipamentos, merchandising, etc.,

Com a realização deste artigo, apresenta-se um conjunto de linhas orientadoras para o dirigente desportivo implementar uma estratégia de comunicação eficaz num emblema do futebol profissional. Esta proposta começa com a caracterização do ecossistema do futebol profissional, onde são exaltadas as especificidades ramo de negócios e a caracterização dos principais seguidores do clube. Feito o diagnóstico, passa-se aos alicerces que devem monitorizar um plano de comunicação integrado, e que engloba definição de objetivos, suportes de comunicação, definição de target, análise SWOT, definição de mensagem e cronograma de atividades.

Os novos formatos das competições europeias, a centralização dos direitos televisivos e a mais do que provável participação de emblemas em competições além-fronteiras são os desafios que se avizinham para os dirigentes desportivos que, perante este novo oásis de receitas, terão de se reajustar e refazer os planos operacionais de comunicação sob pena de perderem o comboio e, por conseguinte, deixarem escapar receitas importantes para a consolidação dos seus projetos desportivos.

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Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Em volta daquela mesa

Por: João Batista Freire

Quando acabou meu futebol de menino, acabaram também minhas esperanças de me tornar profissional de futebol. Tive que trabalhar e o esporte possível era o de finais de semana. Insisti com o Atletismo, até que fui trabalhar com formação de jovens para esse esporte. Anos depois voltei ao futebol de várzea nos finais de semana. Meu time era de veteranos, gente com mais de 40 anos. Gente que só esperava o apito final para correr ao bar mais próximo, arrodear uma mesa e enfeitá-la com garrafas de cerveja. E aí começava o terceiro tempo, nosso melhor jogo, o tempo da falação. Aí a gente crescia enquanto voltávamos a ser meninos. Se o placar fosse adverso, e isso era frequente, nós o invertíamos com os argumentos da injustiça, das bolas na trave, do juiz comprado, dos gols perdidos, do domínio da bola, da pancadaria do adversário, do sol muito quente, do estado do gramado (que nem sempre existia), da diferença de idade.

Ríamos de nós mesmos, ríamos das mentiras deslavadas, das narrativas distorcidas. Os goleiros praticavam defesas naquela mesa de cervejas nunca vistas nos melhores clássicos do Maracanã. E a coisa crescia, as proezas germinavam ao sabor do líquido frio que massageava a garganta seca. “Viu como deixei o lateral esquerdo naquela descida? Deu até pena.” O campo de futebol é o único local em que se sobe ou se desce no plano. E tome de contar histórias, e tome de inventar um outro jogo, um jogo que nunca aconteceu antes de sentarmos naquela mesa, um jogo maravilhoso que nos transformava em heróis de nós mesmos, heróis sem troféus, sem medalhas, sem glórias e sem remuneração. Algo que escapa à maioria das pessoas é que o futebol não se resume aos 90 minutos de 22 jogadores perseguindo a meta adversária. O futebol transcende as quatro linhas e prossegue nas mesas de bares, nos debates pelo rádio e TV, nos intervalos do trabalho, no interior das famílias. Todo jogo de futebol tem muito mais que 90 minutos.

Aquela mesa de bar enfeitada por garrafas de cervejas era sagrada. Quantas vezes não chegamos atrasados à missa de domingo, ao almoço com a família, à bilheteria do cinema, para não faltar ao compromisso de nosso tão querido terceiro tempo, o tempo que nos tornava possíveis. Fazer o quê, éramos apenas meninos grandes, meninos inocentes que cresceram, mas não deixaram de ser meninos. Por vezes, em volta daquela mesa, fomos o melhor de nós mesmos.


Foto: Bruno Doro/UOL Esporte

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O planejamento no futebol com uma visão integral e humanizada dos alunos/atletas

Por: Denise Lemos Fernandes

O planejamento no futebol vai muito além da organização tática e física das equipes. Quando concebido com uma visão integral e humanizada, ele se torna um instrumento poderoso para a formação não apenas de atletas, mas de indivíduos preparados para os desafios dentro e fora de campo. A partir da experiência adquirida no desenvolvimento de metodologias para categorias de base e na elaboração de guias para treinadores, compartilho aqui uma abordagem que busca equilibrar o desenvolvimento técnico, tático, físico e emocional dos jogadores.

A BASE DO PLANEJAMENTO: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Para que o planejamento seja eficaz, é essencial que ele contemple o desenvolvimento técnico e físico dos atletas. A preparação deve priorizar o fortalecimento da potência, força e velocidade, garantindo que os jogadores estejam prontos para as exigências do futebol moderno. Exercícios que simulam situações reais de jogo, treinos de explosão muscular e atividades de resistência são fundamentais para o crescimento esportivo. Mais do que aprimorar a parte física, é necessário criar desafios que incentivem a rápida tomada de decisão e a adaptação a diferentes cenários dentro de campo.

Outro ponto essencial no planejamento é o comprometimento e a pontualidade. Criar uma cultura de responsabilidade dentro da equipe significa estabelecer padrões elevados de disciplina e organização. Isso se traduz em treinamentos bem estruturados, respeito aos horários e à programação, o entendimento de que cada detalhe influencia diretamente na performance coletiva. Pequenas ações, como reuniões pré-treino para alinhamento dos objetivos diários e reflexões pós-treino sobre o desempenho, ajudam a consolidar essa mentalidade.

Além disso, a construção da equipe e a identidade de jogo são aspectos determinantes. Para formar um grupo coeso e estratégico, é fundamental que cada atleta compreenda seu papel dentro do modelo adotado. Trabalhar a coletividade, promover interações constantes entre os atletas e estimular a comunicação são estratégias eficazes para potencializar a coesão tática. O uso de pequenos desafios em grupo, dinâmicas de confiança e jogos reduzidos com regras específicas são formas de integrar e reforçar os princípios que nortearão a equipe dentro das partidas.

ESTRUTURA DAS SESSÕES DE TREINO

A estrutura das sessões de treino deve ser adaptada às diferentes faixas etárias, respeitando o nível de maturação dos atletas. Para crianças de 4 a 7 anos, as atividades devem ser lúdicas e estimulantes, priorizando a coordenação motora e o contato inicial com a bola. Jogos como “rouba bandeira” e desafios simples ajudam a desenvolver habilidades motoras e a criar uma relação prazerosa com o futebol.

Dos 8 aos 11 anos, as sessões devem começar a introduzir conceitos básicos de tática e posicionamento, sem perder a essência divertida do jogo. Exercícios como triangulações, passes curtos e longos e finalizações começam a ser incorporados, garantindo que os atletas desenvolvam habilidades técnicas fundamentais. Na faixa etária dos 12 aos 15 anos, o treinamento se torna mais específico, com ênfase na tomada de decisão e na leitura de jogo. A transição entre setores, marcação e compactação são trabalhadas com mais intensidade. Jogos reduzidos 5×5 e 7×7 com objetivos específicos ajudam os atletas a pensar estrategicamente dentro do campo.

A partir dos 15 anos, o foco se amplia para a consolidação da identidade do jogo, com ajustes táticos refinados e treinos voltados para a alta performance. Sessões que simulam situações reais de jogo e desafios técnicos que exigem inteligência tática são essenciais para preparar os atletas para a competitividade do futebol profissional.

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A DINÂMICA DO CUBO MÁGICO: UMA METÁFORA PARA O DESENVOLVIMENTO

A Dinâmica do Cubo Mágico é uma das estratégias aplicadas nos treinamentos para reforçar a importância da organização, do trabalho em equipe e da adaptação às mudanças. Durante os treinos, os atletas são divididos em pequenos grupos e recebem um desafio: organizar cones de maneira estratégica, simulando a lógica de um cubo mágico. Por exemplo, cada jogador pode mexer em uma peça do cubo e precisa encontrar a melhor forma de encaixar dentro da estrutura. O exercício estimula a leitura de jogo, a comunicação eficiente e a rápida tomada de decisão. Além disso, a relação entre a dinâmica e o jogo formal se dá na necessidade de ajustar constantemente a posição e a estratégia para alcançar um objetivo comum, reforçando conceitos de compactação, movimentação e transições rápidas, seja para atacar ou defender.

Essa abordagem permite que os atletas desenvolvam raciocínio lógico, resiliência e a capacidade de solucionar problemas sob pressão. Ao compreender que cada peça do cubo mágico tem uma função específica e que todas precisam trabalhar juntas para formar a estrutura ideal, assimilam a importância do coletivo no futebol.

Esse entendimento é transferido para o jogo formal, onde o sucesso da equipe depende da conexão entre os setores e da inteligência tática aplicada em tempo real.

A VISÃO HUMANIZADA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO

O futebol deve ir além da preparação esportiva, incorporando elementos que fortaleçam a identidade e o crescimento pessoal dos atletas. O uso de textos e livros como A Boa Sorte, que trabalha a construção estratégica e a resiliência, e A Arte da Guerra, que reforça conceitos de planejamento e adaptação, permite ampliar a visão dos jogadores sobre o esporte e a vida. Além disso, textos de Rubem Alves incentivam a reflexão sobre aprendizado e criatividade, promovendo um ambiente de treino mais estimulante e significativo.

Para consolidar essa abordagem, os atletas são incentivados a realizar tarefas diárias/semanais/mensais, como reflexões sobre seus pontos fortes e áreas de melhoria, e a participar de discussões sobre leituras que estimulem a tomada de decisão e a resiliência. O uso de um formulário personalizado pode ajudar a entender melhor seus objetivos, motivações e desafios, garantindo um acompanhamento individualizado e promovendo um crescimento contínuo.

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PLANEJAMENTO COMO DIFERENCIAL COMPETITIVO

Um planejamento bem estruturado impacta diretamente o desempenho da equipe. A organização em blocos de tempo dentro dos treinos permite otimizar a aprendizagem sem comprometer a intensidade. Além disso, a inclusão de espaços para feedback e a adaptação constante das atividades garantem que cada jogador possa evoluir dentro do seu ritmo.

CONCLUSÃO

A formação de um atleta deve ir além do aprimoramento técnico/tático e físico. O estudo contínuo sobre o jogo, aliado à busca por conhecimento em diferentes áreas, amplia a compreensão do esporte e potencializa a tomada de decisões dentro de campo. Compreender a teoria, refletir sobre o próprio desempenho e buscar novas referências são atitudes que diferenciam os grandes jogadores e treinadores.

Além do conhecimento tático e técnico, o fortalecimento dos laços de afetividade dentro da equipe é essencial. O ambiente de treino deve ser um espaço de trocas, aprendizado e cooperação, onde o respeito e a empatia são incentivados diariamente. Relações sólidas e saudáveis dentro do grupo favorecem a evolução coletiva e criam um ambiente propício ao desenvolvimento humano.

Dessa forma, ao promover uma abordagem integral e humanizada no planejamento esportivo, contribuímos para a construção de indivíduos mais preparados, conscientes e comprometidos. O verdadeiro legado do futebol não está apenas nos títulos e conquistas, mas no impacto que ele gera na vida daqueles que o vivenciam com dedicação e paixão.

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Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Um dia nosso futebol foi brasileiro

Por: João Batista Freire

Um dia tivemos um futebol livre, alegre, independente. Um dia que começou quando crianças e jovens pobres, pretos e brancos, das periferias das cidades brasileiras, tiveram contato com o futebol vindo da Inglaterra e de outros países europeus. Estávamos no começo do século XX. Esses mesmos brasileiros, quase sempre reprovados e excluídos do sistema de ensino oficial, considerados incapazes de aprender, passaram, não só a brincar com essa nova modalidade, mas a criar um outro jeito de jogar futebol. Por não poderem frequentar os grandes clubes, por não sofrerem a influência do modo de jogar dos ingleses, e por não serem controlados por professores e técnicos, brincaram de futebol ao modo deles, transformaram o futebol em uma brincadeira de jogar com qualquer tipo de bola em qualquer terreno possível. Essa gente considerada incapaz de aprender, eternamente esmagada pelo peso da cultura discriminatória europeia, não só era capaz de aprender bem, mas até de reinventar o grande e nobre esporte que encantava as elites brasileiras. E o austero futebol inglês, o sofisticado esporte bretão, virou, nos pés de nossos meninos pobres, o futebol brasileiro.

O futebol brasileiro, que por tantas décadas encantou o mundo, nasceu em um espaço que escapou ao mundo colonializado. A colonialidade é o fenômeno de submissão de um povo ao poder dos povos colonizadores – de modo geral, países do Norte global -, e preenche o espaço deixado pela colonização, quando a submissão é imposta fisicamente, presencialmente, como ocorreu no Brasil português e na América Espanhola durante séculos. Ter proclamado a independência não livrou os povos da América do Sul, assim como os da África, das imposições aos modos de pensar, de falar, de se comportar, de comer, de ouvir e assim por diante. A colonialidade se impôs onde antes havia colonização. Todos os dias, quando nossas crianças vão às escolas, os antigos colonizadores, com suas culturas atuais de povos do Norte global, invadem suas mentes através dos currículos escolares, que possuem, todos eles, em seus núcleos, as insinuações invisíveis dos antigos colonizadores. O mesmo ocorre quando ligamos nossos aparelhos de TV, quando vamos aos fast-foods ou quando abrimos nossas redes sociais. No entanto, aqueles meninos pobres das periferias das nossas cidades, por serem excluídos do nobre esporte bretão, puderam brincar com ele sem as pressões do chamado primeiro mundo. Ou seja, puderam jogar futebol como brasileiros. Aprenderam tão bem que superaram os inventores do futebol inglês. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa; depende do modo de ensinar e de aprender. Deslocaram o foco da aprendizagem para aquele que aprende, ao passo que, nas escolas, o foco está em quem ensina.

Com o passar das décadas o futebol brasileiro incomodou sobremaneira os europeus. A partir do início dos anos 2000, ele foi sendo solapado por influências europeias e econômicas e está, atualmente, em extinção. Disso já tratei em outro texto que publiquei na Universidade do Futebol (A assepsia da arte de jogar futebol). O resultado aí está: preferimos assistir aos jogos das ligas europeias – e até da liga árabe. Nossas crianças pedem aos pais para comprarem camisas de ídolos de clubes europeus. Não há jogador jovem de destaque no Brasil que não seja negociado com clubes europeus (às vezes para países árabes ou norte-americanos). Nossos técnicos (com algumas exceções), preferem seguir os esquemas rígidos dos técnicos de clubes europeus a serem criativos e jogar ao modo brasileiro. Nossos craques, quando entram em campo, não conseguem representar o futebol brasileiro; jogam um futebol europeu, não conseguem mais ser brasileiros e ficam perdidos em campo.

Mas não bastam as críticas. Criticar é fundamental, mas, no mundo do esporte, apontar soluções é sempre mais interessante.

Não só os esportistas, mas todas as pessoas do mundo, aumentam suas chances de sucesso quando têm oportunidades de agir como elas mesmas. Somos pessoas únicas, originais. Nossa educação deveria nos orientar para sermos cada vez mais nós mesmos. Não se trata de uma proposta individualista, pelo contrário; quando somos cada vez mais nós mesmos, nos tornamos cada vez mais diferentes uns dos outros. E só pessoas diferentes podem realizar trocas ricas. Só pessoas diferentes têm o que trocar. Uma sociedade rica, democrática, deve ser feita por pessoas cada vez mais diferentes. As chances de sucesso de João são tão maiores quanto mais João puder ser João. Isso é válido para qualquer pessoa. Portanto, o futebol brasileiro terá tanto mais chances quanto mais puder ser brasileiro. E ele já o foi um dia, criado pelos meninos pobres das periferias das cidades brasileiras. Não é loucura aspirar a volta do futebol brasileiro, não como já foi um dia, mas inspirado por ele e do modo como poderia ser hoje. Não é loucura, é sanidade.

E como fazer para voltarmos a ter um futebol brasileiro? Há muitos obstáculos, é evidente. Basta ver como a imprensa desportiva trata aqueles técnicos que buscam esse modo de jogar futebol. Serão muito mais cobrados que aqueles que buscam as formas tradicionais, seguras, fundadas na ideia de não perder, no sentimento de medo. Um futebol fundado na alegria, na diversão, no lúdico, é muito mais arriscado. Aqueles que buscam esse caminho são mais cobrados, menos perdoados quando perdem, às vezes massacrados e até encerram suas carreiras por falta de oportunidades.  

Não se trata de saudosismo. Esse futebol inventado pelos brasileiros constitui um saber considerável, um saber que está guardado nas memórias dos que o viveram e dos que conseguem ter contato com ele por diversas formas. Esses que viveram esse futebol, não necessariamente possuem belos discursos a esse respeito, e por isso não são reconhecidos por quem só considera a linguagem culta, acadêmica. São discursos proferidos na linguagem de quem viveu a prática, porém, acolhedores de um saber profundo, que pode ser resgatado e inspirador de modos de educar para o futebol e para a vida. Portanto, promover um ensino do futebol, hoje, fundado nos saberes do futebol inventado pelos brasileiros, e pelo ponto de vista de quem vai receber essa educação, é plenamente viável.

Sem dúvida, o mais forte motor desse futebol brasileiro é o lúdico, porque ele foi inventado em brincadeiras de crianças e adolescentes. Foi do lúdico que ele surgiu, tendo como modelo o futebol que já se praticava em vários países europeus e, em seguida, nos clubes de elite do Brasil. E por qual motivo o lúdico tem esse poder criativo de forjar, a partir de um modelo europeu, um futebol tipicamente brasileiro? Que força tem esse lúdico? Todos os que lerem este artigo foram ou ainda são pessoas brincadoras. Quando crianças provavelmente eram mais brincadoras que hoje. Se revirarem suas memórias perceberão o quanto já criaram enquanto brincavam, quantas coisas inventaram, quantas brincadeiras foram modificadas, recriadas. Porém, para a ideologia conservadora do futebol, que preconiza a eliminação do risco, que tem o medo como referência, o não perder como estratégia, o defender mais que o atacar, a rotina em vez da criatividade, o lúdico é um fantasma a ser evitado. Sei que é difícil definir o que é o lúdico, mas, sem dúvida, fazem parte dele o mistério, o risco, o imprevisível, a graça. Que graça tem um jogo de cartas marcadas?

É mais viável vivenciar o risco no ambiente lúdico que no ambiente de rotina, de tarefa, de trabalho. Quando nos pomos a executar uma rotina de trabalho, nosso compromisso é quase que exclusivamente com quem exigiu a tarefa, portanto, o compromisso é com algo externo a nós. Por outro lado, quando realizamos ações lúdicas, isto é, quando jogamos, não há compromisso com algo externo a nós. Sem contar com o fato de que o jogo é, em seu núcleo, uma simulação, um faz-de-conta, portanto, as consequências do erro não são graves, não há punição, porque não é necessário prestar contas fora do jogo. No caso do futebol profissional, como em qualquer esporte profissional, as ações comportam um misto de lúdico com trabalho, uma vez que os jogadores são contratados, recebem remuneração para jogar, precisam prestar contas do que fazem. Porém, há a parte lúdica, uma vez que futebol é um jogo, e todo jogo é lúdico. Por mais que o jogador tenha que prestar contas de suas ações, ele é envolvido nessa atmosfera lúdica que lhe permite, como uma criança, correr riscos de errar sem o peso das punições face aos erros cometidos no trabalho. Os treinadores de futebol precisam compreender o significado do lúdico no jogo de futebol e explorar esse fator em treinamentos e partidas. Os jogadores precisam ser convencidos a jogar, ao passo que certos esquemas de futebol os obrigam a apenas trabalhar.

É preciso, portanto, criar, nos treinamentos, um ambiente lúdico; sem abandonar, claro, o ambiente de trabalho. Os dois não são incompatíveis. Só no ambiente lúdico os jogadores serão capazes de ousar, de ir um pouco além do habitual, de se arriscar, de se divertir brincando de jogar bola. Só nesse ambiente lúdico serão capazes de se preparar para não abandonar o lúdico enquanto cumprem a tarefa de disputar partidas contra adversários. Portanto, nessa mistura de lúdico com trabalho, que é o jogo de futebol, é o lúdico que permitirá ao jogador a audácia de correr riscos ao lidar com o imprevisível (há outras ocasiões em que o ser humano corre riscos, e até extremos, fora do lúdico, mas não é nosso tema aqui).

É muito difícil definir as características do jogo. No entanto, não há jogo sem a presença do lúdico e do imprevisível. Como qualquer outro jogo, o futebol é um território de imprevisibilidades e de ludicidade. Quem pratica futebol somente por profissão, nunca terá a oportunidade de jogar e será incapaz de lidar adequadamente com o imprevisível durante uma partida. No mundo do trabalho evita-se o risco, teme-se o imprevisível. Porém, no mundo do lúdico, o modo como encaramos o que chamamos de responsabilidade, muda. É como se, no mundo do lúdico, tudo pudesse sempre começar de novo quando algo desse errado. E isso é verdade no jogo. Por pior que seja o resultado, outros jogos existirão em seguida e tudo poderá ser retomado.   

Aos saudosistas do futebol arte do Brasil, dos tempos em que tínhamos o melhor futebol do mundo, do futebol que parecia com a brincadeira de jogar bola na rua, posso adiantar que esse tempo não voltará. Mas o modo como esse futebol foi criado está nas memórias de todos nós e pode servir de inspiração para reinventarmos novamente o futebol, tornando-o brasileiro. Os caminhos nós já conhecemos e eu tentei descrevê-los, ao menos parcialmente. É preciso recriar o ambiente lúdico nos treinamentos e partidas. Um jogador de futebol precisa, antes de mais nada, aprender a jogar e, em seguida, aprender a jogar futebol de maneira lúdica. A cada momento de uma partida, o imprevisível surge inevitavelmente. Não adianta lutar contra o inevitável, o caminho é aprender a lidar com esse imprevisível, e só o ambiente lúdico permite lidar bem com ele. Um jogador nunca saberá exatamente o que acontecerá no lance seguinte, mas, sem dúvida, será algo diferente de tudo que já viveu antes, por mais que guarde semelhanças. Para dar conta de algo, portanto, pelo menos parcialmente novo, ele terá que criar uma solução nova. Ou seja, terá que ser um jogador criativo. E onde se forma esse jogador criativo? Na brincadeira de jogar bola.

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Futebol de rua e a importância da brincadeira

Por: João Batista Freire e Rafael Castellani

É praticamente impossível conhecermos uma criança que não goste de brincar. Para elas, tudo aquilo que é percebido como brincadeira, causa um efeito irresistível de experimentá-lo, de se deixar envolver. É tentador para toda, e qualquer criança, deixar qualquer coisa que esteja fazendo para se envolver com uma brincadeira. Essa tentação também é experimentada pelos adultos, no entanto, passam anos aprendendo a resistir a sedução da brincadeira. Fazem-no para se tornarem sérios e poder trabalhar, dar conta das obrigações, governar, obedecer. Tornam-se pessoas disciplinadas. Reservam, para a diversão, apenas momentos especiais. Mas brincar, cair na farra, é muito bom! De vez em quando esses adultos não resistem e quebram a disciplina, fogem às obrigações, distraem dos trabalhos… é como se, nesses momentos, entregassem o controle de suas ações ao jogo. É, esse tal de jogo, brincadeira, chamem do que quiser, é irresistível! começar pela raiz que justifica o mandato do Presidente da Confederação Brasileira de Futebol:

Houve um tempo, não muito longevo, que brincar de bola na rua era a principal diversão e passatempo das crianças. Brincava-se de golzinho, bobinho, altinha, rebatida e, quando a situação tomava ares de seriedade, até “jogo contra” a rua vizinha acontecia. Não que os videogames não tenham nada a ensinar às nossas crianças, mas nada se compara ao poder educativo de uma boa brincadeira de futebol na rua. E aprendia-se muito! É uma pena que as escolas de educação formal, e as “escolinhas de futebol”, não tenham se dado conta ainda do quanto a criança aprende brincando.

Parte do desinteresse que nossas crianças apresentam pela escola deve-se ao fato de não verem sentido e razão naquilo que ensinam. Mas, principalmente, pela forma com que cada conteúdo, relacionado à matemática, português, história, dentre outros componentes curriculares, é ensinado. É chato aprender. Sentados numa carteira por horas, sem poderem levantar-se, correr e rir, ouvindo e copiando “matéria” da lousa, é de se esperar que não gerem interesse nas crianças mesmo. Se fosse do jeito que as brincadeiras se mostram para elas, sem dúvida qualquer matéria escolar seria interessante, afinal, seriam coisas de crianças. E raramente uma criança é tratada como criança.

Até nas “escolinhas” de futebol crianças são tratadas, frequentemente, como miniaturas de atletas profissionais. Às vezes para satisfazer os interesses dos pais ou do mercado, às vezes por puro desconhecimento, é comum os professores das escolas de esporte reproduzirem os treinos realizados por atletas de alto nível ainda que, obviamente, respeitando critérios de complexidade e intensidade. O mesmo acontece em outros ambientes que fazem parte da vida da criança. É comum, na família, serem tratadas como protótipos de adultos projetados pelos pais, na escola, como projetos de adultos idealizados por este ou aquele grupo de adultos, na religião, idem.

E onde as crianças possuem mais liberdade para se expressarem como crianças? Na rua! Por isso, o futebol de rua é tão divertido, é tão atraente e gera tanta aprendizagem.

Acostumamo-nos à ideia de que, para aprender futebol atualmente, devemos nos recorrer às “escolinhas” de futebol ou às categorias de base dos clubes. Afinal, é nestes espaços que se encontram os “detentores” do saber (não à toa as escolas comandas por ex-atletas são muito procuradas). No entanto, pouco refletimos sobre a aprendizagem propiciada nestes ambientes. Via de regra, se reconhece que as crianças aprendem algo, sobre futebol, especificamente, fora da escola de educação formal ou escolas e clubes de futebol, mas pouco valor se dá à forma como aprendem nestes outros espaços. É como se educação sem mestre declarado não fosse exatamente uma educação, de forma que não poderia ser descrita. Ou seja, a ideia geral ainda é aquela, segundo a qual, quando aprendemos algo, é porque alguém preparado para ensinar nos ensinou.

A rua é entendida por nós como um espaço público de educação quando nos referimos a formação para a vida em cidadania, a vida coletiva, a vida política e social. Vale destacar, também, que a rua, conforme a entendemos, não se limita ao intervalo delimitado pelas calçadas e onde trafegam os carros e bicicletas, mas, também, as praças, praias, campinhos de várzea; é um ambiente no qual as crianças aprendem a jogar bola, independente da presença de um adulto ou professor, pois nela, eles brincam. E quando brincam, se divertem. Se interessam por aquela prática, pois ela lhe dá prazer. Brincar, para as crianças, é coisa séria!

A APRENDIZAGEM INEVITÁVEL E INCONTROLÁVEL DA RUA

Imaginemos um grupo de quatro crianças, dois meninos e duas meninas, entre quatro e cinco anos de idade brincando de “Copa do Mundo de futebol” na garagem da casa de uma delas. Vamos chamar esse espaço de rua, porque não é convencional, não há adultos ensinando crianças, tampouco há um currículo, livros didáticos, aprendizagem institucionalizada e outras características típicas da educação formal que se desenvolve no ambiente escolar.

Portanto, vale destacar novamente que a rua, tal como a abordamos neste texto, não se restringe a um espaço público, limitado por calçadas, onde circulam pessoas, automóveis, bicicletas… No espaço das crianças de nosso exemplo, há bolas, roupas, bonecos, caixas de papelão, chinelos (os gols) e outros objetos. Todas falam aqui e ali, a mais velha fala mais, pegam objetos, colocam em lugares combinados, tiram, colocam de novo, organizam os bonecos torcedores, os bonecos da imprensa, e começam a brincar de futebol enquanto uma delas passa a narrar o jogo durante o jogo. Difícil acompanhar e entender o que fazem; é tudo muito criativo e diversificado.

Aparentemente, imitam o que é feito pelos jogadores profissionais, mas não é igual. Tudo tem uma conotação mágica, os problemas são resolvidos rapidamente, as brigas, que ocorrem com frequência, dissipam-se, não restam mágoas, a brincadeira prossegue. Há algumas aprendizagens visíveis pela diminuição das dificuldades em realizar um gesto ou uma jogada, pelo entendimento das sugestões da criança mais velha, pelas imitações etc.

Mas isso não é tudo. Numa avaliação convencional, somente essas coisas visíveis poderiam ser solicitadas. Se deixarmos de lado hipóteses de avaliação, podemos aventar inúmeras outras aprendizagens não perceptíveis superficialmente, portanto, impossíveis de provas convencionais.

Em todo processo de formação de conhecimento, ou de aprendizagem, há uma maneira de formar o conhecimento ou de aprender. Na família, de modo geral, há imposições de comportamentos feitas pelos adultos em relação às crianças: “Não”, “Isso está errado”, “É melhor fazer assim”, “Você vai se machucar” etc. Na escola convencional, o processo é orientado por professores com autoridade para transmitir conhecimentos, seja pelo cargo que ocupam, seja pela formação acadêmica que possuem. Esses conhecimentos são previamente preparados, desde um currículo nacional até um plano de aula, e impostos aos alunos. Senão com a mesma severidade que ocorre em família, pelo menos com advertências igualmente rigorosas em relação às consequências da recusa ou do fracasso quanto à aprendizagem. Na rua, é outra coisa. Embora no grupo aqui considerado haja uma criança mais velha sugerindo, e até dando ordens, não há a mesma seriedade quanto a isso, nem da parte de quem sugere, nem dos mais novos. É um faz-de-conta, um tipo de jogo, onde tudo é de mentirinha. Portanto, a pressão do compromisso, típico da família, da escola e de qualquer tarefa obrigatória, não existe.

Até porque, no ambiente lúdico, o descompromisso com algo exterior aos jogadores é o fundamento. Na brincadeira dessas crianças, nada parece ser sério na visão dos adultos, nada parece ter utilidade. Portanto, é um jogo. Se não é útil, então, é jogo. Claro que estamos considerando o termo utilidade somente do ponto de vista da visão adulta utilitária. As consequências dessas brincadeiras para a formação de vida dessas crianças ainda estão longe de ser compreendidas por nossos pesquisadores.

Os riscos imaginários de tentar o novo e de criar em ambientes institucionais, como a família ou a escola, fazem as pessoas, boa parte das vezes, relutar, recuar, evitar enfrentar as novidades ou apresentar alguma criação. Mas no ambiente lúdico, até o medo é de mentirinha, e surge como desafio a ser enfrentado. No caso das crianças brincando de futebol, elas inventam um ambiente onde muitas situações podem ser criadas, dando margem ao enfrentamento de novidades e mesmo à provocação de novidades. São apenas quatro crianças, mas elas criam um ambiente que, além de lúdico, é fora das instituições reconhecidas pela sociedade como responsáveis pela educação das crianças, como a família e a escola. De certa maneira, trata-se de outro grupo social; um grupo que agora habita um espaço público, o que é bem diferente da família e da escola, embora com as restrições do insipiente desenvolvimento de crianças muito novas.

Mesmo considerando que o desenvolvimento moral e social dessas crianças é insuficiente, elas estão começando a habitar um mundo que não é mais o mundo privado. A literatura costuma descrever a entrada da criança no mundo público a partir do momento em que, segundo determinadas teorias, ela está madura, por volta dos seis a sete anos de idade. Mas isso não procede, porque não é algo que um dia começa, afinal, sempre esteve lá na criança, potencialmente.

Apenas que, enquanto amadurecem funções como a imaginação, a motricidade, as relações afetivas, a própria ampliação da motricidade e do pensamento, com a consequente ampliação do espaço de atuação, a criança entra em relação com outros que não os da vida privada. É o caso das crianças aqui descritas. Claro que estamos falando da sociedade de hoje; no mundo antigo, as relações, tanto em casa como fora dela, eram bastante distintas das atuais.

Também não nos referimos à vida privada e pública, familiar e social ou política dos adultos. Nosso interesse, neste momento, é exclusivamente em relação às crianças e sua passagem do espaço privado para o espaço público. Essa passagem para a vida pública, que no grupo das crianças aqui descritas, não distingue as meninas dos meninos, daí por diante ganha diferenças notáveis.

Especialmente quando nossa atenção volta-se, acima de tudo, para a educação da rua e, como decorrência, a Pedagogia da Rua, manda a tradição de nossa sociedade, que os meninos terão acesso menos limitado à rua que as meninas. E isso terá consequências dramáticas e, possivelmente, devastadoras. Entre elas uma sociedade definida e dirigida, por vezes, desastrosamente, pelos homens. Há um mundo a ser descoberto, porque negligenciado historicamente por nossas pesquisas. Um mundo habitado por crianças, em um espaço público que escapa à educação familiar e escolar, que ainda não foi compreendido. Possivelmente os grupos infantis constituem a sociedade mais precoce de nossas vidas. A formação para a vida pública deve começar nesses grupos, essas pequenas sociedades infantis, que ainda não compreendemos, porque não as estudamos.

A RUA NOS ENSINA MUITO MAIS DO QUE DRIBLAR, PASSAR E FAZER GOLS

A escola não é a Rua. Tampouco a rua é a escola. A rua é outro ambiente, com outra orientação, outro modo de fazer as coisas, e onde as relações se estabelecem de outra forma. Diferente. Nem melhor, nem pior. Aprender a controlar bem a bola em uma brincadeira de rua, não significa que fazer do mesmo jeito na escola levará ao mesmo resultado. Principalmente porque não será possível fazer do mesmo jeito. A Rua, isto é, o espaço de convivência de crianças (mas também de adolescentes e adultos em diversas situações), tem características irreprodutíveis.

Quando a prática da Rua vai para a aula na escola – por exemplo, uma brincadeira – ela é, ou deveria ser, pedagogizada. Significa que servirá a propósitos diferentes, porque a escola, ou qualquer outra instituição de ensino, tem compromissos com a sociedade fora dela mesma. Ela prepara conscientemente para uma vida em sociedade (mesmo que esse trabalho não seja bem-feito); a Rua não tem essa orientação. A brincadeira de Rua esgota-se nela mesma, é jogo apenas, isto é, aquele tipo de acontecimento que não tem qualquer compromisso além dele mesmo.

Isso não quer dizer que as aprendizagens da Rua não terão repercussões em diversas outras situações ao longo do tempo futuro, inclusive na escola. Porém, na Rua não há esse propósito, afinal, a Rua não é uma instituição cujos propósitos e ideologias estão declarados. Mais especificamente no caso do Futebol, quando o ensino é institucionalizado, tal como se busca fazer principalmente nas escolas de futebol e categorias de base dos clubes, é possível ocorrer uma orientação pedagógica totalmente desvinculada da cultura da Rua, assim como é possível também adotar uma orientação pedagógica que procura reproduzir a Rua ou tê-la como referência. Em parte, isso significa trazer para as aulas e treinos de futebol, seja nas escolas de esporte ou categorias de base dos clubes, o aspecto lúdico, sobretudo por seu caráter de diversão, de alegria e de prazer, e as questões afetivas que permeiam toda e qualquer prática social, neste caso, o futebol.

O prazer e a alegria de jogar futebol não estão presentes somente em crianças e jovens. Sim, está certo que é nesses períodos de vida que mais podemos brincar e nos divertir, mas não é porque crescemos e nos tornamos adultos que o futebol precisa se tornar algo maçante, chato, repetitivo e desprovido de alegria e divertimento. O que mais diverte crianças e jovens na prática do futebol: aguardar numa fila seu raro momento para dar um chute na bola ou brincar de rebatida? Driblar cones em direção ao outro lado do campo ou brincar de driblinho/golzinho na rua? E os adultos (e aqui vale considerar até mesmo os(as) atletas profissionais): quando correm em volta do campo para aquecer ou quando brincam de bobinho?

É comum vermos, independente da instituição/espaço na qual se ensina o futebol às crianças e adolescentes, cones dispostos simetricamente em filas para serem fintados ou driblados. Vale ressaltar que tal prática também é notada, com frequência, no âmbito do futebol profissional, com adultos. Diante destas circunstâncias, não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar a finta ou drible, não há tensão, não há diversão, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados.

Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue. Quando muito, resta, para quebrar a monotonia, uma ou outra fantasia que meninos e meninas produzam, intimamente, sem que ninguém saiba disso além deles mesmos.

Julgam os inventores da tal “pedagogia do cone”, que isso levará os praticantes ao conhecimento e desenvolvimento de determinadas ações técnicas relacionadas ao futebol, tal qual a finta, drible, condução, entre outras. Há método nisso, claro, mesmo que esse método não habite a consciência do inventor. Nada se faz sem método. Trata-se de um método de transmissão, pura e simples. Um professor ou treinador diz para um aluno ou atleta repetir o gesto de contornar os cones, porque, dessa maneira, o aluno/atleta repetidor aprenderá a conduzir a bola e driblar um adversário. O adversário, no caso, é o cone, e o repetidor terá que realizar um enorme esforço criativo (talvez consiga, talvez não) para imaginar que o cone é seu adversário. É esperado pelo inventor, ou mero reprodutor, da pedagogia do cone que, como resultado desses exercícios, os jogadores (repetidores), quando estiverem participando de um jogo contra um time adversário, possam aplicar o conhecimento de conduzir e fintar cones diante de pessoas de carne e osso.

Há algum sentido nisso? Com tal procedimento, os meninos e meninas aprenderão o difícil gesto de fintar e driblar adversários em jogos de futebol? Sim, é impossível que nada se aprenda agindo dessa maneira. Os pés dos meninos e meninas se ajustarão ao gesto, que ficará mais refinado. Há um objetivo nisso que orientará o modo de tocar a bola, de se ajustar a ela, de mantê-la sob controle enquanto a pessoa muda de direção etc. As repetições filtrarão o gesto, eliminarão resíduos e, ao final, algum conhecimento restará. Alguns dirão que o gesto técnico estará refinado! Ainda assim, de que forma se espera que crianças e jovens se envolvam em exercícios como esse? Com alegria e prazer? Ou com tédio e impaciência diante do “interminável” tempo de espera nas filas?

Porém, é bom que se esclareça: embora ocorra alguma aprendizagem a respeito da arte de fintar, driblar ou conduzir a bola, neste caso específico, essa arte se aplica, antes de tudo, aos cones, não às pessoas.

Considerando que cones são pouco semelhantes às pessoas, quando, no jogo, no lugar de cones houver adversários de carne e osso, a generalização desse conhecimento será, provavelmente, muito pequena, ou insignificante. Convenhamos que é bem diferente fintar um cone e fintar uma pessoa! Ou seja, de que adianta um(a) jogador(a) possuir uma técnica refinada para determinados gestos se este não poderá ser reproduzido no contexto do jogo?

Imaginemos agora outra situação: meninas e meninos aprendendo a fintar ou driblar pessoas. Uma professora propôs um jogo em que seus alunos serão incentivados a fintar ou driblar e conduzir uma bola durante uma prática muito divertida. Eles tentam fazer gols, mas há mais defensores que atacantes. E qualquer gol feito após uma finta vale o dobro.

Como difere esta situação da anterior, em que os praticantes (sejam eles crianças, adolescentes e até mesmo adultos que já praticam o futebol profissionalmente) tinham que conduzir a bola e fintar ou driblar cones, não é mesmo?! Os adversários não estão dispostos estaticamente em filas. O risco de perder a bola é permanente, os adversários não param de se movimentar, o tempo para agir é mínimo, a imprevisibilidade é a marca de todas as ações, a tensão é constante, mas, ainda assim cria diversão, há jogo, há alegria, há prazer. Os adversários são de carne e osso, não ficam inertes, dóceis e os gestos de quem vai fintar não podem ser previamente determinados.

Imaginemos, também, que, na mesma aula/treino, a criança viveu, não uma, mas dez ou quinze situações em que teve que enfrentar um adversário e decidiu fintá-lo. A cada vez, seus gestos, mesmo sendo semelhantes a gestos anteriores, não eram iguais. Não eram iguais, porque seus oponentes eram diferentes, a posição no espaço era diferente, as reações dos adversários eram sempre diferentes, e porque ela, a cada vez, mantinha uma relação estreita com o adversário, suas reações tornavam-se sempre diferentes.

Algumas vezes ela conseguia fintar, em outras não, e tudo isso se incorporava ao seu baú de repertórios, ao seu leque de oportunidades. Em uma única aula ela acumulou em seu repertório, talvez, centenas de novos movimentos, somente em relação à finta. Claro que todos esses movimentos guardam semelhanças, pois têm em comum o gesto mais geral da finta (ou drible), mas que, na vida de ações práticas, não existe; é apenas um esquema geral que une todas as ações de fintar, pois nunca um gesto para fintar será igual a qualquer gesto anterior.

Seguramente, a criança que fintava pessoas repetiu muito mais vezes o gesto de fintar, durante uma aula, que a criança que fintava cones, mas em ambas as situações, as repetições eram de caráter completamente diferentes.

Sob nosso entendimento, é muito mais significativo o enriquecimento das coordenações que formam a habilidade de fintar (ou driblar e conduzir a bola, por exemplo) quando se trata de fintar pessoas. Sem contar que consideramos apenas o plano das coordenações motoras.

Sequer discutimos (e isso deverá ser feito em outro momento), por exemplo, o plano afetivo, afinal, não é preciso ter coragem para fintar um cone, mas é preciso ter coragem para fintar uma pessoa. Um cone não dá medo, uma pessoa pode dar, e assim por diante. Tentemos traduzir em um exemplo aquilo que vimos buscando explicitar. Imagine uma menina, criança, de apenas nove anos de idade, chamada Cinara. Cinara tinha frequentado durante seis meses uma escola de futebol. Nessa escola de futebol, seus maiores oponentes eram cones. E ela aprendeu a fintar cones. Tornou-se exímia dribladora de cones. Mas Cinara pediu para deixar a escola de futebol depois do primeiro jogo contra a equipe de outra escola de futebol, pois ela não conseguiu driblar ninguém e nem marcou gols. Deu “tudo errado” e saiu do jogo chateada. Sua mãe ouviu falar de uma escola de futebol que as crianças adoravam e matriculou Cinara nessa outra escola. Ela começou a aprender a jogar futebol de outro jeito, não havia cones, parecia mais difícil, mas a professora inventava um monte de brincadeiras de driblar e as crianças se divertiam muito. Erravam bastante e, num primeiro momento, Cinara errava muito mais do que quando driblava cones, mas também acertava bastante. Quando foram fazer o primeiro jogo contra outra equipe, Cinara conseguiu driblar várias vezes e saiu muito feliz do jogo. Até hoje ela está nessa escola de esporte.

Quando a Cinara, ou qualquer outra criança, jovem ou adulto em fase de aprendizagem, conduz a bola durante o jogo e pára na frente do adversário, ela pode ter várias opções, mas tem um tempo mínimo para se colocar diante de tais opções e escolher a melhor. Isso não quer dizer que, conscientemente, colocará à sua frente todas as opções de gestos que acumulou. Trata-se de um processo quase que inteiramente inconsciente. Vamos supor que ela tenha escolhido como melhor opção fintar seu oponente.

Novamente, vale ressaltar, o adversário não é um cone, é uma pessoa e tem um tamanho diferente de todos os outros adversários. Seu oponente se mexe, ele não fica parado como um cone, e isso dificulta tudo. Cinara experimenta se mover para o lado direito, o adversário faz o mesmo e a cerca, ela volta, para, movimenta-se para frente e volta, imediatamente sai pela esquerda, pára, retrocede, avança pela esquerda de novo e consegue enganar seu(- sua) rival. Ao contrário do que ocorria quando tinha que driblar um cone, ela fez, não um, mas dezenas de gestos diferentes.

Teve êxito, mas poderia não ter tido. Mas se fracassasse, o enriquecimento de seu repertório para fintar, ainda assim, seria enorme. Cada gesto feito ficou guardado, como em um banco de dados. Nas próximas vezes em que ela tiver que enfrentar a situação de fintar, poderá recorrer a um repertório maior que nas vezes anteriores.

Vale ressaltar, entretanto, que o foco deste texto não é discutir se nos aquecemos melhor correndo em volta do campo ou jogando bobinho. Ou se aprendemos a driblar melhor passando por um cone ou jogando golzinho na rua, mas sim trazer para o debate a ideia de que tudo isso pode ser feito com alegria, diversão, prazer, ou seja, fazendo da prática do futebol uma experiência positiva, prazerosa e, consequentemente, duradoura. Como já antecipamos, o outro aspecto que gostaríamos de destacar, também ligado ao plano afetivo, refere-se aos desafios, medos, situações de sucesso e fracasso, que costumeiramente a rua nos ensina.

Certamente, realizar um drible em um adversário é muito mais instigante do que em um cone ou em um adversário invisível.

Executar uma finalização ou desarme com a cabeça a partir de uma bola cruzada da lateral e com a presença de um adversário é muito mais desafiador do que lançar a bola com as mãos para o próprio cabeceio. Marcar ou enfrentar a marcação de um jogador mais rápido, mais alto ou mais forte que você, lhe ensinará muito mais a lidar com o medo do que ser marcado por um cone. Ou seja, é certamente no contato com o outro, em situação real ou simulada de jogo, que esses aprendizados se dão de modo mais intenso e permanente.

Isso não significa que, automaticamente, tal tipo de aprendizagem se transfere para outras situações de vida. A rua não tem esse compromisso. Num primeiro momento, aquilo que uma criança aprende jogando bola, superando medos, fracassando e sendo bem-sucedida, vivenciando o êxito ou a frustração, restringe-se ao plano imediato das ações práticas do jogo. A repercussão dessas aprendizagens na vida fora do jogo e ao longo da vida, mantém-se como mistério; muito do que sabemos, especialmente no plano afetivo, não sabemos de onde veio.

Porém, a rua não tem compromisso pedagógico. A aprendizagem da rua é uma aprendizagem ligada ao que se vive; na rua, aprende-se a viver, vivendo. Porém, quando compreendemos o que se passa na rua e transpomos esses ensinamentos para as escolas ou clubes, começamos uma outra história.

A escola sim, tem compromisso com ensinar tecnicamente, de imediato, e também com a formação para a vida. Aquilo que a rua faz tão bem, a escola tem que fazer, pelo menos, razoavelmente. E aquilo que a rua não faz, a escola tem que fazer. O que os conhecimentos de cada prática transcendem a própria prática e se estendem a outros campos do conhecimento (por exemplo, a superação de desafios, a definição de estratégias se transferindo ao conhecimento matemático) são, em boa parte, componentes de nosso inconsciente.

Podem chegar a outros campos do conhecimento, mas não saberemos como, nem quando. Porém, essa educação da rua transformada em pedagogia nas escolas pode alimentar uma metodologia que produza tomadas de consciência. Aí sim, os conhecimentos tornados, ao menos parcialmente, conscientes, podem ser orientados para potencializar conhecimentos em outras áreas.

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Inteligência emocional: Um olhar sobre o futebol

Por: Maurício Rech

A população do Brasil lidera mundialmente em níveis de ansiedade, conforme apontam dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), o que se reflete diretamente no esporte. Atletas de futebol, expostos à pressão por resultados, às críticas da mídia e às expectativas de torcedores, enfrentam desafios emocionais intensos. Além disso, o uso excessivo de redes sociais e tecnologia tem sido identificado como um fator que contribui para o aumento da ansiedade entre os jovens brasileiros (45% dos casos de ansiedade entre jovens de 15 a 29 anos estão relacionados ao uso intenso dessas plataformas). De forma geral, a ansiedade elevada pode comprometer tanto o desempenho profissional quanto a saúde mental, causando déficit de concentração, tomada de decisões impulsivas e aumento do estresse competitivo. Nesse contexto, a inteligência emocional surge como um recurso valioso para ajudar atletas a lidar com essas demandas psicológicas e a encontrar equilíbrio mental nas suas rotinas.


A inteligência emocional é definida como a capacidade de reconhecer, compreender e gerenciar as próprias emoções, bem como de lidar com as emoções dos outros de maneira eficaz. No contexto esportivo ela desempenha um papel fundamental, especialmente em esportes coletivos como o futebol, em que as relações interpessoais e a gestão emocional são cruciais para o desempenho individual e da equipe.

Historicamente, a inteligência emocional foi incorporada ao mundo dos esportes de alto rendimento como uma ferramenta para aprimorar a performance dos atletas, indo além do treinamento físico e técnico. Estudos científicos na área esportiva mostraram que atletas com maior capacidade de gerir suas emoções tendem a lidar melhor com a pressão de competições, recuperam-se mais rapidamente de fracassos e constroem relações mais saudáveis com colegas e treinadores. Equipes de elite no futebol têm investido em programas psicológicos voltados ao desenvolvimento da inteligência emocional, utilizando psicoeducação e capacitação em saúde mental para integrar estratégias emocionais aos treinamentos. Popularizada pelo psicólogo Daniel Goleman nos anos 90, a inteligência emocional está alicerçada em cinco fatores principais: autoconsciência, autocontrole, motivação, empatia e habilidades sociais. Este conjunto de fatores está presente no cotidiano dos atletas de futebol de maneira integrada, tanto em treinamentos quanto em competições, por isso a necessidade de desenvolvê-los de forma consciente e adequada. Treinadores também utilizam esses conceitos para liderar seus times de forma assertiva e emocionalmente equilibrada, contribuindo para uma dinâmica de grupo mais saudável. Vejamos:

  • A autoconsciência permite que os jogadores identifiquem suas emoções e compreendam como elas influenciam o desempenho em campo. Por exemplo, um atleta que reconhece sua ansiedade antes de uma partida pode usar técnicas de respiração para se acalmar.
  • O autocontrole é essencial para gerenciar reações impulsivas, como a frustração após um erro, ajudando o jogador a manter o foco no jogo.
  • A motivação intrínseca é um dos principais impulsionadores de resiliência e superação, permitindo que os atletas estabeleçam metas claras e persistam mesmo diante de adversidades.
  • A empatia possibilita que os atletas compreendam as necessidades e sentimentos dos colegas, promovendo uma comunicação mais eficaz dentro do time.
  • As habilidades sociais garantem que os jogadores trabalhem bem em equipe, resolvam conflitos e fortaleçam os laços interpessoais, criando um ambiente harmonioso e cooperativo.

Por outro lado, a ausência ou falta de inteligência emocional entre atletas e treinadores pode gerar diversas dificuldades. Treinadores com baixos níveis de inteligência emocional frequentemente apresentam dificuldades em lidar com o estresse e as pressões inerentes ao ambiente esportivo, o que pode resultar em reações impulsivas, comunicação ineficaz e conflitos dentro da equipe. Em alguns casos, isso leva à perda de autoridade e à desmotivação dos jogadores. Já atletas com pouca inteligência emocional podem ter dificuldades em controlar emoções desagradáveis, como frustração ou ansiedade, o que pode impactar diretamente o desempenho em campo. Além disso, a incapacidade de lidar com derrotas ou situações adversas pode gerar queda de confiança, atritos interpessoais e até mesmo a deterioração do ambiente de trabalho em equipe.

A inserção da inteligência emocional no dia a dia dos clubes e atletas mostra-se cada vez mais associada ao crescimento integral do esportista e o sucesso das equipes, promovendo um ambiente capaz de lidar de forma mais equilibrada e funcional com derrotas e vitórias. Além disso, atletas emocionalmente inteligentes não apenas performam melhor em campo, mas também constroem uma carreira mais equilibrada e sustentável. A inteligência emocional, portanto, é uma aliada indispensável para transformar o futebol em uma experiência enriquecedora e bem-sucedida.

Maurício Rech tem formação acadêmica com Mestrado em Psicologia e Saúde e graduação em Direito, além de extensões nas áreas de Filosofia, Psicologia e Neurociências. Atua como professor, pesquisador científico e palestrante na área de Saúde Mental e Desenvolvimento Humano, integrando a área de psicoeducação aos seus trabalhos anteriores no esporte como advogado, agente e Diretor Executivo de Futebol Profissional e Categorias de Base.

Foto: Marcelo Cortes/CRF

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Flow, atenção plena, coerência cardíaca e alto rendimento no futebol: A tríade do desempenho ótimo

Por: Ito Edson

Já foi referenciado, bastantes vezes, que o futebol está inserido em um sistema complexo e alcançar um desempenho de alto nível exige mais do que apenas habilidades técnicas e táticas. É necessária uma abordagem sistêmica para seu melhor entendimento, na qual vários fatores, em interação, podem melhorar o desempenho dos jogadores e das equipes.

O sucesso no campo depende, também, da capacidade mental e emocional dos jogadores, da forma como estão preparados para lidar com os vários momentos e problemas que aparecem ao longo da semana de vida e de trabalho, e durante os jogos. Cada situação com que o jogador se depara em campo, influencia a sua tomada de decisão. Podemos encontrar, como base na otimização do desempenho no futebol, a interseção entre três conceitos que consideramos sólidos e fundamentais na compreensão do mesmo, que são: o Flow Feeling, a atenção plena (mindfulness) e a coerência cardíaca.

O conceito de Flow Feeling, que se traduz na “imersão total no jogo (numa tarefa, em geral)”, foi introduzido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, e descreve um estado mental em que o jogador está completamente imerso nas tarefas a desempenhar durante a partida (movimentos, técnicas, etc.). Durante o flow, o atleta experimenta um foco intenso, a sensação de controle sobre suas ações e a perda da noção do tempo. Pensemos em um grande gol marcado de livre direto, apenas como exemplo. Um atleta em flow em uma situação de gol em livre direto, descreveria a ação em câmara lenta, com o ruído do público ao seu redor a silenciar-se, dar-se-ia conta de cada mínimo detalhe que aconteceu durante a marcação do livre, como se todos os sentidos do mesmo estivessem apenas voltados para essa ação. Seria como se “o mundo parasse” e o tempo abrandasse, apenas para marcar aquele livre.

A maioria dos atletas que descrevem casos de flow, referem-se a essas mesmas sensações, que se traduzem em momentos de elevado desempenho natural e fluido, onde o jogador reage instintivamente ms situações do jogo, as distrações desaparecem e o desempenho atinge a sua plenitude. Ele está totalmente conectado com o momento presente, o que é crucial para fazer passes precisos, tomar decisões rápidas e reagir eficazmente aos movimentos dos adversários. Um outro conceito da tríade a que nos referimos, é o de atenção plena, ou mindfulness, fundamental para um foco continuado durante uma partida de futebol

O mindfulness, que tem raízes na filosofia budista, estudado e disseminado na cultura ocidental por Jon Kabat-Zinn, é uma técnica que envolve treinar a mente para permanecermos conscientes de onde estamos e do que estamos fazendo. Observando pensamentos e sensações sem julgamento nem reações excessivas, reativas ou oprimidas pelo que está acontecendo ao nosso redor, ajuda m manutenção da concentração, em cada momento do jogo. É a capacidade humana de estar totalmente “no presente”. Esse foco exclusivo no momento, no jogo, ajuda o joga- dor de futebol a evitar distrações e preocupações, por exemplo, com o resultado final, com ações dos outros que não controla ou com os erros técnico-táticos cometidos pelo mesmo.

Praticar mindfulness ajuda a reduzir o estresse, a ansiedade, e outras sensações que podem prejudicar o desempenho em campo. Além disso, melhora a capacidade de foco tornando mais fácil a transição para o estado de flow feeling, anteriormente descrito. Ao estar consciente e focalizado no momento presente, o jogador pode responder melhor ms situações dinâmicas que acontecem durante o jogo e manter a calma sob pressão, um dos lemas conhecidos, dos famosos NAVY SEALs: “stay calm in chaos / mantenha-se calmo no caos”. Finalmente, em interação com os conceitos anteriormente descritos, o de Coerência Cardíaca, desenvolvido pelo Instituto HeartMath e que influencia, também, o equilíbrio físico e emocional do jogador durante a partida, pro- movendo uma melhoria do seu foco. É uma técnica de respiração que regula o ritmo cardíaco e ajuda a sincronizar o corpo e a mente.

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Pode ser especialmente útil durante momentos de alta pressão ou esforços físicos intensos. Ao promover uma respiração regular e profunda, a coerência cardíaca reduz o estresse e melhora a atenção. Durante uma partida, a prática da coerência cardíaca pode ajudar o jogador a manter a calma em situações críticas, ou momentos decisivos, como em cobranças de pênalti, de escanteio, finalizações decisivas, alívios de bola, carrinhos, dribles, passes com elevado nível de dificuldade e perigo, provocações em campo e fora dele, entre outras. Isso permite uma melhor clareza mental e aumento do controle emocional, facilitando a execução do jogador e, consequentemente, o desempenho da equipe, mantendo elevada qualidade nas tomadas de decisão.

Estas três práticas dos conceitos que apelidamos, resumidamente, da tríade do desempenho ótimo, fazem parte de uma realidade sistêmica, na qual tudo influencia tudo, e servem, não apenas para aprimorar as habilidades técnicas e táticas, como referimos no início deste artigo mas, também, fortalecer a mentalidade e as emoções do jogador e, consequentemente, das equipes.

Antes, durante e depois dos treinos e jogos, o jogador pode utilizar técnicas para praticar estes métodos da tríade: Flow Feeling, Atenção Plena e Coerência Cardíaca, e assim obter benefícios que o ajudarão a identificar áreas de bom desempenho e outras para melhoria do mesmo, mantendo uma atitude construtiva, ao longo de todo o processo.

Foto capa: Twitter/Manchester City

Imagem 1: Jewel SAMAD/AFP

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/