Categorias
Sem categoria

Por abordagens metodológicas que valorizem a qualidade, estilo e essência do futebol brasileiro

Por Eduardo Barros* & Rafael Castellani**

Tem sido frequente, nos clubes, imprensa e no âmbito acadêmico, muitos apontamentos que destacam a importância de resgatarmos a nossa identidade de jogo que, no decorrer do tempo, por questões multifatoriais, vem se perdendo. O problema é grave e as críticas, culpados e responsáveis, surgem de todos os lados. Para alguns, a culpa é dos treinadores profissionais que, pressionados por resultados ou influenciados por outras culturas de jogo, tem aplicado Modelos de Jogo que se distanciam das principais características do nosso futebol. Para outros, os responsáveis são os profissionais das categorias de base que não aplicam treinos de fundamentos, o que sempre foi um diferencial dos nossos principais atletas. Outros, ainda destacam que os empresários são os culpados, uma vez que influenciam os nossos jovens a perderem o prazer e a paixão pelo jogo. Vale, também, a crítica à distância entre o que é produzido pelos pesquisadores/cientistas e a realidade concreta nos clubes e escolas de esporte. Neste cenário, temos também a imprensa, que atua criticamente e não só escancara, mas potencializa, nossos problemas, pois alimenta um ciclo vicioso e reconhecido do futebol brasileiro: a falta de projetos de longo prazo, a busca a qualquer custo do resultado imediato e a excessiva demissão e rotatividade de treinadores em todos os níveis, mas, especialmente, no futebol profissional. Existe mais uma série de argumentos que expõem o distanciamento do melhor futebol brasileiro e precisamos ter clareza que uma questão de natureza complexa como essa não tem origem ou causa em somente um elemento.    

Diante de todo esse contexto, é notável em nosso jogo, menor ofensividade, movimento, beleza, arte, alegria, ginga e criatividade. Afinal, para que estes elementos estejam presentes, um ambiente favorável precisa ser criado. E será que existe alguma maneira de (re)criarmos, mesmo com tantos desafios e pressões, tal ambiente? 

O estímulo à qualidade, estilo e essência do futebol brasileiro passa, necessariamente, pela adoção de abordagens de ensino-aprendizagem-treinamento, em todos os níveis da modalidade (da Iniciação ao futebol Profissional), que tenham no Jogo, em sua essência, a principal ferramenta para o desenvolvimento dos jogadores. Além disso, é indispensável que o foco da abordagem seja dado a cada indivíduo em sua totalidade, num processo humanizado que explora as potencialidades e virtudes, permitindo que o talento de cada indivíduo tenha espaço para se manifestar.

Destacados especialistas da Pedagogia do Esporte no Brasil, como João Batista Freire, Alcides Scaglia e Wilton Santana, dentre outros, apontam que o Jogo é o melhor meio para a educação integral, logo esportiva, das nossas crianças e jovens que sonham em se tornar atletas profissionais de futebol. Logo, o jogo configura-se como elemento central do treino para que se promova a adaptação dos jogadores às diversas situações, de modo que percebam autonomamente as situações e “problemas do jogo”, adquiram propriedades para tomada de decisões e respondam às ações de companheiros e adversários (e suas interações).

Mais do que isso, como vemos destacando, é preciso, também, que a metodologia de treino adotada por treinadores dê conta de lidar com a imprevisibilidade, aleatoriedade e o ambiente caótico inerentes ao futebol, por conta da sua grande complexidade. É a prática cotidiana sob essas condições (de treino) que garantirá aos jogadores maiores possibilidades de desenvolverem e expressarem sua criatividade, a beleza dos seus gestos e dribles/fintas, sua ginga e um estilo ofensivo de jogo, algo que, por décadas, caracterizou o estilo/essência do futebol brasileiro.       

Com o avanço dos estudos no campo da pedagogia do esporte, muitas abordagens metodológicas foram propostas. Além dos professores supracitados (João Batista Freire, Alcides Scaglia e Wilton Santana), há tantos outros (Roberto Paes, Larissa Galatti, Julio Garganta, Claude Bayer e Pablo Greco, por exemplo) que, mesmo considerando as especificidades de suas proposições e teorias, corroboram a necessidade de ruptura com abordagens pedagógicas que fragmentam o jogo e que desconsideram a interferência de fatores complexos  no desenvolvimento da capacidade dos praticantes em compreender os fenômenos do jogo e intervir de modo inteligente nas situações que ele impõe aos praticantes.

Nesse sentido, gostaríamos de destacar uma destas abordagens que, no nosso entendimento, pode trazer grandes contribuições para que o futebol brasileiro resgate e manifeste, em maior proporção, elementos do nosso jogo que sempre nos identificaram futebolisticamente: a pedagogia da rua.

Desenvolvida por João Batista Freire e “alimentada” por tantos outros professores e treinadores, a pedagogia da rua é apresentada por Freire (2022) no seu mais novo livro “O jogo de bola na escola: introdução à pedagogia da rua”, como a teorização de uma prática realizada no ambiente da rua, entendendo-o como um espaço que extrapola os limites das calçadas. Rua, neste caso, é, também, os campinhos de várzea, as praias, as praças etc. Ou seja, não se trata de realizar uma transposição mecânica do futebol jogado na rua para as escolas de futebol e clubes, mas, ao pedagogizar essa prática, dotá-la de um método que qualifique e dê novo significado ao que se aprende e como se aprende a jogar futebol. Nesse sentido, “a pedagogia da rua não é a educação da rua” (FREIRE, 2022. p.40). Da mesma forma, não podemos tratar o futebol de rua ou o jogo de bola na rua como um sinônimo da pedagogia da rua. Mas a rua, como uma pequena sociedade lúdica, na qual inúmeros jogadores de futebol se formaram, sendo o principal espaço de aprendizagem de tantos craques brasileiros, produz conhecimentos e nos apresenta um processo de aprendizagem que podem ser levados às categorias de base dos clubes de futebol.           

O essencial é que essa pedagogia se baseie no jogo e na brincadeira, ou seja, no lúdico. A partir da expressão do lúdico e pelo resgate do prazer na prática do futebol (nada parecido com as filas intermináveis e repetitivas para realizar uma finalização, um passe ou driblar um cone), podemos formar atletas conscientes da sua prática e das suas ações durante o jogo, capazes de resolverem os problemas (do jogo) de modo inteligente, autônomo e criativo.

Se o ambiente da rua deve estar presente nos clubes de futebol brasileiros e, mais especificamente, em suas categorias de base, o que esperar das sessões de treinamento para as nossas crianças e jovens? O que nos vem à mente quando pensamos, quer tenhamos praticado ou não, o futebol de rua? Como levar a pedagogia da rua, na prática, para o clube?

Os treinamentos que buscam recriar o ambiente da rua precisam oferecer aos jogadores diversas características; e a liberdade, seguramente, é a principal delas. Mas como estimular a liberdade nas categorias de base? Estimulá-la, em hipótese alguma deve ser resumida à permissão para os jogadores de ataque poderem driblar quando invadirem ou estiverem no último terço do campo. Em contrapartida, não limitar ou, ao menos, ampliar a área de atuação de cada um dos jogadores é um importante passo, bem como permitir que o drible e outras jogadas de maior risco estejam presentes em todos os setores do campo. Um zagueiro deve, em seu processo de formação, passar por várias posições da modalidade. Nas sessões de treino, precisa ser estimulado a cumprir funções de lateral, de volante, de meio-campista e, inclusive, de atacante. Durante as atividades propostas pelo seu treinador, mesmo que inicie um determinado exercício como zagueiro, deve ter liberdade para tocar e passar, para jogar do lado direito e esquerdo, para atuar fora de sua posição e realmente jogar (e viver e sentir) o jogo em todas as suas possibilidades. Se estiver no campo de defesa e o drible for uma boa solução, precisa arriscá-lo. Se está sob pressão, mas tem um companheiro que abriu linha de passe na tentativa de sair jogando, deve tentar a ação, mesmo que erre. Imagine um zagueiro que receba o estímulo de poder driblar ou passar sob pressão, todos os dias, por 10 anos de categorias de base, do sub-11 ao sub-20. Compare com um zagueiro habituado apenas a buscar soluções simples e de baixo risco. A diferença de recursos entre um jogador e outro será significativa.

A liberdade é a chave para a autonomia, inteligência e criatividade! Quem se sente livre para jogar, desenvolve a tomada de decisão. A exposição à prática autônoma é o caminho para jogar bem e melhor, logo, de forma inteligente. E, parafraseando o criador da Pedagogia da Rua, João Batista Freire, como o jogo é o paraíso da imprevisibilidade (2024), pode ser também o paraíso da criatividade, ou das novidades que podem emergir como soluções para os problemas que o jogo impõe ao praticante que, por sua vez, tem liberdade para decidir e agir.

É importante deixar claro que o exemplo dado sobre os zagueiros se aplica a todas as posições, até mesmo ao goleiro. Já pensou se os goleiros, ao longo do processo de formação, treinassem sistematicamente (não todos os dias, claro) em diferentes posições na linha? Um goleiro que recebe ou precisa executar um passe ao longo do jogo e tem diferentes soluções como resposta aumenta o nível de jogo da sua equipe em comparação àquele que só tem o chutão como recurso? Treinar como jogador de linha auxiliaria o goleiro a desenvolver competências e habilidades que podem ser transferidas para a sua posição formal? Vale uma boa reflexão sobre esta questão…

Diferentemente do ambiente da rua, cujas relações, combinados e decisões são tomadas de modo diferente e pelas próprias crianças e jovens, os clubes de futebol contam com a atuação não só do treinador, mas de toda a comissão técnica, com mais ou menos integrantes, de acordo com a estrutura, tamanho e recursos de cada um. Pedagogizar o conhecimento produzido na, e pela, rua, e levar essa pedagogia às escolas de esporte e categorias de base dos clubes, além de servir à propósitos diferentes, significa atribuir ao adulto (o professor, treinador, dentre outros) papel protagônico na construção de um ambiente de treino que permita a liberdade (e não só) como forma de expressão da criatividade e de tomadas de decisão autônomas. Este adulto, no âmbito dos clubes de futebol, em especial nas categorias de base, pode ser qualquer profissional que faça parte da comissão técnica, mas centralizaremos, neste texto, na figura do treinador, por entendê-lo como principal líder de uma equipe esportiva.   

Nesse sentido, é fundamental que o treinador oportunize aos atletas a maior quantidade e mais diversas experiências possíveis, preferencialmente com bola, que se aproximem ao máximo das condições de jogo com as quais o jogador tem que lidar. Além de planejar tais situações de aprendizagens, como temos destacado, cabe também ao treinador incentivar e encorajar o drible, o improviso, a antecipação de uma jogada, ou seja, dotar seus atletas de liberdade para serem eles mesmos e expressarem sua criatividade a partir do estabelecimento de uma cultura de aceitação e compreensão do erro. Afinal, o erro é elemento indissociável do processo de aprendizagem.

Diante de todas estas responsabilidades do treinador, entendemos que este profissional precisa estar muito bem preparado para liderar um grupo de crianças ou jovens, praticantes de futebol. Será possível desenvolver jogadores e equipes criativas, ofensivas, móveis, versáteis, corajosas se o treinador não reunir e aprimorar estas características? Destacamos a necessidade de os treinadores terem a capacidade de (re)criar o ambiente da rua, com aquilo de bom que ela tem a nos oferecer pedagogicamente, em suas sessões de treinamento, no entanto, será que, via de regra, ofertamos um ambiente institucional favorável para o desenvolvimento dos treinadores alinhados ao estilo e essência do futebol brasileiro?

Como a prática do futebol está sendo realizada de forma supervisionada e orientada desde a infância, não será possível alimentarmos a qualidade, estilo e essência do futebol brasileiro se não houver um investimento significativo em nossos formadores. Eles são os guias, ou mediadores, para o surgimento, em maior escala, de melhores jogadores e melhor nível de jogo nas categorias de base.

O planejamento de atividades, as conversas iniciais e finais de cada treino, a disputa de competições, a construção da equipe, a gestão do grupo, as abordagens individuais, a condução dos exercícios, a gestão da comissão técnica, o cuidado, a atenção e o olhar para a formação integral dependem de uma liderança que tenha ampliado conhecimento sobre tudo que envolve o desenvolvimento humano e, também, das equipes de futebol.    

 Idealmente, um bom treinador não só tem ampliado conhecimento como busca aperfeiçoá-lo continuamente, atento às melhores práticas (pedagógicas, técnicas, de gestão, de comunicação, de liderança, de treino) aplicadas ao seu grupo de jogadores. Um bom treinador e sua equipe de trabalho irão colher informações-chave sobre cada jovem, como sua história de vida, sua educação formal, sua condição social e vão se valer dessas informações para balizar suas ações.

É neste contexto complexo e holístico, como a vida, que as novas bases para a (re)criação de um novo futebol brasileiro precisa estar fundada. É urgente a implantação de Modelos de Jogo que tenham como princípios a liberdade estrutural, a multifuncionalidade, o refino técnico, o jogo ofensivo, a ginga, a coragem e não só a permissão, mas o estímulo sistematizado da criatividade, individual e coletiva. Uma vez que o jogo é coletivo e é consensual a existência de equipes cada vez mais organizadas, compactas e sólidas defensivamente, não podemos resumir a criatividade às jogadas de efeito, de característica individual, como um drible ou uma finalização inesperados, que tem a possibilidade de definir uma partida truncada, mas também o direcionamento (se recorda que classificamos o treinador como um guia?) das ocupações do espaço pela equipe de modo que através dos passes, o meio técnico-tático mais utilizado no jogo de futebol, emerjam jogadas coletivas com potencial para desestruturarem as melhores defesas.  

E como cada equipe é constituída de seres únicos, treinadores e jogadores, seguramente estaríamos diante de Modelos de Jogo também singulares, autorais, dotados da beleza de não serem uma cópia ou adaptação de qualquer outro. Parece utópico? Sim! Mas é possível…

Vale destacar que há grandes equipes e treinadores que podem servir de referência para a implantação dos Modelos de Jogo em toda a realidade das categorias de base. Inclusive, quando abordamos a retomada da qualidade, estilo e essência do futebol brasileiro, reconhecemos que existem exemplos históricos que nos direcionam para um caminho que tem a cara do nosso povo, da nossa cultura e da nossa identidade. Que estes grandes exemplos, do passado ou atuais, sejam inspirações para os nossos formadores, da iniciação esportiva à porta de entrada para o alto rendimento.  

Sobre os autores:

*Eduardo Barros – Atual auxiliar técnico do Fluminense, já atuou na equipe principal da Seleção Brasileira e tem experiência tanto em categorias de base como no profissional em outros clubes: Athletico Paranaense, Coritiba, Juventude, Grêmio Novorizontino, Audax-SP e Oeste. Possui a Licença PRO de treinador da CBF Academy, sendo bacharel em Educação Física (Unicamp) e pós-graduado em Administração de Empresas pela FGV. Ele também é consultor pedagógico na Universidade do Futebol.

**Rafael Castellani – Atualmente é professor da CBF Academy, líder do grupo técnico pedagógico da Universidade do Futebol e Pesquisador Colaborador do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia de Estudos do Futebol Brasileiro. Possui licenciatura em Educação Física (Unesp), mestrado em Educação Física & Psicologia do Esporte (Unicamp) e doutorado em Psicologia Social & Psicologia do Esporte (Usp).

Categorias
Sem categoria

Futebol, um esporte transgressor

Por: João Batista Freire

É bastante incomum assistirmos o desenvolvimento de um talento para o futebol brasileiro nas chamadas “escolinhas de futebol”. Sem pretender desrespeitar as exceções que, certamente, existem, não há ambiente para desenvolver habilidades diferenciadas em futebol nessas escolinhas. Também não é muito frequente o desenvolvimento de talentos nas equipes de base dos clubes profissionais de futebol. Os meninos e meninas chegam a essas equipes, vindos dos mais diversos recantos do Brasil, cheios de habilidades, mas elas raramente crescem no ritmo que vinham crescendo em seus recantos, nas ruas onde aprenderam a jogar bola. Geralmente, só sobrevivem ao tempo consumido na base os excepcionais.

O futebol é, basicamente, um esporte de transgressões. Ele começa por ser uma espécie de transgressão biológica; somos animais bípedes, evoluímos para nos apoiarmos sobre os pés e manipular as coisas com as mãos. No futebol, ao contrário, manipulamos a bola com os pés. Os pés são as mãos dos jogadores de futebol. Além disso, enquanto os demais esportes com bolas as fazem transitar acima da linha de cintura, próximas à cabeça, no futebol a bola transita ao rés do chão, bem distante da cabeça. A maioria dos esportes exige paramentos especiais para serem praticados. No futebol pode-se jogar quase nu e descalço. Raramente se vê um esporte sendo praticado sem equipamentos e locais específicos. O futebol pode ser jogado em qualquer lugar, com ou sem grama, com terra ou areia, na lama, quase dentro da água, com chuva ou com sol, de dia ou de noite, com traves ou sem traves. No basquetebol, por exemplo, quando o árbitro marca uma falta, imediatamente todos se posicionam para aguardar a cobrança, sem discussões, e com raras exceções. No futebol não há marcação de falta indiscutível, todas as regras são relativas. É o único esporte em que falta pode não ser falta e não falta pode ser falta. O único esporte em que falta fora da área é uma coisa e falta dentro da área é outra. Por enquanto há nove pessoas encarregadas de fiscalizar as regras em cada jogo e, no futuro, talvez haja mais pessoas e equipamentos para isso.

Creio que não há erro maior no futebol que insistir em domesticar um esporte que é, naturalmente, transgressor. Queremos que os jogadores se comportem como se estivessem cumprindo rotinas cartoriais em um esporte que se mostra, desde suas raízes, avesso aos padrões estabelecidos.  

O que leva o futebol a ser tão transgressor? Se quisermos ainda podemos aumentar a lista das transgressões. Que tal pensar que boa parte dos esportes deriva de práticas lúdicas antigas em que as bolas representavam o sol e deuses, por isso manipuladas da cintura para cima e na direção desse sol e desses deuses? Homenagens ao deus, figura masculina, ao pai. Aí passamos ao futebol, com bolas manipuladas da cintura para baixo, na direção da terra, não do deus masculino, mas da deusa terra, do feminino, da mãe. Haja transgressão! Talvez tanta transgressão se deva ao fato de se tratar de um esporte de grande instabilidade. O chão, por onde rola a bola, por exemplo, por mais que a grama seja bem tratada, é repleto de irregularidades a desviar a trajetória da bola, a enganar o jogador, a surpreender o goleiro. Durante um ataque, o defensor torce para que o atacante repita as jogadas de sempre, neutralizadas com facilidade, e o atacante se desespera para conseguir fazer algo diferente que traia a expectativa do defensor.

Do ponto de vista das teorias da complexidade, nada, neste universo se repete. Nem as pedras são iguais a cada instante que passa. Teoricamente é impossível repetir ações. Porém, podemos realizá-las de modo que guardem bastante semelhança com anteriores. A arte de fazer com que sejam diferentes é o que torna o jogador de futebol eficiente, competente, decisivo. Ele pode trazer a bola da ponta direita para o bico da área e chutá-la ao gol cem vezes, mas fará o gol quando fizer isso com diferença suficiente para surpreender defensores e goleiro. Entre todas as transgressões possíveis no futebol, nenhuma será maior que a transgressão dos padrões estabelecidos, das rotinas, dos posicionamentos rígidos, das táticas engessadas. Treinar para lidar com a complexidade, com a imprevisibilidade, com a transgressão, essa é a questão básica que poucos ousam enfrentar. Em um esporte que tem o DNA da transgressão é preciso saber ser transgressor. Em um esporte que tem a imprevisibilidade exacerbada como núcleo, é preciso aprender a jogar com ela.

De tal maneira consolidou-se uma cultura de medo do enfrentamento do que é, na realidade, o futebol, que o que mais se assiste nele, das equipes de base aos grandes clubes, é a mesmice modorrenta de jogadores guardando posições como se fossem robôs guiados por inteligência artificial. Nada é mais punido que a transgressão dos esquemas pré-estabelecidos. É o que tem matado o futebol dos meninos e meninas talentosos nas equipes de base. Punir a transgressão é matar a galinha dos ovos de ouro do futebol. O sonho de todo marcador no futebol é o posicionamento rígido dos jogadores adversários. A transgressão do posicionamento é o inferno dos defensores. Não defendo que as regras de relacionamento entre as equipes em cada partida sejam transgredidas, pelo contrário, devem ser obedecidas. Porém, mesmo nesse caso, a transgressão persistirá. A tarefa dos árbitros seguirá árdua.

E então, para não me alongar muito, vamos ao fecho. Como ser coerente com as características do jogo de futebol e aprender a ousar, a transgredir, a ajustar-se ao que o futebol realmente é? Comecemos pelo fato de que os jogadores de uma equipe deveriam ser os mais diferentes possíveis uns dos outros. Uma boa equipe não é formada de jogadores com o mesmo comportamento, mesma habilidade, mesmo tamanho, mesma personalidade. Pelo contrário, quanto mais diferentes uns dos outros, maiores as possibilidades de um conjunto harmonioso que saiba lidar com a imprevisibilidade e a transgressão aos padrões. Pensemos na questão da imprevisibilidade. Vamos considerar uma equipe de futebol como uma pequena sociedade. Trata-se de uma sociedade que, por menor que seja, tem uma estrutura extremamente complexa. E, pela dinâmica do jogo, a surpresa será sempre a regra. Surpresa significa novidade. Os jogadores terão que aprender a conviver com o novo, o inusitado. Que não esperem que as coisas se repitam. Que não treinem para lidar com rotinas, com o igual. Porém, só há uma saída para isso. Precisam aprender a produzir autonomia e criatividade. Algo que não acontecerá se a autoestima dos jogadores estiver baixa. Tarefa número um dos treinadores, portanto: elevar a autoestima dos jogadores. Algo que precisará ser feito durante os treinamentos, durante conversas informais, durante as refeições, no vestiário, nas entrevistas e durante e após os jogos, entre outras situações possíveis. Autoestima é a palavra-chave do sucesso.

Foto de capa:  Nelson Coelho/Placar

Categorias
Sem categoria

Diniz o aliado do caos (parte 1): caos, jogo e seres humanos

Por: Matheus Almeida

Durante 2023, andei refletindo com maior profundidade e engajamento os trabalhos de Fernando Diniz, principalmente o Fluminense da temporada 2023. Já havia tido contato com alguns conceitos do “Dinizismo” em 2017, por meio de uma palestra de Eduardo Barros, seu assistente técnico, na época no Audax, mas nunca havia concentrado meus estudos em Diniz. No Fluminense que foi campeão da libertadores e vice mundial em 2023, algo necessita ser destacado: O modo como jogam transcende a bola, é algo maior, uma filosofia coletiva com valores e princípios humanos muito presentes e, justamente isso que fazem a tática e as ideias de jogo, de fato, acontecerem em campo. Em minha análise, existem duas grandes bases para o “Dinizismo”: Valores Humanos e Caos, sendo o caos, uma maneira muito peculiar de lidar com ele. Sem essas duas coisas, acredito que o “Dinizismo” não existiria.

Valores Humanos como sustentação da tática

Como exemplo, é impossível uma equipe, no jogo mais importante para o clube, a final da libertadores contra o Boca Juniors, nas partidas da semifinal do mesmo torneio contra o Internacional, ou então no Mundial de Clubes contra o melhor time do mundo em 2023 (o Manchester City de Pep Guardiola), realizar uma saída curta, dinâmica, com trocas de posição para encontrar jogadores livres, se não houver coragem, solidariedade, dedicação nos treinos e nos jogos, e prazer em ousar e jogar dessa maneira, não importa o contexto.

Diniz já deixou isso bem claro em entrevista coletiva após o jogo contra o Internacional, vencido por 2×0, válido pela 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023, ressaltando que esses valores humanos são fundamentais para que o jogo proposto por suas equipes aconteça:

“[…] Então hoje acho que, preponderantemente, o time entrou muito agressivo, muito solidário. Jogar futebol, pra mim, é quando as relações humanas, elas conseguem, dentro do campo acontecerem. Nosso jogo é um jogo muito solidário, precisa de muitas coisas, precisa vontade para fazer, precisa disposição para fazer, precisa inteligência para fazer, então essas qualidades humanas, elas faltaram no jogo do São Paulo, aí a parte tática ela não funciona. Quando falta essas coisas a parte tática não corrige, essas coisas quando têm elas corrigem falha tática, mas falta de interesse em ganhar, a parte tática nunca corrige esse tipo de falta, ao contrário sim, quando a gente está com muita vontade, muito focado, jogando de uma maneira solidária, a gente pode errar alguma coisa taticamente como a gente errou hoje, taticamente sempre tem erro, mas a gente corrige de uma outra forma, porque essas coisas são mais importantes do que a parte tática […]” – Fernando Diniz coletiva após a 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023.

Nino, zagueiro do Fluminense campeão da Libertadores, que recentemente foi vendido ao Zenit, disse em carta de despedida, publicada no blog “The Players Tribune”, algo que se refere diretamente ao “Dinizismo” como uma filosofia de vida, além do campo:

“Esse cara (Fernando Diniz) me ensinou muita coisa, mas me ensinou principalmente a enxergar certas coisas que realmente importam de outro jeito. Eu tinha medo de fracassar. E talvez eu tenha transformado esse medo no meu combustível pra não fracassar. Mas é pesado viver assim. Então o que é fracassar? Falam muito em “dinizismo”, que o dinizismo isso, o dinizismo aquilo. Pra mim o dinizismo é ter outra perspectiva sobre tudo, enxergar o mundo e a vida de outro jeito. Pra isso é preciso ter coragem. E amigos” – Nino em The Players Tribune

Além dos valores humanos, outra base fundamental do “Dinizismo” é a ideia de caos ser muito presente no jogar das suas equipes.

Caos, o aliado do “Dinizismo”

Ricardo Drubski, em participação no podcast Charla, comenta que conversou com Eduardo Barros, Auxiliar Técnico de Fernando Diniz desde outros clubes. Segundo Drubski, Eduardo o disse que Diniz faz uma Gestão do Caos. Isso é muito interessante.

Diniz mostrou seu poder de influência com suas ideias, inclusive nas transmissões de jogos do Fluminense ou da Seleção Brasileira, pois até narradores e comentaristas começaram a falar sobre o caos nos jogos das equipes de Diniz, um conceito muito profundo sobre o jogo, que nas universidades, como na Unicamp, já se estudava e, que por meio do treinador, começaram a entrar no entendimento da imprensa.

Sobre a gestão do Caos, o Fluminense apresenta o que, para mim, seria uma “estrutura caótica”, geralmente nas beiradas, onde busca aglomerar muitos jogadores do lado da bola, com no máximo dois atletas para a retirada no lado oposto do campo. Nessa estrutura caótica, há a paralela cheia, apoios, jogadas e movimentações coordenadas, como se fossem geradas quadras de futsal onde está a bola. Um jogo caótico, mas com padrões, pois no caos, há ordem.

Diria eu que Diniz é um aliado do Caos, pois, pelo menos vendo de fora, se aproxima do Caos da mesma maneira que se aproxima de seus atletas para que a equipe crie fortes laços interpessoais. As equipes de Fernando criam laços fortes com o Caos.

A Teoria do Caos tem como objeto de pesquisa os sistemas não-lineares, buscando entender eventos aparentemente aleatórios, imprevisíveis e desordenados, sensíveis a pequenas alterações, sendo possível encontrar padrões no Caos como o pesquisador Gleick traz em 1989, mencionado por Rodrigo Leitão em sua Tese de Doutorado em 2009. Essas pequenas alterações são abordadas na ideia de “Efeito Borboleta”, de Edward Lorenz, ao observar que o sistema computacional que utilizava para fazer previsões climáticas chegou a resultados distintos partindo de mesmas condições iniciais, devido a uma diferença de casas decimais depois da vírgula, algo muito pequeno, que com o passar dos resultados, começa a gerar grandes alterações nos cálculos. (Leitão, 2009)

No caos há padrões, mas para observar a complexidade contida no caos é necessária a ideia de fractais, pequenas partes de um todo, que são a forma e conteúdo de sua figura maior (Leitão, 2009). As partes são a imagem do todo e o todo é a imagem das partes como na figura abaixo, o todo, triângulo maior, e seus fractais, triângulos cada vez menores.

Imagem 1

EDUARDO BARROS E FERNANDO DINIZ NA FINAL DO MUNDIAL DE CLUBES. FOTO DE LUCAS MERÇON /FLUMINENSE FC | EDIÇÃO DE MATHEUS ALMEIDA

Em um sistema caótico, a complexidade é presente, sendo o termo Complexidade, sinônimo da interação de elementos, cada qual com sua característica individual, se relacionando entre si, e formando uma organização específica da combinação daquelas características dos elementos, dando forma a um todo (Morin, 1997).

Para simplificar, vamos pensar de modo prático. Se em um espaço reduzido no campo, houver uma situação de 3×3 e, em uma equipe o trio for formado por Messi, Neymar e Suárez, ocorrerá uma combinação de características individuais, que, ao se relacionarem, formam um todo específico que se expressa no jogar deste trio contra seus adversários. Porém, se nesse trio, substituirmos Neymar por Thiago Silva, muda-se as características de um dos seus elementos, muda-se o todo e o modo como esse todo jogará. Relacionando as interações do trio com as interações do trio rival, percebe-se que o jogo de futebol é muito complexo e caótico e não se pode controlar o caos, mas geri-lo, como faz Diniz de modo muito peculiar.

Diniz, em suas equipes, busca gerar uma estrutura caótica, mas que apresenta padrões, fractais que se repetem e organizam esse caos. A “Estrutura caótica” de Diniz pode ser composta, segundo minha análise, por:

  1. Valores Humanos como sustentação das interações táticas;
  2. Características dos jogadores se relacionando formando um todo específico naquele pequeno espaço de campo;
  3. Posicionamentos, movimentações e jogadas coordenadas para o funcionamento da estrutura caótica que visa atrair o adversário em direção à bola e liberar jogadores livres nas costas da pressão

A principal ideia da equipe de Diniz, atacando, é atrair a pressão para a bola e libertar jogadores livres nas costas dessa pressão em vantagem posicional. Isso se observa no macro, quando o Fluminense faz uma saída de bola curta, sustentada, com muitos jogadores próximos à primeira fase de construção, induzindo o adversário a subir o bloco de marcação e pressionar sua saída de bola. Essa dinâmica acontece também nos seus fractais, nos espaços reduzidos, próximos à bola, onde o fluminense também busca atrair a pressão e quebrar linhas com passes e triangulações.

Muito importante dizer, porém, que o modo como se gera essa vantagem posicional é muito peculiar devido à mobilidade e trocas de posição, pois os jogadores que podem aparecer no setor da bola nas costas da pressão não necessitam ser um meia ou um ponta que jogam no lado em que a bola está, mas podem ser o ponta do lado oposto, que atravessou o campo para estar alí, ou outro jogador de outra posição.

A estrutura caótica gerada no lado da bola em espaço reduzido tem posições base para abrir a marcação adversária e gerar um corredor no meio deste pequeno espaço de campo, onde o Fluminense irá atrair a marcação para a bola e para fora, abrindo este corredor, que pode ser ocupado por qualquer jogador visando receber nas costas da pressão.

Vídeo 1. O todo está para as partes assim como as partes estão para o todo

A “Estrutura Caótica” de Diniz apresenta muitos jogadores atacando os espaços na paralela. Esse padrão pode ser chamado de paralela cheia, com o seguinte posicionamento inicial: Dois, três ou até quatro jogadores podendo se posicionar na paralela, pelo menos dois jogadores de apoio, por dentro em suas diagonais, um pivô e um jogador na base da estrutura como passe de retorno.

Vídeo 2. A estrutura Caótica (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

Os jogadores saem das suas posições para formar essa estrutura inicial, num jogo “aposicional” (chamo assim não para rotular, mas para compreender que os jogadores não se mantêm em suas posições, buscando gerar vantagem numérica no setor da bola, próximos à essa estrutura caótica). Pode-se perceber que se busca inicialmente de um a dois passes na paralela, em seguida, passes para os apoios internos, sempre de frente para o jogo, buscando tocar e passar da linha da bola, ou ocupar um espaço vazio dentro dessa estrutura caótica, gerando uma nova linha de passe. Os jogadores buscam aproximar desta estrutura caótica e podem formar triângulos ou “escadinhas”, com tabelas e corta-luzes para gerar situação de 3º jogador e infiltração.

VIDEO 3. Escadinha gerada com Marcelo circulando pelo meio e aproximando da bola

Fonte: Globo

Outro detalhe são as trocas de posição no setor da bola. Uma mecânica frequente é quando a bola está com o zagueiro, lateral vem por dentro, meia ocupa o espaço deixado pelo lateral, recebe a bola, em caso de manutenção de posse, faz o passe horizontal para o lado oposto e troca com o zagueiro, que ocupa a beirada. Veja no vídeo.

Vídeo 4. Trocas de Posição (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

(Esse texto continua na parte 2, semana que vem, sobre o tema “Diniz: No Caos Há Ordem)

Até lá!

📷 Foto de capa: Matheus Lima/Vasco da Gama

Categorias
Sem categoria

Imaginem uma semana sem surpresas

Por: João Batista Freire

Imaginem uma semana de futebol em que todos os times favoritos vençam, nenhum pênalti seja registrado, jogadores não reclamem, técnicos não deem entrevistas polêmicas, técnicos não sejam demitidos, nenhum jogador se machuque, nenhuma jogada diferente chame a atenção, que os gols consignados sejam comuns, que não haja nenhuma goleada, nada de temporais alagando campos, torcidas bem-comportadas, que árbitros não cometam erros. A partida de futebol em campo seria apenas um detalhe. O que alimentaria os debates nas redes de rádio, televisão e internet ao longo da semana? O que alimentaria as discussões nos botecos? Que coisa chocha, não? Tudo normal. Imaginário vazio. Ah, o imaginário! É nele que mora o verdadeiro jogo. E o futebol, mais que qualquer outro esporte, é um estupendo alimentador de imaginação. Talvez venha daí seu enorme sucesso de público e de crítica.

Tal semana aqui descrita nunca existiu, para sorte e graça do esporte bretão, caso contrário ele desapareceria da face da terra. O futebol, como de resto, nenhum esporte, sobreviveria com a assepsia do incomum. O futebol é um jogo, um acontecimento lúdico, portanto, uma fonte inesgotável de alimentos para a imaginação. E nada há de mais rico na espécie humana que a imaginação. É ela que nos distingue, acima de tudo, dos outros animais. Não somos nem superiores e nem inferiores aos outros animais, somos apenas diferentes. Cada animal tem, na sua diferença, o instrumento decisivo de sobrevivência. A diferença que permite ao ser humano sobreviver é a imaginação – no resto ele é fraco. É por isso que não lhe basta o comum. Ele precisa do diferente, do inusitado, do imprevisível, do contraditório. E é aí que aguardamos, e até torcemos, tanto pela vitória de nosso time do coração, quanto pelo gol de bicicleta, pelo erro do árbitro, pelo temporal que alaga o gramado, pelo corte súbito de energia elétrica, pela contusão que afasta o craque do time, pela briga nas arquibancadas, pela expulsão do zagueiro, pelo frango do goleiro, pela goleada por sete a um, pelo choro sofrido dos derrotados na final do campeonato. Não é o futebol a questão maior, é a imaginação, que precisa ser alimentada. Essa imaginação que, durante a infância, constitui o principal motor da atividade das crianças, que as obriga a brincar em todos os momentos possíveis, até mesmo nos intervalos entre as misérias. Os seres humanos precisam brincar, as crianças em qualquer lugar, os adultos quando lhes sobra tempo e espaço. O futebol, em alguns países, é uma grande brincadeira.

Se parássemos de alimentar a imaginação, decretaríamos o fim da espécie humana. E aqueles que dominarem nossas imaginações, dominarão o planeta.

Categorias
Sem categoria

Era uma vez uma rua

Por: João Batista Freire

Dedicado a Pepe Mujica, que disse:

“O único vício bom é o amor, o resto são pragas”

Para que tenhamos o direito e a coragem de pensar com liberdade e independência. Não precisamos de autorização para pensar.

Percebo que há alguma confusão a respeito do termo “Pedagogia da Rua”, desde que o lancei anos atrás. A confusão, acredito, dá-se pela dificuldade em torno de dois conceitos que compõem o termo: “Pedagogia” e “Rua”. Comecemos pelo segundo.

Rua, eu a utilizo como metáfora. Quer dizer muita coisa. Rua são todos os lugares e momentos que me levam a aprender alguma coisa sem ter alguém encarregado de me ensinar. Rua é onde aprendi muitas coisas, algumas nunca respeitadas como saberes; na Rua aprendi a rir e chorar, aprendi a falar, aprendi a amar, aprendi também a odiar, aprendi coisas simples como contemplar, me aproximar, ver e ouvir, também tocar e degustar. Na Rua aprendi a ter medo, aprendi a ceder ao medo e a ter coragem de superá-lo. Aprendi a ser fiel e infiel, aprendi a chutar bola, a me esconder e procurar, a jogar bolinhas de gude, a brincar de casinha, de comidinha e de bonecas. Aprendi tantas coisas na Rua, coisas boas e coisa ruins, que não cabem todas aqui. Aprendi que para a Rua não há coisas boas e ruins, e é aí que moram a virtude e o perigo. A Rua é uma escola sem nome, uma professora invisível, sem intenções e julgamentos, um outro jeito de aprender, completamente diferente dos jeitos utilizados nas instituições encarregadas de educar as pessoas. Mas se na Rua há pessoas e eu aprendo com elas, elas me julgarão. Sim, mas são elas que julgam, não a Rua.

Assim que nascemos a família começa a nos ensinar. No começo ela ensina sobre segurança e comportamentos básicos e, em seguida, passa a incutir na criança seus conceitos morais, sua ideologia. Se seguíssemos assim, teríamos enormes chances de crescer e ser como nossos pais e familiares mais próximos. Mas não é como funciona. Mesmo nesse comecinho existe outro espaço de aprendizagem, que inclui a mãe, essa professora primordial, a professora que não sabe que é professora, aquela que ensina como se fosse nossa natureza ensinando. A mãe que semeia o amor que a sociedade deveria cultivar. Tem a mãe e tem os sons, pessoas falando, ruídos, objetos para tocar, sabores para degustar, muita, muita coisa que não pretende ensinar, mas que nos faz aprender. Porém, muito acontece fora da família, e o destino traçado por ela sofrerá desvios, cada vez mais precoces.

Pouco depois do nascimento, somos levados para creches e escolas. A escola começa cedo, aos dois anos de idade, os pais precisam trabalhar, alguém tem que cuidar. A escola também nos ensina comportamentos básicos, segurança e sua ideologia, que é a ideologia do estado e das corporações. A igreja faz de tudo para atuar na educação da criança, e o faz dentro e fora da escola. A instituição militar, com menos frequência, também. O esporte, quando a criança tem a oportunidade de aprendê-lo em instituições, é outro que exerce forte influência. Parte das escolas é de caráter privado, e ensinam, não só a ideologia do estado, mas também a ideologia dos interesses privados. Todos querem seu quinhão da criança que não tem nunca razão, é a criatura a ser medida, moldada, tosquiada. Querem formar nelas cidadãos que acatem as regras, as ordens, que sigam o destino traçado. Os conteúdos declarados pela escola – português, matemática, geografia, química… -, boa parte das vezes não passam de adereços. Nem todos os aprendem. A escola sabe disso, mas não se importa, porque os verdadeiros conteúdos não podem ser declarados, são o mapa de um destino. Por falta de outros significados, os conteúdos declarados pela escola serão avaliados em frequentes provas, infelizmente a maior razão para aprendê-los. Deveriam ter vínculos com as vidas dos alunos e, aí sim, seriam significativos. A questão a ser colocada é: aquilo que a escola ensina cai na prova ou cai na vida?

Um capítulo à parte, ou um texto à parte, deve ser reservado à educação exercida pelos meios de comunicação, especialmente, em nossos tempos, trazida pelos ventos da Internet. Ter um celular à mão deveria fazer parte do que chamo aqui de Rua, mas não, os conteúdos das telinhas foram quase todos sequestrados pelos interesses públicos e privados. Elas são a nova e mais poderosa ferramenta de educação atual. Por trás delas estão os educadores mais poderosos do planeta. Por trás delas atuam o estado, várias instituições e as corporações privadas, estas últimas, as mais agressivas, porquanto vendem seus celulares, que educarão as pessoas para que comprem seus aparelhos, entre eles os próprios celulares.

Parece que tudo conflui para que sigamos, pelo resto da vida, um roteiro traçado finamente, irrepreensivelmente, sem final feliz. Por qual motivo então, com tanta frequência, nos desviamos? Por qual motivo tantos de nós seguem caminhos tão diferentes dos sonhados por nossos pais, pelas corporações, pelo estado ou por outras instituições? Que ruídos desviantes são esses? São os ruídos da Rua.

Eu queria escrever este ensaio, mas me faltava inspiração. Precisei de ajuda e fui ler alguns autores. Li o que pensa Mano Brown, poeta e filósofo, alguém suficientemente sensível para entender o povo, para entender a Rua. Um extraordinário artista. Com palavras mais poéticas que as minhas e com mais sabedoria, ele descreve alguns dos ruídos: Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo”. “Às vezes eu penso que o Brasil foi construído em cima de uma pirâmide de injustiças”. “Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber”. “A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo”.  Não sou poeta, não sou compositor, não tenho arte, só posso escrever o que está ao meu alcance. E aqui me proponho a escrever sobre a Rua e seus ruídos desviantes dos caminhos tão bem traçados para todos nós.

Onde aprendemos o que sabemos? Uma parte aprendemos na família e nas instituições, embora estas não declarem o que verdadeiramente pretendem nos ensinar. A família e a escola, por exemplo, tomam como referência de educação aquele que ensina, muito mais do que aquele que aprende. Se é para traçar um destino irrevogável, o destinatário não deve interferir. O resto do que sabemos, e é muito, aprendemos na Rua, esta sim, sem a intenção de exercer controles, sem plano de destino traçado e sem tomar como referência aquele que ensina, até porque não há um visível que ensine. Na Rua o ponto de vista do processo educacional é aquele que aprende. Fora esse o ponto de vista da escola e de outras instituições teríamos uma revolução. Lembro, nesse ponto, de minha infância na escola, preso ao meu meio metro quadrado de carteira, sonolento e balançando as pernas sob a mesa, único movimento possível. Até quando a professora me pilhava nesse movimento proibido e batia com a régua na carteira para me lembrar que qualquer movimento seria castigado. Ela era muito querida, mas tinha que seguir a regra da régua. Não foi por falta de boas professoras que não aprendi, mas porque não via sentido no que aprendia, a não ser porque caia na prova. Dona Jaci e Dona Célia eram quase nossas mães. Mas todo movimento que não fosse com as mãos era proibido. Mesmo assim aprendi com elas uma boa porção de bondade e carinho, mas não matemática e português. Quem sabe essas matérias do coração não deveriam ser as protagonistas, dando à matemática e português o papel de coadjuvantes? Quando Dona Jaci pegava em minha mão para desenhar as letras, deixava marcas que nunca se apagaram. Isso era educação para a vida.

Embora a Rua esteja fortemente influenciada pelas redes sociais, uma vez que boa parte das pessoas nada faz sem uma tela à frente do rosto, é nela que aprendemos a maior parte do que precisamos saber para viver nossos dia-a-dias. Raramente nos perguntamos de onde veio o conhecimento para construções tão extraordinárias como o samba, o futebol brasileiro e a capoeira. Não foram passes de mágica. Aprendemos a fazer essas coisas do mesmo modo como uma criança aprende a resolver sozinha um quebra-cabeças, a rolar por um gramado, a medir forças com uma colega, a assobiar ou a andar de bicicleta – basta que ela tenha um modelo inicial em mente ou à sua frente para iniciar a aprendizagem. Como aprendemos a fazer o incrível cálculo prático que nos permite atravessar uma rua movimentada evitando os carros? Milhares ou milhões de exemplos possíveis atestam a competência da Rua para nos ensinar a viver, para o bem ou para o mal. Ou alguém acha fácil aprender a traficar drogas? A Rua é, no sentido de nos ensinar a viver, depois da mãe, a grande professora de nossas vidas, a professora invisível, e a única em que o ponto de vista para aprender é o nosso próprio.

A Rua pode ser uma rua mesmo, dessas por onde passamos todos os dias, ladeada por calçadas. No meio dela passam carros de todos os tipos, pode ser asfaltada, calçada por pedras, ser de terra ou areia, ser chamada de rodovia, avenida, servidão, viela ou somente rua. A Rua pode ser o quintal de casa onde as crianças se reúnem sem a presença de adultos, pode ser o pátio da escola, a quadra do condomínio, o quarto de dormir, a mesa do bar, a festa, o encontro fortuito entre pessoas etc., ou seja, qualquer espaço onde podemos aprender sem a presença de pessoas ou instrumentos autorizados a ensinar. A Rua é habitada por crianças e por gente grande. Ensina a todos. As ruas da minha vida foram muitas, entre elas o pátio da minha primeira escola, uma pequena área de cimento de minha casa, e o campinho de terra onde chutei bola pela primeira vez. Interessa-me, neste estudo, acima de tudo o meu campinho de terra e os outros onde milhares de meninos e meninas do Brasil brincam de jogar bola. Porém, como se trata de diminuir as dúvidas sobre o que vem a ser Rua, não me aprofundarei na complexidade do jogo de bola nas ruas do meu país. O fato é que, nessa Rua, eu e meus amigos aprendíamos, e muito. Aprendi mais nela que na escola. Sei disso pelo que sei hoje. E sei que eu queria aprender na Rua mas não queria aprender na escola. E, ao longo de minha vida, não tenho dúvidas de que aprendi mais nas tantas ruas da Rua que nas tantas escolas por onde passei. E, mesmo nas escolas, quando mais aprendi foi quando consegui transformar a escola em Rua. Provavelmente o caso mais extraordinário de educação da Rua é a aprendizagem da língua materna. A criança, de maneira geral, aprende a falar nos primeiros dois anos de vida, em família. Não há ninguém na família responsável por lhe ensinar a língua. Porém, ao fim desses dois anos ela fala suficientemente bem sua língua para se comunicar com sua família. Aprende pelo convívio, aprende repetindo o que ouve, aprende por se divertir com sons até se tornar habilidosa em articular tais sons, aprende por relacionar os sons com os efeitos deles, aprende porque é necessário, aprende porque faz sentido falar no contexto da família, aprende porque está aprendendo de seu ponto de vista no grupo familiar. Aprende com método, com técnicas,  e isso poderia inspirar todas as outras aprendizagens formais, mas isso não acontece. Essa maneira de aprender se repete em todos os outros grupos de que a criança participará. Assim como essa aprendizagem da fala foi lúdica, as demais em grupos infantis também serão. Nas pequenas sociedades lúdicas a criança recebe, em troca de seus esforços, de suas renúncias, prazer, o prazer que o lúdico confere. E por ser gostoso ter essa sensação, ela tende a repetir o que fez, o que deu certo. E quando erra, por não ter a mesma sensação, ela busca corrigir o erro para obter o retorno prazeroso e poder repetir a ação causadora do prazer. Não foi assim que todos nós aprendemos a língua materna? Os sons produzidos e ouvidos pela criança são fonte de prazer, que precisa ser mantida, e a única forma de manter tal prazer é repetir e repetir tais sons. O resultado é o desenvolvimento da extraordinária habilidade de articular sons, que viram vocábulos, que viram palavras, que viram frases… A mesma lógica é válida para aprender qualquer coisa, do futebol à astrofísica, o que me faz pensar em uma Pedagogia da Rua, uma pedagogia inspirada nas aprendizagens das crianças em suas Pequenas Sociedades Lúdicas.

A competência da Rua para ensinar é extraordinária, e estou convencido de que isso deve-se ao fato de que, na educação da Rua (reparem que não estou falando de pedagogia da Rua), quem aprende, aprende de seu ponto de vista. Na Rua, não há ensino, há aprendizagem (e não estou pregando que não haja ensino nas escolas e outras instituições). Essa educação é tão eficaz que os meninos brasileiros do começo do século XX, pobres pretos e brancos, moradores das periferias das cidades, inventaram um novo jeito de jogar futebol: o futebol brasileiro, que encantou o mundo por décadas. Foram criadores apenas de um dos fenômenos culturais mais importantes do século XX e um dos maiores fenômenos culturais da história do Brasil. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa, desde que o método respeite aquele que aprende. E isso remete para uma particularidade da educação, que é a formação de grupos. De maneira geral, na infância, a Rua constitui grupos, que chamarei aqui de Pequenas Sociedades Lúdicas. Não é só em grupos que se aprende, mas, especialmente na infância, é por fazer parte de grupos lúdicos que a criança mais aprende. No grupo, as aprendizagens realizadas fazem sentido, aquilo que a criança faz tem sentido dentro do grupo. Ela aprende aquilo que a faz se sentir pertencendo ao grupo, aprende aquilo que a confirma, que lhe confere identidade, que eleva sua autoestima. O lúdico e a autoestima são os motores das pequenas sociedades lúdicas.

Pronto, isto é Rua. Não é suficiente, mas é o possível em um pequeno texto.

Posto isso, podemos passar à outra parte do termo, isto é, Pedagogia. A pedagogia é um arranjo de elementos que orienta um processo educacional, cujas raízes são realizações práticas. O modo como o observador enxerga tais realizações o conduz a descrever e interpretar o fenômeno ao seu modo, donde resultam muitas teorias educacionais, às vezes, sobre o mesmo fenômeno, se os observadores forem vários. Essas teorias resultantes das observações práticas, arranjadas de modo a pretender orientar processos educacionais, nós as chamamos de pedagogias. Elas comportam um modo de educar, um método. Portanto, uma pedagogia é uma teoria da educação, assim como uma metodologia é uma teoria do método. Daí resulta que não podemos falar de uma pedagogia da Rua enquanto as crianças aprendem nas suas ruas, mas sim de uma educação da Rua. Ou seja, a Rua educa, mas a rua não tem uma Pedagogia. Ela não tem uma pedagogia, mas pode e deve inspirar pedagogias, porquanto sua eficácia é inegável. A criança aprende com imensa eficácia a língua materna, orientada por esse método da Rua (método no sentido de procedimentos, de maneira de fazer as coisas), e não aprende, de maneira geral, o que lhe pretende ensinar a escola. Não por falta de tempo, pois que são quatro horas por dia, duzentos dias por ano, durante doze anos de escolaridade (até que se conclua a adolescência). O ambiente escolar é constituído por prédios fechados, salas retangulares fechadas, repletas de carteiras simetricamente dispostas, onde terão que se sentar as crianças, em seus exíguos espaços de movimentação de meio metro quadrado. Isso não é ambiente para criança aprender, a não ser comportamentos morais, passividade etc. Na Rua, com suas pequenas sociedades lúdicas o ambiente é completamente diferente, a criança aprende o que não lhe ensinam, e aprende muito bem, para o bem ou para o mal. Esse modo de aprender, se inspirasse uma pedagogia, eu a chamaria de Pedagogia da Rua, que poderia ser adaptada, inclusive, ao ambiente escolar, caso houvesse interesse da escola em verdadeiramente ensinar para um bem viver, para um mundo melhor, mais justo. Nessa Pedagogia da Rua, diferentemente do que ocorre na educação da Rua, há quem ensine, porém, o modo de ensinar deve ser completamente diferente do que ocorre tradicionalmente na escola. Há ensino, mas o ponto de vista, a referência, é o do aluno, o de quem aprende, e não o de quem ensina. Vamos ensinar Matemática, por exemplo, mas vamos tomar como referência o modo de aprender do aluno, para então ajustar nosso modo de ensinar. Vamos ensinar Futebol, mas vamos tomar como referência o ponto de vista de quem aprende.

