Spanish midfielder Andres Iniesta (C) drives the ball surrounded by Croatian players during the Euro 2012 football championships match Croatia vs Spain on June 18, 2012 at the Gdansk Arena. AFPPHOTO/ PATRIK STOLLARZ
Por: Lucas Trae
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Falar sobre tática individual sempre gera bons debates no meio do futebol. Quando esse assunto vem à tona, costuma estar associado à tomada de decisão do atleta. Embora possa parecer complexo, discutir esse tema é uma oportunidade de estudo para que os treinadores não tratem os jogadores como robôs, que apenas seguem decisões predefinidas. É essencial que os jogadores desenvolvam um repertório de ações e aprendam a interpretar o jogo, permitindo que tomem suas próprias decisões.
A tomada de decisão de um atleta é influenciada por diversos fatores. Entre os fatores externos, estão o adversário, os companheiros e o espaço disponível; já os fatores internos incluem a confiança e a qualidade técnica do jogador. No entanto, antes de abordarmos a tomada de decisão, há outro aspecto que poucas vezes é explorado, mas que considero muito importante: a intenção na ação.
Ter intencionalidade nas ações proporciona um maior controle do jogo. Em vez de apenas reagir às variáveis do jogo, o jogador deve aprender a manipular o adversário de diferentes maneiras para gerar vantagens a seu favor.
De forma sucinta, identifico duas intenções claras ao realizar qualquer ação com a bola: dominar ou ganhar espaço. A partir disso, podemos estabelecer alguns critérios de execução para essas intenções. Para o jogador que possui a bola, podemos considerar a fixação, que consiste em atrair defensores para o portador da bola, mexendo com a intenção do adversário. Para o jogador sem a bola, podemos falar sobre desmarque, que se refere a movimentos intencionais para dominar ou ganhar espaços efetivos em benefício próprio. Outro critério é a mobilização, que envolve intencionais que atraem defensores, beneficiando tanto seus companheiros quanto o próprio jogador em ações subsequentes. Por fim, apoiar significa criar e ocupar ângulos que possibilitem dar continuidade ao jogo, progredir ou definir o ataque.
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Considero que o maior desafio é coordenar esses critérios entre todos os jogadores da equipe. Por isso, o ideal é que as ações sejam coordenadas em grupos menores, de no máximo três jogadores. Isso não significa que não possam ser aplicadas entre mais ou menos jogadores, mas se aplicadas em relações menores tendem a ter um resultado mais expressivo do que em relações com mais jogadores.
Essas relações, apesar de ser entre poucos jogadores, independente de função e local do campo, podem resumir as diversas possibilidades que existem dentro de um jogo.
Elas podem variar em relações verticais, diagonais, horizontais, com diferentes distâncias e ritmos alternados, além de também se reajustarem durante as ações. O mais importante é que o treinador não precisa mecanizar as ações para que elas sejam coordenadas. Em vez disso, deve criar cenários de treino onde os atletas possam decidir e se expressar, utilizando critérios de execução que os ajudem a interpretar qual abordagem é mais vantajosa em diferentes situações de jogo. É fundamental evitar impor ao atleta o que ele deve fazer, permitindo que ele pense e tome suas próprias decisões.
Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/
Em 2008 escrevi um capítulo de livro intitulado Um mundo melhor, uma outra educação física, em que afirmei que “… a reinvenção do futebol à brasileira deu-se à revelia da educação física. Nossos jogadores foram forjados nos campos de várzea, nos pequenos espaços de areia, terra ou grama que grassavam pelo Brasil afora.” p. 58 (Freire, 2008). Lá pelos anos 1980, creio, o dramaturgo brasileiro Plínio Marcos disse que o futebol brasileiro estava se acabando e era a ginástica (educação física) que estava causando o estrago. De qualquer maneira, era preciso destruir o modelo brasileiro e sul-americano, caso contrário, ele prevaleceria por muito mais tempo. Escrevi, na época: “O antídoto para essa cultura tão típica já existia: era preciso fazer com que a educação física assumisse o futebol, prática para a qual sempre fechara os olhos. E ela assumiu, seguindo os sábios conselhos das ciências modernas que orbitavam ao seu redor (a fisiologia do esforço, a biomecânica etc., as chamadas ciências do esporte).” P. 59 (idem). O futebol genuinamente brasileiro ainda resistiu por algum tempo, mas, no início dos anos 2000 dava sinais de cansaço. Sempre fomos bombardeados por um colonialismo cultural que nos chega pelas matrizes curriculares, pelas ciências duras de fundo europeu, pelo cinema norte-americano, jornais e redes sociais, entre outros meios. É difícil resistir a isso. Esse colonialismo cultural poderia ser chamado de colonialidade, termo usado por vários autores, entre eles o peruano Anibal Quijano (Quijano, 2019), um tipo de dominação que sucede o colonialismo físico, aquele que tinha a presença do colonizador nos cargos definidores da política, da economia e da cultura.
Aqui e ali surgiam jogadores que insistiam em jogar ao modo brasileiro, porém, de modo geral, a orientação passou a ser: tornar-se cada vez mais forte, cada vez mais defensivo, cada vez mais disciplinado a um sistema rígido de posicionamento em campo. E nada de correr riscos, como se o jogo, por definição, não fosse um fenômeno movido pelo risco, pela imprevisibilidade. O medo, nesse tipo de jogo, é a referência. A ousadia é a bruxa que deve ser levada à fogueira. E foi assim que, aos poucos, nosso futebol passou a se parecer, cada vez mais, com o futebol europeu, sem ter, contudo, o poder econômico para contratar os melhores jogadores do mundo e, pior, sem ter poder econômico para manter, nos times brasileiros, alguns dos melhores jogadores do mundo, revelados em nosso país. E nosso futebol foi se empobrecendo até chegar ao ponto em que chegamos hoje, quando nossos grandes craques internacionais só jogam por aqui quando não conseguem mais contratos na Europa, Estados Unidos ou países árabes.
A explicação do fenômeno de mediocrização do futebol brasileiro não é exclusiva do futebol, é um fenômeno mundial de colonialidade dos países periféricos. No tempo do Brasil colônia, ou da África colônia, as potências europeias extraíam o máximo possível de riquezas dos países colonizados. No tempo atual, da colonialidade, potências europeias, assim como a grande potência norteamericana, extraem o máximo possível de riquezas de nosso país sem que precisem estar presentes fisicamente. Enriquecem com nossas matérias primas, enriquecem nos convencendo a comprar suas quinquilharias, enriquecem com nossos jogadores de futebol, enriquecem dominando nossas vontades, enriquecem restringindo nossa capacidade de escolha, enriquecem evitando que tenhamos a oportunidade de desenvolver um pensamento crítico, enriquecem subtraindo nossas consciências. Esse é o efeito da colonialidade. No ano 2000, Enrique Dussel escreveu: “… é que o espírito da Europa (germânico) é a verdade absoluta que se determina ou se realiza por si mesma sem dever nada a ninguém. Esta tese, que chamarei de “paradigma eurocêntrico” (por oposição ao “paradigma mundial”), é a que se impôs não só na Europa ou nos Estados Unidos, mas também em todo o mundo intelectual da periferia mundial.” P. 51 (Dussel, 2000).
