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Os usos do futebol

Desde sempre a filosofia duvidou. A dúvida é o seu gesto instaurador. Por isso, com algumas exceções, nela tudo é anti-ordem e anti-poder. O Futebol, ao invés, procura sofregamente o apoio do Ter e do Poder e expande-se, desenvolve-se, com Ordem e Medida. Por outro lado, também o Ter e o Poder precisam do futebol para legitimar-se. De fato, as seleções nacionais de Futebol, as equipas mais representativas dos vários países representam interesses desportivos mas, sobre o mais, interesses midiáticos, interesses comerciais, interesses publicitários, interesses políticos. Os desempenhos das seleções e dos clubes encontram-se intimamente ligados aos desempenhos dos serventuários do grande capital. Chegou, portanto, a altura de questionar se o carácter eminentemente formativo do futebol (como desporto que é) não desaparece diante da lógica de outros interesses incapazes de assumir uma intervenção pedagógica global. É que o Ter e o Poder são declaradamente despóticos, ou seja, têm uma verdade indiscutível e o futebol, que os serve, transforma-se na expressão corporal dessa verdade.

O futebol concorre mesmo à interiorização, em cada dos seus agentes, dos vereditos imperiais do déspota. Não é por acaso que as práticas dopantes, nele, permanecem; não é por acaso que o alto rendimento é sempre acompanhado de produtos farmacêuticos, os mais sofisticados; não é por acaso que são, cada vez em maior número as doenças súbitas que atormentam os jogadores de futebol; não é por acaso que o desporto (e portanto o futebol) é uma atividade física ou, segundo alguns, um meio de educação física (e quanto mais físico o desporto for, mais acéfalo e acrítico será e mais servilmente representará a vontade do Ter e do Poder).

Por sua vez, o treinador, sempre que se refere aos jogadores que trabalham sob as suas ordens, repete, de forma exaustiva e massacrante: os meus jogadores. Como se, de fato, os jogadores fossem mesmo dele! Mas não é assim que pensa o déspota quando exclama: “meu povo”? O treinador, para ser um profissional exemplar, para a ideologia dominante, só tem de imitar o déspota. E assim como o Poder diz trabalhar para o povo, para mascarar a sua função constitutiva, a repressão – também os treinos, os estágios, as competições se resumem ao exercício de uma soberania astuciosa, que controla os atletas como quem comanda singelos títeres. Não são os agentes do futebol que fundam o futebol, mas o Ter e o Poder, com a sua libido dominandi, geradora de violência. De fato, a lei e a ordem, no futebol, nada têm a ver com a Justiça, mas com a delimitação do espaço onde se movimentam o senhor e o servo, dentro de uma competição insanável, que forma o devir histórico do futebol, de há cem anos a esta parte.

O pensamento único neoliberal (a ideologia dominante) é o que faz, no futebol e no mais: um mundo de riqueza, cercado de pobreza, por todos os lados, onde funcionam a liberdade, o livre comércio e o livre mercado, tão intimamente associados que delas surge, dominador, o capitalismo neoliberal. Que admira que, também no futebol, coexistam os ricos e os pobres, os senhores e os servos? O Real Madrid, o Barcelona, o Bayern de Munique, o Manchester United, o Chelsea, o Manchester City, a Inter, o Milan e poucos mais são os senhores; os demais são os servos. Aliás, este futebol é o que gera: senhores e servos. E produz assim uma certa imagem da essência da sociedade, onde os antagonismos, típicos do capitalismo, aparecem como causa de manutenção do status quo. O aumento galopante do desemprego, nos países desenvolvidos, está a empurrá-los à pobreza do Terceiro Mundo. Entretanto, o povo delira e aplaude o futebol promovido e organizado pelo mesmo neoliberalismo altamente competitivo que o leva à penúria e à ausência total de segurança social…

É um truismo afirmar que o capital capitaliza o futebol. De fato, o capital procura, acima de tudo, o lucro. O Cristiano Ronaldo não seria tão publicitado se as suas qualidades físicas (as outras pouco importam) não despontassem, na imprensa, no rádio e na televisão, de mãos dadas com determinados produtos… que é preciso vender! Em nenhum modelo invasor, ou inspirado de fora de um “ethos” livre e libertador, se descortina o escrupuloso respeito da dignidade das pessoas e da sua capacidade de, no desporto, serem sujeitos (ser sujeito é não sujeitar-se) e não objetos.

Ora, hoje, o futebol, preso nas mãos férreas de um capitalismo imoral, não é uma prática libertadora e construtiva, mas uma cilindragem opressora e destrutiva. De prática autocontrolada pelos “homens do futebol”, no seio do futebol, passou-se a uma prática heterocomandada longe e contra os “homens do futebol” que deixam de ser os agentes da sua profissão, para surgirem, na praça pública, como réus de crimes que não cometeram. De que podem acusar-se o Dunga, o Carlos Queirós, o Maradona e outros mais, treinadores vacilantes e de muito pouca eficácia, no Mundial-2010? Na ausência de liderança? Na canhestra leitura de jogo? Na incomunicabalidade treinador-jogadores? São ítens a sublinhar, designadamente pelos presidentes das respectivas federações, que escolhem e contratam os treinadores. Mas… pouco mais! Se é pacóvio apontar qualquer determinismo sociológico, nesta “floresta de enganos” que é o desporto (e portanto o futebol) também não nos é lícito julgar a competência de um profissional, como se na totalidade, que é uma equipa, fosse ele o único elemento a ter em conta.

O quarteto mais avançado da seleção argentina, no Mundial da África do Sul (Tevez, Messi, Higuain, Di Maria), tem admiráveis jogadores de valor intacto. Diante da seleção da Alemanha, nas quartas de final, pareciam simples principiantes, submissos pela força e a robustez dos teimosos lutadores que são Lahm, Schweinsteiger, Khedira e os demais das linhas recuadas e a velocidade e os primores técnicos dos jogadores da linha avançada que, quando disparavam a correr, bebendo o vento, quais Pégasos imparáveis, não havia argentino que os segurasse. Será o Maradona o único e o principal culpado, pela derrota? E será o Joachim Low a causa, excluindo outras, do jogo triunfal da Alemanha, no dia 3 de julho de 2010?

Entre informar e imbecilizar a distância é mínima e não se analisa o trabalho global de uma equipe desportiva senão dentro do todo que ela é e do todo onde ela se insere. Os prodigiosos progressos da genética e da biologia molecular permitem-nos conceber os laços indestrutíveis entre a física, a química e a biologia, dado que é pela organização, e não unicamente pela matéria, que a vida se distancia do mundo físico-químico. Por isso, diante do inêxito do futebol brasileiro, ou do português, no último Mundial, há que levantar as perguntas seguintes: as entidades que superintendem, no futebol brasileiro e no português prepararam-se, problematizando-se e reorganizando-se, para o Mundial da África do Sul? E sabem os Srs. Dunga e Queirós que todo o progresso, ao nível do conhecimento, é inseparável da consciência do erro? Onde erraram eles? O que mais me surpreende é, em plena consciência do fracasso, predominar a tendência conservadora, no futebol brasileiro e no português. Talvez por que o futebol se destina, principalmente, a satisfazer as exigências do mercado.

A questão é pertinente: pode encontrar-se num desporto absolutamente mercantilizado algum compromisso com algo mais do que um espetáculo lucrativo? É que não conheço um capitalismo eticamente viável. Ora, é à luz de um futebol (repito-me) totalmente mercantilizado que é possível compreender, hoje, os usos que dele se fazem. E termino antecipando que o Brasil será o campeão mundial de 2014 ! Por quê? Porque nascem no Brasil os melhores futebolistas do mundo, se os avaliarmos do ponto de vista técnico e da intuição. E, no Brasil também, há treinadores para fazerem o resto…

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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O legado da Copa africana

A África do Sul ficou para trás. E o que fica como exemplo da primeira Copa do Mundo em território africano, do Mundial com um campeão inédito, do torneio que pela primeira vez teve o time anfitrião fora da fase eliminatória?

Durante quase 40 dias em território africano, deu para perceber que o maior legado deste Mundial está muito longe de ser esportivo. Ainda há muitos pontos de interrogação sobre o futuro de pelo menos oito dos dez estádios que foram usados nesta Copa [Ellis Park, em Johanesburgo, e Moses Mabida, em Durban, talvez sejam os dois locais com maior chance de reutlização após o torneio], além do improvável crescimento do futebol em território sul-africano por conta do Mundial.

No final das contas, o maior benefício de termos um torneio da magnitude de uma Copa do Mundo na África do Sul foi mostrar às pessoas como é a África do Sul em seu cotidiano. A imagem de um país sub-desenvolvido, pobre, pouco civilizado e inseguro virou história. Pelo menos para aqueles que tiveram a chance de conhecer o país do Mundial.

É improvável achar que o sul-africano vai ficar mais próximo do futebol por conta da Copa. Talvez até haja uma pequena disposição para acompanhar a bola redonda no lugar da oval nos próximos anos. Mas a cabeça do europeu em relação ao país, certamente, mudou.

E aí está um dos maiores benefícios de se organizar um evento do tamanho de uma Copa do Mundo. É a chance de fazer com que as pessoas comuns tirem seus pré-conceitos sobre um país, um povo, etc. Foi assim na África do Sul. Durante os 40 dias em território sul-africano, foi possível conhecer um povo alegre, feliz, machucado por um triste passado, mas que mira um futuro melhor.

Hoje, o Brasil é muito menos “desconhecido” dos outros países. São poucos os que acham que Buenos Aires é nossa capital, muito menor é o contingente de pessoas que acredita que vivemos em cima de árvores.

Foi para acabar com esse pré-conceito que o povo sul-africano se uniu em torno da Copa. Negros, brancos, amarelos, azuis, cor-de-rosa. Todos eles compõem uma África do Sul unida, com problemas, mas preparada [a seu modo] para receber pessoas de todo o planeta.

O legado do primeiro Mundial no continente africano é a mudança na percepção da imagem de um país. Se tem algo que a África conseguiu fazer, foi acabar com qualquer preconceito sobre o seu país. E era exatamente esse o propósito sul-africano quando decidiu receber a Copa do Mundo, há cerca de 15 anos.

O Brasil precisa, urgentemente, entender qual o papel de Copa do Mundo e Jogos Olímpicos para formar uma percepção de imagem do país para o mundo. Melhor oportunidade, não há.

Para interagir com o autor: erich@universidadedofutebol.com.br