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O efeito sanfona

Acompanhando o final de semana de acessos para as séries “B” e “C” de alguns clubes, torno a refletir sobre seus respectivos projetos. Conversando com alguns amigos, classificamos muitas dessas conquistas como o “EFEITO SANFONA DO FUTEBOL BRASILEIRO”. Sei que já tratei um pouco desse assunto, quando discutimos sobre o rebaixamento de clubes com alguma expressão no futebol.

Mas o tema continua pertinente, uma vez que muitas destas entidades acabam por dar um passo maior que suas pernas, não quebrando um paradigma de administração moderna em clubes de futebol. As principais premissas dizem respeito ao:

1. Amadorismo: é impressionante como muitos clubes insistem em uma gestão amadora, há anos, negligenciando completamente o profissionalismo e as informações que palpitam sobre qualquer entidade neste mundo globalizado. E profissionalismo não é simplesmente se dedicar de corpo e alma ao clube de futebol. É preciso muito mais que isso. É preciso conhecimento. É preciso ter recursos humanos capacitados e capacitar as pessoas que estão lá dentro, contando com gente com expertise na administração do esporte e na área técnica da modalidade.

2. Diretor precisa colocar dinheiro: há uma velha ideia no mundo do futebol de que diretor precisa ser um megaempresário, rico e colocar dinheiro no clube. Pura conversa. Diretor precisa ser bem resolvido financeiramente e precisa ter o discernimento de contratar profissionais de qualidade que possam administrar o clube, de acordo com um orçamento e um planejamento previamente definido. Se esses profissionais não cumprirem com suas metas e obrigações, é hora de trocar de comando e de pessoas. Da mesma forma que se faz em qualquer empresa do ambiente corporativo.

3. Estrutura: uma estrutura minimamente adequada para as necessidades de treinamento da equipe são fundamentais para o alcance de resultados dentro de campo. A negligência sobre tal premissa custa caríssimo em um momento decisivo, de qualquer partida de futebol.

4. Equipe Multidisciplinar: essa conversa é antiga e completamente ignorada pela grande maioria dos clubes. Ou melhor, pela grande maioria dos clubes que entram no chamado efeito sanfona, de subir e descer de divisão ano a ano. Ter uma equipe de trabalho multidisciplinar é o eixo de suporte para que, em momentos decisivos, os jogadores tenham tranquilidade para
decidir.

O trabalho de um psicólogo, por exemplo, é fundamental para que os atletas suportem a pressão por resultados. O acompanhamento de um nutricionista serve para equilibrar a alimentação com a carga de treinamento diária de um atleta, repondo a energia gasta ao longo dos trabalhos. Essa equipe multidisciplinar engloba ainda a figura de um Podólogo (isso mesmo, um especialista que cuide da saúde dos pés dos jogadores); um Dentista (há uma relação muito próxima entre a existência de lesões musculares e a existência de foco dentário); um Fisiologista (que acompanhe diariamente o treino e possa dar suporte ao preparador físico); e outras tantas como um Pedagogo do Treino, uma Equipe de Observadores Técnicos; um Assistente Social, um Coordenador Técnico e daí por diante.

5. Planejamento: o que se quer subindo de divisão? Se o clube não sabe responder a tal pergunta, qualquer resultado serve. É preciso possuir uma visão de médio e longo prazo para nortear todas as ações a serem realizadas na dinâmica do clube nas divisões superiores do futebol nacional, acompanhando o seu nivelamento técnico.

6. Formação de atletas: não me lembro de clubes que tenham conquistado resultados expressivos em campo com o futebol profissional nos últimos anos que não tenha tido um projeto de investimento maciço nas categorias de base. Atletas jovens, com objetivos de crescimento na carreira e com identidade com o clube, mesclado com jogadores mais experientes, tem sido a melhor receita para as vitórias no médio-longo prazo.

7. Ajuda: nenhum clube precisa da ajuda de ninguém. Eles precisam de investimento. O futebol é um motor de negócio importante e não uma entidade filantrópica. Trata-se de uma relação de troca, em que todos devem sair ganhando de alguma maneira. Quebrar alguns desses paradigmas (e outros que não foram lembrados ao longo do texto) pode ser a chave para que as equipes consigam resultados sustentáveis ao longo do tempo, criando uma cultura mais rígida e criteriosa na administração de alguns clubes do nosso futebol.

Para interagir com o autor: geraldo@universidadedofutebol.com.br  

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Argentina: lei que obriga a tecnologia no futebol

Nesta segunda feira, tomaram eco na Argentina os dizeres da deputada Silvia Vázquez sobre o interesse de apresentar um projeto de lei que determine o uso da tecnologia no futebol.

Preocupada com os recentes gols mal assinalados no campeonato argentino, a deputada defende que a utilização dos “olhos de falcão”, câmera auxiliar que seria consultada pela arbitragem, ajudaria a tornar o futebol mais transparente. Mas não só nesse aspecto a deputada argentina se fundamenta para defender seu projeto. Ela aponta que o uso de tal recurso ajudaria a dirimir as dúvidas sobre a possível má fé que se levanta em formas de especulação sobre alguns árbitros e, consequentemente, contribuiria para a diminuição da violência no futebol, uma vez que ela acredita que muitos atos hostis têm origem na indignação de atletas e torcedores a respeito dos erros dos árbitros

“Se trata de establecer el impacto que algunos arbitrajes tienen respecto de la violencia. Pero hemos visto que no hay sectores que empujen este cambio, porque incluso lo envié a la AFA y no tuve respuesta”*

“El error humano no es el que genera la indignación, sino la acción dolosa del mismo, del que siempre se sospecha”.*

Difícil falar se isso será levado a diante ou não. Mas vale a reflexão.

Muito provavelmente, como a própria deputada já percebeu, os órgãos que gerem o futebol vão virar as costas para esse fato. Porém, se o projeto ganhar corpo e for de fato implementado teremos ai um grande marco político-esportivo.

A Fifa, que não aceita de modo nenhum interferência em suas decisões, vai ser capaz de frear esse movimento? Como de praxe, deve ameaçar o país de eliminação de competições internacionais e essas coisas que sempre utiliza para colocar medo naqueles que ousam quebrar seu poder. Porém, será que consegue fazer frear esse movimento com uma seleção de renome como a seleção argentina?

E há outro fator que devemos levantar, Por mais que exista essa rivalidade entre brasileiros e argentinos, temos que “tirar o chapéu” para o povo de nosso país vizinho quando se trata de reivindicações e postura firme frente a qualquer situação (o que para muitos piadistas brasileiros é tratado como arrogância), uma postura de enfrentamento sem receio das consequências que serão tomadas.

Não sei o que deste projeto vai realmente acontecer, mas imagino que caso a Fifa não mude sua postura e aceite a tecnologia no futebol, e se a deputada Silvia Vázquez conseguir implementar esse projeto, a briga vem pesada e forte.

Minha opinião: não acho que o parlamento de um país necessite intervir desta maneira no jogo, porém, na medida em que as injustiças e erros humanos, que podem sem muito alarde diminuir com o advento da tecnologia, são influenciadores e ajudam a gerar violência e dúvidas sobre a idoneidade do jogo, creio que o problema passa a ser maior e vá além das quatro linhas

E você, o que acha?

Para interagir com o autor: fantato@universidadedofutebol.com.br

* http://www.infobae.com/futbol/542263-100902-0-Por-ley-quieren-que-se-use-tecnologia-el-futbol-argentino

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Meus arquivos sobre José Mourinho

Na última semana, resgatei de meus arquivos uma entrevista de José Mourinho ainda no FC Porto.

Neste sábado, trago uma dada ao “Expresso”, já na época de Chelsea. Ela está na íntegra e no “português de Portugal”, digamos assim.

Entrevista de José Mourinho ao EXPRESSO

Publicado em 18 de dezembro de 2006

Pela primeira vez não vai à frente, mas não ficou mais humilde. “Não há dúvidas sobre a minha competência”. Terá a Inglaterra mudado alguma coisa em Mourinho ou foi só Mourinho que mudou a Inglaterra?

Foi ele que escolheu o campo. Em cima da hora, preferiu jogar em casa. Não a grande moradia fora da cidade que já mostrou aos portugueses nos ecrãs da SIC, mas a casa de Belgravia, bairro muito «posh» do coração de Londres, a pouca distância do rio Tamisa e do estádio do Chelsea. É num beco tranquilo que vive com Tami (Matilde) e os dois filhos, Tita (Matilde) e Zuca (José). Assim podem ir às compras e ao cinema a pé, ao contrário do que acontece em Cobham, onde preferem estar ao fim-de-semana.

Dada a antecipação da entrevista (marcada para o dia seguinte), os jornalistas do Expresso acabaram por jantar na sala de José Mourinho. Carne estufada com cenoura e arroz, a que se seguiu um gelado de baunilha servido por uma simpática empregada brasileira. Na copa, o treinador do Chelsea assistia a uma transmissão da Sport TV em português. Depois, passou para o sofá.

Está em segundo lugar este ano, mas fala aos jornais como se fosse em primeiro. Não o assusta não ir à frente desta vez?

É uma experiência nova para mim. Nas outras duas épocas começámos à frente muito cedo. Já nas duas épocas anteriores, em Portugal, foi a mesma coisa. Eu sempre disse – e não mudo o discurso agora que sou o perseguidor – que é melhor ir à frente. Quem vai à frente só tem de pensar nele próprio. Quem vem atrás tem de ter alguma preocupação para que aquele que vá à frente tenha os seus percalços.

Como acha que vai reagir se perder o campeonato?

Anormalidade é eu ter ganho quatro campeonatos seguidos. Não é normal um clube fazê-lo, e muito menos um treinador. Se eu perder um campeonato, o quinto ou o sétimo, seja ele qual for, encaro-o com naturalidade. O que eu procuro fazer – para não me culpar a mim próprio quando isso acontecer – é tentar que os níveis de ambição não diminuam porque ganhei três ou quatro campeonatos. Gostava que acontecesse porque o adversário foi melhor, não porque não fui tão competente, tão determinado, tão líder como costumo ser. Mas estou tão convencido agora como estava há três ou quatro meses de que vamos ganhar o quinto campeonato.

O Chelsea tem mais adeptos hoje do que tinha há dois anos e meio, antes de ter chegado?

Tem.

(.)

Vê o futebol da mesma forma que via antes de vir para Londres?

Uma equipa campeã em Inglaterra não é campeã em Espanha, e o campeão em Espanha não o é em Inglaterra. São coisas completamente diferentes. Temos de ser flexíveis e nos adaptar às características do futebol onde estamos. E Inglaterra tem mudado. Houve grandes treinadores que chegaram, antes de mim, e eu também tenho alguma responsabilidade na mudança de qualidade do jogo. O futebol inglês deixou de ser tão directo e tradicional como era.

Mudou, portanto, depois da sua vinda.

Houve outros treinadores que já tinham tido uma influência positiva. Por exemplo, o Wenger. É óbvio que não somos os melhores amigos, mas respeito o trabalho que ele fez e tenho de reconhecer que é um grande treinador. Começou a fazer um bom trabalho mesmo antes de eu chegar.

(.)

Há dois anos disse em entrevista ao Expresso que se considerava a grande cabeça do futebol não só em Portugal como na Europa. Continua a achar-se o melhor dos treinadores?

São troféus. Ganhei os dois últimos anos mas estou convencido que este ano não voltarei a ganhar. Não é porque seja melhor ou pior do que era, mas o futebol é mesmo assim. Nos últimos anos não ganhei competições europeias. O troféu vai e vem. É como com os jogadores e a Bola de Ouro. Umas vezes vai para o Zidane, outras vezes vai para o Figo. Agora, é óbvio que estou num grupo de elite onde há seis, sete ou oito treinadores. Treinamos os melhores clubes, estamos nas melhores competições, conseguimos os melhores resultados, ano após ano.

Mas o que é o torna, a seu ver, o Special One?

Eu vim quase directamente do anonimato. Quando eu treinava o Leiria ou na minha primeira época no Porto, era praticamente um desconhecido. Passei do anonimato para esse grupo restrito de elite. O que é que nos leva para lá? Os títulos. O que é que nos mantém lá? Os títulos. Não há volta a dar: o futebol é ganhar. Special One? No futebol inglês isso faz sentido talvez pela ruptura com o tradicionalismo, por ser uma personalidade diferente, que arriscou muito na primeira época, na primeira abordagem. Nunca nenhum treinador tinha sido campeão ao chegar ao futebol inglês. Sempre foi considerado algo de muito especial, de difícil adaptação e domínio.

Não acha que tem arriscado demasiado às vezes? Houve aquela acusação ao treinador do Barcelona, Rijkaard, de que ele tinha ido ao balneário do árbitro.

Não arrisquei nada. Fiz aquilo que sempre faço, que é acreditar nos meus e naquilo que os meus me dizem de uma forma cega e objectiva. E se um adjunto me diz «foi assim, eu vi», não é nenhum Rijkaard deste mundo que me vai dizer o contrário. Simplesmente pus-me ao lado de um colaborador, como me porei sempre, sem olhar às consequências. Não é o exemplo perfeito.

Esse episódio abalou a sua imagem.

Um dos meus problemas é exactamente não me preocupar com a minha imagem. É uma das minhas características, que faz com que eu seja mais amado por uns e mais odiado por outros. É mais importante a minha equipa e os objectivos que perseguimos. São princípios dos quais não abdico.

Não se arrepende?

Não me arrependo. Exactamente porque o princípio é inerente à minha personalidade.

E nunca pediu desculpa?

Pedir desculpa por uma convicção ou uma característica de personalidade, não sou capaz de o fazer. Sempre considerei que houve uma desigualdade brutal (no caso Rijkaard) na forma como as coisas foram analisadas e conduzidas. Uns foram de imediato considerados os donos da verdade e os outros foram considerados os donos da mentira. E quando as coisas vão por esse caminho, não vale a pena haver mais discussão. É um episódio que faz parte do passado. Uma das vantagens de ter atingido um determinado estatuto é que podemos chegar a um momento e dizer: pensem o que pensarem de mim, a minha qualidade é evidente. Não há dúvidas sobre a minha competência. Estou-me nas tintas para o que pensam e para o que dizem.

(.)

Tornou-se amigo de Roman Abramovich ou mantêm uma relação meramente de patrão-funcionário?

A dimensão da palavra “amigo” é complexa. O que posso dizer é que gosto dele. Tenho uma relação que ultrapassa a ligação patrão/treinador. É uma relação aberta, frontal, muito objectiva e pragmática. Ele sabe o que é que eu quero, eu sei o que é que ele quer. Os meus problemas são os problemas dele, os meus objectivos são os objectivos dele.

Ele segue de perto a vida do clube?

Tem a sua vida, mas raramente perde um jogo. Quando as suas semanas permitem que esteja em Londres, também vai ao centro de estágio. Mas, ao contratar-me e ao contratar o Peter Kenyon e outros profissionais importantes, é exactamente com o objectivo de ter os
melhores e delegar funções e responsabilidades e de não se preocupar muito.

(.)

O que é que o distingue do Pinto da Costa?

São completamente diferentes. A vida profissional do senhor Pinto da Costa, pelo menos no meu tempo, era o Futebol Clube do Porto. Vivia 24 horas para o clube. O Abramovich é uma pessoa com uma vida para além do futebol.

Prefere alguém como Abramovich, que mantém uma maior distância?

Nós temos é de nos adaptar em função daquilo que é a liderança do clube. Com o tipo de relacionamento que há com um presidente do dia-a-dia, não há necessidade de reuniões periódicas, organizadas, documentadas. Senti-me bem no Porto e sinto-me bem como funciono agora.

Costuma ler o que escrevem sobre si?

Não.

Ninguém lhe faz um resumo?

Há um assessor de imprensa no clube que está comigo todos os dias e que me faz um briefing. Não é um assessor pessoal que vem dizer: «Escreveram este artigo sobre ti». O que me preocupa são as notícias em redor da minha equipa, para eu poder liderar melhor.

(.)

Os fins justificam sempre os meios?

Não. Em absoluto. A maior prova disso é que na minha vida há prioridades. E as minhas prioridades não são o futebol. Há uma coisa que me irrita terminantemente: a calúnia. Por exemplo, em Portugal eu ia a Fátima muitas vezes. E comentava-se: lá vai ele a Fátima porque é antes de um grande jogo.

Isso é uma calúnia?

Então não é? Eu vou a Fátima pedir para ganhar um jogo? Eu ia e vou a Fátima porque gosto.

Fátima não merece essa desconsideração, é isso?

Para mim a única coisa que me preocupa no mundo, de facto, são os meus. Quero lá saber do futebol para alguma coisa. Agora eu ia a Fátima pedir para ganhar um jogo?. A minha vida não é o futebol.

Mas é católico.

Sou católico e sou crente.

Nunca pediu a Deus para ganhar um jogo?

Já pedi. Mas a minha prioridade de vida não é o futebol.

Mas dentro do futebol e voltando aos fins que justificam os meios: prefere perder um jogo justamente e ser correcto ou ganhar mesmo que tenha de torcer um pouco as coisas?

Sou um adepto da correcção. O que eu não gosto é de perder pela incorrecção. E também não gosto de ganhar por incorrecção. Se me disser: vais ganhar no último minuto com um golo marcado com a mão, eu não quero. Mas também não quero perder assim. Os fins não justificam os meios. Agora, enquanto líder de um grupo, vou dar-lhe um exemplo concreto: quando faço as minhas escolhas, faço-o a pensar na melhor maneira de atingir um resultado. Magoa-me, no final de uma época, dizer a um jogador «não te quero cá, vais-te embora». Mas tenho de o fazer. Pagam-me para isso.

E transmite essa emoção aos jogadores?

Depende do jogador.

Adapta-se aos temperamentos?

Sim, adapto-me. Sou totalmente contra o velho chavão do futebol de que todos devem ser tratados da mesma maneira. Não devem. Cada um deve ser tratado de uma maneira muito específica.

(.)

Neste momento é adversário directíssimo de Carlos Queiroz. Dão-se bem?

Damo-nos bem mas só falamos quando jogamos um contra o outro. Antes e depois do jogo, encontramo-nos.

(.)

Tem a sua equipa de sonho?

A equipa de sonho não existe. Há jogadores que jogam noutras equipas e que são intocáveis. Os grandes clubes não vendem os seus melhores jogadores. Mas tenho um plantel muito bom, com pequeninas lacunas, como todos têm. O grande segredo é fazer com que o todo seja melhor do que a soma das partes. Aí é quando a equipa está concluída.

Está contente com Hilário?

É uma situação muito específica: ser suplente do melhor guarda-redes do mundo. Se tudo corre bem e não há lesões, os guarda-redes suplentes são capazes de passar uma época inteira sem jogar. O que aconteceu com o nosso abriu as portas ao Hilário e eu não podia estar mais contente. Ele tem contrato por mais um ano e meio e penso que a tendência natural das coisas é renová-lo por mais tempo ainda.

Sente-se muito popular?

Sinto-me demasiado popular em Londres.

O jornal A Bola avaliou o número de vezes que tem saído na imprensa inglesa e concluiu que está tecnicamente empatado com Tony Blair. Tem ideia dessa dimensão?

Tenho ideia de que o que mais queria para a minha vida, quando eu saísse do meu trabalho e chegasse à rua, era ser uma pessoa igual às outras – e não sou.

(.)

Já conhece bem Londres?

Conheço. Moro no centro da cidade.

Faz vida de bairro?

Faço. A escola dos miúdos é aqui perto.

Consegue ir às compras?

Sim, sendo incomodado. É evidente que tentamos ter o nosso espaço. Temos um local fora de Londres onde vamos de fim-de-semana e onde estamos mais tranquilos. Mas não posso abdicar de ir ao cinema ou de ir buscar os meus filhos à escola e de vir a brincar com eles na rua, de trotinete ou de «skate».

Vai buscá-los a pé?

Quando o tempo o permite, vou.

E jantares românticos com a mulher?

Consigo tê-los, mas sou capaz de estar com o garfo na boca ou a meio de uma conversa importante que queremos ter a dois e de repente não é a dois – é a três. Alguém interrompe e pede para tirar uma fotografia, para o filho ou para o neto. A minha mulher, como educadora dos nossos filhos, tem um trabalho árduo, que é prepará-los para a vida que têm. A culpa é minha – devido à dimensão que eu atingi na minha profissão – mas é a vida que temos.

Os seus filhos estão a gostar do ambiente e da escola?

Eles gostam de Londres.

Já têm muitos amigos ingleses?

Sim. E já falam fluentemente inglês. Ela, além de falar, escreve. É completamente bilingue. Tem dez anos e está no quinto ano. Ele está na primeira classe.

A sua mulher deve estar feliz por lhes poder proporcionar uma educação melhor do que aquela poderiam ter em Portugal.

Não digo que a formação seja melhor. A minha mulher era uma apaixonada pelo plano de vida que nós tínhamos no Porto. Ela adorou viver lá. E os miúdos também. A escola onde eles andavam, o colégio Luso-inglês, era absolutamente fantástica. Serviu-lhes como uma base muito importante para virem para cá. A adaptação foi fácil, arranjar amigos também. Eles sentem-se bem. Estão felizes.

No início, quando veio para Londres, a sua vida social circulava muito à volta dos seus técnicos adjuntos portugueses.

Com os meus adjuntos estou cada vez menos. Eles moram todos praticamente juntos, longe de mim. Já têm as suas famílias. Estão muito mais independentes e perfeitamente adaptados. Estou contente com isso. Nós continuamos, obviamente, a ter a mesma boa relação que tínhamos com eles, mas vivemos cá do outro lado da cidade e os miúdos fazem amigos na escola e isso é muito importante. Amanhã à tarde tenho um jogo marcado – quatro contra quatro.

Que jogo é esse?

Eu fico numa baliza, o segurança dos meus filhos noutra baliza, e jogam o meu filho e mais cinco amigos que vêm da escola de propósito. Sexta-feira à tarde é o dia de jogarmos.

E jogam onde?

Aqui na rua.

Acha necessário os seus filhos andarem com segurança privada?

Ach
amos que sim. Fomos aconselhados a isso não só cá como também em Portugal. Não gostamos que seja uma coisa muito visível e palpável, mas dá-nos tranquilidade.

E eles sentem-se confortáveis?

Sim, porque não é uma coisa muito presente. Sabemos o que está a ser feito, mas não com muita proximidade.

(.)

Tem vizinhos famosos. Dá-se com eles?

Não me dou muito.

Eles não se metem consigo?

Não. Para mim há duas classes de famosos: os que são porque têm mérito e os que pagam para ser. Normalmente, os que têm mérito são uns gajos muito simples, com quem se pode jantar e conversar. Não têm vaidade absolutamente nenhuma. Estive várias vezes com o Brian Adams, que é uma superestrela, e parece que estava a jantar com um tipo qualquer. Encontro-me com o Robin Williams e com o pai dele no hotel em que fazemos estágios e estamos ali a conversar como se ele fosse um tipo absolutamente normal. Se transportarmos isso para o lado português acaba por ser a mesma coisa. No outro dia eu e a minha mulher estivemos a jantar com a Mariza, o Rui Veloso, o Carlos do Carmo, o João Gil. Não os conhecia, foi a primeira vez que estive com eles.

Convidaram-no para jantar?

Sim. São uns tipos porreiros e simpáticos. Ao fim de meia hora, dá para sentir uma empatia grande. Mas a vida, normalmente, afasta-me um bocado disso.

E não o desafiam para ir à televisão inglesa?

Não vou. Têm-me convidado, mas não vou.

Nem a debates vai?

Não quero ir. Nunca fui.

Os outros treinadores não vão?

Alguns vão, mas eu não quero. Aquilo que faço, faço porque tenho de fazer. Vou às conferências de imprensa com o Chelsea porque tenho de ir. Vou às acções de promoção de «sponsors» porque é obrigatório, faz parte da minha contribuição para com o clube. E sou patrono de uma associação de caridade aqui em Londres e vou a coisas que sinto o dever de ir. Eu e a mulher somos parecidos – se calhar por isso é que somos casados. A minha mulher é uma mulher de classe.

(.)

Tem saudades de viver em Portugal?

Não.

Gostou de ver a selecção no Mundial?

Diverti-me. Acho que chegar à meia-final de um Mundial é sempre um feito.

Scolari surpreendeu-o?

Não.

Acha que teria feito melhor no lugar dele?

Teria feito diferente. Cada treinador, cada cabeça. Se perguntar a todos os outros treinadores portugueses, vão dizer-lhe o mesmo.

Scolari teria dado um bom seleccionador de Inglaterra?

Na minha opinião, o futebol inglês merece um seleccionador inglês. Da mesma forma que o futebol português merece um seleccionador português. Acho que a selecção é representativa de um país e que deve ser feita com cidadãos desse país. O que não significa que não respeite profissionais e que eu próprio não vá ser um seleccionador estrangeiro.

Ainda tem quatro anos de contrato pela frente. Falou abertamente que gostava de vir a ser seleccionador nacional. É um projecto para essa altura?

Para mais tarde. Se me perguntasse qual é que seria o meu final perfeito enquanto treinador, era treinar a selecção portuguesa num Europeu e num Mundial.

(.)

Qual é, neste momento, o melhor treinador em Portugal?

Não sei. