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O QUE SE SABE SOBRE O FUNCIONAMENTO DE GRUPOS NO FUTEBOL?

Há mais ou menos 21 anos estudo os processos de grupo no âmbito do futebol profissional. Desde minha iniciação científica e primeiras participações em grupos de estudos relacionados ao futebol e à psicologia do esporte, preocupo-me com a importância dos processos de coesão de grupo, liderança, vínculos, papeis, comunicação, dentre outros. Trabalhos apresentados em congressos, artigos, minha dissertação de mestrado, minha tese de doutorado ou demais textos como esse, buscam refletir sobre essas temáticas. Entretanto, ainda não sei bem claramente o motivo, constato que são raros os que corroboram a necessidade de investir nessa temática. Poucos pesquisadores se debruçam sobre esse assunto. São raros os eventos científicos/acadêmicos que tenham essa temática dentre as prioritárias. São escassos os cursos que tragam os processos de grupo para dentro do seu planejamento pedagógico. São raros os clubes que se preocupam e voltem seus olhares e atenção a esses processos, de modo sério. 

Por outro lado, é cada vez mais comum notarmos na mídia esportiva reportagens ou manchetes que afirmam que determinado clube está com o “grupo rachado”. Que determinado treinador “perdeu o vestiário”. Que a manutenção de determinado treinador à frente da equipe está comprometida, pois não há mais clima para sua permanência. E o que se faz sobre isso? NADA! Troca-se o treinador ou vende/empresta/encosta determinado jogador e pronto. Bola pra frente! 

Fortunas são empenhadas para formar grandes equipes, mas quase nada se faz para compreender como se comportam os grupos e como se resolvem determinados conflitos de natureza grupal que comprometem, na maioria das vezes de modo decisivo, o rendimento da equipe e todo um planejamento traçado no início da temporada ou no início de um projeto de trabalho. 

São inúmeros os exemplos que poderia trazer para reflexão que tenham conflitos de natureza grupal como o cerne do problema de uma equipe. Talvez, o mais recente deles esteja relacionado à demissão do treinador Rogério Ceni da equipe do São Paulo e o que seu sucessor, Dorival Junior, em tão pouco tempo, deu conta de transformar. Trarei, então, esse caso para discutirmos e refletirmos juntos. À época dos principais acontecimentos, surgiu uma série de reportagens e inúmeros debates na televisão ou internet sobre os episódios que envolviam o treinador Rogério Ceni e os conflitos que a equipe do São Paulo vinha enfrentando quando ele ainda era o treinador. Como não faço parte do grupo, não vivo o dia-dia do clube e sequer tive a oportunidade de conversar com algum integrante da equipe, certamente qualquer coisa que eu diga sobre esse caso específico está comprometida. Me deterei, portanto, a tecer alguns comentários sobre isso tendo como referência o que é trazido pela mídia esportiva, sobretudo depoimentos de atletas que conhecem bem o contexto, “dialogando” com tudo o que venho estudando e produzindo academicamente nos últimos 20 anos. Meu interesse é mais discutir sobre os processos de grupo e menos de debater um caso ou exemplo específico.

Manchete do Globoesporte.com diz: “Ceni discute com Marcos Paulo em treino, e jogadores do São Paulo reclamam do técnico com diretoria”. Programa esportivo de opinião do portal UOL discute se “há clima para (a permanência) de Rogério Ceni”. Reportagem de Luiz Rosa ao mesmo portal trás como manchete: “atritos entre Ceni e elenco passam pelos treinos e contusões”. O portal SPFC.NET, que cobre os bastidores do clube, estampa reportagem com a seguinte manchete: “Com Ceni pressionado após novo tropeço, dirigente revela vestiário do São Paulo rachado”. Conforme jornalista que cobre o dia-dia do São Paulo, Jorge Nicola, “Rogério Ceni não tem mais clima dentro do São Paulo”.  

Sobre o Rogério Ceni e seu estilo de liderança, gostaria de tecer alguns breves comentários. Não é de hoje que é noticiado na mídia esportiva que o treinador costuma ter problemas de relacionamento com dirigentes dos clubes que representava ou com parte do grupo de atletas que comandava. À exceção do Fortaleza, onde não tenho conhecimento de notícias desta natureza, em todos os demais clubes que o Rogério Ceni passou, ele teve problemas relacionados ao modo como se relacionava com os jogadores. Cruzeiro, Flamengo e o último clube do qual foi treinador: o São Paulo. Não parece mera coincidência, concordam?  

Ceni tem uma personalidade “forte”. Diz o que pensa, não importa para quem ou quando. É uma pessoa muita trabalhadora. É estudioso. Exigente. Determinado. Vencedor. Sempre foi, ou procurou ser, protagonista nos clubes por onde passa. Tem tudo para ser um dos melhores treinadores do Brasil, não tenho dúvidas disso. Inclusive, já colhe, no seu breve currículo de treinador, vários títulos, alguns deles de muita expressão. No entanto, vejo comportamentos e atitudes dele enquanto líder, no âmbito dos processos de grupo, que precisam ser repensadas se quiser evitar problemas como esses que tem enfrentado sucessivamente nos clubes que defende. 

E isto que venho tentando problematizar neste texto não vale somente para o Rogério Ceni, mas para grande parte dos treinadores do futebol brasileiro. São reflexões, em formato de perguntas, que deixarei para cada um de nós pensarmos e buscarmos respostas. 

Pessoas importantes no processo de montagem das equipes, os treinadores sabem o que significa, do ponto de vista dos processos grupais, trabalhar com grupos de distintos tamanhos (pequenos, médios ou grandes)? Como lidar com aquele jogador que não tem espaço na equipe e, às vezes, sequer é relacionado para os jogos? Como manejar as relações dentro de grupo no qual pessoas, seres humanos (e não peças, dotados, portanto, de desejos, necessidades, subjetividades), não ocupam o papel que desejam? Como fazer com que todos caminhem em busca de um mesmo objetivo quando há privilégios não discutidos e aceitos por todos? Como estabelecer um vínculo de respeito e confiança com todos? 

Toda relação grupal passa pela confiança e boa comunicação entre seus membros. Como criar um vínculo de confiança, respeito e segurança se o treinador sequer conversa com seus atletas sobre suas decisões? Proteger o grupo é comportamento esperado de qualquer líder. Como garantir que seus jogadores se sintam protegidos e acolhidos se em situações de fracasso, derrota ou erros, são expostos publicamente?

Nenhum grupo é formado “do dia para a noite”. Para que um grupo funcione e trabalhe de modo eficaz e produtivo, ou entre em tarefa, como nos diz Pichon-Riviere (2005)[1], ele precisa de tempo para vivenciar experiências distintas e passar por algumas fases fundamentais, permitindo, por exemplo, que se consolide o sentimento de pertença, de pertinência, de tele (conceitos pichonianos), ou seja, que passe por determinados estágios de desenvolvimento e amadurecimento enquanto grupo. Como garantir isso se não é dado ao jogador condições para que ele experimente todas essas fases do processo de formação de grupo? Como garantir que um atleta recém-chegado ao clube se sinta incluído, parte, e importante para o grupo, se sequer seu processo de adaptação é respeitado?  

Por outro lado, o que imaginam que acontece no grupo, consciente e inconscientemente,  quando um atleta acaba de chegar ao clube e antes mesmo de fazer um treino é escalado como titular em uma partida? Por mais importante e reconhecido que esse atleta possa ser, será que ele passou por todos os estágios capazes de integra-lo, de fato, ao grupo? E o que acontece com o atleta que até então vinha ocupando o papel de titular e, de um dia para outro, perde seu posto, seu reconhecimento, seu status, sua importância?  

Grande parte dos questionamentos e desavenças por parte dos atletas em relação aos treinadores se dá por não concordarem com suas condutas e, principalmente, com suas escolhas. Se sentir injustiçado é um dos principais motivos para que o atleta não se dedique como pode, e deve, nos treinos e jogos e, consequentemente, não obtenha o rendimento esportivo pelo qual ele foi contratado. Estamos falando, também, de motivação. Estamos de falando de motivos (ou ausência deles). Que motivos encontrará o jogador para treinar e jogar mais, e melhor, se, na sua visão, será, ou está sendo, injustiçado pelo treinador? Como acabar ou ao menos minimizar essa percepção de injustiça sem fazer com que o atleta entenda os motivos e saiba dos argumentos para suas escolhas? 

Voltando a falar do clube trazido neste texto como exemplo, o atual treinador, Dorival Junior, tem obtido resultados expressivos e nitidamente, mesmo à distância, é possível notarmos um melhor ambiente, algo confirmado em entrevistas e, consequentemente, um melhor desempenho individual e coletivo da equipe. 

Em reportagem ao GE[2], Dorival Junior afirmou que “[…] é normal você se preocupar com o lado tático, do técnico, físico, temos que abastecer nosso elenco em todos os aspectos, mas o principal é o lado humano, e esse lado humano tem que ser valorizado sempre”. Ao reportar sua atenção ao lado humano, Dorival explicita a necessidade de darmos atenção ao que pensam e sentem os jogadores. Estamos falando de psicologia do esporte, portanto. Estamos esclarecendo que os atletas são sujeitos (e não máquinas) que possuem desejos, necessidades, subjetividades. E que isso tem que ser notado e respeitado! 

Há quem entenda que treinador não deve ficar se justificando ou argumentando sob suas escolhas e decisões… Que treinador não deve ficar preocupado com atleta insatisfeito… Que treinador deve se preocupar somente com seus titulares e jogadores mais importantes tecnicamente… Que o treinador está acima do grupo e não no centro do grupo. Há quem entenda que jogador de futebol é muito mimado e, por isso, deve trata-lo com indiferença e ausência de empatia. Há quem entenda que jogador é uma máquina, uma peça e, portanto, deve render de qualquer jeito. 

Enquanto entendimentos como esses predominarem, continuaremos a ler frequentemente nas mídias esportivas que determinado grupo está rachado. Que determinado treinador perdeu o grupo. Que não há clima para determinado treinador permanecer no clube. Continuaremos a ver trabalhos que poderiam ser duradouros e eficazes sendo interrompidos por problemas de natureza grupal. 


[1] PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[2] https://ge.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/2023/07/21/dorival-explica-como-recuperou-confianca-do-sao-paulo-e-ve-time-criando-ambicao-por-conquistas.ghtml

Texto por: Rafael Castellani

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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COPA DO MUNDO FEMININA: HORA DO MUNDO OLHAR PARA ELAS

Se você ainda não compreendeu o novo e melhor momento global do futebol de mulheres, agora é a hora. Seja como torcedor, patrocinador ou investidor, esta modalidade vem crescendo exponencialmente nos últimos anos e vive em 2023 seu melhor momento.

Comece pela expectativa de público que ultrapassou 1 bilhão na última Copa em 2019 e este ano são esperadas 2 bilhões de pessoas com jogos transmitidos para 150 países em TV aberta e streaming. Imagine a enormidade de oportunidades que isto traz para engajar meninas no esporte em todo o mundo, para negócios adjacentes e para a visibilidade de marcas.

Em pesquisa recente, o IBOPE Repucom constatou que 48% dos internautas brasileiros conectados, ou seja, quase 57 milhões de pessoas, se declararam fãs da Copa do Mundo feminina. Para uma modalidade proibida por mais de 60 anos, esses números são incríveis e mostram que ainda há muito espaço para ser conquistado.

A premiação será a maior de todos os tempos: R$ 733 milhões para as equipes participantes. Este ponto é motivo de debate quando comparado à premiação da Copa do Mundo masculina, mas, aqui e em outras discussões de remuneração, há de sermos mais pragmáticos e buscarmos a sustentabilidade. É urgente e necessário o debate e a comunicação de todos os benefícios, retornos e quão estratégico é o futebol feminino. Porém, precisa crescer de forma rentável e sustentável para continuar atraindo jogadoras, torcedores, marcas e investidores.

Tudo citado acima é importantíssimo, mas o que verdadeiramente me atrai é o poder de transformação quando o futebol feminino ganha esta visibilidade global.

Convido ao acompanhamento desta Copa, atentos à riqueza de reflexões e debates que já estão nas pautas dos jornais e nas rodas de conversa. Convido você a um olhar mais sistêmico para o que acontece dentro e fora das 4 linhas.

São milhares de exemplos que tenho aprendido nos últimos anos. Cito alguns que me encantam no futebol feminino: equidade, inclusão, direito a gravidez durante a profissão, sonho de ser mãe retomado ao pendurar as chuteiras, conversa aberta para apoio ao combate à violência doméstica nas comunidades, desenvolvimento de caráter e coletivo jovem, abertura para um basta ao assédio sexual e moral e muito mais.

E termino dizendo que, para esta grande virada e a continuidade desta jornada de sucesso, foi e serão cada vez mais necessárias mulheres líderes e o apoio do que chamo de homens de “alma feminina”.

Boa sorte, meninas!

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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Se LIGA

Não é só sobre juntar os clubes de futebol. Não é só sobre negociar e defender os interesses dos clubes em negociações de direitos de transmissão de TV. Não é só sobre futebol brasileiro e sobre campeonatos e transmissões. Não é só sobre aumento de receitas. É muito mais que isso.

Em um cenário no qual as opções de entretenimento são abundantes, as formas de consumo estão mudadas, o poder das mídias sociais e dos influenciadores desafiam as mídias tradicionais e governança e integridade entram na pauta dos esportes, é preciso ir muito além quando se discute a necessidade, o impacto e o valor de uma Liga Nacional de Futebol.

Um bom ponto de partida para esta reflexão é lembrar que futebol não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Partindo da conjectura econômica, especialistas já projetam que se estivéssemos trabalhando melhor o produto futebol, nossa indústria já deveria estar faturando o dobro do que fatura hoje. Ou seja, o futebol brasileiro já deveria ter rompido a barreira dos 100 bilhões de reais de faturamento e estar alcançando algo próximo de 1,5% do PIB brasileiro que já é a importância do futebol e dos esportes em muitos países. Mais que isso, projeções feitas por estudiosos de uma Liga Nacional de Futebol, já projetam o potencial de crescimento para 3 a 5 vezes o que somos hoje.

O importante é ter consciência e construir esta jornada pois estas cifras são consequência e não ponto de partida. Mesmo que estudos, estruturações e articulações já estejam avançados e que investidores globais já estejam prontos para ajudar a impulsionar o crescimento e impactar todo o ecossistema do futebol, falta um passo essencial: o senso verdadeiro de coletividade onde clubes abram mão de discutir um percentual grande de negócio pequeno. Falta a visão de que um espetáculo não é feito de poucos clubes fortes, mas de muita disputa e da competitividade. Um espetáculo é feito do jogo e de todos as experiências vividas pelos torcedores, fãs e consumidores de futebol dentro e fora dos estádios de futebol.

Falta ainda a visão de que a distribuição mais inteligente dos direitos de transmissão da TV é apenas uma pequena parcela e se tornará ainda menos relevante quando todo ecossistema evoluir e começarmos a investir além dos jogos e a termos resultados para muito além disto, como em outras ligas como a NBA.

Desejo que indivíduos pensem e ajam no coletivo. Que disputas por poder e questões de ego sejam derrotadas em benefício de milhões de pessoas e milhares de negócios. Desejo que todo potencial de ganho econômico venha ancorado em uma governança forte, em fairplay financeiro, em visão global de promoção e comercialização dos direitos e, acima de tudo, em projetos concretos de investimentos sociais e em educação para o desenvolvimento de todos; desde atletas da base até treinadores e gestores que devem ser preparados para que voltemos a ser o país do futebol.

Se LIGA, pois há um cavalo selado passando na nossa frente. É agora, ou agora.

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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TRANSIÇÃO DE CARREIRA DE ATLETA

A série Ted Lasso é uma comédia inspiradora e cheia de lições de vida. De maneira divertida e inteligente, ela apresenta situações reais vividas pelo personagem principal, o treinador Ted Lasso, mas também por tantos outros atores deste ecossistema com destaque para os atletas, comissão técnica e para a acionista do clube.

O tema transição de carreira me chamou muita atenção pois a própria história é centrada em um treinador de futebol americano do Kansas (EUA), que é alçado ao desafio de assumir um time de futebol na Inglaterra sem nenhuma experiência prévia na modalidade. Observando mais de perto, é fascinante ver como ele enfrenta os desafios desde o desconhecimento total do básico do futebol, que são as regras do jogo, até desafios pessoais como lidar com um divórcio e passar a conviver com o único filho de maneira virtual.

Fica claro como ele é focado e constrói o tempo todo nos seus pontos de força e não fica lamentando suas fraquezas. Partindo das suas forças que são a mente positiva, a capacidade de adaptabilidade, resiliência, empatia e inteligência emocional, Ted vai investindo em aprender e desenvolver suas novas habilidades no futebol através do interesse genuíno nas pessoas mais experientes, leitura, observação e muito diálogo.

Vale destacar que para alcançar os objetivos, Ted tem uma abordagem sistêmica que contempla desde suas estratégias para lidar com a parte política do clube, até seus métodos de gestão e liderança, sempre se cercando de pessoas mais capazes do que ele. Ted está sempre aberto para escutar e inovar.

Mas se Ted conduz assim tão bem, por que na grande maioria dos casos é tão difícil fazer a transição de carreira? Se pensamos especialmente nos atletas, o que há de tão particular neles que torna este processo difícil e, muitas vezes, doloroso?

Conversando com ex-atletas e vendo lições desta série, fui colecionando minhas primeiras reflexões. Em conversa com um amigo, ex-jogador profissional, escutei: “Eu não me percebia fora dos gramados. Eu era conhecido e reconhecido como atleta. Ser atleta se tornou a parte central da minha existência. Como encontrar um novo propósito?”

Deste fato surgem certamente questões psicológicas, emocionais e necessidade de desenvolvimento de habilidades específicas. Como fazer a transição do centro de um gramado com milhões de telespectadores para uma mesa de escritório ou para começar do zero como treinador ou outro papel de coadjuvante ? Como enfrentar as perdas, incertezas, inseguranças e ainda ter de se provar em um ambiente totalmente novo? Como aprender habilidades específicas e enfrentar concorrentes mais experientes que tiveram tempo de estudar e se desenvolver enquanto o foco do atleta estava nas competições?

Surgem inúmeras perguntas e desafios que valem muitos outros textos, conversas e encontros, mas deixo hoje um diálogo lindo da série onde a namorada de um jogador de futebol, em transição de carreira, pede para a sobrinha descrever o tio. A garotinha faz uma descrição detalhada dele como ser humano e de todas as qualidades que o fazem ser quem é. Em nenhum momento ela cita o tio como jogador. Daí uma pergunta: quanto valor e força podemos gerar se partirmos da nossa verdadeira essência para o processo de transição?

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

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ESCÂNDALO DAS APOSTAS TRAZ UMA ESPERANÇA

Há situações que ampliam o ecossistema tradicional do futebol e envolvem interesses de indivíduos.

As denúncias de corrupção e aliciamento de jogadores de futebol nas últimas semanas aceleraram uma discussão antiga. Ela nunca foi tão dramática, ruidosa e nociva. Isso a ponto de agora exigir uma solução enérgica, sob pena de, de novo, voltarmos a sucatear uma indústria com um potencial tão promissor e transformador como o futebol brasileiro.

Lembremos os analógicos anos 1980, quando tomamos conhecimento da máfia da Loteria Esportiva. Era um esquema criminoso de manipulação de resultados de jogos, revelado por um memorável esforço jornalístico. Na época, ficamos chocados e desiludidos, mas ainda tínhamos a esperança de que o escândalo se converteria em lições capazes de gerar corretivos edificantes. Parece que nada aprendemos.

Agora, o cenário é outro. A virtualização de atividades do dia a dia por meio de aplicativos e plataformas digitais tende a amplificar tudo rumo a uma disrupção que pode gerar caos. É exatamente o que está acontecendo com as apostas de futebol no Brasil, com potencial de contaminar as atividades desportivas como um todo.

Nesse terreno, as ocorrências são escandalosas. Porém, e por mais paradoxal que seja, nem tudo é catástrofe: o que está vindo à tona pode trazer reflexão profunda sobre ética, transparência, governança e a importância vital da educação dos atletas e de toda a indústria do futebol. Talvez o desafio maior seja reverter o processo e fazer do escândalo uma plataforma de inovação.

Parece fácil ganhar destaque na mídia usando nomes dos atletas aliciados, sem dar a mesma ênfase às pessoas e ao esquema amplo de quem os aliciou. O tema é complexo. Não pode ser abordado sem considerar fatores e agentes de um ecossistema que vai muito além dos atletas, clubes, federações, apostadores e sites de aposta. Há situações que ampliam o ecossistema tradicional do futebol e que envolvem interesses econômicos e políticos de indivíduos e do país.

É bom não esquecer que os sites de apostas geram recursos que contam muito para o governo, interessado, sem dúvida, nos tributos que o setor pode gerar. Mas não dá para assistir calado nem de forma passiva ao perigo de esses sites de aposta desvirtuarem o propósito do futebol e de outros esportes. Independentemente de ser a favor ou contra as apostas em jogos esportivos, elas existem e continuarão existindo. Chegou a hora de regulamentar de modo rigoroso. O mínimo é fazê-las observar as regras éticas; convertê-las ao compliance. É essencial que a Justiça possa operar soberana em meio ao ecossistema das apostas digitais ligadas ao esporte.

É legítimo destacar o possível avanço em campos como o aumento do foco na integridade e transparência por meio da própria inovação digital, cujas tecnologias como blockchain ou inteligência artificial podem assumir papel de fiscalização por meio de rastreamento de ativos e transações, como também a segurança para empresas, clubes, atletas e apostadores. Sobre a regulamentação, torna-se imprescindível uma revisão ampla do propósito e dos impactos das apostas. Além disso, devem-se garantir práticas justas e legais, incluindo todos os valores e agentes das transações financeiras.

A palavra “esperança” pode soar ingênua neste nada inocente século XXI. Mas se justifica ainda assim. Esperança porque tais escândalos podem trazer mudanças na forma como o futebol é administrado e regulamentado. Esperança em que eles tragam mais investimentos em desenvolvimento e formação. Esperança em que autoridades governamentais, investidores, dirigentes e líderes entendam que o futebol é potência de transformação econômica, social e cultural, portanto precisa evoluir. Grandes esperanças, por fim, porque é possível, sim, dirigir e canalizar tributos (por meio do Estado) e lucros (por meio da responsabilidade social da livre-iniciativa) para a inclusão de atletas e para a formação de novas lideranças no esporte.

Por fim, que este escândalo leve à compreensão de que, mesmo que apostas existam noutros esportes e de muitas outras formas, que elas sejam coadjuvantes, pois a razão de existir do futebol é e deve continuar sendo maior que um jogo de azar.

Texto por: Hamilton dos Santos, jornalista e doutor em filosofia pela USP, é diretor executivo da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é conselheira de empresas e sócia-CEO da Universidade do Futebol

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A PSIQUIATRIA ESPORTIVA EM JOGO: É CHEGADA A HORA DE SUA ENTRADA?

Acabo de ler a reportagem do icônico diretor de futebol, atualmente, do Fluminense. Angioni é um profissional muito importante para o futebol e traz contribuições relevantes. Num ambiente dominado pela desinformação, ignorância e preconceito, Angioni traz necessário olhar para a saúde mental e para psicologia. 

No entanto, preocupa-me o viés desse olhar. Um olhar, aparentemente, clínico. E o olhar clínico para as questões mentais, nesse momento, mais afasta a presença de psicólogos e psicólogas esportivas e psiquiatras nos clubes de futebol do que abre portas. E mais do que uma visão clínica, explicita-se uma abordagem medicamentosa. Diz Angioni em sua entrevista: “Futebol de clube já está na hora de ter psiquiatras, porque você vai precisar eventualmente dar remédio”. 

Tenho defendido, há anos, a presença da psicologia esportiva nos clubes. Não faltam motivos e argumentos que justifiquem sua presença nas comissões técnicas. Mas não defendo qualquer tipo de intervenção. A psicologia, assim como a psiquiatria, possui diferentes formas de olhar, e intervir, sobre determinado fenômeno. No caso da psicologia do esporte, pelo menos com base no que já há de estudos nesse campo de conhecimento, tenho notado que intervenções puramente clínicas mais afastam psicólogas desse espaço de intervenção do que as aproximam.

Entendo que a psicologia clinica e a psicologia esportiva não sejam excludentes. Pelo contrário, são complementares. No entanto, são papeis a serem desempenhados por profissionais diferentes, preferencialmente em espaços diferentes (um dentro e outro fora do clube). Como já afirmei em outras oportunidades, a psicologia do esporte continuará não assumindo o espaço, importância e reconhecimento que lhe cabe se continuarmos esperando que atletas se dirijam à sala da psicóloga esportiva no clube para marcar uma consulta a fim de compreender e superar problemas de depressão, pânico, alcoolismo ou outras manifestações de sofrimento psíquico.   

Se essa premissa vale para a psicologia do esporte, campo de conhecimento já em certo nível de desenvolvimento, imaginem para a psiquiatria. A psiquiatria esportiva, especialidade da psiquiatria que, por sua vez, é uma especialidade da medicina, ainda engatinha nesse sentido. Há muito para se desenvolver no âmbito das pesquisas e, principalmente, no âmbito das intervenções com o futebol. Começar dessa forma, ou seja, medicando atletas para que eles consigam lidar com a pressão extrema que recebem cotidianamente na sua prática profissional, me parece um erro. 

Comecemos ampliando e qualificando as pesquisas nessa área. Comecemos determinando os objetivos, metodologias e estratégias de intervenção no âmbito do futebol. Comecemos ampliando e qualificando os argumentos para a sua presença nas equipes médicas do futebol profissional. Comecemos apresentando aos atletas bons motivos para que eles compreendam e acreditem que a psiquiatria tem muito a contribuir com sua saúde mental e, consequentemente, com sua atividade profissional. 

Caso contrário, tendo a acreditar que a psiquiatria esportiva começará seu jogo no futebol profissional com grandes probabilidades de perdê-lo!

Texto por: Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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PREPARAÇÃO FÍSICA NO FUTEBOL: ENTRE MITO E REALIDADE

A preparação física no futebol não existe como parte da opinião pública pensa. Nem sempre quem corre mais, salta mais e tem mais força joga melhor. Em outros esportes, a maximização dos componentes físicos resulta em vitórias e recordes. No futebol, diferentemente, busca-se equilíbrio das qualidades físicas individuais para melhorar o rendimento coletivo dos times. 

Nesse cenário, a preparação física é um saber que interage com outros saberes (fisiológicos, biomecânicos, técnicos, psicológicos, táticos, nutricionais, sociais e culturais) para formar um time competitivo. A preparação física não “causa”, isoladamente, a intensidade e a velocidade de um time. Nos treinos de futebol, a preparação física não ocupa um momento isolado do resto (a pré-temporada é uma exceção a essa regra). Em outras palavras, a intensidade do time é determinada pela preparação específica e características dos jogadores – e não só pela preparação física. Conceitual e funcionalmente, o saber físico é apenas mais um componente do plano de treino, entendido na sua totalidade.

Da maneira como é imaginado pela opinião pública, o preparador físico parece um encantador, um mágico, que aplica uma fórmula que fará o time correr mais ou menos. Quando se diz “a equipe vai reforçar a preparação física” ou “a equipe está lenta, logo mal preparada fisicamente”, incorre-se nessa ideia simplista de que o preparador, por si só, tem o dom de acelerar um time ou, por incompetência, causar sua fadiga precoce. Mas as ações motrizes do jogo, e o estudo dessas ações, mostram algo diferente. O alto rendimento – o “time que corre” – depende de fatores que ultrapassam o controle do preparador físico: fatores como a inteligência e a qualidade dos jogadores, jogadores reservas com potenciais para a titularidade, a idade-média do time, as táticas aplicadas pelo treinador, o calendário, as viagens, o gramado, a relação com a torcida, e, principalmente, o plano de treino em geral. O preparo físico decorre do nível de exigências (intensidade, volume e densidade) nos treinos com bola. Não é o treino “físico” – as corridas em volta do campo, o aquecimento etc. –, mas os treinos específicos que determinam a força de jogo.

A preparação física possui, sim, responsabilidades particulares: avalia, por exemplo, a intensidade dos esforços e o tempo de recuperação em relação aos conteúdos de treinos e jogos. Também individualiza treinos de acordo com necessidades especiais de cada jogador. Mas, repito, ela não existe isolada do trabalho de preparação total, da qualidade do elenco, da sinergia coletiva, e assim por diante. O futebol, complexo e impreciso, é jogado e vivido com emoção – mas precisa ser pensado com cautela analítica, se não quisermos procurar “causas” simplistas para problemas mais profundos. Entender o futebol não é uma questão acadêmica abstrata – mas uma precondição para a melhora do rendimento e, ali adiante, para vitórias e títulos.

Texto por: Professor Elio Carravetta

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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“PENALIDADE MÁXIMA”: UM OLHAR PEDAGÓGICO

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Nestas últimas semanas, fomos surpreendidos (sic) com a divulgação dos resultados preliminares da “operação penalidade máxima”, iniciada pelo Ministério Público de Goiás, que investiga a manipulação de jogos e resultados a fim de favorecer determinados grupos de apostadores. Trata-se, de fato, da atuação de uma organização criminosa, com alguns dos seus líderes já detidos, que alicia e corrompe atletas profissionais de futebol para garantir a ocorrência de determinados eventos esportivos, por exemplo, pênaltis, cartões e expulsões e, com isso, gerar vultuosos ganhos financeiros decorrentes de apostas realizadas nas, cada vez mais presentes, casas de apostas esportivas, grande parte delas efetuadas em plataformas digitais e aplicativos.    

Como somos professores e não advogados, não nos aprofundaremos nas questões jurídicas que envolvem essa investigação. Nesse sentido, indicamos o texto escrito pelos advogados Andrés Perez e Stephanie Perez, publicado em 15 de maio no jornal Estadão[1].  Por outro lado, como somos professores e estudiosos do futebol, buscaremos tecer um olhar pedagógico sobre esse episódio. E, nesse exercício, refletiremos a respeito de algumas questões: O que significa, para o jogo, tirarem dele aquilo que possui de mais fascinante, ou seja, sua imprevisibilidade? Que tipo de formação nossos atletas recebem? Há, de fato, empenho dos clubes em formar os atletas integralmente? O que, pedagogicamente, podemos fazer para devolver, ao jogo, sua essência?     

A imprevisibilidade é, podemos dizer assim, o grande adversário daqueles que jogam. Se fosse possível prever todas as jogadas do adversário no xadrez, o jogo seria menos assustador e, por outro lado, menos notável e admirável. Se fosse possível prever o resultado do jogo, o ganho seria certo na casa de aposta. Se fosse plausível indicar a priori os lances e movimentos dos jogadores de defesa, seria mais fácil chegar ao gol e assim por diante. Ora, se o grande adversário é a imprevisibilidade, mais que derrotar o adversário, o objetivo deve ser derrotar o imprevisível. Mas como fazer isso se o imprevisível é, também, invisível? Se o imprevisível se revelasse, o jogo morreria, se transformaria em qualquer outra coisa, menos em jogo. Poderia ser uma tarefa, um trabalho, um encargo, um negócio… De acordo com as regras do jogo, implícitas ou explícitas, isso não pode ser feito. Mas… se burlarmos as regras, sim. Se burlarmos as regras, para os que não souberem disso, o jogo continuará sendo jogo, mas para os fraudadores ele deixará de ser jogo, uma vez que se saberá de antemão os detalhes da sua realização e, quem sabe, até seu resultado final. 

Pois foi o que fez a quadrilha que oferecia a apostadores privilegiados, antecipadamente, detalhes de certas partidas. Para isso, aliciava, corrompia e combinava com alguns jogadores quais ações deveriam realizar no decorrer do jogo. A intenção não era oferecer o resultado final, mas apenas algumas ocorrências como cartões amarelos ou vermelhos, penalidades máximas etc. Para tais apostadores, a partida de futebol deixaria de ser um jogo, uma vez que foi revelado o imprevisível, que deixou de sê-lo. Para esses apostadores não interessava jogar, arriscar, mas apenas ganhar. E não se tratava de ganhar o jogo de futebol, mas o jogo do mercado financeiro. 

Ainda que os envolvidos tenham que ser responsabilizados na esfera jurídica e criminal pelos seus atos, o que pode ser feito para que o futebol (e demais jogos) não perca(m) aquilo que de mais fascinante ele tem, ou seja, a incerteza do seu resultado? Certamente, entre outras medidas, investir numa educação de boa qualidade. E, com isso, queremos dizer investir numa educação integral, crítica e emancipatória. Que nossos jovens que trilham o caminho do futebol profissional aprendam mais que técnicas e táticas para defender e atacar.

Ao apostar numa educação integral dos nossos jogadores e atletas, corroboramos a afirmação do filósofo português Manoel Sérgio de que “para saber de futebol, é preciso saber mais do que futebol”. É fundamental que nossos atletas construam uma carreira e estejam preparados para lidar com o futebol enquanto negócio; que se eduquem para viver dentro e fora do futebol, ou seja, que saibam gerir sua vida pessoal e profissional. Afinal, mais uma vez citando Manoel Sérgio, “se eu não conhecer os homens e mulheres que driblam, fintam e chutam, eu nunca compreenderei as fintas, os chutes e as fintas”. 


