Arnaldo, o bagre cego, emagrecia a olhos vistos. Pairava na superfície do lago como a contar estrelas, que nunca viu. Oto, o morcego, já não aparecia para conversar comigo. Voava a esmo e deixava escapar até as mariposas mais lentas e suculentas.
– É paixão – disse-me Aurora numa madrugada de insônia. Eu não podia acreditar em tamanho disparate; Oto, o morcego mensageiro, ainda vá lá, voava por aí e volta e meia topava com lindas morceguinhas na flor da idade. Mas Arnaldo, como poderia estar apaixonado, sendo um bagre cego e confinado num lago escuro de uma caverna remota! Sua paixão por Ricardo Teixeira e Carlos Nuzman, que eu saiba, era de outro tipo.
– É paixão – insistiu Aurora, a coruja, numa outra madrugada, esta, linda, cheia de estrelas. – É melhor você averiguar.
Foi o que fiz. Tirei Arnaldo de sua flutuação letárgica com um cutucão e perguntei o que se passava. No fundo, o bagre é um tímido. Foi um custo fazê-lo falar, mas falou.
– Ah, meu amigo! Agora, quando me alcança a idade mais que madura, na fronteira da meia-idade, eis que meu coração se inquieta e bate forte, causando-me profundo desassossego – ele disse.
– Mas Arnaldo, o que acontece? Muito estranho. Você sequer vibrou com a convocação da nova seleção brasileira. Não ligou para o pronunciamento do presidente da CBF. Por quem bate, então, e de maneira descompassada, esse seu coração de peixe?
E o bagre me contou o inacreditável. Havia uma jovem bagre morando no lago. Como foi parar lá ele não sabia, e nem importava. Arnaldo descreveu-a como se a enxergasse. Jovem, excessivamente jovem e linda, uma ninfeta. Seu corpo ágil reluzia submerso. Suas barbatanas eram quase douradas e sua cabeça fina e delicada. Meu amigo bagre passava horas admirando suas evoluções e depois subia à superfície do lago e deixava-se flutuar enquanto, em sua cabeça de bagre, imaginava a ninfeta entre suas barbatanas, o que lhe causava profundas crises morais.
Não, pensava ele, ela é jovem demais para mim, eu não tenho o direito de tê-la. E eu dizia-lhe que sim, que tinha, e que a diferença de idade não importava, o que importava era o amor. Difícil era eu acreditar na existência de uma jovem bagre naquele lago. Como não a vira?
Quanto a Oto, o caso era parecido, mas o morcego, apesar das muitas cabeçadas nos estalactites, vibrava; a morceguinha correspondia aos seus sentimentos e o morcego já pensava constituir família. Convidou-me para padrinho!
O que é o amor! Creio que nada mais tiraria Arnaldo de seu entusiasmo pelos projetos do ídolo e guia espiritual para a Copa 2014. Ricardo Teixeira falou ao lado de Mano Menezes e o bagre sequer percebeu, todo sensações pela ninfeta bagre.
O morcego, de sua parte, soube que uma nova seleção brasileira era montada pela velha CBF, mas o quiróptero nem ligou, sua cabeça estava longe. Em quinze dias anunciava o noivado.
Comentei o caso com Aurora.
– Eu não disse? – ela disse – Os sintomas da paixão são evidentes!
E a coruja me contou que também foi assim com ela, quando conheceu seu marido, aquele que morreu vítima de um tirombaço, no exato instante em que pousou na quina do travessão, lá onde, dizem os locutores de futebol, mora a coruja. E seguimos madrugada adentro, Aurora lembrando histórias de jogadores prisioneiros da paixão, como tantos de nós, ela que acompanhou a carreira de muitos futebolistas ao longo dos anos em que morou em buracos à beira dos gramados brasileiros. Histórias de craques perdidos no turbilhão de paixões, sem saber que rumo tomar, mas confiando no poder do dinheiro, nos carros de luxo, quem sabe nas lindas mulheres que podem contratar, nas amizades com traficantes e outros bandidos, mas nada, nada disso os livrava da enxurrada avassaladora produzida pela paixão mal vivida, mal compreendida. Lembrou-me uma música do Paulinho da Viola, aquela que diz, “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”, pois, apaixonados, somos passivos, e não será o salário milionário, as cem mulheres contratadas ou os carrões na garagem que nos guiarão a um porto seguro. Os craques da bola não são craques da paixão e raramente sabem conduzi-la ao amor perene, ao amor que redime e salva, mesmo que não seja para sempre.
Julgam que o dinheiro poderá conduzir a bom termo a aventura tempestuosa dos sentimentos indomáveis, mas talvez se percam exatamente aí. Querem uma mulher, mas contratam cem delas, sonham com um carro e enchem a garagem deles, ouvem falar de grandes vinhos, mas não aprendem a beber.
Dias depois, voltando de um passeio pelos arredores, surpreendi-me com Arnaldo absorvido, como tantas vezes o vi, pela voz que vinha da TV. Era seu ídolo, Ricardo Teixeira, que se pronunciava sobre a Copa 2014. O Morumbi, dizia ele, estava descartado, não cumprira as exigências da Fifa.
– Certíssimo – disse-me Arnaldo. – Não faltaram avisos. O São Paulo teve diversas chances e não aproveitou. A CBF não pode esperar indefinidamente pelo Tricolor. A cidade de São Paulo precisa construir um estádio à altura da importância do evento.
– E a jovem moradora do lago? – perguntei-lhe.
– Quem? Ah, aquela história que lhe contei. Sabe meu amigo, voltou-me a razão, foi-se a paixão. Aquilo foi fruto de uma fraqueza, um capricho da imaginação. Algo que pretendo esquecer, que me causa vergonha só de pensar.
Pobre Arnaldo. Terminaria os dias como tantos outros. Não teria sua Dulcinéia, e nem se permitiria tê-la em seus devaneios.
Nesse instante Oto passou voando desesperado à caça de uma suculenta mariposa.
– E então Oto, quando teremos o casório?
– Casório? Você está louco – falou, enquanto mastigava o pobre inseto.
Soube, por outros morceguinhos, que a morceguinha que se dizia apaixonada por Oto bateu asas e voou. Fugiu com outro, segundo ela, mais sério e responsável, um bom provedor.
Voltamos à velha rotina, eu com minhas conversas madrugada adentro com Aurora, Oto entusiasmado, ora por uma coisa, ora por outra, Arnaldo curvando-se em reverências aos seus ídolos de sempre, os do COB, os da CBF ou quaisquer outros que representem uma autoridade constituída. Melhor assim, prefiro a rotina. Na tela da TV o noticiário policial falava dos últimos casos envolvendo jogadores de futebol.
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*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.