Quando for interessante para as potências do Norte que o futebol brasileiro seja poderoso, ele será. Por enquanto, é mais interessante e lucrativo fortalecer os grandes clubes europeus (e agora também alguns clubes árabes) com os artistas da bola produzidos no Brasil, na Argentina, na Colômbia, no Uruguai, no Equador e nos países africanos. As grandes potências não possuem qualquer interesse em fortalecer o futebol brasileiro, até porque a única maneira de fortalecê-lo seria manter nossos craques por aqui e permitir que os brasileiros jogassem futebol como brasileiros. Na contramão, a CBF permite que as equipes profissionais do Brasil integrem até nove jogadores estrangeiros, ampliando a catástrofe de nosso futebol. Se houvesse interesse em fortalecer o futebol brasileiro, em hipótese alguma o modo de identificar futuros craques seria o atual; praticamos o método da descoberta, o método de descobrir por aí meninos e meninas talentosos, e integrá-los às equipes de base, algo que se opõe ao método da formação. Futebol se ensina, ninguém nasce sabendo jogar. Porém, ensinar dá trabalho, exige formação de professoras e professores, exige infraestruturas, demandaria tempo, seria preciso ensinar a jogar futebol e os colecionadores de dinheiro não podem perder tempo educando pessoas; por enquanto é mais fácil pagar pessoas de formação duvidosa para descobrir talentos por aí. Os gênios do comércio futebolístico afirmam, sem corar, que futebol não se ensina, que os talentos já nascem prontos. Se tivessem interesse em estudar o assunto saberiam que, biologicamente, é impossível alguém nascer com talento para jogar futebol. Todos nascem com maiores facilidades ou dificuldades para as diversas ações possíveis no mundo. Revelarão tais facilidades ou dificuldades sempre que houver oportunidades para agir em situações diversas. Isso, porém, não prescinde de complexos sistemas de educação, que deveriam ajudar as pessoas a desenvolverem suas aptidões e superar suas dificuldades. Ninguém nasce destinado a jogar futebol, mas uma boa educação pode conseguir juntar boas aptidões com pedagogias competentes, aumentando as chances de formação de grandes jogadores. Mas aí estamos falando de educação, e esse termo produz manifestações alérgicas graves nos colecionadores de dinheiro do mundo do futebol. Metodologias para ensinar bem futebol existem, mas são, quase sempre, ignoradas. São metodologias que consideram o modo como os brasileiros pobres, brancos e pretos, aprenderam a jogar bola e transformaram o futebol brasileiro em uma potência mundial.
Não se trata, neste artigo, de negar toda a ciência e culpá-la pela degradação do futebol brasileiro. Ou de julgar que a educação física foi a única carrasca que levou nosso futebol ao cadafalso. Mas se trata, sim, de negar que a ciência dura é a única maneira de fazer ciência, que o pensamento clássico europeu é o único modo correto de pensar, e de afirmar que é possível fazer educação física de um outro modo que não o de suas raízes europeias. Somos de tal maneira condicionados pela colonialidade cultural que invade nossos currículos, pesquisas e práticas culturais, que, sempre que aparece um jogador diferente, com trejeitos tipicamente brasileiros, se ele não for um fenômeno excepcional, dificilmente sobreviverá à assepsia da arte a que será submetido nas escolas de futebol e categorias de base. E quando surge um técnico que ousa fazer algo parecido com o futebol brasileiro, a opinião especializada, torcedores e dirigentes apenas aguardam que ele seja derrotado algumas vezes seguidas para submetê-lo a um tribunal inquisitorial e condená-lo à fogueira. Claro que a maioria dos técnicos e aspirantes a técnicos que “sonham” com um jeito brasileiro de jogar futebol morrem no nascedouro ou renunciam ao “sonho” ao longo da trajetória profissional. Talvez devessem ser estratégicos e enganar o sistema, o que seria uma boa maneira de subverter essa ordem cruel de dependência dos países ricos. Quem sabe esses técnicos “sonhadores” de bons e corretos “sonhos” não deveriam dar ao seu trabalho, pelo menos durante algum tempo (início de temporada, começo de trajetória profissional), uma aparência tradicional, disciplinada, e ir, aos poucos, subvertendo essa ordem e transformando o pesadelo em sonho? Querer que os brasileiros possam jogar futebol ao seu modo produz um confronto com os colecionadores de dinheiro, injusto, posto que as armas dos colecionadores são, por enquanto, imensamente mais fortes. Porém, talvez os “sonhadores”, que sempre existirão, devessem aprender a viver dentro do sistema, mantendo a disposição de subvertê-lo sem que se perceba. Os colecionadores de dinheiro nada sabem de pedagogia ou de metodologia, portanto, ao olhar treinamentos e jogos nada perceberão. Até o “sonhador” chegar à vitória incontestável! E estou falando de algo que, de alguma forma, já aconteceu, e recentemente. Quando os colecionadores de dinheiro, alertados por quem entende mais que eles, perceberem, talvez não se importem, porque, de qualquer maneira, os resultados que eles queriam apareceram e isso não deixou de lhes alimentar a cobiça. E se se importarem e interromperem o trabalho, o sonho já foi realizado e o exemplo segue imortal.
Referências:
Dussel, Enrique. Ética da libertação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
Eco, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Quijano, Aníbal. Ensayos em torno a la colonialidade del poder. Buenos Aires: Del Signo, 2019.
Freire, João Batista. Um mundo melhor, uma outra educação física (páginas 51 a 74). In: Rodrigues, David (org.). Os valores e as atividades corporais. São Paulo: Summus, 2008.
As emoções desempenham um papel crucial no desenvolvimento humano, influenciando cognição, comportamento e interações sociais. Desde o nascimento, as emoções fazem parte de um sistema adaptativo que orienta as respostas a estímulos ambientais e sociais do ser humano. Ao longo da vida, as emoções atuam de forma contínua na tomada de decisões, resolução de problemas e na formação de relacionamentos interpessoais. Portanto, um entendimento relativo ao funcionamento das emoções não apenas enriquece a experiência humana, mas também contribui para a saúde mental, bem-estar emocional e o desenvolvimento psicológico de uma sociedade emocionalmente inteligente.
Quando se pensa em atletas de alta performance, falando aqui especificamente na área do futebol, ainda é comum que sejam referidas as dimensões táticas, técnicas, físicas e nutricionais, sem dar-se a devida ênfase à dimensão emocional. Contudo, estudos científicos baseados em evidências demonstram não apenas a relevância singular da dimensão psicológica, mas, também, que ela abrange e está diretamente integrada às outras dimensões acima referidas, eis que não há como trabalhar com o desempenho de seres humanos sem observar-se as questões emocionais em uma perspectiva integrada e sistêmica.
Ao tratarmos de atletas de futebol, por exemplo, identificar questões emocionais é premissa que merece atenção desde o momento que o atleta chega ao clube, na medida que as emoções terão influência não apenas sobre o desempenho no campo, mas também sobre aspectos cruciais do desenvolvimento pessoal e social. Desde as primeiras experiências esportivas, ainda nas categorias de base, as emoções moldam a maneira como os jovens atletas enfrentam desafios, lidam com a competição e interagem com seus colegas de equipe, comissão técnica e demais pessoas que fazem parte do seu entorno. A capacidade de compreender e regular as emoções torna-se uma ferramenta valiosa para esses jovens ao longo de suas carreiras e vidas, não apenas para otimizar seu rendimento esportivo, mas também para cultivar habilidades como trabalho em equipe e autoconfiança.
A compreensão e aplicação de estratégias psicológicas de autorregulação emocional na área desportiva, tais como autocompaixão, resiliência, bem-estar subjetivo e bem-estar psicológico, dentre outros, impactam positivamente no desenvolvimento emocional global de atletas desde sua formação, assim como de equipes técnicas e profissionais em geral. Todas estas estratégias têm associação direta com o melhor desempenho profissional e humano dentro de uma visão sistêmica.
A autorregulação emocional, por exemplo, aparece como uma habilidade fundamental, capacitando atletas a gerenciar as pressões competitivas, manter o foco durante partidas intensas e aprender com as experiências emocionais associadas ao esporte, contribuindo, assim, para uma performance mais consistente e eficaz. A autocompaixão, por sua vez, ao promover uma abordagem mais saudável diante dos desafios, está relacionada a níveis mais elevados de confiança e autoestima, fatores que são conhecidos por influenciar positivamente o desempenho atlético. O bem-estar, essencial para o equilíbrio mental, também está associado a um melhor desempenho em campo, uma vez que atletas que experimentam altos níveis de satisfação com a vida e motivação intrínseca tendem a abordar as atividades esportivas com maior entusiasmo e dedicação. Além disso, a resiliência, ao permitir a adaptação diante de obstáculos, lesões ou derrotas, está positivamente correlacionada com a capacidade de superar contratempos e manter um desempenho consistente ao longo do tempo.
Nesse sentido, ao integrar conscientemente esses elementos da psicologia ao esporte no dia a dia, os treinadores e profissionais do futebol também desenvolvem-se emocionalmente e contribuem para o desenvolvimento psicológico de seus atletas e de suas equipes, promovendo um ambiente propício para o florescimento de habilidades mentais associadas ao sucesso pessoal e profissional, adquirindo uma visão sistêmica do funcionamento humano e culminando num desempenho em campo mais elevado e duradouro. Ou seja, a gestão adequada de questões emocionais por parte da equipe técnica e dos atletas impacta na formação de uma mentalidade saudável diante de vitórias e derrotas, contribuindo para um desenvolvimento mais amplo e integrado de todos os evolvidos.
Tenho a convicção de que investir no entendimento sobre o funcionamento básico do cérebro e na gestão emocional de jovens atletas de futebol não apenas elevará seu desempenho esportivo, mas também promoverá o desenvolvimento pessoal e social ao longo de suas trajetórias esportivas. A neurociência e a psicologia fundamentam suas descobertas científicas em pesquisas e estudos realizados com seres humanos, incluindo atletas de alta performance. Me parece que está mais do que na hora dos “gestores da bola” alertarem-se para a humanização dos futuros profissionais do futebol, entendendo, acolhendo e investindo no cuidado da esfera emocional de todos aqueles que trabalham e “vestem a camisa” dos clubes.
Foto: 📷 Cesar Greco/Palmeiras
*Maurício Rech tem formação acadêmica com Mestrado em Psicologia e Saúde e graduação em Direito, além de extensões nas áreas de Filosofia, Psicologia e Neurociências. Atua como professor, pesquisador científico e palestrante na área de Saúde Mental e Desenvolvimento Humano, integrando a área de psicoeducação aos seus trabalhos anteriores no esporte como advogado, agente e Diretor Executivo de Futebol Profissional e Categorias de Base.
Embora não queira generalizar os casos, observamos infelizmente uma formação ruim dos nossos atletas do futebol brasileiro, notadamente quando são transferidos para algum clube europeu, detalhe este que passa despercebido muitas vezes por agentes, empresários e intermediários que, muitas vezes visando apenas ao lucro, se esquecem completamente dessa necessidade de preparação total do atleta.
Na ponta do iceberg, Barcelona, Paris Saint-Germain, Bayer de Munich, Benfica, Internazionale de Milão; Messi, Mbappé, Rodrygo, Neymar e Casemiro. Estas grifes e personalidades não são a regra do futebol internacional. Se iludam com os carrões, os salários em euros pagos regiamente em dia e não se preparem adequadamente… o resultado disso será o bater e voltar no concorrido futebol europeu.
Muito nessa falha de preparação se dá com os aspectos culturais do país para o qual o atleta irá mudar. Converso regularmente com atletas e eles têm o sonho de jogar na Europa. Não foram poucas as vezes em que alguns não souberam me responder adequadamente em qual país desejavam atuar, alguns acreditando até que Europa fosse um país, não um continente. Não exerço o meu trabalho para rir ou criticar pequenos deslizes, mas auxilio no esclarecimento de algumas dificuldades que terão, notadamen no Velho Mundo.
Esmiuçando aqui alguns aspectos:
1) Idioma: felizmente os clubes de ponta do futebol brasileiro (até em consonância com a legislação vigente) adota a prática escolar como regra básica. Contudo, no estudo de línguas, é recomendável que o jovem atleta tenha aulas de reforço por fora, investindo no inglês se pretende atuar na Premier League e demais ligas europeias, no espanhol se dese- jarem atuar na La Liga etc.
2) Cultura: felizmente, esse jeito relaxado de se levar a vida e ter penca de amigos não é regra lá fora. Assim, brasileiros muito acostumados a serem mais gregários poderão ter dificuldades com a forma mais fria com a qual lidarão com companheiros de time treinado- res etc. Esqueçam por ora a turma do pagode e churrasco. Lembrem-se do sábio provérbio: “Em Roma aja como os romanos”.
3) Alimentação: esqueçam o feijão e a culinária brasileira. Muitos pratos não encontram equivalentes aqui e uma dica que dou aos atletas é se permitirem alimentar coisas diferentes, afinal, você estará em um outro país com a sua culinária típica.
4) Clima: o inverno europeu é extremo e, em muitos casos, além da sensação térmica enregelante, você terá que driblar os dias nublados e com pouca ou nenhuma incidência do Sol. Transtornos psicológicos poderão acometer espíritos pouco preparados.
Observaram como em apenas quatro tópicos elenquei dificuldades a que atletas passar no exercício de sua profissão? Desenvolvimento de mentalidade, esta é a dica! Sonha ganhar os seus vencimentos em euros, a moeda que vale cinco vezes mais? Sonhar é permitido! Mas se prepare para viver o seu sonho. Nesta mochila de sugestões minhas, encha-a disso e muito mais: persistência, abnegação, escolha, compreensão e reta razão.
Empresários, agentes e intermediários que não dão atenção a esses detalhes, visando apenas ao lucro, estão corrompendo os so- nhos destes atletas, muitos deles jovens
Some-se a isso a nossa combalida educação pública que forma o cidadão apenas para pertencer ao mercado de trabalho, com pouca formação cidadã. Afinal, num país corrup como o Brasil, educação pública de qualidade seria o inseticida que acabaria com este flagel Rodrygo e Endrick, do Real Madrid e muitos outros atletas têm recorrido ao mental coach no sentido de auxiliarem suas respectivas carreiras, somando a todo um staff de profissionais. Cito estes dois, pois são casos públicos, fazendo eu questão de ajudar forma discreta e profissional, auxiliando para que estes sonhos sejam realizado entendendo o atleta como o ser humano no seu todo e não apenas como aquele boleiro endinheirado e rodeado de puxa-sacos que estão ali apenas para serem sanguessugas deste talento nato.
Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/
Imagem1. Em PSG 0 x 1 Liverpool, Elliott marcou o único gol do jogo (Foto: REUTERS)
No espetáculo de uma partida de futebol, o momento máximo é o gol. As equipes se organizam para cumprir a lógica do jogo de futebol a todo o tempo: Marcar mais gols que o adversário com o menor número de ações possível (Leitão, 2009). Analiso o “menor número de ações possível” como número de ações ótimo, para cada jogada.
Porém, em partidas como o último PSG x Liverpool, marcado com vitória do Liverpool por 1 a 0 ficamos nos perguntando: Por que uma equipe que cria tanto não conseguiu converter? A resposta vem com uma outra pergunta: Como foram essas chances?
Quando nos deparamos com essa questão, necessitamos compreender o conceito de efetividade no jogo de futebol. A equipe que busca sempre o número de ações ótimo para chegar ao gol, está de modo inerente visando um gasto energético coletivo ótimo para esse objetivo. Isso significa que a equipe tem como meta eliminar gastos energéticos desnecessários, alcançando maior efetividade.
Uma equipe, como sistema complexo, tem elementos, que com suas características individuais, interagem entre si e, através das interações formam uma organização específica daquele sistema, dando forma a um todo único. Se uma característica deste sistema mudar, ou se o modo como essas características se relacionam muda, o todo também irá mudar (Morin, 1997). Vamos deixar mais prático: Cada jogador tem suas características individuais, e essas características são expressas ao jogar. Ao interagir com colegas de equipe, diferentes características vão gerar um jogo específico daquela interação.
Se escalarmos no mesmo lado do campo Vinicius Junior, Rodrigo e Estevão, isso irá gerar um sistema específico desta interação. Se as interações forem buscando o ataque, teremos um sistema com dinâmicas que visam atacar o gol adversário gerando desequilíbrios específico dessa interação. Se as interações mudam e esse sistema precisa se organizar para ser mais defensivo, as dinâmicas mudam e o todo também muda.
Ainda, se fizer uma substituição e, por exemplo, trocar o Estevão pelo zagueiro Van Djik, as interações irão mudar e o todo também.
Isso nos leva à efetividade ofensiva de uma equipe, visto que a função dos treinadores e treinadoras é construir com o time, de acordo com as características individuais presentes na equipe, dinâmicas que tornem o ataque efetivo, chegando ao gol com o número de ações ótimo, com um gasto energético ótimo.
Uma métrica que nos ajuda nesse processo é o xG (Expected Goals, traduzindo como expectativa de gols). Recentemente, analisando dois recentes artigos sobre o tema construí reflexões para que isso seja treinável.
O primeiro texto analisado (Shot quality and results and football, da Soccerment) analisa as correlações das métricas de xG e a probabilidade de vitória de uma equipe.
Um exemplo bem recente, PSG 0 x 1 Liverpool do dia 05/03/2025 pela Champions League, mostra que não necessariamente um xG maior da equipe significa vitória. Veja como, apesar do grande volume de finalizações, as métricas do PSG apontam chances de baixo xG ou baixo xGOT, sendo a maior métrica obtida pela equipe francesa, a finalização de Dembelè com xG de 0.41 e xGOT de 0.43, métricas explicadas mais à frente.
Imagem 2. xG e xGOT de PSG e Liverpool pela partida da Champions do dia 05/03/2025 (SofaScore)
Após analisar que algumas equipes com xG total maior não venciam o jogo, os autores do primeiro artigo abordam que uma tendência observada está na verdade nas métricas de xG por chute e xGD (xG concedido).
(Imagem 3. Soccerment)
Equipes com xG por chute acima de 0,18 apresentam 70% de chance de vitória na partida. Porém, o adversário pode ter um alto xG por chute e essa porcentagem tende a cair, visto uma maior probabilidade do adversário em marcar.
Portanto, quanto maior a diferença entre a métrica de xG por chute das equipes, maior a chance de vitória para a equipe que obtiver maior xG por Chute.
Uma diferença de xG por chute maior que 0,05 apresentou vitória para o maior xG por chute em 71% dos casos. Já uma diferença menor que -0,05 apresentou vitória para o maior xG por chute em 10% dos casos.
Um aspecto importante é a influência do acaso. Em análise de regressão, a correlação entre xGD (xG concedido) e Xpoints (Expectativa de pontos na classificação) é maior (R2 de 0,55, respondendo 55% dos casos) que a correlação entre xG e a chance de vitória (R2 de 0,38, que responde 38% dos casos). São métricas consideráveis para o acompanhamento dessas tendências.
Baseado nisso, as equipes estão selecionando mais as finalizações, buscando finalizar cada vez mais próximas do gol, como podemos ver na imagem 3.
Um dos aspectos que analiso como influenciador dessa métrica é o grande repertório ofensivo, sustentados por conceitos robustos do ponto de vista tático, que fornece variações de infiltração e ataque a zonas vitais da área, regiões de difícil proteção, e que ocorrem a maioria dos gols, principalmente dentro do funil. Além disso, como abordado no texto, equipes que utilizam essas métricas como componentes do processo de treinamento também influenciaram esse cenário.
Mecanismos táticos como corridas de ruptura, auxiliadas por desmarques de apoio entre linhas, para gerar espaços de infiltração, dinâmicas para gerar bolas descobertas que possibilitam acionar atletas em ruptura são aspectos presentes que visam atacar zonais vitais na área, gerando e aproveitando as vantagens do jogo, como na imagem a seguir.
(Imagem 4. Soccerment)
Este gráfico mostra a importância de gerar dinâmicas de ataque ao funil, e estruturas defensivas coordenadas para defender regiões vitais (mais claras no gráfico) onde ocorrem a maior densidade de finalizações.
O xGOT é uma métrica importante neste cenário, referente às finalizações da equipe e afetando o xG por finalização final da equipe. Consiste em uma métrica que analisa apenas as finalizações que acertaram o gol e a probabilidade delas serem convertidas, fornecendo a informação sobre a eficiência técnica do atleta. Uma finalização pode ter um baixo XG, mas se executada com qualidade pode ter um xGOT alto. Assim, identifica-se também os atletas com alto nível técnico de finalização, informação importante para gerar boas situações de definição para este atleta.
Um exemplo é o gol marcado por Salah contra o Bournemouth. Esta finalização esteve como xG 0.05, ou seja, chance de gol de 5% em chances como esta, porém, nos pés de Salah o xGOT foi de 0.72, indicando que a eficiência do atleta em finalizar era altíssima, mesmo com uma chance de baixo xG.
Assim, gerar dinâmicas que deixem os atletas certos (melhores finalizadores) em zonas vitais da área e do funil é fundamental para maior efetividade da equipe. Veja as métricas desta finalização abaixo.
Imagem 5. (Estatísticas SofaScore)
De modo complementar ao primeiro texto, o segundo artigo analisado (Raheem Sterling Proves That Everything You Know About Goal-Scoring Is Wrong, escrito por Bobby Gardiner para o portal The Ringer) apresenta o caso de Sterling e sua efetividade ofensiva na temporada 18-19 da Premiere League, ilustra o conteúdo principal discutido: Potencializar as métricas xG dos atletas.
apresenta o caso de Sterling e sua efetividade ofensiva na temporada 18-19 da Premiere League, ilustra o conteúdo principal discutido: Potencializar as métricas xG dos atletas.
Para tanto, as perguntas que direcionam a resposta à essa questão são: O que é importante para uma finalização se tornar gol? O que de fato faz um atleta melhorar seu xG por finalização? Como um dos principais marcadores daquela temporada era criticado pela sua finalização?
Expected Goals (xG) é uma métrica que indica a probabilidade de gol por finalização, baseado em aspectos como localização, oposição, identidade do finalizador, técnica de finalização, tipo de passe recebido, a recepção deste passe, relação do posicionamento do goleiro e direção do chute.
O cerne do texto está nas métricas de Expected Goals e o aumento ou diminuição dessa métrica com base na qualidade das finalizações. Nesse ponto os gráficos abaixo ilustram bem esse ponto fundamental.
Imagem 6. (BobbyGardiner – Stratabet)
Imagem 7. (Bobby Gardiner – Stratabet)
Imagem 8. (Bobby Gardiner – Stratabet)
Os gráficos acima mostram o ranking de atletas por Expected Goals, e ao lado a sua margem de melhora ou piora de sua métrica com base na qualidade de suas chances. Messi, por exemplo, tem seu xG melhorado devido a suas chances terem muita qualidade. Esse aspecto se refere à sua capacidade de gerar chances qualificadas.
Aubameyang, por exemplo, já mostra piora de sua métrica de xG devido à qualidade ruim de suas chances de gol, e isso está ligado diretamente à sua capacidade de gerar chances de qualidade em suas ações.
A frequência de chances, porém, é tão importante quanto a qualidade delas. Cavani, como exemplificado pelo texto, teve alta frequência de chances, mas piora em sua métrica pela qualidade delas, porém mesmo assim fez 27 gols.
Com base nos gráficos, podemos dizer que o melhor jogador é aquele que tenha um alto xG e uma margem alta de melhora de sua métrica. Ou seja, é necessário aproveitar as chances, mas principalmente gerá-las com qualidade.
Para isso, é necessário compreender que o xG e o xGD são variáveis treináveis e devem estar presente na estruturação do treino.
De modo coletivo e setorial, desenvolver xG ocorre ao analisar as características dos jogadores e as interações dentro do sistema, sendo fundamental desenvolver dinâmicas que potencializem as interações e que geram chances com alto xG. Compreender quais dinâmicas geram chances com alto xG é importante pois a equipe passa a ser estruturada visando a efetividade ofensiva.
A mesma lógica se aplica ao xGD (xG por chance concedida), pois com base no estudo das situações geradas pelos adversários que obtiveram maiores xGD, as sessões de treino passam a ser voltadas em desenvolver o sistema defensivo para resolver problemas de modo setorial e coletivo visando anular essas situações nocivas ao sistema.
Esse conceito é fundamental para ser desenvolvido desde as categorias de base, mas é muito importante seu aprimoramento também no profissional. Os aspectos técnico-táticos individuais são de suma importância para que os atletas gerem situações qualificadas com potencial de alto xG.
Portanto, é interessante para melhora do xG por parte dos atletas, atividades em que o atleta necessite estar mapeando o espaço, gerar e atacar espaços, timing para a realização da ação, orientação corporal, resolução de problemas a um toque, repetições de diferentes situações de finalização com diferentes tipos de passes.
Abaixo, um exemplo de como isso pode ser utilizado na potencialização da equipe:
Imagem 9. (Estatísticas SofaScore)
Na imagem acima, é mostrado o mapa de todas as finalizações do Liverpool na partida contra o Bournemouth. Dentre todas as finalizações, a destacada é a que maior obteve xG, com métrica de 0.79. Além disso, mostra um alto xGOT (0.87).
Este dado mostra que esta finalização foi um pênalti e teve alta chance de gol e finalizada por um atleta com alta performance técnica de conversão. Resultado mais provável é o gol. Foi o que aconteceu. Essa finalização é um pênalti, e o retrospecto de Salah em pênaltis é positivo. Gerar situações de possibilidade de pênalti é uma vantagem para o Liverpool, porém vamos focar nossa análise em situações de bola rolando, assim como o texto enfatiza. Analisaremos a segunda finalização com maior xG, um cabeceio de Luis Dias.
Imagem 10. (Estatísticas SofaScore)
Esta finalização teve o maior xG dentre todas as situações geradas de bola rolando (0.50), e xGOT de 0.40. Ou seja, tinha uma alta probabilidade de gol, e uma execução com média probabilidade de conversão.
Nesse ponto, vemos que pode ser uma dinâmica em potencial, mas se um atleta com melhor aproveitamento dessa oportunidade estivesse nessa posição atacando a bola, a probabilidade de conversão poderia ser melhor.
Vamos a algumas situações práticas ilustradas.
Na partida entre Newcastle e Leicester, a finalização de bola rolando com maior XG foi a de Isaac, com métrica de 0.60 e xGOT 0.99. Alto xG, alto xGOT. Vamos analisar como essa jogada foi desenvolvida e como o Newcastle pode ter essa dinâmica gerada com maior frequência.
A jogada foi um cabeceio, que originou de uma transição ofensiva com ataque veloz pelo lado esquerdo de Gordon e Hall, com Joelinton livre no meio como armador.
Imagem 11. (Estatísticas SofaScore)
Imagem 11. A dinâmica criada inicia com o Newcastle com jogo apoiado com 4 jogadores do lado direito, atraindo a pressão de 5 jogadores no Leicester para este setor. No lado oposto, a equipe do Newcastle tem vantagem numérica de 4 x 2 com Joelinton livre no meio para a retirada. A inversão rápida e apoiada é fundamental para atacar o lado oposto em vantagem
Imagem 12. Bola no lado oposto, Tonali ataca o espaço entre o lateral e o zagueiro do Leicester, fixando o lateral adversário e dando tempo e espaço para Gordon esperar a ultrapassagem de Hall.
Imagem 13. Gordon conduz para dentro, atraindo a pressão de dois marcadores, liberando espaço para Hall ultrapassar e cruzar com liberdade.
Imagem 14. Isaac no funil, ataca o “espaço da dúvida” (espaço onde há milésimos de segundo de indefinição entre zagueiros e goleiro, vital para finalização. Gol de Isaac fechando o placar.
Imagem 15. Gol de Isaac
O aspecto importante para o desenvolvimento da equipe é treinar para que essa dinâmica possa ser gerada com mais frequência nas partidas, pois gera alto XG devido aos espaços para progressão e ataque à bola que surgem da dinâmica, além de espaço de força pela esquerda, com dois jogadores de espaço de força interagindo entre si (Gordon e Hall) com Joelinton livre por dentro.
O interessante é levar isso para o treino, atividades que trabalhem as situações em que a equipe conseguiu maior xG para tornar-se um padrão do sistema. Porém, para isso é fundamental que se analise quais características se relacionaram em cada momento da jogada, desde a construção, a criação e a finalização, como progrediu em cada fase do campo e como finalizou.
Os seres humanos que jogam são protagonistas do espetáculo, entender suas características individuais, o modo como interagem dentro do sistema é fundamental para que padrões sejam desenvolvidos, ou descobertos, pois dinâmicas não treinadas também podem surgir das interações. Vai da sabedoria dos treinadores e treinadoras identificarem essas dinâmicas para que passem a ser padrões no sistema.
Isso é efetividade ofensiva, é a estatística sendo muito mais que um número, não esquecendo que quem joga são seres humanos.
Referências:
LEITÃO, Rodrigo Aparecido Azevedo et al. O jogo de futebol: investigação de sua estrutura, de seus modelos e da inteligência de jogo, do ponto de vista da complexidade. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, 2009.
MORIN, E. O método 1. A natureza da natureza. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997.
Em nosso texto anterior, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol”, afirmamos, trazendo para a discussão a questão da moral presente nesse contexto, que não é o futebol que se adapta à criança, como defendemos, mas sim o contrário. Se tomamos inicialmente como exemplo a moral para argumentar contra a especialização esportiva precoce, tomaremos como referência, agora, o desenvolvimento cognitivo nesse período de vida, sobretudo durante a primeira infância (até os 6 anos).
Durante a primeira infância, as crianças aprendem na convivência com os adultos, com outras crianças e com objetos. E elas o fazem ao seu modo. Nas escolas de educação infantil recebem orientação de professoras e professores, porém, em ambientes de bastante liberdade. Fora da escola aprendem, e muito, sem que haja profissionais indicando o que e como aprender.
O ritmo de aprendizagem das crianças na primeira infância surpreende os adultos. Seu sistema nervoso é extremamente plástico. É preciso lembrar, no entanto, que tal aprendizagem dá-se por convivência, na maior parte das vezes, sem orientações especializadas de adultos, e de um modo que permite à criança aprender do seu jeito e apenas por necessidade e interesse. Esse processo de desenvolvimento foi muito bem descrito por Piaget e por Vygotsky, o primeiro bastante focado na individualidade da criança e no sujeito universal, e o segundo nas interações sociais.
Os argumentos de Piaget e Vygotsky a respeito do desenvolvimento infantil, considerando, acima de tudo, as interações das crianças com o mundo, deitam por terra todas as formas de relações que não causam interesse a elas. No caso da aprendizagem do futebol, por qual motivo crianças se interessariam por driblar cones ou outros objetos imóveis?
As crianças, apesar das diferenças entre elas, têm um jeito particular de ser e aprender. No período que Piaget nomeou de pré-operatório, por exemplo, as crianças, até seis anos da idade, mais ou menos, resolvem seus problemas por passes de mágica, ou seja, sua maneira de pensar, referenciada em fantasias, é extremamente centrada nelas mesmas. Crianças, nesse período de vida, não conseguem, ainda, colocar-se no ponto de vista do outro, portanto, resolvem suas questões com base unicamente em seu ponto de vista, utilizando-se fartamente de suas fantasias. As regras coletivas, geralmente impostas a elas quando aprendem futebol, constituem um grande mistério para elas. Seguem-nas por obediência e não por compreensão. Se as crianças dessa faixa etária pensam e agem diferente dos adultos (e até mesmo de crianças mais velhas), por quais motivos muitos professores e donos de escolas de futebol acham que a melhor forma de lhes ensinar futebol é tratando-as como adultas, ou miniaturas de adultos, reproduzindo os métodos e exercícios realizados pelos adultos profissionais?
Para as crianças, especialmente aquelas que vivem a primeira infância, o futebol é um jogo de faz-de-conta. Seguir a lógica dos exercícios e jogos utilizados com adolescentes e adultos é uma agressão ao seu modo de sentir, pensar e se relacionar.
O que há por trás, portanto, da insistência em submeter crianças às rotinas de exercícios que replicam a lógica da exercitação de adultos, algo que é feito, geralmente, com a anuência da família? Por qual motivo o ensino do futebol, nesse período de vida das crianças, não considera o ponto de vista dessas crianças e suas características e necessidades, mas unicamente o interesse dos adultos?
Certamente porque esses adultos vislumbram em cada uma dessas crianças um atleta profissional e, se assumirem posto de destaque (somente cerca de 3% dos jogadores profissionais ganham mais de 5 salários-mínimos), ganharão, além da fama, rendimentos financeiros expressivos. É o futuro profissional e o lucro, mais que os cuidados com a criança, que definem a metodologia de ensino dessas crianças. Trata-se, acima de tudo, de integrar a criança ao modo de exploração de um capitalismo predatório que não tem freios ou ética, e pouco se importa com o bem viver de crianças, adolescentes ou adultos. A criança, precocemente vítima desse modo de exploração, é reduzida a matéria prima a ser jogada na máquina de revelar talentos/joias e fazer dinheiro.
Mais adiante, noutro artigo, discorreremos sobre as crianças da segunda infância, a partir dos sete anos, aproximadamente. Neste, manteremos o foco na primeira infância, inclusive porque temos notícias de que crianças de cinco e seis anos de idade estão sendo observadas e tratadas como futuros craques de futebol e, cada vez mais, estão na mira da cobiça de famílias e agentes do futebol profissional. Como não há justiça que caracterize atos como esses de criminosos, tecemos nossos argumentos para evidenciar que não há como justificar a especialização precoce. Toda a ciência atual argumentaria em contrário.
Criança brinca e a humanidade, mesmo que a maioria das pessoas não saiba disso, precisa que ela brinque. Especializar precocemente uma criança no esporte é evitar que ela brinque e se divirta e passe a realizar as rotinas de trabalho de um adulto. Treinar crianças em rotinas de exercícios exaustivas e nada divertidas é submetê-las a trabalhos e o trabalho precoce é proibido por lei, embora a lei não puna quem faz isso no esporte.
Vamos ao argumento de que ela precisa brincar. O ser humano, do ponto de vista biológico, e por seus recursos naturais, é frágil. Deixado à própria sorte na natureza, sem recursos tecnológicos, não sobreviveria. Ele precisou inventar recursos artificiais para sobreviver. E como fez isso? Fez isso utilizando-se de sua imaginação. Não há nada que mais precise de fertilização que nossa imaginação. No início, ela é apenas um potencial. Desenvolver-se-á mais ou menos a depender das experiências de imaginar que os humanos possam viver.
E o que é imaginar? Imaginar é esse fenômeno quase exclusivo dos seres humanos de ser capaz de ver, ouvir, tocar, degustar e cheirar para dentro, isto é, viver dentro de nós qualquer experiência vivida por nós. É uma espécie de vida elevada à segunda potência; assim como alguns animais ruminam seu alimento, os humanos “ruminam”, na imaginação, suas experiências. Podemos, por exemplo, ver algo fora de nós, fechar os olhos e ver essa coisa dentro de nós. Com a vantagem que, dentro de nós, ela pode ser modificada ao sabor de nossa imaginação. Nada existe mais poderoso no ser humano que a imaginação. Foi graças a ela que um dos ramos de hominídeos, o sapiens sapiens, sobreviveu. E o período mais propício para fertilizar a imaginação é a infância. Quanto mais a criança puder viver experiências de imaginar, isto é, de fantasiar, de fazer-de-conta, melhor. E a melhor forma de fazer isso é brincando. Por isso brincar é algo compulsivo na criança. É assustador perceber que até hoje a sociedade humana não reconhece isso e, por incrível que pareça, ainda entende a brincadeira como algo de pouco, ou nenhum, valor.
Se o que nos torna humanos é a imaginação, quando retiramos da criança seu direito ao brincar, estamos matando a humanidade. E esse direito é retirado quando a submetemos intensamente a rotinas de exercícios, tal como as realizam os jogadores profissionais. A criança, por exemplo, brinca de jogar bola imaginando ao seu modo. Muitos de nós brincávamos de bola querendo ser Pelé, Garrincha, Messi, Ronaldinho Gaúcho, dentre outros. A bola é, para a criança, o brinquedo por excelência, capaz de transportá-la para um mundo extraordinário de fantasias. Ao Impedir que ela viva o jogo de bola dessa maneira, transformando-a em miniatura de adulto, estamos prejudicando, não só a criança, mas, no âmbito do futebol, nos afastando cada vez mais do “jeito brasileiro de jogar bola”.
Neste programa, Beetto Saad conversa com Heloisa Rios sobre uma das instituições de ensino mais importantes do futebol brasileiro. A Universidade do Futebol está com mais de 20 anos possibilitando a formação do profissional do principal esporte do país.
É comum vermos atletas que se destacam em um clube e, quando transferidos para outro, não conseguem repetir seu desempenho esportivo. E vice-versa. São também bastante frequentes os casos de atletas que não vivem “boa fase”, apresentando performance muito abaixo da esperada, e após mudanças na comissão técnica passam a jogar muito melhor. O mais recente, e evidente, caso que me vem à cabeça é o do atleta do Corinthians, Yuri Alberto. De extremamente criticado pela mídia e torcida, ridicularizado até em certos momentos, protagonizando com o treinador um desentendimento constrangedor, após a saída deste técnico, há uma melhora significativa na sua performance, fazendo um gol atrás do outro, se tornando o artilheiro do Campeonato Brasileiro.
Há muitos fatores que podem ter influenciado a mudança deste cenário, mas já podemos descartar uma à priori: um jogador de futebol não “desaprende” a jogar bola, muito menos volta a aprender, de “uma hora para outra”. Dentre os fatores viáveis que poderíamos elencar, há aqueles de questões táticas, o apoio psicológico que manifestou ter buscado e, o que gostaria de destacar neste texto, a mudança no clima motivacional.
Afinal, o que é o clima motivacional?
São as condições de um ambiente, sobretudo sob aspecto psicológico, que determinam ou orientam, para a tarefa ou para o ego, os motivos que as pessoas encontram para se dirigir a uma tarefa e/ou se relacionar com as pessoas que fazem parte deste ambiente.
Parto do pressuposto que ninguém tem a capacidade de motivar diretamente o outro. Somente a própria pessoa, ao encontrar motivos que o fazem dirigir a uma tarefa ou meta, possuem essa capacidade. Mas, gestores, dirigentes e treinadores podem (e devem) criar climas motivacionais que favoreçam essa motivação. Ser respeitado e acolhido, dotar de sentimentos de justiça, ser querido e ter pessoas do seu círculo próximo (amigos e familiares) por perto, ser bem remunerado e receber em dia, por exemplo, são condições que criam um clima motivacional positivo.
É justamente devido ao clima motivacional criado nesta volta do Neymar ao futebol brasileiro que trago como hipótese seu, e do Santos, sucesso e retomada do bom futebol. Um atleta feliz, bem, acolhido, tratado com respeito e carinho, emocionalmente equilibrado e que trabalha num ambiente harmonioso “tem tudo para certo” e desempenhar esportivamente o que ele pode. Até mesmo um atleta que vem sofrendo ultimamente com inúmeras lesões, sob essas condições, provavelmente se sentirá melhor para fazer aquilo que faz tão bem: jogar futebol.
É inegável e indiscutível o talento e qualidade técnica do Neymar. Por isso que, se criado, de fato, um clima motivacional orientado para a tarefa e que, consequentemente, Neymar venha focado em retomar seus melhores momentos esportivos e reassumir “seu posto” na seleção brasileira, dificilmente sua volta ao futebol brasileiro e ao seu clube de coração não tenha sido uma decisão acertada.
Há tempos não escrevo sobre a psicologia do esporte. Mas não poderia deixar passar a oportunidade de abordá-la após essa emocionante final de Taça Libertadores da América entre Botafogo e Atlético MG. A palavra emocionante trás em seu radical a palavra emoção e é justamente sobre ela, sobretudo em relação ao campo de intervenção que dela mais se apropria no futebol, que buscarei me aprofundar neste texto.
Em uma, e qualquer, final poderia dizer, sem medo de errar, que o preparo emocional é tão, ou mais, importante que a qualidade técnica, tática e física das equipes. E é aí que entra, ou deveria entrar, o papel da psicologia do esporte. Ambas as equipes finalistas contam, em suas comissões técnicas, com capacitados profissionais da psicologia do esporte, condição que pode ajudar a explicar, em partes, o sucesso de Botafogo e Atlético Mineiro.
Há quem ainda ache que a psicologia do esporte no futebol está a serviço, somente, da identificação de perfis de personalidade, realização de testes psicológicos ou, cada vez mais, ao acolhimento e tratamento terapêutico à atletas que estão em estado de sofrimento psíquico. Ainda que não desvalorize ou despreze a importância destes objetivos de intervenção (pelo contrário, entendo que são de extrema importância), a psicologia do esporte tem, sobretudo no futebol de alto rendimento, outros inúmeros objetivos que pouco ganham destaque.
Comecemos pela motivação. É inegável sua importância para se conquistar um campeonato (ou uma simples vitória), ou simplesmente para realizar qualquer ação. Mas a motivação, como qualquer outra emoção, precisa estar controlada e equilibrada.Da mesma forma que baixos níveis de motivação comprometem o desempenho em qualquer tarefa que se realize, altos e descontrolados níveis também possuem essa capacidade. Parece-me que este foi o caso do atleta expulso aos 40 segundos de jogo. A expulsão mais rápida em uma final de libertadores na história. E que fique claro: esta NÃO é uma crítica ao psicólogo do esporte desta equipe, a quem admiro e reconheço sua importância para a área da psicologia esportiva.
Com um jogador a menos, outras tantas emoções e habilidades psicológicas tiveram que ser mobilizadas pela equipe do Botafogo para lidarem com o fato de terem um jogador a menos por, praticamente, todo o jogo. Além da própria motivação (é preciso achar um motivo para correr “pelo outro”), resiliência, coesão grupal, liderança, autoeficácia, manejo da ansiedade, agressividade (que não se confunda com agressão), concentração, dentre outras, facilmente são notadas em equipes vencedoras. Há, no entanto, outro recurso psicológico que, na minha opinião, é determinante em situações de grande pressão e altíssimo nível de estresse, tal qual uma final de Libertadores: as estratégias de coping.
A equipe do Atlético Mineiro, por sua vez, ainda que visivelmente não tenha faltado motivação, aparentemente não conseguiu dosar seus níveis de ansiedade e, consequentemente, não soube aproveitar a vantagem que passou a ter desde o primeiro minuto de jogo. Sob elevados níveis de ansiedade, perde-se concentração e algumas decisões (algo que o jogador faz o tempo todo durante o jogo) passam a não ser as mais apropriadas para determinados momentos do jogo, por exemplo, levando uma equipe a confundir velocidade com pressa e a errar passes, ou perder gols, que normalmente não se erram/perdem. Ainda que jogar com um atleta a menos durante toda a partida faça com que o desgaste dos jogadores botafoguenses tenha sido enorme, sob alto índices de ansiedade, o corpo consome mais energia e, consequentemente, aumenta-se o cansaço físico, e mental, dos jogadores.
Por isso, intitulo este texto como um golaço para a psicologia do esporte. Obviamente, as considerações aqui realizadas, em tom de suposição, não buscam criticar o trabalho realizado pela equipe da psicologia esportiva de ambas as equipes, tampouco estabelecer uma análise simplista da interferência dos fatores psicológicos no desempenho de uma equipe esportiva. Pelo contrário, meu intuito é destacar o quão importante é a psicologia do esporte e valorizar a presença destes profissionais nos clubes para que estes, clubes, reconheçam, cada vez mais, a importância desse trabalho para o (alto) desempenho esportivo. É urgente que deem a estes fundamentais profissionais (referências no campo da psicologia esportiva), bem como a todos seus colegas, as melhores condições de trabalho possível, inclusive, para que sirvam de exemplo para tantas outras destacadas equipes do futebol brasileiro que ainda, por incrível que pareça, não possuam psicólogos esportivos em suas comissões técnicas.
Enfim, se para os telespectadores foi, sem dúvida, uma disputa muito emocionante, imaginem para os atletas e para os torcedores de ambas as equipes. Por isso foi tão linda essa final! Pois é da emoção que vive essa encantadora modalidade esportiva que apaixona pessoas pelo mundo todo.
É muito cansativa a tarefa de explicar as razões pelas quais as crianças não podem ser submetidas a treinamentos e competições esportivas precocemente, principalmente se realizadas nas perspectivas que vemos com frequência, isto é, adaptando-as ao esporte profissional e não adaptando o esporte à criança. Do ponto de vista científico, nada existe que fundamente essa precocidade; e tudo existe que a reprove. Por mais que artigos e livros a respeito do tema sejam publicados, prevalece a opinião daqueles que partem somente do seu conhecimento empírico ou seu “achismo”, e insistem na ideia de que, quanto mais cedo as crianças começarem a realizar treinamentos esportivos especializados, maiores as chances de êxito esportivo na adolescência e idade adulta.
Como argumento, citam as exceções de sempre, isto é, um ou outro atleta que foi iniciado precocemente e chegou ao topo do rendimento esportivo. Quanto à vida pessoal desses atletas nada se fala. Quanto aos diversos tipos de assédio, inclusive sexual, sofridos por meninas e meninos que buscam concretizar o sonho de serem jogadores profissionais de futebol, a memória se apaga. Quanto às contusões, dores e doenças decorrentes do excesso de esforço para organismos jovens, não há menções. Quanto aos problemas psicológicos causados pela pressão absurda a que são submetidos e pelo estresse de treinamentos e competições, os “entendidos” se calam.
Apesar de cansativa, vamos, mais uma vez, à tarefa de desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições.
No futebol, as idades das categorias são cada vez menores: sub9, sub 7, sub 5 e, logo mais, sub-feto, envolvendo famílias ansiosas por exibir seus futuros campeões. Para os clubes e agentes, trata-se apenas de negócios, e as crianças, mercadorias. Se, entre milhares e milhares de criancinhas sacrificadas no altar do lucro, aparecer meia dúzia de talentos precoces, o rendimento financeiro estará garantido. Sem contar os atravessadores tirando dinheiro de pais e mães desesperados por evidenciar seus filhos (pagando para competir, pagando para treinar, pagando para passar por peneiras etc.).
Poderíamos citar a ginástica, o atletismo, o voleibol e muitas outras modalidades esportivas. Mas o espaço para escrever isso exigiria um livro inteiro. A ideia generalizada no esporte brasileiro e mundial, com raras exceções, é a de que, quanto mais cedo se dá a iniciação esportiva em uma determinada modalidade, melhor.
Trata-se de um absurdo científico e até de bom senso. Porém, o que prevalece é o mau senso. Vamos aos nossos argumentos que justificam essa afirmação.
Comecemos pela questão moral. Como é possível comparar a moral de uma criança de 5, 6 anos com a moral de um adolescente ou de um adulto? Aos 5 ou 6 anos de idade uma criança está começando a formar aquilo que chamamos de julgamento moral. Uma pessoa só pode julgar moralmente (não necessariamente com acertos) os outros quando ela é capaz de se colocar no ponto de vista do outro. As brincadeiras das crianças, nessa idade, não devem ser orientadas com base em julgamentos morais, em regras rígidas. As regras para grupos dessa idade devem ser muito simples, pois as crianças sentem muita dificuldade em se colocar no ponto de vista dos colegas.
Os julgamentos morais no esporte são feitos com base na ideia de justiça. Quando um(a) jogador(a) se sente injustiçado(a), ele(a) reclama. A partir dos 6, 7 anos mais ou menos, já podemos perceber algum esforço das crianças para dividir, trocar e compartilhar, abrindo mão de parte de seus interesses. Nessa idade, com base nas insatisfações, uma professora bem formada reúne a turma e conversa a respeito. Se ela souber conduzir a conversa, as crianças chegarão a acordos, ou para aceitar a regra estabelecida (algumas das regras convencionais do esporte), ou para criar uma regra especialmente para o jogo que está sendo realizado. Quando chegam ao acordo, estabelece-se que, a partir daí, valerá tal ou tal regra. Os insatisfeitos, sentindo que a regra faz justiça, aceitam e o jogo continua.
O que significa essa regra? Significa que vários jogadores(as) abriram mão de interesses pessoais em busca do interesse comum. Ou seja, uma regra é uma norma de regulação das relações no grupo, feita de renúncias de interesses pessoais em favor do interesse geral do grupo. Isso, em crianças de 5 ou 6 anos de idade é muito incipiente, afinal, elas são ainda muito autocentradas, buscam, de maneira um tanto mágica, fazer prevalecer os próprios desejos. É por isso que, por exemplo, numa brincadeira de bola entre pequenos de 4, 5 anos ou até mais, a gente observa o grupo todo correndo atrás da bola. Isso porque o interesse é ter a bola, o objeto de desejo. Nada mais interessa além disso. E é assim que as brincadeiras devem ser realizadas, em função dessa dificuldade em julgar moralmente as situações.
Até os 6 anos de idade (e essa idade pode ser maior ou menor a depender da criança), se escolhermos bem as brincadeiras, as crianças jogarão ao seu modo e se divertirão. Não temos que enquadrá-las nas regras do esporte adulto, pois isso acarretará sérios prejuízos para elas e para o esporte. Para elas, pelas consequências futuras de tal pressão e, para o esporte, porque a maioria perderá o interesse pela prática esportiva e desistirá rapidamente.
A partir do momento em que podemos conversar com elas e estabelecer regras, isso significa que não transgredirão? Não. Sempre uma ou outra transgredirá. Quando isso acontecer, retoma-se a conversa. Ou não. No esporte convencional, para aqueles que preconizam a especialização precoce, as regras são impostas e, quando transgredidas, as crianças são punidas. No esporte educacional, constrói-se regras junto com as crianças para que elas desenvolvam uma moral de autonomia, ideia democrática de convívio em grupo, a ideia de acordos, de enxergar o interesse comum.