[1] https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/manipulacao-de-jogos-e-resultados-no-futebol-brasileiro-entenda-quais-sancoes-poderao-ser-aplicadas-aos-atletas/

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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O FUTEBOL DE ABUSOS E CONIVÊNCIAS: O CASO CUCA EM JOGO.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Não nos surpreende o apoio do elenco do Corinthians (não sabemos se todo ele ou sua grande maioria) ao técnico Cuca momentos antes de sua demissão. Não é difícil supormos que o mesmo ocorreria em outros clubes, afinal, o futebol foi gestado e criado em um ambiente machista, permissivo, reacionário. Há avanços, claro, mas ainda tímidos. Casos como o de Cuca, treinador que finalizou sua passagem pelo Corinthians após 7 dias, e dois jogos, em que jovens são abusadas por jogadores, são frequentes e tão mais frequentes quanto mais olhamos para o passado; raramente eram relatados. E, quando relatados, não sensibilizavam a sociedade, ou ao menos parte dela, como já ocorre nos dias atuais. 

O apoio dado a Cuca pelos jogadores corintianos é mostra de como as mulheres são consideradas e tratadas no ambiente futebolístico, e fora dele também. Porém, surpreendente mesmo seria o apoio dos jogadores à vítima, uma criança de 13 anos, comprovadamente violentada por um grupo de jogadores, dentre eles, Cuca, à época, atleta do Grêmio. Houve investigação e posterior condenação dos jogadores por estuprarem a menina. De lá para cá passaram-se muitos anos e, se não resultou em prisão definitiva do técnico (ele e os demais envolvidos permaneceram 30 dias presos na Suíça e retornaram ao Brasil para responder o processo em liberdade), pelo modo como isso é tratado no Brasil, e pela sua não extradição à Suíça, o caso criou a necessidade de arrependimento e desculpas públicas, algo que não ocorreu; Apesar de condenado após investigação, em processo transcorrido na Suiça em 1987, Cuca nega que tenha praticado o crime. E ao se explicar, somente se contradisse em relação ao que foi averiguado e constatado na investigação. Não estamos aqui julgando o treinador, afinal, partimos do pressuposto de que ele já foi julgado e condenado a 15 meses de prisão.  Pelas leis suíças, seu crime prescreveu após 15 anos. 

Abusos sexuais não são novidade no ambiente futebolístico. Grande parte das últimas gerações de meninos cresceu em um ambiente assim, como meninos jogadores de bola, nos campinhos de terra, nas ruas e nos campos de várzea. Sobretudo em meados do século passado, a formação dos jogadores brasileiros não ocorria em equipes de base dos clubes, mas nesses espaços lúdicos, de muita brincadeira com bola, nos quais nós, que tínhamos no jogo de bola nossa principal brincadeira, criávamos à vontade e nos tornávamos, cada vez mais, habilidosos. Era comum, nestes espaços, alguns adultos organizarem os meninos habilidosos, desde cedo, em timinhos, que jogavam nos finais de semana. Muitos desses adultos eram pedófilos. Os meninos sabiam, muitos pais e mães sabiam e a comunidade também. Mas raramente ouvíamos alguém que se incomodasse com isso. Se o futebol era um ambiente rico para a vivência do lúdico, da criatividade, da liberdade, por outro lado, era cercado por pedófilos, que viam no futebol dos meninos uma excelente oportunidade de aliciar. 

Entre tantas coisas maravilhosas que vivenciamos e aprendemos no futebol, há também, infelizmente, e para nossa revolta, essa permissividade danosa em relação aos abusos sexuais, sobre meninos e meninas. 

Muitos estudos e investigações já foram realizadas a esse respeito. Dentre eles, vale destacar a ampla e qualificada investigação do jovem e talentoso jornalista Breiller Pires, que há muitos anos investiga casos de abuso sexual no futebol, e que em 2013 publicou na revista Placar um dossiê sobre abuso sexual no futebol. Conforme constatou em sua investigação, “…muitos jogadores de futebol consagrados já foram vítimas de abuso sexual”. E quantos não consagrados também não sofreram com isso? E quantos, que sequer se profissionalizaram, sofreram abusos a fim de buscar o sonho de tornar-se jogador profissional de futebol? 

Quanto ao desrespeito às mulheres, vivemos com nossos amigos, ou familiares, uma verdadeira escola de desrespeito, opressão e violência no ambiente futebolístico. Nem todos os amigos ou famílias eram, ou ainda são, assim, mas todos viviam nesse ambiente. O que se dizia sobre as mulheres era assustador, ainda mais do que nos tempos atuais. Talvez isso nos ajude a entender o porquê de somente agora, tantos anos após a condenação e após a passagem do treinador Cuca por diversos clubes, este episódio de estupro coletivo tenha voltado aos holofotes.    

Ainda que tenhamos alguns raros exemplos de posicionamentos e movimentos de atletas para dizer não à violência contra a mulher, ao racismo, à homofobia e outros abusos que produzem tanto sofrimento aos brasileiros e brasileiras, quantos outros jogadores e ex-jogadores uniram forças e vozes aos 33 atletas que, em 2018, endossaram a campanha do Sindicato de Atletas de São Paulo contra o abuso sexual no futebol? 

Ao ser contratado pelo Corinthians, clube reconhecido historicamente como aquele que sempre esteve à frente no combate às injustiças contra as minorias, os negros, as mulheres etc., que encampou na década de 1980 o movimento da Democracia Corinthiana reconhecido, até hoje, como o maior, e mais importante, movimento político e ideológico no âmbito do futebol, novamente esse caso de estupro coletivo realizado em uma menina de 13 anos de idade veio à tona. Os “passadores de pano” de plantão, em sua maioria conservadores, reacionários, abusadores ou coniventes com esse tipo de comportamento, logo tentaram minimizar a situação. “Ahhhhh… já faz tanto tempo!”. “Ele já treinou tantas equipes e só agora acham isso ruim?”. Antes tarde do que nunca, não é? Ainda bem que o destino de Cuca foi o Corinthians. Mas não o Corinthians dos dirigentes que o contrataram e sim o Corinthians da Gaviões da Fiel. O Corinthians “das minas”. Se iniciamos nosso texto afirmando que não nos surpreende a defesa do elenco corinthiano ao treinador condenado por estupro, um deles afirmando, inclusive, ter se sensibilizado com o choro do treinador – mas aparentemente não com a dor e trauma de uma menina de 13 que, conforme afirmado no processo, tentou o suicídio -, finalizamos dizendo que também não nos surpreende a pressão da sua enorme, apaixonada, crítica e politizada torcida, bem como das atletas do futebol feminino com manifestações firmes e posicionamento contundente que, culminaram na demissão do treinador Cuca. 

