Categorias
Conteúdo Udof>Artigos

Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.4 – Conduzir treinamentos e preparar para competir

Possivelmente situada entre as competências mais previsíveis, a capacidade de conduzir treinamentos e preparar para competir atende aos requisitos e expectativas básicas à profissão de treinador de futebol. Segundo os entrevistados, “um treinador deve saber conduzir a sua equipe taticamente e tecnicamente”, pois os jogadores têm exigido treinadores que consigam “ler as alternativas oferecidas pelo jogo”. Com base no raciocínio dos argumentos expostos neste estudo, duas condições foram enfatizadas: a filosofia de trabalho e a metodologia de treinos.
Para aplicar uma autêntica filosofia de trabalho, os profissionais que operam no território brasileiro sinalizaram que os treinadores devem incorporar as suas próprias ideias e crenças quando abordarem o âmbito esportivo do jogo, cultivando “uma base sólida de conhecimento” para poderem navegar entre as dimensões que contribuem ao rendimento dos atletas na modalidade. Visto que “não há mais espaço para ex-jogadores que apenas repetem aquilo que foi feito com eles”, “os jogadores percebem rapidamente quando um treinador está seguro sobre o seu conhecimento”. A fim de exemplificar, dois dos entrevistados compartilharam suas opiniões:
“A pessoa precisa ter confiança e convicção no que faz, na maneira que vê o futebol. É muito claro que o treinador precisa se fazer entender para o jogador. Eu acho que o treinador se perdeu um pouco nessa maneira de conduzir o trabalho. É claro que ele deve entender e estar atento ao que acontece no futebol mundial, não precisa se fechar a conhecimentos ou maneiras de trabalhar, mas sempre definindo o que você acha importante ou não em vez de virar uma ‘moda’. Eu vejo que hoje em dia há muitos ‘modismos’.
O novo é legal, alguns termos são legais de falar, mas o treinador precisa entender como ele vai passar as convicções dele, a maneira como ele próprio enxerga o futebol, quais são as suas estratégias e o seu
modelo de jogo. Isso é fundamental para que ele tenha sucesso.”
“Para ter rendimento é preciso dar continuidade ao processo de aprendizagem e desenvolvimento. É evidente que eu quero ganhar títulos, mas se eu puder evoluir o meu atleta tanto como profissional e como pessoa, isso vai reverter em performance e título. Eu quero pensar no processo. Para mim o processo é mais importante do que o fim.”

Além de compreender o futebol de uma forma própria e individualizada, espera-se que os treinadores também sejam capazes de transferir a sua filosofia à metodologia de treinos. Com uma perspectiva pessoal que possa vir a distinguí-los em termos práticos, o treinador profissional deve saber acomodar as demandas da modalidade e do jogo por meio de sua capacidade em desenvolver a equipe no treinamento. Isto é, incutir o seu “conhecimento, expertise e conteúdo em sessões de treinamento” com um “bom repertório de treinos, entendendo o modelo tático e os procedimentos de treino”. Ao prescrever as sessões, o treinador deve, sobretudo, “criar soluções dentro do treinamento para resolver um problema, que às vezes pode ser um comportamento setorial, intersetorial, individual ou coletivo” de modo que a equipe possa “aprender a jogar em diferentes situações”. Um dos treinadores entrevistados explicou a mudança de paradigma transportada ao jogo no Brasil:
“Para se diferenciar hoje no Brasil é preciso jogar com conceitos, princípios, ideias. Há algumas décadas nós tinhamos o jogo com espaço e confrontos individuais, onde tinhamos mais poder pela individualidade. A partir do momento em que os espaços diminuíram e as questões de habilidade e técnica se contextualizaram numa visão mais coletiva, o campo foi diminuindo e a questão tática foi aflorando. Agora para chegar ao gol adversário você precisa ter posicionamento em cada metro que a bola anda em campo, nas ações, tomadas de decisões com e sem a bola. O nosso treinador desenvolveu o perfil de liderança para falar da família, a necessidade de subir de vida, o motivacional. Hoje ele precisa mudar esse discurso para um perfil mais tático, sinalizando as formações e ações específicas. Nós temos um jogo mais solto, no qual precisamos controlar um pouco mais. Robotizar, dar tática, melhorar os conceitos.”

Categorias
Artigos

A DITADURA DA TÁTICA NO FUTEBOL

Reflexões sobre as mudanças paradigmáticas no futebol brasileiro e mundial

“Tanto jogando, como assistindo, o povo brasileiro potencialmente ainda conserva a sua paixão pelo jogo bonito, criativo, alegre e eficiente, que fez do futebol brasileiro uma marca reconhecida mundialmente. Aprendemos a gostar deste “jogo com bola, jogado com os pés”, de forma natural e espontânea. Desde a época das peladas e do “futebol de rua” que essa cultura de jogo nos envolve. Se faz necessário um esforço coletivo para resgatá-la, preservá-la e retroalimentá-la, porém com novos ingredientes que o futebol e a sociedade contemporânea exigem.”

(João Paulo Medina)

O futebol, enquanto expressivo fenômeno sociocultural e esportivo de alcance mundial, vem sofrendo diversas influências e transformações, conforme seu percurso ao longo da história.

Não é nosso objetivo, neste ensaio, fazer uma análise histórica mais aprofundada sobre as origens e a evolução desta modalidade esportiva, mas, apenas, contextualizar algumas reflexões críticas sobre o atual estágio do futebol no Brasil e no mundo. Nesta perspectiva, vamos tomar como referência histórica o período entre a realização da primeira Copa do Mundo, realizada em 1930 no Uruguai, até os tempos atuais. 

As Copas do Mundo, sendo repetidas de 4 em 4 anos (com apenas duas interrupções em 1942 e 1946 devido à Segunda Grande Guerra Mundial), costumam servir de termômetro – achemos adequado ou não – para se avaliar o estágio de desenvolvimento do futebol globalmente.

Neste período de quase 100 anos (1930-2023), pudemos constatar diferentes estágios de desenvolvimento no jogo de futebol. Mas até a década de 1950, o que se praticava era um jogo, onde a habilidade técnica individual dos jogadores era o fator decisivo, fazendo toda a diferença. Cabia ao treinador “enxergar” o potencial técnico de seus comandados e oferecer certa organização em campo aos jogadores para que pudessem expressar sua arte e obter bons resultados. 

Em seguida, em um período que podemos situar entre as décadas de 1960/70, com a evolução das ciências do esporte, iniciou-se a etapa de ênfase à preparação física, onde só as qualidades técnicas já não eram suficientes para as demandas do alto rendimento. Lembro-me, nesta época, aqui no Brasil, das críticas que sofriam os preparadores físicos (que começavam a surgir nos clubes mais estruturados), por parte de muitos que personificavam neles o retrocesso do futebol-arte, como “marca registrada” do futebol brasileiro. Com o passar do tempo, foi se conseguindo certo equilíbrio entre as exigências físico-fisiológicas dos jogadores e as suas habilidades técnicas necessárias à prática do “bom jogo”.   

Até que veio uma “terceira onda” no processo de evolução do futebol, cuja ênfase é dada à preparação físico-técnico-tática, na qual o componente tático começa a ter muito protagonismo.   

É claro, que não se pode distinguir, de forma mecânica, linear ou cartesiana, estas 3 grandes etapas. Na verdade, estes processos de mudança, ocorrem das mais diversas formas e, muitas vezes, sutilmente, com avanços e retrocessos.

O fato é que mais acentuadamente nestas últimas décadas, o jogo de futebol de alto rendimento, mudou bastante em vários sentidos. Mas vamos nos ater aqui, prioritariamente, à evolução de sua dimensão tática.  

Sem desconsiderar treinadores mais antigos, alguns excepcionais e inovadores, como Bill Shankly, Bob Paisley, Helenio Herrera, Ernst Happel, Rinus Michels, Zagalo, Johan Cruyff,entre outros, queremos destacar Arrigo Sacchi que no final dos anos 1980 e início da década de 1990, revolucionou o futebol mundial, inaugurando definitivamente uma era de predominância dos aspectos táticos no jogo de futebol que podemos afirmar que dura até nossos dias. Sacchi foi quem, com suas inovações táticas, deu grande ênfase ao jogo coletivo, colocando em outro patamar a necessidade de se ter um espírito de trabalho em equipe em seu mais alto grau de exigência até aquele momento.

Simultaneamente a ele, e depois dele, se destacaram outros grandes treinadores, desde Carlos A. Parreira, José Mourinho, Telê Santana, Luiz F. Scolari, Alex Ferguson, Van Gaal, Carlos Ancelotti, Tite, Luciano Spalletti, Lionel Scaloni, Abel Ferreira, entre muitos outros, até chegarmos nos icônicos Jürgen Klopp e Pep Guardiola.

Klopp e Guardiola se notabilizaram mais recentemente por suas inovações táticas (e não só), com resultados expressivos que, agora, segundo alguns analistas, começam a dar sinais que podem representar o encerramento de uma era, iniciada por Arrigo Sacchi. 

 A simplista e tradicional nomenclatura dos “sistemas táticos”, como o 4-2-4, o 4-3-3, o 4-2-3-1, o 4-1-4-1, o 3-5-2 etc., como interpretação das dinâmicas que ocorrem durante um jogo de futebol, parecem estar com seus dias contados.  Muitos treinadores, inclusive, já não os consideram como referência aos seus modelos de jogo. Mas não só esta nomenclatura está sendo questionada cada vez mais, como também os próprios sistemas táticos atuais em si mesmos, começam a mostrar suas fragilidades, independentemente dos números que os possam classificar ou identificar.

Neste sentido, um interessantíssimo artigo, publicado recentemente por Rory Smith, respeitado jornalista esportivo inglês e correspondente do influente jornal norte-americano, The New York Times, faz críticas aos “sistemas táticos” atuais, procurando dar luz a esta inflexão que pode desembocar em uma ruptura ou mudança de paradigma no jeito de jogar futebol, mundo afora. 

Rory afirma “A história do futebol é um processo de estímulo e resposta, de ação e reação. Uma (determinada) inovação domina por um tempo – o processo acontece cada vez mais rapidamente – antes que a concorrência a decodifique e a neutralize ou a adote.”

E continua o autor do instigante texto: “E há, agora, os primeiros vislumbres do que se pode seguir no horizonte (do futebol). Em toda a Europa, as ‘equipes de sistema’ estão começando a vacilar (geralmente, com muitos altos e baixos). O caso mais evidente é o Liverpool, de Jürgen Klopp, lutando não apenas com um cansaço físico e mental, mas também (com questões) de filosofia. Seus rivais e colegas, agora, estão inoculados para seus perigos. (…) Até o Manchester City (de Pep Guardiola, com o seu badalado “Jogo de Posição”), onde o sofrimento é sempre relativo, parece menos soberano do que antes.” Em relação ao Real Madrid, clube que tem conseguido manter bons desempenhos e resultados nos últimos tempos, ele justifica: “O Real Madrid, é claro, sempre teve esta abordagem, optando por controlar momentos específicos dos jogos, em vez do jogo em si. Mas o fez com uma vantagem significativa de possuir muitos dos melhores jogadores do mundo.”

Após essas considerações preliminares, Rory Smith afirma algo que queremos aqui destacar, por concordar amplamente com o que diz: “O futuro, ao contrário, parece pertencer às equipes e treinadores que estão dispostos a ser um pouco mais flexíveis e veem seu papel como uma plataforma na qual seus jogadores podem improvisar.” 

Na sequência, para sustentar seus argumentos, ele cita os trabalhos de Luciano Spalletti, do Napoli e de Fernando Diniz, do Fluminense, como novidades e bons exemplos de inovação no futebol. E é este o ponto que queremos destacar nestas reflexões. 

Não conheço muito o trabalho de Spalletti, a não ser a sua crença de que os jogadores “não podem ser tratados como marionetes, encorajando-os a pensar e interpretar o jogo por si mesmos.”  Mas acompanho com muita atenção, há tempos – desde seu período de Audax-SP – os movimentos e a evolução do treinador Fernando Diniz. 

Diniz, sempre questionou muito os posicionamentos tradicionais, engessados pelos sistemas táticos de jogo, quaisquer que fossem eles (mesmo os mais atuais e vencedores). Se insurge também àqueles que priorizam a tática descontextualizada, em detrimento dos relacionamentos humanos mais profundos. Dificilmente veremos o treinador do Fluminense travando um debate sobre tática ou modelo de jogo, por exemplo, sem antes contextualizar suas reflexões às situações concretas (de vida, inclusive) de seus jogadores.  Para ele, uma sociedade que exclui injustamente, que só valoriza quem vence e que simplesmente destrói jogadores (com potencial), mas que – por circunstâncias muitas vezes desconhecidas – não conseguem ser bem-sucedidos, é uma sociedade doente e que precisa ser superada.

Fernando Diniz, embora esteja atento à evolução científica no esporte, que traz inovações às metodologias de preparação dos futebolistas, não se deixa levar facilmente pelos modismos que, muitas vezes, tomam conta do ecossistema do futebol, de forma acrítica, criando-se verdadeiras “camisas de força” ou “ditaduras”, venham eles de onde vierem; das estatísticas, da fisiologia, da tática, ou de qualquer outra área específica do conhecimento.  Não se rende, enfim, às interpretações puramente especialistas (muitas vezes, vistas de forma estática, mecânica ou linear) sobre um jogo que entende ser complexo, dinâmico, caótico e imprevisível, em sua essência. Talvez, por isso, que seu “jogo aposicional”, que tanta controvérsia provoca, seja a marca indelével de seu estilo.

É fato que as equipes (todas) vão ganhar e perder no futebol de diferentes formas e circunstâncias, sejam quais forem as suas propostas, mas é fundamental que percebamos como os sistemas (posicionais ou “aposicionais”) podem ter influência no desenvolvimento dos jogadores e do futebol brasileiro e mundial.

E para finalizar com uma síntese do pensamento de Fernando Diniz, ele acredita firmemente que tudo aquilo que o jogador faz em campo é muito menos fruto de suas habilidades físico-técnicas e táticas, em si mesmas, e muito mais fruto de sua predisposição para seguir seus propósitos, ter coragem, desenvolver seu espírito de solidariedade, sua inteligência (individual e coletiva), seguindo um roteiro pré-determinado pelo treinador, porém com suficiente liberdade de movimentos e autonomia para poder improvisar e criar, mantendo aceso o genuíno prazer e alegria de jogar futebol. E não seria isso, o resgate da essência do futebol brasileiro, em tempos contemporâneos? 

João Paulo S. Medina

Fundador da Universidade do Futebol

Categorias
Artigos

Não existe clube bom com gente ruim!

As empresas são feitas de pessoas e os clubes também. Clubes são feitos de pessoas que jogam o jogo dentro das quatro linhas e de pessoas que jogam o jogo fora das quatro linhas. Então, faço aqui uma afirmação: todos deveriam estar capacitados e engajados para jogar um único e grande jogo.

E por quê? Porque a bola não entra por acaso. Porque por trás de um grito de gol, da transferência de um atleta, da atração de investidores, de novos patrocínios, da paixão de torcedores, da transformação da vida de atletas e famílias, da classificação para um grande campeonato… tem pessoas. Tem pessoas que, se inspiradas por uma estratégia clara, cultura e liderança fortes e recursos adequados, fazem o sucesso ou o fracasso de um clube ao longo de sua história.

São inúmeras perspectivas e reflexões sobre pessoas, que não cabem em um único artigo. Escolho então começar a refletir sobre alguns. De que adianta um sistema completo de scouting e investimentos milionários para compra de atletas se a liderança não estiver preparada para capitalizar no melhor de cada indivíduo e em favor do bem maior que é o time? De que adianta talentos individuais sem a força do coletivo? De que adianta atletas com capacidade técnica-desportiva excepcional se não forem pessoas com outras habilidades e competências, inclusive de relacionamento? Quais os limites de um atleta competente dentro do campo sem inteligência sócio-emocional?

Se refletimos o jogo fora do campo, vale também questionar o quanto as pessoas são talentos individuais e não são estimuladas a trabalharem na direção de um objetivo maior que suas próprias áreas e responsabilidades. O quanto essas pessoas estão, ou não, nos lugares adequados dos clubes onde possam inovar e gerar os melhores resultados baseadas nos seus propósitos, interesses, habilidades e competências. O quanto cada um entende seu papel e suas contribuições e investe no seu auto-desenvolvimento.

Mas, ainda mais relevante que refletir sobre as características e responsabilidades dos indivíduos, cabe destacar que tudo começa na alta liderança. É imprescindível a existência de líderes que tenham vontade política para gerir um clube de futebol de maneira profissional, humanizada e acima de interesses individuais ou de um único grupo.

Difícil começar? A desculpa continua sendo o resultado do jogo de domingo e a falta de recursos financeiros? Lembre-se que futebol realmente não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Comece com visão de longo prazo e engajando os melhores. Demita aqueles que não estiverem alinhados com a transformação. Ouça as pessoas de dentro e de fora do seu clube, invista neste coletivo, pactue, engaje, comunique com todos os públicos de interesse e veja a potência de contar com pessoas jogando o mesmo jogo dentro e fora das quatro linhas.

Texto por: Heloisa Rios

Categorias
Conteúdo Udof>Artigos

Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.3 – Construir relações

Em retrospectiva, os entrevistados destacaram acentuadamente a capacidade de construir relações como uma competência primordial ao sucesso dos treinadores no futebol profissional brasileiro. Especialmente quando “o calendário não permite que as equipes treinem muito”, torna-se fundamental ao treinador saber “gerir e se relacionar bem com as pessoas, sobretudo ao tratar com os jogadores, membros de comissões técnicas e dirigentes do clube”. Considerando a sua rotina de cooperação com os jogadores e funcionários do clube em um ritmo diário, os treinadores se comprometem ao aspecto humano do treinamento, cuja essência se sustenta em um sistema de interações sociais. A fim de estimular a competência em construir relações, os treinadores podem se atentar à disposição para trabalhar em equipe e aprimorar sua habilidade social

Desde que o treinador esteja disposto a contribuir com a promoção de uma mentalidade coletiva, trabalhar em equipe pode alicerçar o caminho para que o líder técnico intensifique suas ações em “confiar e delegar tarefas”, “valorizando os profissionais que possuem conhecimento científico para ajudar a integrar as áreas de trabalho” e “apoiar o treinador com sua expertise dentro do clube”. 

“O emponderamento dos profissionais na comissão técnica é fundamental para que o ambiente se torne mais tranquilo e produtivo, sem que eles fiquem com receio ou preocupação para seguir aquilo que já estavam fazendo. De forma resumida, tentar trazer esses profissionais para perto dando liberdade, empoderando-os para que eles continuem fazendo o seu trabalho, cada um no seu setor, e devagar ir vivendo o ambiente do clube para fazer com que isso se transfira para dentro do campo. Eu entendo que apesar de hoje o treinador ser um profissional que precise entender um pouco de cada área de funcionamento do clube, de cada setor, ele não vai dar conta se quiser cuidar de tudo. Portanto, empoderar esses profissionais, ter pessoas de confiança, pessoas leais, acho que é a maneira mais correta.” 

Os depoimentos acerca de como o esporte de alto rendimento demanda atenção ao trabalho em equipe reforçam a importância da comunicação interna entre treinadores e profissionais das áreas técnica e médica dentro de um clube de futebol, capturando a natureza híbrida do treinamento esportivo, cujas relações interpessoais devem ser diferenciadas dependendo do fluxo de diálogo e convivência entre os colaboradores da organização. Conforme ressaltado por um dos entrevistados, “hoje em dia há várias funções dentro de um clube e de suas comissões técnicas, por isso o treinador precisa gerir os atletas, as personalidades, os perfis diferentes, que envolve analistas de desempenho, fisioterapeutas, fisiologistas, auxiliares, preparadores físicos, nutricionistas, psicólogos, sendo que todas essas funções interferem em uma decisão”. 

Ao compartilhar o mesmo espaço interdisciplinar e multidimensional que fundamenta o seu processo de treinamento, o treinador também deve buscar alavancar a sua habilidade social de forma harmoniosa, demonstrando empatia, confiança e abertura a “um componente social que ainda não é bem descrito como uma função ao treinador no Brasil”. Simplificando, os treinadores devem se portar como “um gestor de pessoas em um ambiente onde os atletas possuem uma enorme autonomia”, reconfigurando possíveis conflitos a fim de “entender as necessidades dos jogadores, suas preferências e insatisfações”. Realçando como a interconexão entre treinadores e atletas se manifesta a favor da efetividade no processo de treinamento, um dos entrevistados defendeu que “um bom relacionamento faz toda a diferença, como é possível perceber até mesmo por meio de conversas informais com os jogadores”. Coincidentemente, dois profissionais apresentaram uma visão semelhante:

“Hoje é preciso se capacitar, se prestar habilitado, mas não adianta ter o conhecimento sem uma boa capacidade de gerir pessoas, porque para você fazer com que o ambiente esteja propício e favorável a receber os princípios de jogo, conceitos táticos e estratégicos que você deseja, você precisa gerir bem as pessoas, criar uma atmosfera que permita ao grupo absorver aquilo que você deseja. Nós temos vários exemplos de profissionais com bastante conhecimento, mas pela falta dessa gestão de pessoas eles não conseguem reproduzir aquilo que eles poderiam realizar com o conhecimento que têm. E também já vimos outros que não tinham tanto conhecimento, mas que pela capacidade de saber gerir bem o grupo e criar uma boa atmosfera eles tiveram sucesso. Portanto em qualquer situação, circunstância, momento, local, é fundamental você aliar o conhecimento à capacidade de gerir pessoas.” 

“Sendo bem informal, saindo dos livros e vindo à prática, eu divido os treinadores em dois grandes perfis: o treinador que é um bom gestor de pessoas e o treinador que entende muito de futebol. Na minha trajetória dificilmente eu vi treinadores que reuniram essas duas capacidades. Na minha opinião aqueles que se mantêm por muito tempo trabalhando e não somem do mercado são os melhores na gestão de pessoas. Às vezes eles nem entendem tanto de futebol, mas por serem bons gestores de pessoas eles conseguem se manter empregados e o mercado não os descarta tão rápido.”

Categorias
Conteúdo Udof>Artigos

Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.2 – Adaptar-se ao ambiente

Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil

No território brasileiro, os treinadores profissionais também tendem a ser valorizados pela sua competência em adaptar-se ao ambiente. Segundo o que sugerem os entrevistados, “deve haver uma sabedoria para equilibrar e se adaptar”, “entendendo a realidade e as necessidades do clube de modo que seja possível conduzir o trabalho”, caso contrário o treinador pode se ver preso em meras repetições. Conforme defendido por um dos membros de comissões técnicas, “adaptar-se a diferentes cenários é algo inegociável, não necessariamente na competição mas em torno do clube, porque é muito comum encontrarmos treinadores que querem implementar as mesmas ideias, a mesma estratégia e se comportarem do mesmo jeito que fizeram em momentos de sucesso do passado”. Para demonstrar tal competência enquanto se ajustam ao seu respectivo ambiente profissional, duas condições foram identificadas entre as percepções dos entrevistados: compreender a região e compreender o clube

A capacidade para poder compreender a região se baseia nos aspectos socioculturais e geográficos que distinguem o vasto território da República Federativa do Brasil, cuja composição unifica o país em cinco regiões e 27 unidades federativas. Embora apenas uma parcela dos estados tenha representantes nas principais competições de futebol do país, os entrevistados deste estudo fizeram questão de esclarecer que os treinadores devem absorver as diferenças culturais e comportamentais em cada região onde venham a trabalhar, a fim de potencializarem o entendimento regional enquanto se adaptam ao ambiente onde o clube se situa. Afinal, como exemplificou um dos treinadores, “as dimensões continentais influenciam clubes com diferentes culturas no país”. Aliado ao raciocínio, outro entrevistado inclusive notou que eles devem constantemente “mudar segundo a cultura local, porque existem diferenças entre estados que forçam o treinador a saber lidar com distintos cenários”. Em face a tal diversidade regional no mesmo território, as experiências vividas pelos treinadores inevitavelmente tendem a variar: 

“Existe uma grande diferença comportamental entre uma região e outra e você tem que adequar o seu perfil a cada região em que for trabalhar. Um dos principais pontos que o treinador precisa apresentar para ter êxito no Brasil é o sentimento de que em cada região você deve trabalhar de uma forma diferente. Não me refiro só às relações com as pessoas, mas às características da região. Por exemplo, no Centro-Oeste você tem temperaturas muito altas ao longo do ano, inclusive com queimadas, poluição, fumaça. Os jogadores têm uma desidratação absurda, desgastando muito o aspecto físico. Você precisa ter uma sensibilidade muito grande não só na relação com o atleta pelo desgaste que ele tem, que traz uma queda de rendimento, mas principalmente na organização das cargas de treino, porque se você treinar muito o jogador vai chegar cansado para jogar. Por outro lado, já no Norte do país eu tive que ser flexível e mexer na estrutura do time devido às condições dos gramados onde nós jogávamos, mudando a minha visão e o meu modelo de jogo. Somente para pontuar exemplos de como cada local tem a sua peculiaridade.” 

Ainda de acordo com as percepções dos profissionais, os treinadores também devem fomentar, concomitantemente, a sua capacidade em poder compreender o clube, uma competência que estende o convite a “detectar a verdadeira identidade dentro do clube, assimilando a sua realidade”. Conscientes sobre a influência de aspectos internos e que são inerentes ao clube na condição de uma organização ampla, porém local, os treinadores devem buscar diagnosticar o clube onde trabalham a fim de se comportarem em consonância com a cultura organizacional identificada pelas pessoas já empregadas na instituição. Uma vez que o processo de treinamento se incorpora ao ambiente do clube, torna-se determinante “entender onde você está chegando, onde você vai trabalhar e como você se relaciona com as pessoas”, além de “tentar reunir o máximo de informações possíveis sobre o que o clube oferece, quem são as pessoas envolvidas e o que já está em funcionamento”. Tal reflexão em caráter antecipado convida os treinadores a demonstrarem maior flexibilidade profissional, ilustrando como o alto rendimento do futebol brasileiro requer um cuidadoso ajuste de atitudes, ideias e decisões dependendo de cada ambiente de trabalho em que a profissão do líder técnico é exercida. 

“Por mais que você tenha conteúdo e metodologia de treino, quando você é contratado no meio de um campeonato, qual é o método ou ideia de jogo que você consegue aplicar? É isso o que vai fazer a diferença? Ou é o seu processo de adaptabilidade em estar bem preparado para compensar e colocar as coisas mais simples e rápidas para que você reequilibre e dê resultado em curto prazo? Muitos profissionais têm conteúdo, mas sem nem conhecer os jogadores, as características, saber se os salários estão atrasados, o que está acontecendo no clube, se tem comida, não adianta entrar achando que é um mágico e vai resolver tudo porque tem bom conteúdo ou desenha um bom treino no papel. Não vai, não adianta. O treinador tem que estar aberto à adaptação ao processo. Se adaptar o mais rápido possível ao momento, à situação, às características dos jogadores. Depois, aos poucos, ele consegue inserir as suas ideias, a sua metodologia. É um processo de adaptabilidade para que se ganhe tempo sendo simples, direto, objetivo, se adaptando rápido ao clube. Não o contrário, esperando que o clube se adapte à sua ideia. Você não chega para curar a doença, apenas para dar um remédio. Portanto, simplicidade, objetividade e adaptação.” 

Categorias
Artigos

O futebol e a física quântica, ou de como o Brasil pode ter sido derrotado pelo bater das asas de uma borboleta.

Texto: Valter Bracht, Mestre em Ciência do Movimento Humano e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

É bastante curioso, para dizer o mínimo, como após um determinado resultado de uma partida de futebol, milhões de analistas buscam argumentos e explicações para o sucesso ou o insucesso de determinada equipe, ou seja, buscam explicações para o resultado. Explicar o resultado significa identificar as causas que o determinaram. Na modernidade, as causas, diferentemente do pensamento mítico-religioso, são buscadas não em forças externas ao mundo concreto, ou seja, o mundo tem um funcionamento intrinsecamente lógico-racional. Assim, também o sucesso ou o insucesso num campeonato pode ser explicado buscando as causas dos mesmos. Poucos são os analistas que não partem (diga-se de passagem, na maioria das vezes de forma implícita) desses pressupostos. Um exemplo é Tostão, que tem falado em suas crônicas sobre o inexplicável e o imponderável presente no futebol, constituindo-se em exceção.

É também muito curioso ou mesmo paradoxal que sempre estejamos tentando “eliminar” a imprevisibilidade do (nosso) resultado em uma atividade cuja atração ou tensão prazerosa provém exatamente da sua imprevisibilidade. Como sabemos, essa é uma das características centrais do fenômeno do jogo. O que observamos, é um comportamento quase esquizofrênico ou ambíguo: me divirto com a tensão da imprevisibilidade do resultado, mas envido todos os esforços (racionais) para garantir um determinado resultado.

Olhando “de fora” o comportamento do torcedor de futebol é algo grotesco porque fica oscilando entre o apelo a todos os santos e divindades e ao mesmo tempo buscando causas/culpados. Aliás, ouve atentamente e julga os comentários dos “especialistas” e confere às causas identificadas por esses (e por suas próprias análises) credibilidade sem jamais, no entanto, atribuir à “forças ocultas” o resultado (apesar de, em caso de sucesso, agradecer aos “céus”). Embora possa parecer grotesco, esse comportamento também pode ser lido como uma espécie de resistência (não conscientemente assumida) à total racionalização do mundo vivido (mas esse é outro tema!).

Apesar de ambíguo, o nosso comportamento em relação à prática do futebol, ou de forma mais geral, em relação aos esportes competitivos (particularmente os de alto-rendimento) vem sofrendo cada vez mais a influência do afã racionalista moderno… mas… o acaso e o “sobrenatural” resistem!

Ao refletir sobre isso lembrei de um texto (talvez pouco conhecido ou citado) do filósofo brasileiro (falecido em 2002) Gerd Bornheim, intitulado “Racionalidade e acaso”.[1] Encontrei nele uma interessante análise do percurso da racionalidade no mundo moderno no seu afã de domar o acaso. Passo a resenhar suas reflexões.

Para o autor, já o pensamento filosófico inaugurado na Grécia antiga pretendia vencer a sujeição ao acaso, procurando estabelecer um comércio racional do homem com o seu meio-ambiente. Vale dizer, estabelecer uma relação de dominação para com a natureza. Esse passo, do acaso para a racionalidade, foi decisivo para a história do homem. O homem transforma o próprio planeta em objeto. A crítica que se fez a essa perspectiva não conseguiu prejudicar a crença na razão e seu sucesso fez surgir a ideia de que o todo da sociedade deveria ser reestruturado em conformidade com preceitos estritamente racionais. Para este pensamento a realidade é sistemática, ou seja, um composto de partes racionais.

Mas, “mil cabeças” se erguem contra a hegemonia do racional, seja pelo voluntarismo, ou pela vivência irracional, ou pelo inconsciente, ou pela história voltada ao particular, ou pela atenção ao homem enquanto singular concreto etc. No entanto, o “sistema” continuou exibindo uma impressionante força, em grande medida por causa da aliança entre o conhecimento e o poder: o sistema, que, lembremos, possui estrutura racional, tornou-se como que coextensivo à própria realidade social.

Nesse processo parece que o acaso simplesmente desaparece e não se percebe um lugar para ele. Ou sim? Mas onde? Para o autor no cerne do próprio sucesso do sistema volta a aparecer no século 20 a figura desconcertante do acaso impondo certo revés ao racionalismo, surgindo algo como uma “aurora do acaso” (p. 47). Cita a ironia de Pascal, que pergunta se a história não teria sido diferente se o “nariz de Cleópatra fosse mais curto”.

Várias foram as tentativas então de acomodar ou contemplar o acaso ainda ao pensamento racional, interpretando-o como algo que lhe escapa, ou seja, uma determinação às avessas. São explicações do acaso que não vão além de uma situação-limite da realidade de forma que “ainda” não é possível uma explicação racional.

Mas, também busca-se considerar “positivamente”, se assim podemos dizer, o acaso em algumas atividades humanas, ou, como diz o autor, tornar presente o acaso numa certa conjugação da previsibilidade com a imprevisibilidade, uma ambiguidade que está presente, por exemplo, no futebol. Vale aqui uma longa citação:

“…Um jogo é armado de maneira a garantir a máxima previsibilidade possível, sempre de olho firme nos resultados, e, em boa medida, de fato os sucessos são previsíveis. O técnico é um especialista que calcula todas as forças e os melhores efeitos. O corpo do atleta e suas resistências podem ser medidas, o tipo de talento ou aptidão de cada um deixa-se conduzir em função de estratégias calculáveis, os grupos também são organizados segundo táticas precisas, e por aí afora. Tudo se passa, portanto, como se o grau de racionalidade compatível com a organização de uma partida de futebol pudesse atingir um nível considerável – todo o afinco dos técnicos regula-se justamente por tal ideia. Essa racionalidade fortalece-se ainda mais dada a existência de regras convencionais, que devem ser obedecidas por todos. Na primeira metade do século, Brecht percebeu com muita argúcia uma certa dualidade que invade os espectadores de uma partida de boxe, o grande esporte de massa da época. O dramaturgo de Na selva das cidades chama a atenção para essa estranha espécie de contradição que determina o comportamento do espectador: de um lado, uma irracionalidade que chega à beira de um certo histerismo, e, de outro, a perfeita atenção ao cumprimento das regras do jogo, acusando a presença de um espírito crítico que não adormece jamais. Um espetáculo esportivo obedece, portanto, a diversas e exigentes formas de racionalidade. Contudo, parece que a própria vida do jogo decorre da exploração dos acasos, do imprevisível, a racionalidade tropeça em ardis que configuram precisamente as virtudes do acaso: nada mais enfadonho do que um jogo restrito a artifícios racionais.” (p. 48-9 – grifos meus)

Nos últimos anos acentuou-se no âmbito do futebol um processo que poderíamos chamar de “cientifização”, esforço destinado a “garantir um determinado resultado”, o que equivaleria a domar (ou eliminar) completamente o acaso. Para tanto, as equipes responsáveis pelo treinamento e performance dos times incluem cada vez mais profissionais de diferentes disciplinas: psicólogos, nutricionistas, fisiologistas, estatísticos etc. Aliás, as estatísticas talvez sejam a mais evidente tentativa de orientar “racionalmente” as decisões dos técnicos e também de identificar as “causas” dos resultados. Um dos primeiros comentaristas de futebol a se valer e dar ênfase às estatísticas foi o gaúcho Rui Carlos Osterman (Rádios Guaíba e Gaúcha), hoje seguido por Paulo Vinícius Coelho com sua “prancheta do PVC”. No último campeonato mundial, vimos na própria transmissão da FIFA novas estatísticas, como o tempo médio de recuperação da bola de uma equipe. Uma exceção é quando se fala e se considera o talento. Diz-se que o talento resolve onde a técnica comum e a tática não resolvem, mas quando isso não ocorre o diagnóstico é: não conseguiu mostrar o seu talento… e aí buscam-se novamente razões.

Mas além do futebol, o nosso autor também cita o exemplo de algumas ciências (física, biologia), como da psicanálise, da literatura e mais amplamente da filosofia. Embora todas sejam interessantes e importantes, destaco aqui particularmente o caso da física contemporânea.

A física clássica foi o grande modelo da ciência moderna com seu rigor e seu determinismo racionalista onde o acaso não possuía lugar. Mas, a famosa frase de Einstein, “Deus não joga dados”, com a qual se contrapunha aos colegas que falavam em “indeterminação”, talvez seja o último eco da física clássica. Para a física quântica no plano do infinitamente pequeno e do infinitamente grande o acaso passou a adquirir uma dimensão cósmica.

Por um bom tempo acompanhei as reflexões de um físico quântico que foi aluno de Werner Heisenberg (considerado um dos pais da física quântica) chamado Hans-Peter Dürr (falecido em 2014), particularmente suas palestras. Uma das mais famosas era intitulada Wir erleben mehr als wir begreifen (Nós vivenciamos mais do que apreendemos). Ele fazia um esforço de “traduzir” conceitos importantes da física quântica para nós os leigos e também discutia suas consequências para nossa cosmovisão e mesmo nossa forma de compreender e estar no mundo.

Pois bem, em suas palestras costumava usar como ilustração um pêndulo (pode ser encontrado na internet no Youtube – Hans-Peter Dürr Pendel). Ele colocava o pêndulo na posição vertical, mas invertida (o peso para cima) e buscava colocá-lo exatamente no eixo vertical. Perguntava, então, se era possível saber para qual dos lados que ele iria cair? Em princípio, se o colocássemos exatamente na vertical ele hesitaria um pouco, mas, por alguma influência ambiental ele acabaria se movendo para um dos lados. Bem, mas se incluíssemos no cálculo todos os fatores ambientais e os controlássemos (por exemplo, o vento, o calor dos corpos circundantes e todas as forças infinitamente pequenas) seria possível prever seu comportamento? Teríamos que incluir no cálculo todo o “cosmos”, já que, em última instância, o bater das asas de uma borboleta no outro lado do mundo poderia determinar para que lado o pêndulo iria cair. A conclusão do físico é a de que sistemas instáveis são extremamente sensíveis e que se considerarmos o cosmos como algo vivo, o pêndulo parece dizer em determinado momento “eu sou livre”.[2]

A diferença de performance entre duas equipes permite, dentro de determinados limites, “prever” o resultado, mas o imponderável, o acaso está sempre à espreita – vide o sucesso da “loteria esportiva”. Ora, um sistema instável, como lembra nosso físico, é extremamente sensível. Se a capacidade de performance é muito desigual isso permite certo nível de previsão para qual lado o “pêndulo” vai tender, mas… um lance fortuito pode tornar o sistema novamente muito instável; a possibilidade disso acontecer nos mantém excitados – nada mais chato do que saber o resultado de um jogo que vou assistir em vídeo-tape. Quanto mais equilibradas as performances mais imprevisível e mais susceptível ao acaso será o resultado.

Quando o Brasil sofreu um gol quase no final do jogo contra a Croácia no último mundial, decisivo para sua derrota, novamente os analistas começaram a buscar as razões ou causas daquela derrota: decisões equivocadas do técnico, dos jogadores, problemas táticos, a convocação equivocada do Daniel Alves etc. (um analista chegou a fazer uma lista: dez razões que explicam porque o Brasil foi derrotado pela Croácia). Voltando às estatísticas: nesse jogo todas as estatísticas eram favoráveis ao time brasileiro, mas parece que elas foram derrotadas pelo acaso.

Mas, se observarmos o gol da Croácia veremos que o chute do atacante vai na direção do jogador Marquinhos, resvala nele e muda sua trajetória e com isso dificulta a defesa do goleiro brasileiro. Se considerarmos essa cena, podemos dizer que temos aí um exemplo de um sistema muito instável e extremamente sensível. Basta lembrar quantos chutes endereçados ao gol durante os jogos da Copa desviaram em defensores e ao invés de adentraram ao gol saíram pela linha de fundo. O que determinou que o desvio da bola, no caso do gol croata, tivesse o destino que teve e não outro? A contingência, o acaso ou o bater de asas de uma borboleta do outro lado do mundo? Quem sabe?


[1] BORNHEIM, Gerd. Racionalidade e acaso. In: NOVAES, A. (Org.). Rede imaginária: televisão e democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

[2] Ele depois complexifica a análise ao interligar vários pêndulos que ele vai chamar de pêndulo-caos. Lembro aqui novamente de Borheim que fazendo referência a Nietzsche, diz que “o caos é como a acumulação do acaso” (p. 52)

Categorias
Artigos

O futebol feminino é estratégico?

Sim. Quero responder essa pergunta com um longo e sonoro simmm…. Mas por quê?

Pelo lado das oportunidades: crescimento exponencial de novos expectadores, novos consumidores, patrocinadores, oportunidade de expansão das marcas de clubes fortes ou fortalecimento e visibilidade de clubes que não são tão expressivos no cenário nacional. Incremento de vendas de diversos setores como, por exemplo, o de artigos esportivos.

Além disso, o futebol feminino é estratégico pois significa responsabilidade social, diversidade e inclusão tanto para clubes quanto para marcas que investem na modalidade e na formação das atletas. A modalidade tem um número crescente de competições nacionais e internacionais, com um aumento explosivo de audiência e visibilidade das marcas. O futebol feminino ainda leva nossa marca Brasil para diversas competições, incluindo Olimpíada e Copa do Mundo.

Mas o futebol feminino também é estratégico pelo lado dos riscos… Explico-me. Que tal ver seu time do coração tomando uma goleada de um time rival ou de um time de “camisa menor”? Que tal essa goleada ser assistida por milhares de expectadores e, cada vez mais, sendo transmitida pela TV e principais canais de streaming? Que tal continuar deixando o time de futebol feminino treinar em “qualquer lugar” e com “qualquer suporte” e depois disputar os jogos com a camisa oficial do clube? Que tal todos os riscos de simplesmente delegar para um gestor desqualificado a responsabilidade de juntar um número de atletas sem estrutura adequada, sem apoio e sem investimento na formação técnica e humana das atletas para simplesmente cumprir os regulamentos? E, depois, como arcar com todas as consequências civis, de reputação e perdas financeiras?

Fazendo um resgate histórico, de esporte proibido para mulheres até a visão estratégica da FIFA ao regulamentar o futebol feminino por reconhecer sua importância para a continuidade do crescimento do futebol, foram muitas lutas. A modalidade foi regulamentada no mundo e também no Brasil com esta visão de inúmeras oportunidades que podem ser ilustradas, por exemplo, pelo público recorde de mais de 1 bilhão de telespectadores que assistiram à Copa do Mundo feminina da França em 2019.

Além disso, a FIFA criou, em 2018, a Estratégia Global para desenvolvimento do futebol feminino baseada em cinco pilares: desenvolver e crescer dentro e fora do campo, melhorar as competições, comunicar e comercializar, igualdade de gênero em papéis de liderança e educar e empoderar.

E você? Com tantos resultados sociais, econômicos e culturais em curso e com o crescente engajamento de diversos stakeholders para o impulsionamento da modalidade e da agenda EESG (Economic, Environment, Social and Governance), que tal assumir uma estratégia mais robusta e consistente para o futebol feminino?

Texto por: Heloisa Rios

Imagem: Sam Robles/CBF

Categorias
Conteúdo Udof>Artigos

Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira. | Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil

Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil

A imagem a seguir oferece uma representação visual sobre o sistema de competências voltado ao trabalho dos treinadores profissionais no alto rendimento do futebol do Brasil. Embora a ilustração forneça ao mesmo tempo uma visão geral e detalhada das principais competências junto às suas respectivas habilidades necessárias à valorização do treinador no futebol brasileiro, ela expõe prioritariamente a complexa realidade vivida pelos treinadores profissionais que transitam pelo território nacional. 

Para capturar a essência do seu trabalho, a representação visual foi desenhada no formato de uma complexa roda cuja engrenagem apresenta encaixes e lacunas a fim de defender a natureza recursiva, construtiva e dinâmica na prática da profissão. Enquanto as conexões retratam a constante interação que existe no trabalho do treinador, os espaços em branco representam as inevitáveis lacunas e desencontros que também compõem o fluxo de trabalho diário, afinal todo e qualquer observador que não participa diretamente do processo de treinamento esportivo tende a sofrer limitações em como percebe a atuação do treinador. 

Fundamentalmente, a ideia prioritária ao se visualizar a roda de competências diz respeito a uma engrenagem em movimento, cujos componentes não podem e nem devem ser arbitrariamente distinguidos em relação a sua ordem de importância, posição ou peso. Portanto, um treinador competente está sempre em movimento no alto rendimento do futebol profissional. Ele busca fortalecer suas qualificações, equilibrar suas oportunidades de aprimoramento e suprir suas deficiências com os recursos ao seu alcance no contexto onde trabalha. Ainda assim, o círculo externo simboliza como os resultados dos jogos em janelas de curto prazo mantêm a roda girando independente da eventual ausência de qualquer competência entre os componentes da engrenagem interna. Ou seja, a entrega de resultados positivos é o que possibilita o movimento dos treinadores no Brasil. 

A fim de replicar os testemunhos dos próprios entrevistados, o texto apresenta uma série de palavras e frases entre “aspas” que destacam as informações devidamente associadas ao processo de análise do conteúdo qualitativo neste estudo acadêmico. Ademais, citações individuais com maior aprofundamento também foram utilizadas para enaltecer em detalhes algumas das experiências dos profissionais. Conforme antecipado na PARTE 1, vale lembrar que o anonimato dos entrevistados e suas menções específicas sobre clubes e pessoas permaneceram confidenciais. 

1. DEFINIR VISÃO E ESTRATÉGIA 

Reconhecida como uma competência que norteia o processo de treinamento, a capacidade em definir visão e estratégia não apenas possibilita ao treinador ter condições “para implementar suas ideias de jogo e persuadir os atletas a confiarem nele”, como também fortalece suas habilidades de liderança e gestão “fora do campo”. Conforme destacado pelos membros de comissões técnicas, “além de treinar a equipe, o treinador precisa ser um bom gestor”, porém “muitos treinadores decidem o que será treinado ou feito de acordo com o ambiente do dia, sem planejar e organizar o trabalho com projeções de jogos e um calendário que possa se refletir diretamente na comissão com antecedência”. De certo modo, essa competência mostra como os treinadores devem se atentar a macrocomponentes para guiar o seu trabalho com liderança, gestão e estratégia no alto rendimento. Abrangendo os argumentos mais recorrentes dos entrevistados, definir visão e estratégia se relaciona a saber planejar e também gerir o tempo

Visto que os treinadores se encontram intrinsicamente dedicados a um processo de treinamento construtivo e recursivo, os profissionais que operam no alto rendimento devem saber planejar o seu trabalho de uma maneira profissional e estratégica. Sobretudo pela ausência de dirigentes profissionais no planejamento e na supervisão do processo de aprimoramento esportivo no Brasil, os treinadores devem se posicionar como as figuras de liderança em seus respectivos clubes. Para atender as demandas que surgem dentro e fora do campo ao longo da temporada, eles devem se esforçar para planejar, antecipar e organizar estrategicamente a carga de trabalho junto à equipe multidisciplinar que integra o clube onde estão empregados. Um dos entrevistados detalhou o raciocínio que os treinadores devem levar em consideração no alto rendimento: 

“O treinador precisa ter planejamento. Não dá para você chegar hoje em dia sem sentar para saber quantas competições vai disputar, quantos dias estão disponíveis para se preparar em cada competição, quando elas terminam, quais são os prazos para entender o que é possível e o que deve ser feito. Você pode chegar e colocar o jogador para treinar, mas qual é o seu objetivo? Com quais objetivos você está fazendo aqueles treinamentos? Tudo é subsequente, tudo é planejamento. Então, diariamente e a cada semana você vai confirmando o trabalho, o volume, a intensidade, as distâncias, as individualidades. Isso entra no planejamento do treinador. Ele não pode chegar e aleatoriamente apontar os treinos técnicos ou táticos. Onde você quer chegar? Ele planeja os exercícios com os objetivos do trabalho. Tem que saber e realmente ter o planejamento. Qual o tempo de recuperação entre uma carga e outra? Se você planeja, você sabe o produto final do treino. Não dá para entrar hoje e aplicar treinos soltos, pois a probabilidade de errar é muito grande. Se começou errado, esse erro vai vir à tona em qualquer momento.” 

Os profissionais entrevistados também enfatizaram que gerir o tempo se caracteriza como uma competência que possibilita suportar a frequente congestão de jogos do futebol brasileiro, exigindo dos treinadores uma capacidade em saber abordar o desgastante fluxo de trabalho com questões logísticas que afetam jogadores e comissões técnicas. Particularmente entre os clubes do Brasil, ao conseguir administrar o tempo, os treinadores podem se aproximar dos objetivos organizacionais enquanto trabalham com e entre os indivíduos que compõem a equipe multidisciplinar. Cientes de que se encontram constantemente confinados pela “falta de tempo para treinar e recuperar jogadores” durante a temporada, os treinadores de futebol no Brasil devem ser competentes para influenciar o rendimento esportivo de suas equipes utilizando habilidades estratégicas na gestão, monitoramento e respostas às restrições do calendário competitivo. Ao contrário do que o pensamento convencional deseja encontrar em um cenário de treinamento estruturado e progressivo, dois dos entrevistados explicaram como a congestão de jogos no calendário anual se manifesta contra o desenvolvimento dos treinadores que operam no país: 

“O processo é muito abrangente, muito importante, só que a gente não consegue treinar. A gente não tem tempo para treinar. Você se organiza dentro de vídeos num processo mais didático de fala, de conversa. O calendário é cheio de maratonas loucas de jogos seguidos. Você acaba sendo um recuperador de atletas e um gerenciador de vaidades. Nós vamos a cada jogo. O treinador tem que ser um mágico, gerenciar a vaidade, tentar passar os seus conceitos e o seu entendimento do jogo de uma maneira muito rápida, porque não há tempo. Você consegue dar alguns estímulos, a gente tenta recuperar o atleta, trabalha com quem pode e não pode treinar, com quem está ou não jogando.” 

“Atletas não são máquinas. Eles não conseguem ter intensidade jogando cinco, seis jogos sem tempo de descanso. A recuperação emocional e neurológica é mais demorada do que a física. O atleta pode até se recuperar do ponto de vista muscular, mas não de um estresse emocional. Até eu como treinador percebo que a minha mente foge da beira do campo com a sequência de jogos, passando do sexto, sétimo jogo toda quarta e domingo. Um calendário mal construído impacta em tudo, inclusive no trabalho e no desenvolvimento do treinador. Se eu não consigo treinar fica mais prático eu aplicar um jogo pragmático porque eu não sou mais treinador, eu sou um ‘gerente de qualidades’.” 

Categorias
Conteúdo Udof>Artigos

Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira. | Parte 1

PARTE 01 | A essência do trabalho de um treinador de futebol

A profissão de treinador apresenta um impacto significativo na melhoria do desempenho esportivo em diferentes níveis de atuação, partindo desde a orientação pedagógica em práticas recreativas na iniciação, seguindo às etapas de formação e desenvolvimento de atletas, e evoluindo até se atingir o alto rendimento de uma modalidade. Transcendendo resultados em jogos ou eventos, bem como conquistas em torneios ou campeonatos, o treinamento esportivo representa uma atividade social dinâmica que engaja vigorosamente treinadores e atletas. Ao nutrirem um relacionamento mútuo, enquanto os atletas tendem a aprender com o comportamento de seus respectivos treinadores, os próprios treinadores também expandem o seu aprendizado de acordo com as respostas de seus atletas em uma série de interações graduais, cíclicas e não-lineares. Trata-se de um processo de reciprocidade entre ensino e aprendizagem. 

A fim de desenvolver as competências relevantes para a sua profissão, os treinadores esportivos podem participar de programas de educação formal, buscar oportunidades de mentoria com profissionais mais experientes, ou até mesmo se beneficiarem de vivências práticas individuais caso tenham tido uma carreira como atleta na modalidade. Independentemente do seu estilo de liderança, os treinadores esportivos fomentam um processo de planejamento, implementação e reflexão sobre as suas sessões de treinamento, visando aprimorar o rendimento atlético e atingir objetivos coletivos dentro e fora da atividade. 

Especificamente no futebol, entretanto, considerando que os treinadores profissionais conduzem as suas funções e responsabilidades em um ambiente de constantes alterações, o seu trabalho inevitavelmente sofre com a urgência de expectativas por vitórias e rendimento convincente em curto prazo, cuja origem se sustenta na desordem proliferada entre os agentes que rodeiam o esporte. Como consequência direta dessa realidade no cenário nacional, por exemplo, a duração média de um treinador de futebol de elite no cargo já foi constatada em 65 dias durante o Brasileirão, restringindo o potencial do seu trabalho a pouco mais de dois meses (mesmo sabendo que no futebol apenas uma equipe termina a competição como campeã ao final da temporada). Tal contradição à importância prática do aprimoramento esportivo em uma modalidade coletiva de alto rendimento ilustra, possivelmente, um desencontro entre a preparação dos treinadores e as reais competências necessárias ao seu trabalho no alto nível brasileiro. Afinal, experiências educacionais simplistas e funcionalistas contribuem para a geração de concepções românticas e irrealistas da atividade

No território brasileiro, o órgão responsável por governar, organizar e administrar a modalidade atende pelo nome de Confederação Brasileira de Futebol, popularmente reconhecida pelo acrônimo CBF. Como parte de suas iniciativas domésticas, a instituição lançou a sua própria unidade educacional em 2016, intitulada CBF Academy. Originalmente voltada a estruturar o currículo educacional aos treinadores de futebol do país, a CBF Academy arquitetou quatro licenças de treinamento com um volume total de 1000 horas de educação formal aos treinadores que estudam e operam no Brasil. Tais licenças referem-se a níveis de certificação que possibilitam aos treinadores trabalharem com programas de iniciação esportiva junto a crianças e adolescentes (Licença C), em categorias de base (Licença B), evoluindo progressivamente aos níveis profissionais da modalidade (Licenças A e Pro). Contudo, segundo um estudo acadêmico que contemplou 30 confederações esportivas do Brasil, incluindo a CBF, a formatação de programas educacionais a treinadores esportivos no país segue uma abordagem determinada por quem supervisiona as operações de cima para baixo (uma ação conhecida em inglês como top-down). Para expandir os formatos técnico-metodológicos e enriquecer um ambiente de aprendizagem colaborativo, o contexto real das experiências em torno da atividade e o rendimento esportivo vivenciado pelos treinadores devem ser levados em consideração na prática educativa dos profissionais.

Segundo a orientação do Conselho Internacional ao Treinador de Excelência (ICCE), a dinâmica de trabalho de um treinador esportivo deve respeitar o seu contexto social e organizacional, estimulando as suas competências de modo a possibilitar um melhor entendimento, interação e relacionamento com o seu respectivo ambiente. Logo, tomando como referência o direcionamento do ICCE, o objetivo do estudo voltou-se a mapear as competências que são percebidas como mais importantes ao trabalho dos treinadores de futebol profissional que atuam no contexto brasileiro. Ao constatar a necessidade de uma compreensão realista acerca do trabalho de um treinador de futebol no território nacional, o estudo em questão buscou capturar as experiências mais recorrentes no país de forma assertiva, beneficiando-se de depoimentos provenientes de 59 profissionais com alta credibilidade no Brasil. 

Visão geral dos 59 profissionais que participaram deste estudo (em ordem de idade na data das entrevistas) 

Os entrevistados envolvidos neste estudo contemplam 29 treinadores e 30 membros de comissões técnicas (7 auxiliares técnicos, 5 treinadores de goleiros, 10 preparadores físicos, 5 fisioterapeutas, 2 fisiologistas e 1 médico), que foram entrevistados no período de 14 de Janeiro a 16 de Abril de 2021. Conjuntamente, os treinadores em questão acumularam 3458 partidas oficiais na Série A do Brasileirão entre as temporadas de 2003 a 2020, que corresponde a 47,6% de todos os 7266 jogos nesse período de 18 anos. Considerando a relevância das comissões técnicas ao desempenho de um treinador, profissionais de diferentes funções foram convidados a participar do estudo devido ao seu envolvimento diário ao lado dos treinadores na prática. De um modo geral, os seus depoimentos fortaleceram uma exploração mais sistemática, visto que as suas experiências complementam a percepção das atitudes e do ambiente onde os treinadores operam. Para assimilar uma amostra abrangente ao território nacional, um esforço particular na confecção deste estudo se concentrou em convidar profissionais de origens distintas, priorizando o seu nível de conhecimento e buscando equilibrar o volume de jogos oficiais que cada treinador já tinha acumulado enquanto fora empregado durante a Série A. O único critério específico para participação no estudo correspondeu a comprovar se cada profissional já havia assumido o seu respectivo cargo em uma comissão técnica efetiva pelo menos uma vez durante o Brasileirão desde 2003. 

Respeitando a natureza do estudo, bem como agindo de forma responsável para garantir que todos os profissionais entrevistados permaneçam anônimos e os seus respectivos depoimentos se mantenham igualmente confidenciais frente ao julgamento público, considerações éticas representam um aspecto primordial para sustentar esta investigação acadêmica. Portanto, além dos procedimentos metodológicos que foram rigidamente respeitados ao analisar, formatar e publicar o conteúdo científico original junto à comunidade acadêmica internacional nos âmbitos de gestão e ciências do esporte, esta versão adaptada em português acentua a prioridade dos autores em não expor nomes de pessoas ou instituições esportivas ao longo do texto. 

Em suma, os entrevistados foram questionados a respeito das principais competências necessárias à condição de treinador profissional no futebol de alto rendimento do Brasil, compartilhando suas experiências profissionais e oferecendo exemplos práticos de acordo com as suas respectivas origens. As questões levantadas foram: Quais competências um treinador efetivamente precisa apresentar para ser bem-sucedido no Brasil? O que um treinador profissional deve fazer para ser valorizado em seu trabalho no país? Como um treinador consegue permanecer no comando técnico de sua equipe por mais tempo? 

Contemplando a realidade do contexto brasileiro, este estudo qualitativo responde exatamente a seguinte pergunta: 

Na profissão de treinador, quais competências são esperadas e valorizadas no alto nível do futebol brasileiro? 

A PARTE 2 vai ilustrar e detalhar a complexidade que envolve o ofício no âmbito profissional, apresentando os depoimentos que sustentam as principais competências necessárias ao treinador de futebol no alto rendimento do Brasil. 

Categorias
Artigos

No futebol é assim…

“Fazer o quê? No futebol é assim…”. Ouço essa frase com uma recorrência tão incômoda como surpreendente. Ela surge, por exemplo, quando defendo a gestão sistêmica deste esporte (política, técnica e administrativa) e a essencialidade de estratégia, inovação, capacitação e governança. Nessas ocasiões, faço minhas críticas ao que se pode chamar de “modelo” vigente, teço alguns comentários, exponho sugestões de mudanças e, invariavelmente, lá vem alguém com a dita cuja: “Não dá para mudar. Não dá para fazer de outro jeito. Fazer o quê? No futebol, é assim…”

O problema é que esse tipo de observação, além de expressar um conformismo inadmissível nos dias correntes, impede o crescimento e a evolução da indústria do futebol que disputa recursos e atenção em um universo muito maior que é do entretenimento. Na verdade, a gestão do futebol no Brasil é um ser errante, e muitas vezes perdida fora do gramado. É como se, há tempos, ela tivesse cometido um pênalti, colocado a bola debaixo do braço e, simplesmente, abandonado o campo. Resolveu não aceitar a marcação do juiz e foi embora.

Infelizmente hoje, a grande maioria dos clubes brasileiros responderia que o único objetivo do clube é: “ser campeão”. Mas será que é só isso? Será que se pode resumir uma estrutura tão fabulosa a um único alvo? Além do mais, considere que cada torneio tem somente um campeão. Isso significa que todos os outros participantes da disputa estão fadados ao fracasso em uma temporada – ou mesmo, a um tipo de “sucesso” parcial ou provisório? Não parece haver grande miopia nesse tipo de abordagem, principalmente em se tratando do mundo do entretenimento cujo espaço virtual rompe de forma formidável os limites de um estádio de futebol?

Vale destacar que os últimos anos tem sido de grande evolução nesta profissionalização, mas ainda há muito a ser feito. Do que vimos como uma das barreiras para a aceleração, é a aparente contradição entre uma gestão profissional e a velha tradição dos “administradores”, sempre voluntariosos e apaixonados por seus clubes. Em muitas discussões, esses dois grupos são colocados em campos opostos da disputa, como se fossem adversários.

Ela embute a noção segundo à qual somente o velho modelo de “comando” (não se pode empregar aqui o termo “gestão”) estaria ligado à tradição e ao amor verdadeiro ao time. O olhar profissional, segundo essa perspectiva, seria uma espécie de cemitério de emoções. Ora, basta observar os gramados europeus – e tudo que os cerca, tanto em termos físicos como virtuais – para se constatar o absurdo dessa abordagem.

A realidade mostra o oposto. É a capacidade gerencial dos times globais, de diversos portes, aliada a uma visão estratégica pertinente e a uma gestão efetiva, que faz aumentar a emoção dos torcedores e a afeição que sentem por seus clubes. Não há contradição entre eficácia e emoção. O contrário, sim, é verdadeiro. Esse é o ponto em questão. No mais, é enorme erro considerarmos todos os dirigentes e estatutários com as lentes do passado. Há estatutários que são profissionais e empresários muito competentes e experientes que, com boa governança, podem fazer muito pela transformação e profissionalização do futebol brasileiro.

Portanto, nunca fale que “não dá para fazer de outro jeito; porque no futebol é assim”. Diga sempre: “No futebol, era assim…” Quer começar? Invista na capacitação de seus profissionais e crie uma estratégia que defina claramente seus diferenciais competitivos.

Texto por: Heloisa Rios