Na Rua, não é a idade que define a entrada da criança. Ela participa de grupos de crianças que são, aproximadamente, da sua idade, mas vai conviver com mais novos e mais velhos, também. Outro critério é o interesse que ela demonstra, de acordo com sua vontade de participar do grupo, do tipo de brincadeira que se realiza nele etc. Também existe a questão da oportunidade, do local onde reside, da escola que frequenta e assim por diante. A criança pode permanecer no grupo ou sair dele. Pode sair e pode voltar. Pode ser convidada ou pode ser excluída. Quando ela está na sua pequena sociedade lúdica onde a brincadeira principal é, por exemplo, o futebol, ou, como elas costumam chamar, o jogo de bola, ela vai entrando aos poucos, observando os mais velhos e os mais habilidosos jogarem, aguardando oportunidades, submetendo-se ao que lhe reservam, experimentando, errando, acertando, atrevendo-se, recuando, levando as aprendizagens para casa, exercitando-se sozinha para depois voltar mais confiante para o grupo etc. Quando erra, não é castigada, pode tentar quantas vezes quiser, quando acerta é aplaudida, pode rir ou chorar com acertos e desacertos, pode receber críticas e comentários dos colegas, pode conversar sobre o jogo quando ele termina. Acima de tudo, ela quer participar do grupo. Podemos dizer que essa adaptação ao grupo é o jeito que as crianças desenvolvem para irem, aos poucos, tornando-se parecidas com o grupo; sem deixar de ser elas, tornam-se, também, a cara de sua pequena sociedade. Claro que várias crianças, em suas fantasias, aspiram ser, um dia, jogadoras de futebol. Mas não creio que seja isso que as mantenha no grupo. Elas possuem essas e muitas outras fantasias. O que elas mais aspiram é ser integrantes do grupo, pertencer a ele, fazer coisas dentro do grupo que as tornem aceitas, que as reforcem, que lhes confiram identidade, que lhes elevem a autoestima. Seu grupo é a coisa mais importante de suas vidas fora da família. E nada será mais importante que serem aceitas nele, que fazerem parte dele. É sua grande oportunidade de se sentirem bem, de terem a autoestima elevada, de serem reconhecidas. Talvez isso não ocorra na família ou na escola, mas na sua pequena sociedade lúdica elas podem ser reconhecidas e aceitas como são, mesmo não sabendo que, com o tempo, elas serão tão mais aceitas quanto mais parecidas com o grupo se tornarem. Se a brincadeira mais importante de um grupo for o jogo de bola, como era no meu caso, nada me fortalecia mais no grupo que aprender a jogar bola. E tudo eu fazia para aprender bem e ser aceito, ser reconhecido. Pensando no que ocorre hoje com a Internet, os grupos, ou pequenas sociedades lúdicas, continuam ensinando muito, e as crianças e jovens de tudo fazem para ser aceitos neles, mesmo que isso lhes custe dissabores e, em alguns casos, a própria vida.

Todas essas coisas são elementos para inspirar uma Pedagogia da Rua. Reparem que há um método nas aprendizagens obtidas na Rua. Não falo aqui do método científico, ou do método usado por adultos para realizar certos trabalhos e apresentações. Falo de método como maneira de fazer as coisas, como uso de técnicas, de gestos para realizar as intenções. Não se aprende ao acaso. Há intenções, há caminhos melhores e piores, há imitações, repetições, exercitações isoladas, temores, audácias, exibicionismo, timidez, porém, ao modo de cada criança. Esse modo de ser de cada criança é o modo de ela ser no grupo, não um modo isolado, destituído de influências nas relações dentro do grupo. Portanto, o modo de ser de cada um é também o modo do grupo, o modo de ela ser no grupo. Sim, não podemos negar as crueldades, o bullying e outras aberrações que conduzem ao sofrimento e ao crime dentro dos grupos. A Rua não tem compromisso com algum tipo de moral. Eventualmente ela repete a moral que vem dos mais velhos, dos adultos, da família, mas não há na Rua um julgamento moral ao modo da família ou da escola. Na Rua há também castigos, repressões, mas as crianças resolvem isso ao seu modo, sem pressões externas. Na Pedagogia da Rua, por outro lado, não se repetirá a crueldade da Rua. Na Pedagogia da Rua perde-se o ambiente da Rua, mas pode-se criar, de outra maneira, a Pequena Sociedade Lúdica. Pode-se compreender que o ponto de vista da aprendizagem é o do aluno. Ele deve ser o protagonista. Os professores podem participar de outra maneira, mais indiretamente, mais sugerindo, mais propondo problemas, mais criando situações, mais fazendo rodas de conversa, mais levantando as opiniões dos alunos, mais ajudando, mais acolhendo, mais perguntando. Na pedagogia da Rua, assim como na educação da Rua, sempre estão em destaque alguns pontos que são fundamentais: o lúdico, o grupo e o interesse do aluno. Na Pedagogia da Rua deve-se trabalhar com uma educação moral de autonomia, levando os alunos a discutirem regras e a criarem as regras necessárias aos seus jogos.

               Os exemplos aqui descritos, a maioria sobre futebol, são apenas ilustrações de uma educação inspiradora de pedagogias que, se aplicadas a outros ambientes educacionais, podem se mostrar muito mais eficazes que as pedagogias escolares, geralmente destituídas de sentido para os alunos. A educação processada na Rua pode ser inspiradora se ficarmos atentos ao modo como se dá essa educação e aos seus efeitos.

Não se trata, portanto, apenas de melhorar a maneira de ensinar futebol ou outro esporte. Quando abordo uma possível Pedagogia da Rua, penso em uma outra maneira de educar o ser humano, nas escolas ou em quaisquer outras instituições. Penso naqueles que já fizeram algo semelhante, como Paulo Freire, entre outros. Por ser brasileiro, o educador que sempre me aparece primeiro é Paulo Freire. O tempo passou, envelheci, e continuo nascendo a cada dia sempre que me empenho por alguma coisa. E as coisas pelas quais mais me empenho são aquelas que me fazem ser aceito nos meus grupos, nas sociedades que habito, das menores às maiores. Tenho a família, tenho os amigos, tenho o meu bairro, minha cidade, meu estado, meu país e meu mundo.

A criatura humana, dada sua fragilidade anatômica, carece do grupo para tornar-se forte. Talvez mais que qualquer outra criatura, estar em grupo é sua chance de sobrevivência. Apesar da fragilidade anatômica, o sistema nervoso da criatura humana é excepcional e produtor de um instrumento extraordinário, que é a imaginação. Sua imaginação lhe permite compreender sua própria fragilidade e a necessidade de estar em grupo. Porém, isso dependerá de educação. Portanto, qualquer educação individualizante enfraquece a criatura humana. Quando livres, as crianças buscam formar grupos, e isso não se dá por acaso, é da natureza humana. Uma educação coerente com a criatura humana deveria entender que toda educação deve ser coletiva. O ser humano não precisa resolver seus problemas sozinho, ele pode resolvê-los coletivamente, sempre com ajuda. A escola, de maneira geral, pratica uma educação individualizante. Na educação da Rua ocorre, tanto educação coletiva quanto individualizante. Porém, no caso das crianças, elas buscam sempre formar grupos e aprender umas com as outras.

Categorias
Sem categoria

Os diferentes estilos de futebol no Brasil

Por: Cristiano Bassoli

No Brasil, o futebol tem uma diversidade de estilos que muitas vezes reflete as características culturais, históricas e geográficas de cada região. Essa diversidade cria variações interessantes no modo como o esporte é jogado, de fato, muitos associam certos estilos de futebol a estados ou regiões específicas do país. Aqui estão algumas características dos estilos de futebol em diferentes partes do Brasil:

REGIÃO SUL (PARANÁ, SANTA CATARINA, RIO GRANDE DO SUL)

Imagem 1

Estilo de jogo: De força física e marcação intensa.

Características principais: O futebol do sul é conhecido por ser mais competitivo e focado na defesa e na organização tática. Times dessa região tendem a privilegiar uma postura mais defensiva, com muita disciplina tática, e a priorizar um jogo mais reativo. Isso é atribuído em parte ao clima mais frio e ao estilo de vida mais europeu, especialmente no Rio Grande do Sul.

REGIÃO SUDESTE (SÃO PAULO, RIO DE JANEIRO, MINAS GERAIS, ESPÍRITO SANTO)

Imagem 2

Estilo de jogo: Futebol de habilidade técnica e o famoso “futebol-arte”

Características principais: São Paulo é o estado com o maior número de clubes de destaque no futebol brasileiro. A capital paulistana, com vezes como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, desenvolveu um estilo que valoriza o jogo disciplina tática, o coletivo e a organização em campo, sem deixar de lado a habilidade técnica. Já no interior de São Paulo, os clubes também adotam uma forte estrutura tática, mas muitas vezes dependente de revelações jovens e de um jogo mais pragmático, focado no resultado. O estilo carioca é frequentemente associado ao drible, à criatividade e à leveza. Os jogadores do Rio têm tradição de habilidade individual e capacidade de improvisar em campo. Isso deu origem ao conceito do “futebol-arte”. Em São Paulo, o futebol é considerado um pouco mais pragmático, com vezes que costuma adotar uma postura mais equilibrada entre defesa e ataque, enquanto no Rio de Janeiro se valoriza mais a criatividade e a improvisação.

REGIÃO NORDESTE (BAHIA, PERNAMBUCO, CEARÁ, ETC.)

Imagem 3

Estilo de jogo: Futebol de muita garra e velocidade.

Características principais: No Nordeste, o futebol é marcado pela força física, intensidade e pela paixão dos torcedores. Times dessa região têm uma tradição de jogar de forma aguerrida, e jogadores com velocidade são muito valorizados. As condições climáticas mais quentes também influenciam o ritmo do jogo, com partidas muitas vezes mais rápidas e diretas.

Fatores culturais: A rivalidade intensa entre os clubes e a forte ligação com suas torcidas são características marcantes do futebol nordestino, onde a emoção e a intensidade se destacam.

REGIÃO CENTRO-OESTE (GOIÁS, DISTRITO FEDERAL, MATO GROSSO, MATO GROSSO DO SUL)

Imagem 4

Estilo de jogo: Futebol de transição rápida e com ênfase no ataque.

Características principais: Os times do Centro-Oeste tende a jogar um futebol mais ofensivo, com foco em transições rápidas do meio para o ataque. No entanto, a região ainda está em processo de consolidação no futebol nacional, se comparada a outras regiões mais tradicionais.

REGIÃO NORTE (PARÁ, AMAZONAS, ETC.)

imagem 5

Estilo de jogo: Futebol de resistência e adaptação climática.

Características principais: O futebol no Norte é muito influenciado pelas condições ambientais, com campos mais pesados (principalmente durante a temporada de chuvas) e temperaturas muito elevadas. Os jogadores dessa região costumam ter uma grande resistência física e o jogo pode ser mais cadenciado, para suportar o desgaste causado pelo clima.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Esses estilos não são regras rígidas, mas sim tendências que refletem influências históricas, culturais e até climáticas. O futebol brasileiro, de forma geral, tem uma forte ênfase na criatividade, técnica e habilidade dos jogadores, embora os estilos possam variar de acordo com a região. O “futebol-arte”, que é mais associado ao Rio de Janeiro, contrasta com o futebol mais pragmático e tático de São Paulo. Essas variações tornam o futebol brasileiro muito rico e imprevisível, sendo uma das razões pelas quais o país tem uma das maiores tradições no esporte mundial. Dando continuidade à análise dos estilos de futebol no Brasil, é interessante observar como cada região e estado evoluíram ao longo do tempo e se desenvolveram para o cenário nacional com seus especialistas. Cada estado e região do Brasil contribuem com elementos únicos para o futebol nacional.

Esses estilos refletem a diversidade cultural e geográfica do país, criando uma variedade rica que se traduz em diferentes abordagens táticas, formas de jogar e, acima de tudo, na paixão dos brasileiros. Essa multiplicidade de estilos faz do futebol brasileiro algo único, onde tanto a técnica quanto a força, o improviso e a disciplina coexistem, tornando o Brasil um dos maiores celeiros de talentos no mundo do futebol.

Foto de capa: Lucas Andrade/Pexels

Imagem 1: Luiz Erbes/AGIF

Imagem 2: César Greco

Imagem 3: Felipe Oliveira/EC Bahia

Imagem 4: Roberto Corrêa

Imagem 5: Divulgação/Remo

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Torneios e campeonatos em escolas de futebol: “vilões ou mocinhos”?

Por: Rafael Castellani e João Batista Freire

Em nossos dois últimos textos, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol” e “A “miniaturização” do adulto no futebol”, publicados na Universidade do Futebol, abordamos assuntos que, apesar de extremamente importantes e há tempo presentes nas discussões entre aqueles que compõem o campo esportivo e debates acadêmicos, parecem ainda estar longe de um entendimento e, principalmente, de uma transformação da prática profissional cotidiana daqueles que trabalham como professores, treinadores e/ou gestores, em escolas de futebol.

No primeiro deles, anunciamos o objetivo de nos dedicarmos à cansativa tarefa de “desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições”. Esperamos ter introduzido e discorrido o suficiente para, nestes dois textos antecedentes, justificar e argumentar contra a especialização esportiva precoce no futebol a partir do desenvolvimento moral e cognitivo das crianças, reafirmando nosso entendimento de que o tempo, características e interesses das crianças devem ser respeitados. Criança deve ser tratada como criança!  

Partindo desse pressuposto, as competições (campeonatos e torneios) organizadas pelas escolas de futebol e por empresas especializadas em eventos esportivos são, talvez (numa “briga” ferrenha com os treinos/aulas), o maior exemplo de materialização da especialização esportiva precoce e do tratamento de crianças como miniaturas de adultos no futebol.

É um problema crianças de 6, 8, 10, 12 e 14 anos disputarem campeonatos? Não! Crianças competem desde o primeiro ano de vida e o comportamento competitivo, além de enraizado em nossa cultura, é da natureza humana. Crianças de até seis anos de idade, por exemplo, disputam seus brinquedos, seus espaços, seus familiares mais próximos, entre outras coisas, porque são, ainda, bastante autocentradas, consideram o mundo quase que exclusivamente de seu ponto de vista. A partir dos seis ou sete anos de idade, essa referência começa a mudar, mas ela leva ainda alguns anos para demonstrar maior capacidade de se colocar, com segurança, no ponto de vista do outro. Portanto, durante toda a infância é esperado que as crianças sejam competitivas nesse sentido. Para se ter uma ideia de como é difícil colocar-se no ponto de vista do outro, donde resultam, por exemplo, a compaixão e a solidariedade, não é raro encontrar adultos incapazes de fazer isso.

O problema, então, é disputarem campeonatos nos moldes adultos, com princípios, regulamentos e comportamentos semelhantes aos dos profissionais (dos treinadores/professores, da arbitragem e da família), assim como vemos costumeiramente em todo o país. O problema é reproduzir com crianças as mesmas condições pelas quais passam jovens e adultos nas competições de que participam, voltadas à alta performance.   

Com essa afirmação, esperamos liquidar o questionamento trazido como subtítulo deste texto: campeonatos e torneios de futebol para crianças e jovens não são, em sua essência, nem bons, nem ruins, ou seja, nem mocinhos, nem vilões, eles são aquilo que fazemos deles.

São vilões se crianças e adolescentes disputarem campeonatos com o único objetivo de vencer… se o foco estiver exclusivamente no desempenho esportivo e na conquista do primeiro lugar, passando por cima daqueles que deveriam ser os principais objetivos: a formação humana e integral (que comtempla a formação esportiva nos seus aspectos técnicos, físicos, cognitivos, psicossociais, morais etc.) das crianças que jogam futebol.

São vilões se colocarmos crianças de 6 a 12 anos para disputarem jogos oficiais em campos (oficiais), com dimensões (do campo e das traves, por exemplo) não adaptadas a cada faixa etária. Tamanho e peso da bola, tempo de jogo, dimensões do campo, tamanhos das traves, número de jogadores, quantidade de substituições possíveis, penalidades, pontuação, premiação, perfil da arbitragem…praticamente tudo tem que ser adaptado para cada categoria.

Talvez não haja maldade maior nessas situações do que levar uma criança para um jogo competitivo e deixá-la no banco de reservas o jogo todo, privando-a do prazer e da rica experiência de disputar uma partida de campeonato contra outras crianças. Não obstante, tão triste e motivo de indignação quanto, é presenciar xingamentos, palavrões e cobranças absurdas realizadas por parte dos familiares. Isso é, ou deveria ser, inaceitável!  

O propósito, as regras e os regulamentos dos torneios e campeonatos de crianças devem ser para crianças! Devem respeitar as características, interesses e necessidades das crianças. Devem ser coerentes com o propósito educacional de escolas de futebol.  Se em clubes profissionais, em suas categorias de base, a discussão passa pela necessidade de destinarmos foco à formação, esportiva que seja, e não na conquista de títulos, em escolas de futebol isso deveria ser indiscutível.

Afinal, a competição, tal como a consideramos neste texto, não tem o mesmo caráter quando se trata de jovens em formação para o alto rendimento, tampouco de adultos profissionais. Professores, educadores e gestores preocupados com o bom desenvolvimento integral da criança, pensam a competição de maneira mais abrangente, considerando-a, também, como oportunidade de tomá-la como referência de competência frente ao outro. Não é exatamente um medir forças, mas uma observação da própria força (no sentido de capacidade geral de realização) na relação com o outro. Entendemos, ainda, a competição, do modo como a consideramos aqui, uma excelente oportunidade para que as crianças aprendam, aos poucos, que sem o outro, sequer haveria competição, que é por existir o outro correndo ao seu lado (por exemplo), que ela pode disputar uma corrida de velocidade. Pensar a competição dessa forma é também pensar que, ao mesmo tempo, ocorre cooperação.  

Foto: pixabay

Categorias
Sem categoria

A comunicação e a sua implementação pelo dirigente esportivo

Por: André de Souza Martins

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

O saber atual associado ao conceito de comunicação, aliado à importância assumida pela comunicação integrada no âmbito das estratégias de marketing, revelou-se decisivo para a aplicação desta abordagem direcionada a um segmento tão específico com é o do futebol profissional.

O desenvolvimento e crescimento de qualquer instituição (ou mesmo liderança desportiva) prende-se com a confiança que nela deposita o seu público. A conservação deste clima de confiança, que é, em grande parte, responsável pela consolidação de qualquer projeto, implica que se estabeleça, entre ambos, um diálogo ininterrupto, recorrendo aos diversos meios e canais disponíveis. Qualquer protagonista/entidade que queira manter uma imagem favorável junto do seu público de interesse terá de lhe dar informação sobre as suas atividades, o seu trabalho e a sua organização, concebendo, para o efeito, um sistema constante de comunicação cuidado e sempre dependente do contexto vivenciado.

No âmbito organizacional, a comunicação assume um papel fulcral na criação e estabelecimento de laços, não só das relações internas, mas, também, na vertente externa, isto é, com os consumidores e stakeholders. A comunicação organizacional centraliza-se, por isso, na estruturação e melhoria da imagem corporativa da organização e/ou empresa, devendo ser compreendida como uma ligação entre a entidade e o(s) consumidor(es). Por tudo isto, a comunicação das organizações funciona como um fator diferenciador no que concerne à performance de uma empresa e ao seu posicionamento no mercado. O mundo da comunicação mudou e, assim sendo, o investimento em produtos publicitários nos grandes media já não é maioritário como outrora se verificava. O marketing direto, promoção de vendas, eventos, relações-públicas, Internet, etc., prosperaram em detrimento dos media tradicionais. A comunicação multicanal está bem-adaptada ao desenvolvimento dos mercados. No entanto, esta tipologia transversal a diversos canais é bem mais complexa de gerir e, por isso, deve existir coerência na formulação das mensagens.

“O agenciamento e a coordenação de um processo completo de comunicação requere uma comunicação integrada de marketing (CIM), planeamento de comunicação de marketing que reconhece o valor agregado de um plano abrangente, capaz de avaliar os papéis estratégicos de diversas disciplinas de comunicação e combiná-las a fim de oferecer clareza, coerência e o máximo impacto por meio da integração coesa de mensagens criteriosas.” (Kotler & Keller, 2013).

Imagem 1

A American Marketing Association define a Comunicação Integrada de Marketing (CIM) como “um processo de planeamento destinado a assegurar que todos os contactos com um cliente ou consumidor em potencial relativo a um produto, serviço ou organização sejam relevantes para essa pessoa e consistentes ao longo do tempo”.

A preparação eficaz de todo o processo de comunicação requer respostas inequívocas para três problemáticas fundamentais: o que dizer (estratégia de mensagem), como dizer (estratégia criativa) e quem deve dizer (fonte da mensagem). Verifica-se, por isso, que a eficiência da comunicação deriva de como a mensagem é exposta e, posteriormente, do próprio conteúdo que lhe está inerente. Uma comunicação ineficaz pode indicar que se escolheu uma mensagem errada ou que a mensagem certa foi transmitida insatisfatoriamente.

Conclui-se, desta forma, que a comunicação multicanal integrada tem por objetivo um melhor retorno dos investimentos de comunicação, aplicando uma estratégia baseada numa construção de canais diferentes, veiculando mensagens coerentes. É orientada para o cliente/consumidor e a sua eficácia passa pelas aptidões pluridisciplinares dos responsáveis que as dirigem e pelas próprias organizações.

A COMUNICAÇÃO NO DIRIGISMO DESPORTIVO

No contexto português, o fenómeno desportivo (futebol) funciona como elemento catalisador de afiliação, dedicação e paixão clubística, responsável pela generalidade das atenções que são, diariamente, conduzidas para os clubes. Esta realidade, que é partilhada pela esmagadora maioria dos emblemas que competem nos escalões profissionais do futebol português contribuíram, decisivamente, para construção da opinião pública veiculada no exterior da organização.

O dirigente desportivo está, atualmente, emparedado numa panóplia de temáticas, que não domina, mas que estão indelevelmente associadas à atividade desportiva e sobre as quais os adeptos esperam (e muitas vezes desesperam por) um posicionamento. Um dos problemas deste território é, pois, a sua (falta de) delimitação, dado que a multidisciplinaridade que o envolve levanta questões de natureza metodológica importantes para a sua sistematização.

Neste sentido, Manuel Queiroz (2009:13) considera que “a modernização do desporto – e da informação que gera – advém da sua transversalidade e da ligação que estabelece a outros campos científicos, como o Direito, a Economia ou a Saúde, que exigem outra preparação aos jornalistas” e, por conseguinte, a todos os outros atores.

Imagem 2

Além desta transversalidade, o dirigente desportivo está atualmente ciente que se move num ramo de negócio que, contrariamente a muitos outros, vive à base das emoções, tem ciclos de avaliação muito próximos (entre jogos) e têm de lidar com exposição mediática incomparavelmente superior a todos os outros sectores de atividade resultante da parafernália de jornais e sites especializados em futebol, programas de debate, blogs e, ainda, secções em todos os jornais generalistas. Para Hugo Gilberto e Manuel Fernandes Silva (2009:7) a comunicação em desporto é um produto multidisciplinar que tem de conviver com “erros de arbitragem, declarações de dirigentes, contacto com claques, blackouts e, ainda, com protagonistas que lidam de forma negativa com as notícias”.

Todo o processo comunicacional, tal como a própria formatação da mensagem, atualmente, é preparado à lupa, por profissionais especializados de forma a que o acompanhamento dos públicos externos seja um elemento definidor de notoriedade e, ao mesmo tempo, diferenciador no mercado mediático e publicitário. Assim sendo, optou-se por escalpelizar cinco princípios que devem ser tidos em conta pelo dirigente desportivo no que concerne à implementação de uma estratégia de comunicação: definição de objetivos, suportes de comunicação, definição de target, análise SWOT, definição de mensagem e cronograma de atividades.

OBJETIVOS

A definição de objetivos é um dos primeiros passos de qualquer campanha integrada de comunicação e serve, segundo Winters e Goodman (1984, p. 124), para determinar o caminho a trilhar durante a ação, devendo, por isso, estabelecer itens mensuráveis e quantitativos que, posteriormente, permitam uma avaliação eficaz.

Todo este processo inicial, que confere objetivos gerais à iniciativa, representa os alicerces em que vai assentar todo o plano e parte, invariavelmente, de uma análise contextualização rigorosa e pragmática ao espectro económico-social, à concorrência e, sobretudo, à performance da marca (resultados desportivos). Por outro lado, os objetivos específicos são passíveis de concretização num determinado eixo temporal, com um custo associado, e permite a associação da comunicação aos resultados financeiros obtidos (Castro, 2002).

Se em qualquer outro sector de atividade, que não tem associado uma carga emocional tão vincada este procedimento obedece já a um conjunto de alíneas significativo, no caso do futebol profissional, que vive muito do espectro sentimental, este tende a ser ainda mais complexo e está, invariavelmente, associado ao desempenho desportivo da equipa e aos tais ciclos curtos de avaliação. A idealização de um plano integrado de comunicação no futebol profissional não pode, por isso, descurar o contexto que o clube atravessa porque pretende, invariavelmente, manter ligada à sua falange de apoio e, posteriormente, fazê-la comungar dos ideais pretendidos.

SUPORTES DE COMUNICAÇÃO

Os clubes de futebol são, na sua grande maioria, empresas cujo alcance ultrapassa largamente as margens do país onde competem, devido uma legião de sócios/adeptos que, graças às plataformas digitais de comunicação, acompanham e participam no seu quotidiano.

Neste sentido, e de forma a responder eficazmente aos desafios lançados pela digitalização, os clubes estão, atualmente, dotados com uma panóplia de ferramentas que permite criar e manter lanços com os seus públicos de interesse como são website institucional, contas verificadas nas principais plataformas digitais de comunicação (Youtube, Facebook, Linkedin, Twitter, Instagram e TikTok), canais de televisão, newsletters, revistas ou jornais. Além de todos estes instrumentos de comunicação controlada, os protagonistas têm, ainda, de lidar com conferências de imprensa, flash-interviews e entrevistas one-to-one.

Contudo, o contacto direto com os associados/simpatizantes continua a ser fundamental para uma franja considerável do target. Por isso, um plano de comunicação que exalte as potencialidades destas plataformas permite, em primeira instância, marcar a agenda de informação, abranger todo o universo que segue a marca e, por fim, agir eficazmente perante as necessidades dos públicos.

Imagem 3

DEFINIÇÃO DE TARGET

Do inglês “Target”, significa “alvo”, mais precisamente o público-alvo que a organização pretende atingir.

A definição do target é um factor primordial na definição da Estratégia (de marketing e comunicação) do clube, sendo importante que a divulgação da nossa oferta seja realizada às “pessoas certas” para obter mais resultados e reduzir os custos. Deve-se, assim, pesquisar, delimitar o público, destacar a oferta e observar, para se poder definir a Estratégia de Comunicação.

Os serviços desportivos encontram-se projetados diretamente para os sócios que, apesar de fazerem parte do público-alvo, têm personalidades e ideias muito diversificadas. Importa, neste sentido, perceber a relação que se quer estabelecer entre clube e adepto/sócio, nomeadamente no que toca às campanhas promovidas para fidelizar de novos adeptos e, por conseguinte, torná-los sócios ativos e integrá-los no quotidiano da instituição. O objetivo é, então, captar público maioritariamente jovem para criar uma ligação longa e fidelizar aqueles que já são sócios do clube.

ANÁLISE SWOT

A Análise SWOT é uma ferramenta utilizada para traçar um diagnóstico de uma empresa ou organização, e que, através da exploração dos seus pontos fortes e fracos, permite agir eficazmente ao nível da gestão e do planeamento estratégico. Esta análise permite, a quem a coloca em prática, uma perceção correta de todo o contexto que norteia a organização, já que, na sua génese, contempla o ambiente interno (forças e fraquezas) e externo (oportunidades e ameaças). As forças e fraquezas são determinadas pela posição atual da empresa e relacionam–se, quase sempre, com fatores internos. Já as oportunidades e ameaças são antecipações do futuro e estão relacionadas a aspetos externos.

O ambiente interno pode ser controlado pela empresa, uma vez que resulta, quase exclusivamente, de estratégias de atuação definidas pelos seus elementos. Desta forma, e durante a análise, quando é percebido um ponto forte, este deve ser ressaltado ao máximo. Ao invés, perante um ponto fraco, a organização deve agir para controlá-lo ou, pelo menos, minimizar seu efeito. Já o ambiente externo está mais fora do alcance da organização. Ainda assim, apesar de não poder controlá-lo tão eficazmente, a empresa deve conhecê-lo e acompanhá-lo com frequência, de forma a aproveitar as oportunidades e evitar as ameaças.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

O timing é um dos aspetos mais importantes aquando da aplicação de um plano de comunicação empresarial eficaz. É necessário ter em consideração diversos fatores que poderão afetar a compreensão por parte do público-alvo, da nossa estratégia, que possam colocar em perigo a sua implantação e, em último caso, fazer com que os nossos públicos reajam com aversão às nossas propostas. O melhor exemplo deste princípio são as campanhas de angariação/renovação de associados que são, invariavelmente, lançadas no início das épocas, altura em que os adeptos têm mais esperança em bons resultados desportivos.

Imagem 4

CONCLUSÃO

O futebol há muito que saltou as linhas que delimitam o campo e é hoje um fenómeno social à escala planetária que apenas encontra paralelo em pontos do globo muito específicos com raízes culturais profundas.

Assim sendo, as instituições desportivas e, por conseguinte, os seus líderes têm estratégias cada vez mais direcionadas para as massas, confirmando, de resto, a premissa de que o futebol é um evento social e uma modalidade de excelência. Este é, contudo, um mercado muito específico onde, por exemplo, o conceito tradicional de concorrência, pura e dura, não existe, contrariamente ao que se verifica noutros sectores de atividade. Os adeptos/sócios não mudam de clube, estão fidelizados e o grande desafio do dirigente é criar condições para que o relacionamento não esfrie e, dessa forma, rentabilizar financeiramente a ligação levando, por exemplo, à compra de lugares anuais, equipamentos, merchandising, etc.,

Com a realização deste artigo, apresenta-se um conjunto de linhas orientadoras para o dirigente desportivo implementar uma estratégia de comunicação eficaz num emblema do futebol profissional. Esta proposta começa com a caracterização do ecossistema do futebol profissional, onde são exaltadas as especificidades ramo de negócios e a caracterização dos principais seguidores do clube. Feito o diagnóstico, passa-se aos alicerces que devem monitorizar um plano de comunicação integrado, e que engloba definição de objetivos, suportes de comunicação, definição de target, análise SWOT, definição de mensagem e cronograma de atividades.

Os novos formatos das competições europeias, a centralização dos direitos televisivos e a mais do que provável participação de emblemas em competições além-fronteiras são os desafios que se avizinham para os dirigentes desportivos que, perante este novo oásis de receitas, terão de se reajustar e refazer os planos operacionais de comunicação sob pena de perderem o comboio e, por conseguinte, deixarem escapar receitas importantes para a consolidação dos seus projetos desportivos.

Imagem de capa: https://soccerbo.com/wp-content/uploads/2024/01/ufjhp- tkweh-1200×686.jpg

Imagem 1: https://goalpoint.pt/wp-content/uploads/2023/02/Futebol–digital-1200×675-1.jpg

Imagem 2: https://soccerbo.com/wp-content/uploads/2024/10/qpfbrsetj- j-1200×686.jpg

Imagem 3: https://soccerbo.com/wp-content/uploads/2023/12/ogyszhtc- nm.jpg

Imagem 4: https://media.torcedores.com/wp-content/uploads/2023/11/ futebol-virtual-bet365.jpg

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Em volta daquela mesa

Por: João Batista Freire

Quando acabou meu futebol de menino, acabaram também minhas esperanças de me tornar profissional de futebol. Tive que trabalhar e o esporte possível era o de finais de semana. Insisti com o Atletismo, até que fui trabalhar com formação de jovens para esse esporte. Anos depois voltei ao futebol de várzea nos finais de semana. Meu time era de veteranos, gente com mais de 40 anos. Gente que só esperava o apito final para correr ao bar mais próximo, arrodear uma mesa e enfeitá-la com garrafas de cerveja. E aí começava o terceiro tempo, nosso melhor jogo, o tempo da falação. Aí a gente crescia enquanto voltávamos a ser meninos. Se o placar fosse adverso, e isso era frequente, nós o invertíamos com os argumentos da injustiça, das bolas na trave, do juiz comprado, dos gols perdidos, do domínio da bola, da pancadaria do adversário, do sol muito quente, do estado do gramado (que nem sempre existia), da diferença de idade.

Ríamos de nós mesmos, ríamos das mentiras deslavadas, das narrativas distorcidas. Os goleiros praticavam defesas naquela mesa de cervejas nunca vistas nos melhores clássicos do Maracanã. E a coisa crescia, as proezas germinavam ao sabor do líquido frio que massageava a garganta seca. “Viu como deixei o lateral esquerdo naquela descida? Deu até pena.” O campo de futebol é o único local em que se sobe ou se desce no plano. E tome de contar histórias, e tome de inventar um outro jogo, um jogo que nunca aconteceu antes de sentarmos naquela mesa, um jogo maravilhoso que nos transformava em heróis de nós mesmos, heróis sem troféus, sem medalhas, sem glórias e sem remuneração. Algo que escapa à maioria das pessoas é que o futebol não se resume aos 90 minutos de 22 jogadores perseguindo a meta adversária. O futebol transcende as quatro linhas e prossegue nas mesas de bares, nos debates pelo rádio e TV, nos intervalos do trabalho, no interior das famílias. Todo jogo de futebol tem muito mais que 90 minutos.

Aquela mesa de bar enfeitada por garrafas de cervejas era sagrada. Quantas vezes não chegamos atrasados à missa de domingo, ao almoço com a família, à bilheteria do cinema, para não faltar ao compromisso de nosso tão querido terceiro tempo, o tempo que nos tornava possíveis. Fazer o quê, éramos apenas meninos grandes, meninos inocentes que cresceram, mas não deixaram de ser meninos. Por vezes, em volta daquela mesa, fomos o melhor de nós mesmos.


Foto: Bruno Doro/UOL Esporte

Categorias
Sem categoria

O planejamento no futebol com uma visão integral e humanizada dos alunos/atletas

Por: Denise Lemos Fernandes

O planejamento no futebol vai muito além da organização tática e física das equipes. Quando concebido com uma visão integral e humanizada, ele se torna um instrumento poderoso para a formação não apenas de atletas, mas de indivíduos preparados para os desafios dentro e fora de campo. A partir da experiência adquirida no desenvolvimento de metodologias para categorias de base e na elaboração de guias para treinadores, compartilho aqui uma abordagem que busca equilibrar o desenvolvimento técnico, tático, físico e emocional dos jogadores.

A BASE DO PLANEJAMENTO: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Para que o planejamento seja eficaz, é essencial que ele contemple o desenvolvimento técnico e físico dos atletas. A preparação deve priorizar o fortalecimento da potência, força e velocidade, garantindo que os jogadores estejam prontos para as exigências do futebol moderno. Exercícios que simulam situações reais de jogo, treinos de explosão muscular e atividades de resistência são fundamentais para o crescimento esportivo. Mais do que aprimorar a parte física, é necessário criar desafios que incentivem a rápida tomada de decisão e a adaptação a diferentes cenários dentro de campo.

Outro ponto essencial no planejamento é o comprometimento e a pontualidade. Criar uma cultura de responsabilidade dentro da equipe significa estabelecer padrões elevados de disciplina e organização. Isso se traduz em treinamentos bem estruturados, respeito aos horários e à programação, o entendimento de que cada detalhe influencia diretamente na performance coletiva. Pequenas ações, como reuniões pré-treino para alinhamento dos objetivos diários e reflexões pós-treino sobre o desempenho, ajudam a consolidar essa mentalidade.

Além disso, a construção da equipe e a identidade de jogo são aspectos determinantes. Para formar um grupo coeso e estratégico, é fundamental que cada atleta compreenda seu papel dentro do modelo adotado. Trabalhar a coletividade, promover interações constantes entre os atletas e estimular a comunicação são estratégias eficazes para potencializar a coesão tática. O uso de pequenos desafios em grupo, dinâmicas de confiança e jogos reduzidos com regras específicas são formas de integrar e reforçar os princípios que nortearão a equipe dentro das partidas.

ESTRUTURA DAS SESSÕES DE TREINO

A estrutura das sessões de treino deve ser adaptada às diferentes faixas etárias, respeitando o nível de maturação dos atletas. Para crianças de 4 a 7 anos, as atividades devem ser lúdicas e estimulantes, priorizando a coordenação motora e o contato inicial com a bola. Jogos como “rouba bandeira” e desafios simples ajudam a desenvolver habilidades motoras e a criar uma relação prazerosa com o futebol.

Dos 8 aos 11 anos, as sessões devem começar a introduzir conceitos básicos de tática e posicionamento, sem perder a essência divertida do jogo. Exercícios como triangulações, passes curtos e longos e finalizações começam a ser incorporados, garantindo que os atletas desenvolvam habilidades técnicas fundamentais. Na faixa etária dos 12 aos 15 anos, o treinamento se torna mais específico, com ênfase na tomada de decisão e na leitura de jogo. A transição entre setores, marcação e compactação são trabalhadas com mais intensidade. Jogos reduzidos 5×5 e 7×7 com objetivos específicos ajudam os atletas a pensar estrategicamente dentro do campo.

A partir dos 15 anos, o foco se amplia para a consolidação da identidade do jogo, com ajustes táticos refinados e treinos voltados para a alta performance. Sessões que simulam situações reais de jogo e desafios técnicos que exigem inteligência tática são essenciais para preparar os atletas para a competitividade do futebol profissional.

Imagem 1

A DINÂMICA DO CUBO MÁGICO: UMA METÁFORA PARA O DESENVOLVIMENTO

A Dinâmica do Cubo Mágico é uma das estratégias aplicadas nos treinamentos para reforçar a importância da organização, do trabalho em equipe e da adaptação às mudanças. Durante os treinos, os atletas são divididos em pequenos grupos e recebem um desafio: organizar cones de maneira estratégica, simulando a lógica de um cubo mágico. Por exemplo, cada jogador pode mexer em uma peça do cubo e precisa encontrar a melhor forma de encaixar dentro da estrutura. O exercício estimula a leitura de jogo, a comunicação eficiente e a rápida tomada de decisão. Além disso, a relação entre a dinâmica e o jogo formal se dá na necessidade de ajustar constantemente a posição e a estratégia para alcançar um objetivo comum, reforçando conceitos de compactação, movimentação e transições rápidas, seja para atacar ou defender.

Essa abordagem permite que os atletas desenvolvam raciocínio lógico, resiliência e a capacidade de solucionar problemas sob pressão. Ao compreender que cada peça do cubo mágico tem uma função específica e que todas precisam trabalhar juntas para formar a estrutura ideal, assimilam a importância do coletivo no futebol.

Esse entendimento é transferido para o jogo formal, onde o sucesso da equipe depende da conexão entre os setores e da inteligência tática aplicada em tempo real.

A VISÃO HUMANIZADA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO

O futebol deve ir além da preparação esportiva, incorporando elementos que fortaleçam a identidade e o crescimento pessoal dos atletas. O uso de textos e livros como A Boa Sorte, que trabalha a construção estratégica e a resiliência, e A Arte da Guerra, que reforça conceitos de planejamento e adaptação, permite ampliar a visão dos jogadores sobre o esporte e a vida. Além disso, textos de Rubem Alves incentivam a reflexão sobre aprendizado e criatividade, promovendo um ambiente de treino mais estimulante e significativo.

Para consolidar essa abordagem, os atletas são incentivados a realizar tarefas diárias/semanais/mensais, como reflexões sobre seus pontos fortes e áreas de melhoria, e a participar de discussões sobre leituras que estimulem a tomada de decisão e a resiliência. O uso de um formulário personalizado pode ajudar a entender melhor seus objetivos, motivações e desafios, garantindo um acompanhamento individualizado e promovendo um crescimento contínuo.

Imagem 2


PLANEJAMENTO COMO DIFERENCIAL COMPETITIVO

Um planejamento bem estruturado impacta diretamente o desempenho da equipe. A organização em blocos de tempo dentro dos treinos permite otimizar a aprendizagem sem comprometer a intensidade. Além disso, a inclusão de espaços para feedback e a adaptação constante das atividades garantem que cada jogador possa evoluir dentro do seu ritmo.

CONCLUSÃO

A formação de um atleta deve ir além do aprimoramento técnico/tático e físico. O estudo contínuo sobre o jogo, aliado à busca por conhecimento em diferentes áreas, amplia a compreensão do esporte e potencializa a tomada de decisões dentro de campo. Compreender a teoria, refletir sobre o próprio desempenho e buscar novas referências são atitudes que diferenciam os grandes jogadores e treinadores.

Além do conhecimento tático e técnico, o fortalecimento dos laços de afetividade dentro da equipe é essencial. O ambiente de treino deve ser um espaço de trocas, aprendizado e cooperação, onde o respeito e a empatia são incentivados diariamente. Relações sólidas e saudáveis dentro do grupo favorecem a evolução coletiva e criam um ambiente propício ao desenvolvimento humano.

Dessa forma, ao promover uma abordagem integral e humanizada no planejamento esportivo, contribuímos para a construção de indivíduos mais preparados, conscientes e comprometidos. O verdadeiro legado do futebol não está apenas nos títulos e conquistas, mas no impacto que ele gera na vida daqueles que o vivenciam com dedicação e paixão.

Imagem 1: https://cdn.futbollab.com/storage/blog/seo/blog—preven-cion-de-lesiones-de-isquiotibiales.jpg

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Um dia nosso futebol foi brasileiro

Por: João Batista Freire

Um dia tivemos um futebol livre, alegre, independente. Um dia que começou quando crianças e jovens pobres, pretos e brancos, das periferias das cidades brasileiras, tiveram contato com o futebol vindo da Inglaterra e de outros países europeus. Estávamos no começo do século XX. Esses mesmos brasileiros, quase sempre reprovados e excluídos do sistema de ensino oficial, considerados incapazes de aprender, passaram, não só a brincar com essa nova modalidade, mas a criar um outro jeito de jogar futebol. Por não poderem frequentar os grandes clubes, por não sofrerem a influência do modo de jogar dos ingleses, e por não serem controlados por professores e técnicos, brincaram de futebol ao modo deles, transformaram o futebol em uma brincadeira de jogar com qualquer tipo de bola em qualquer terreno possível. Essa gente considerada incapaz de aprender, eternamente esmagada pelo peso da cultura discriminatória europeia, não só era capaz de aprender bem, mas até de reinventar o grande e nobre esporte que encantava as elites brasileiras. E o austero futebol inglês, o sofisticado esporte bretão, virou, nos pés de nossos meninos pobres, o futebol brasileiro.

O futebol brasileiro, que por tantas décadas encantou o mundo, nasceu em um espaço que escapou ao mundo colonializado. A colonialidade é o fenômeno de submissão de um povo ao poder dos povos colonizadores – de modo geral, países do Norte global -, e preenche o espaço deixado pela colonização, quando a submissão é imposta fisicamente, presencialmente, como ocorreu no Brasil português e na América Espanhola durante séculos. Ter proclamado a independência não livrou os povos da América do Sul, assim como os da África, das imposições aos modos de pensar, de falar, de se comportar, de comer, de ouvir e assim por diante. A colonialidade se impôs onde antes havia colonização. Todos os dias, quando nossas crianças vão às escolas, os antigos colonizadores, com suas culturas atuais de povos do Norte global, invadem suas mentes através dos currículos escolares, que possuem, todos eles, em seus núcleos, as insinuações invisíveis dos antigos colonizadores. O mesmo ocorre quando ligamos nossos aparelhos de TV, quando vamos aos fast-foods ou quando abrimos nossas redes sociais. No entanto, aqueles meninos pobres das periferias das nossas cidades, por serem excluídos do nobre esporte bretão, puderam brincar com ele sem as pressões do chamado primeiro mundo. Ou seja, puderam jogar futebol como brasileiros. Aprenderam tão bem que superaram os inventores do futebol inglês. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa; depende do modo de ensinar e de aprender. Deslocaram o foco da aprendizagem para aquele que aprende, ao passo que, nas escolas, o foco está em quem ensina.

Com o passar das décadas o futebol brasileiro incomodou sobremaneira os europeus. A partir do início dos anos 2000, ele foi sendo solapado por influências europeias e econômicas e está, atualmente, em extinção. Disso já tratei em outro texto que publiquei na Universidade do Futebol (A assepsia da arte de jogar futebol). O resultado aí está: preferimos assistir aos jogos das ligas europeias – e até da liga árabe. Nossas crianças pedem aos pais para comprarem camisas de ídolos de clubes europeus. Não há jogador jovem de destaque no Brasil que não seja negociado com clubes europeus (às vezes para países árabes ou norte-americanos). Nossos técnicos (com algumas exceções), preferem seguir os esquemas rígidos dos técnicos de clubes europeus a serem criativos e jogar ao modo brasileiro. Nossos craques, quando entram em campo, não conseguem representar o futebol brasileiro; jogam um futebol europeu, não conseguem mais ser brasileiros e ficam perdidos em campo.

Mas não bastam as críticas. Criticar é fundamental, mas, no mundo do esporte, apontar soluções é sempre mais interessante.

Não só os esportistas, mas todas as pessoas do mundo, aumentam suas chances de sucesso quando têm oportunidades de agir como elas mesmas. Somos pessoas únicas, originais. Nossa educação deveria nos orientar para sermos cada vez mais nós mesmos. Não se trata de uma proposta individualista, pelo contrário; quando somos cada vez mais nós mesmos, nos tornamos cada vez mais diferentes uns dos outros. E só pessoas diferentes podem realizar trocas ricas. Só pessoas diferentes têm o que trocar. Uma sociedade rica, democrática, deve ser feita por pessoas cada vez mais diferentes. As chances de sucesso de João são tão maiores quanto mais João puder ser João. Isso é válido para qualquer pessoa. Portanto, o futebol brasileiro terá tanto mais chances quanto mais puder ser brasileiro. E ele já o foi um dia, criado pelos meninos pobres das periferias das cidades brasileiras. Não é loucura aspirar a volta do futebol brasileiro, não como já foi um dia, mas inspirado por ele e do modo como poderia ser hoje. Não é loucura, é sanidade.

E como fazer para voltarmos a ter um futebol brasileiro? Há muitos obstáculos, é evidente. Basta ver como a imprensa desportiva trata aqueles técnicos que buscam esse modo de jogar futebol. Serão muito mais cobrados que aqueles que buscam as formas tradicionais, seguras, fundadas na ideia de não perder, no sentimento de medo. Um futebol fundado na alegria, na diversão, no lúdico, é muito mais arriscado. Aqueles que buscam esse caminho são mais cobrados, menos perdoados quando perdem, às vezes massacrados e até encerram suas carreiras por falta de oportunidades.  

Não se trata de saudosismo. Esse futebol inventado pelos brasileiros constitui um saber considerável, um saber que está guardado nas memórias dos que o viveram e dos que conseguem ter contato com ele por diversas formas. Esses que viveram esse futebol, não necessariamente possuem belos discursos a esse respeito, e por isso não são reconhecidos por quem só considera a linguagem culta, acadêmica. São discursos proferidos na linguagem de quem viveu a prática, porém, acolhedores de um saber profundo, que pode ser resgatado e inspirador de modos de educar para o futebol e para a vida. Portanto, promover um ensino do futebol, hoje, fundado nos saberes do futebol inventado pelos brasileiros, e pelo ponto de vista de quem vai receber essa educação, é plenamente viável.

Sem dúvida, o mais forte motor desse futebol brasileiro é o lúdico, porque ele foi inventado em brincadeiras de crianças e adolescentes. Foi do lúdico que ele surgiu, tendo como modelo o futebol que já se praticava em vários países europeus e, em seguida, nos clubes de elite do Brasil. E por qual motivo o lúdico tem esse poder criativo de forjar, a partir de um modelo europeu, um futebol tipicamente brasileiro? Que força tem esse lúdico? Todos os que lerem este artigo foram ou ainda são pessoas brincadoras. Quando crianças provavelmente eram mais brincadoras que hoje. Se revirarem suas memórias perceberão o quanto já criaram enquanto brincavam, quantas coisas inventaram, quantas brincadeiras foram modificadas, recriadas. Porém, para a ideologia conservadora do futebol, que preconiza a eliminação do risco, que tem o medo como referência, o não perder como estratégia, o defender mais que o atacar, a rotina em vez da criatividade, o lúdico é um fantasma a ser evitado. Sei que é difícil definir o que é o lúdico, mas, sem dúvida, fazem parte dele o mistério, o risco, o imprevisível, a graça. Que graça tem um jogo de cartas marcadas?

É mais viável vivenciar o risco no ambiente lúdico que no ambiente de rotina, de tarefa, de trabalho. Quando nos pomos a executar uma rotina de trabalho, nosso compromisso é quase que exclusivamente com quem exigiu a tarefa, portanto, o compromisso é com algo externo a nós. Por outro lado, quando realizamos ações lúdicas, isto é, quando jogamos, não há compromisso com algo externo a nós. Sem contar com o fato de que o jogo é, em seu núcleo, uma simulação, um faz-de-conta, portanto, as consequências do erro não são graves, não há punição, porque não é necessário prestar contas fora do jogo. No caso do futebol profissional, como em qualquer esporte profissional, as ações comportam um misto de lúdico com trabalho, uma vez que os jogadores são contratados, recebem remuneração para jogar, precisam prestar contas do que fazem. Porém, há a parte lúdica, uma vez que futebol é um jogo, e todo jogo é lúdico. Por mais que o jogador tenha que prestar contas de suas ações, ele é envolvido nessa atmosfera lúdica que lhe permite, como uma criança, correr riscos de errar sem o peso das punições face aos erros cometidos no trabalho. Os treinadores de futebol precisam compreender o significado do lúdico no jogo de futebol e explorar esse fator em treinamentos e partidas. Os jogadores precisam ser convencidos a jogar, ao passo que certos esquemas de futebol os obrigam a apenas trabalhar.

É preciso, portanto, criar, nos treinamentos, um ambiente lúdico; sem abandonar, claro, o ambiente de trabalho. Os dois não são incompatíveis. Só no ambiente lúdico os jogadores serão capazes de ousar, de ir um pouco além do habitual, de se arriscar, de se divertir brincando de jogar bola. Só nesse ambiente lúdico serão capazes de se preparar para não abandonar o lúdico enquanto cumprem a tarefa de disputar partidas contra adversários. Portanto, nessa mistura de lúdico com trabalho, que é o jogo de futebol, é o lúdico que permitirá ao jogador a audácia de correr riscos ao lidar com o imprevisível (há outras ocasiões em que o ser humano corre riscos, e até extremos, fora do lúdico, mas não é nosso tema aqui).

É muito difícil definir as características do jogo. No entanto, não há jogo sem a presença do lúdico e do imprevisível. Como qualquer outro jogo, o futebol é um território de imprevisibilidades e de ludicidade. Quem pratica futebol somente por profissão, nunca terá a oportunidade de jogar e será incapaz de lidar adequadamente com o imprevisível durante uma partida. No mundo do trabalho evita-se o risco, teme-se o imprevisível. Porém, no mundo do lúdico, o modo como encaramos o que chamamos de responsabilidade, muda. É como se, no mundo do lúdico, tudo pudesse sempre começar de novo quando algo desse errado. E isso é verdade no jogo. Por pior que seja o resultado, outros jogos existirão em seguida e tudo poderá ser retomado.   

Aos saudosistas do futebol arte do Brasil, dos tempos em que tínhamos o melhor futebol do mundo, do futebol que parecia com a brincadeira de jogar bola na rua, posso adiantar que esse tempo não voltará. Mas o modo como esse futebol foi criado está nas memórias de todos nós e pode servir de inspiração para reinventarmos novamente o futebol, tornando-o brasileiro. Os caminhos nós já conhecemos e eu tentei descrevê-los, ao menos parcialmente. É preciso recriar o ambiente lúdico nos treinamentos e partidas. Um jogador de futebol precisa, antes de mais nada, aprender a jogar e, em seguida, aprender a jogar futebol de maneira lúdica. A cada momento de uma partida, o imprevisível surge inevitavelmente. Não adianta lutar contra o inevitável, o caminho é aprender a lidar com esse imprevisível, e só o ambiente lúdico permite lidar bem com ele. Um jogador nunca saberá exatamente o que acontecerá no lance seguinte, mas, sem dúvida, será algo diferente de tudo que já viveu antes, por mais que guarde semelhanças. Para dar conta de algo, portanto, pelo menos parcialmente novo, ele terá que criar uma solução nova. Ou seja, terá que ser um jogador criativo. E onde se forma esse jogador criativo? Na brincadeira de jogar bola.