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani.

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

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QUANDO O NOVO INCOMODA

O novo incomoda. Sempre foi assim, de Paganini a Jesus Cristo, passando por Gandhi e Einstein. Mesmo no universo cotidiano, longe da constelação dos gênios, o novo incomoda. Buscamos o igual, o comum, o conhecido que não perturba. Tudo aquilo que nos é desconhecido gera ansiedade. Ao ter que lidar com o novo, é necessário sairmos da zona de conforto que o conhecido – aquilo a que já estamos acostumados, ambientados e para o qual já adquirimos estratégias de controle e enfrentamento – nos garante. O novo incomoda, pois irá impactar toda a estrutura prévia que cada sujeito possui e, consequentemente, exigirá que esse sujeito se reorganize.  

A crítica ao futebol, feita por torcedores, dirigentes e mídia, alimenta-se do igual, do comum. Sempre que surge uma novidade, ela é vista com desconfiança. Raramente dá-se um voto de confiança ao novo, até que ele prove, de modo convincente, que é eficiente. De sua parte, a mesmice conservadora não precisa provar nada, tem o aval da crítica, geralmente, extremamente conservadora. Dá trabalho entender, adaptar-se e reorganizar-se diante do novo.

O termo “dinizismo” não surgiu para designar uma boa nova, mas para depreciar. Foi usado largamente como ironia a algo que, certamente, não daria certo, uma espécie de capricho de um jovem treinador metido a besta. Onde já se viu querer fugir ao 4-4-2, ao 4-3-3 etc.? Onde já se viu ficar “namorando” a bola em vez de ocupar, estrategicamente, os espaços do campo? Onde já se viu dizer que, antes do futebol, vem o ser humano? Onde já se viu querer ensinar os jogadores a jogar futebol, não um futebol qualquer, mas aquele parecido com o que antigamente se jogava na rua? E foi assim que “dinizismo” virou a ironia da vez, apenas aguardando o fracasso de Fernando Diniz, a fruta que apodreceria antes de amadurecer. O audacioso treinador teve que amargar as pancadas que recebeu por sua atuação no Atlético Paranaense, São Paulo, Vasco e outros, mesmo sem ter tido o tempo suficiente e reforços de bons jogadores para mostrar que conhecimento, convicção, dedicação e trabalho duro funcionam, mas precisam de tempo para se consolidar. 

E não basta que tal disposição venha somente dos dirigentes, mídia e torcedores. Os jogadores, acostumados aos mesmos treinamentos, estilos de jogo, tratamento, discursos, visões de mundo, precisam, como dizemos no futebol, “comprar a ideia” do treinador. Precisam estar dispostos e se desorganizar para se reorganizarem novamente sob outra perspectiva. É como se tivessem que, já profissionais, reaprender a jogador futebol. O goleiro passa a ter, também, papel importante nas construções das jogadas; os zagueiros não devem mais temer o controle da bola “rifando-a” para onde estiverem virados, mas sim passá-la, conduzi-la e, por que não, arriscar-se ao ataque. Todos passam a ser criadores e articuladores, não mais somente o camisa 10. O centroavante, costumeiramente estático dentro da área, transforma-se num atacante móvel, dinâmico, que não só finaliza, mas também cria, passa, marca.         

O Fluminense, com seus diretores lúcidos, apostou novamente na ideia de Diniz (a primeira passagem dele pelo Fluminense durou cerca de oito meses), deu a ele tempo e bons reforços, e ele pôde, com o apoio e disposição dos atletas, mostrar os resultados do trabalho desenvolvido por ele e sua comissão técnica. Imediatamente ganhou uma multidão de apreciadores, “dinizistas” desde criancinhas. Entretanto, vale frisar que o sucesso atual do Fluminense terá a estabilidade de qualquer jogo, ou seja, pouquíssima. Quem lida com o jogo sabe que o imprevisível é a marca mais distintiva de cada evento. Por melhor que a equipe esteja, eventualmente, sofrerá derrotas e poderá ter sequências negativas. É quando veremos se o “dinizismo” se manterá como termo apreciativo ou depreciativo. 

O jogo não é um milagre, tampouco um evento que pode ser totalmente controlado. É um fenômeno lúdico interpretado por alguns animais e, especialmente, pelos seres humanos, que encontram, sobretudo no imprevisível, a oportunidade de viver em estado de graça. Por ser tão especial, é fugidio, instável, imprevisível, efêmero. Há que se desfrutar largamente dele enquanto acontece, porque o jogo nunca promete estabilidade. Diniz não é o único treinador talentoso no futebol brasileiro, tampouco o único a propor um novo jeito de olhar, compreender e praticar o futebol; há outros que acreditam em diferentes modos de jogar. A maioria não chega ao sucesso, ao reconhecimento. São destruídos antes que possam mostrar os frutos de seu trabalho. Mas Diniz é, de fato, um grande profissional e uma pessoa extraordinária. Não há segredo no que ele faz. Fernando Diniz trabalha muito, trabalha duro e se permite ser criativo, ser diferente, ser, acima de tudo, humano.

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani