Será que Deus joga dados? Esse é o título de um belíssimo livro de Ian Stewart que me fez e me faz muitas e muitas vezes refletir sobre futebol.
A cada novo nascer do Sol fico pensando nas maravilhas da natureza, tão bem encaixadas, que é possível tirar dela (a natureza) construtos que nos ajudam a explicar a complexidade do mundo através da complexidade de cada um dos seus detalhes, de cada um dos seus elementos (da lógica que explicita o funcionamento de um rio até a lógica que rege o vôo de um bando de pássaros em migração).
O mais interessante é notar que todos esses elementos (e qualquer outro) estão em constante interação, buscando ordem e organização, formando um grande conjunto de variáveis; um belo e complexo sistema (e isso quer dizer que qualquer variação, qualquer mudança em pequenos detalhes, em pequenas variáveis desse sistema podem desencadear grandes e amplificadas transformações em outros elementos que o compõe).
Em outras palavras, se decidirmos ficar cinco minutos a mais no banho ou deixar a torneira aberta enquanto cuidamos dos dentes, poderemos desencadear em alguma faixa temporal uma amplificada catástrofe como a falta de água. Isso se aplica aos recursos naturais, a sua vida em família, aos deveres do trabalho, aos desafios da faculdade, ao “eu te amo” que não foi dito, e não com menos filosofia ou poesia ao jogo de futebol.
Então vejamos.
Já discutimos o que significa uma “plataforma de jogo” (vide texto da semana passada – “Os esquemas táticos, as plataformas de jogo e a amplitude como princípio de ataque”). Já sabemos que são as dinâmicas e as estratégias elaboradas a partir dela que determinam a competência ofensiva e/ou defensiva de uma equipe, e que plataformas, estratégias e dinâmicas de jogo são elementos de um sistema: o sistema de jogo.
Para entendermos o que significa sistema de jogo, busquemos compreender primeiro o significado do conceito de “sistema”. Não da palavra “sistema”, mas da construção teórica que a envolve.
Toda vez que temos um conjunto de elementos que se relacionam e se ajustam formando um “todo organizado” podemos dizer que temos um sistema. Assim temos o sistema solar, o sistema econômico, o sistema operacional, o sistema nervoso e qualquer outro que seja possível lembrar.
No futebol, temos o “sistema de jogo”. Não se trata do impregnado conceito “futeboleirista” que o toma como sinônimo de “esquema tático”. Trata-se aqui de um elemento que descreve o jogo em sua totalidade, compreendendo toda sua complexidade.
Imaginemos o jogo de futebol como um grande número de equações que têm afinidades entre si e que se juntam formando grupos de afinidades. Assim como as equações de um mesmo grupo interagem entre si, os grupos também se relacionam. Então teremos grupos de equações relativas à organização defensiva, grupos de equações relativas à organização ofensiva, às transições do jogo; grupos relativos às dimensões do campo, ao tipo de gramado, ao estado nutricional, mental, físico, social da equipe e do atleta… Poderíamos descrever uma infinidade desses grupos, de tal forma que ao se ir mais a fundo, mais distante se vai ficando do jogo propriamente dito; e quanto mais distante se parece estar, mais perto do jogo pode-se chegar!
Qualquer variação em uma equação de qualquer um dos grupos pode gerar, com maior ou menor intensidade, reflexos em equações de outros grupos; o que numa visão total do sistema poderia alterar o resultado final.
Por mais didático que seja entender a existência de grupos de equações (sub-sistemas) dentro de um sistema, é mais do que importante compreender que todos os grupos e equações estão interligados, interagindo em todas as direções, harmonicamente, em conjunto.
É claro que o raio de ação do treinador de futebol, nos moldes que conhecemos, fica limitado ao grupo de equações referentes às variáveis técnicas e táticas do jogo (e, portanto, talvez isso que escrevo soe como um “monte de bla-bla-blás” dispensável). Mas em pleno século XXI, sabendo que cada vez mais são os detalhes que podem levar uma equipe de futebol à derrota ou à vitória, vislumbro outro tipo de treinador. Não mais aquele que compreenda as equações de um grupo do sistema, mas aquele capaz de visualizar o “sistema” em sua totalidade, em sua complexidade, em sua essência (e aí quero destacar que não é por acaso que alguns treinadores têm conseguido melhores resultados do que outros – e que tantos outros quando ganham não sabem exatamente o porquê, por isso não conseguem continuar ganhando).
Como disse dia desses um pesquisador profissional do futebol, esse é um esporte bom para pessoas “não tão competentes e nem tão bem preparadas” trabalhar, porque se faz um mau trabalho, tudo errado, e eis que surge um lance duvidoso, um pênalti no fim do jogo a favor da equipe, e aí pronto… Mas ele mesmo lembrou que uma hora a “casa cai”.
A reflexão sobre o conceito de sistema de jogo me faz lembrar um exemplo interessante. Na Copa do Mundo de Futebol de 2006 a seleção brasileira jogou contra a seleção francesa numa partida que mais uma vez fez apaixonados e especialistas divagarem semanas e mais semanas sobre uma derrota do Brasil para a França. Naquele jogo, por diversas vezes os franceses pressionaram a saída de bola da seleção brasileira. Pela TV fora mostrada a dificuldade dos jogadores brasileiros em sair jogando. A solução: o “chutão”.
Interessante que pelos campos do mundo, em diferentes línguas, algo muito comum de se escutar na beira dos gramados é a “proclama” do treinador ecoando: “faz quebrar (chutar), faz quebrar” (traduzindo: o treinador está pedindo para sua equipe pressionar invariavelmente os zagueiros ou goleiro adversário, para que eles dêem um “chutão”, se livrem da bola ?³ traduzindo a tradução: como não compreendemos dinâmicas para roubar a bola do adversário o mais próximo possível do seu gol – e ele, o adversário, não compreende dinâmicas para sair jogando – vamos forçar o chutão pra tentarmos recuperar a bola numa assídua disputa “aérea” no meio-campo).
Mais interessante é vermos os jogadores brasileiros “sofrendo” com isso. Mas como, jogadores selecionáveis, nascidos no “país do futebol”, podem ter tamanha dificuldade?
Não é obra do acaso, nem seleção natural (“afinal são zagueiros” – NÃO!). É só olharmos alguns jogos de competições de categorias de base. O sub-13, 15, 17 e as mesmas estratégias: chutão, chutão, chutão! E não só o chutão como forma de se livrar da bola. Podemos ver a todo tempo equipes e mais equipes fazendo do chutão a melhor ferramenta para se chegar à vitória (um jogador mais forte fisicamente chuta a bola para outro jogador forte fisicamente no ataque para que ele tente chegar ao gol – e os outros menos fortes, assistindo de dentro do campo a mais uma partida de futebol). Isso acontece no sub-13, ganha força no sub-15, e aí… Aí vai parar na Copa do Mundo de Futebol!
Surpreso fiquei ao presenciar uma partida entre jogadores em formação, entre uma equipe brasileira e uma equipe “árabe” que tinha uma estratégia bem “original” de jogo: entre provocações e divididas mais fortes, muitos “chutões” buscando um jogador de ataque. “Original”!? A c
omissão técnica árabe era brasileira (“eu sou brasileiro, com muito orgulho, muito amor e muito preocupado!”).
Esse é só um exemplo, das pequenas coisas que se amplificam e ganham proporções “gigantescas” dentro do futebol. É assim na formação de um atleta, é assim nas estratégias elaboradas a partir de uma plataforma, é assim numa jogada que desencadeia um gol.
Se Deus não joga dados como dissera Einstein, também não faz gols; nem explica vitórias e derrotas. Se não compreendermos o “sistema de jogo de futebol” é possível que muitos jogos sejam perdidos antes que Ele resolva dar alguma explicação.
Para interagir com o colunista: rodrigo@universidadedofutebol.com.br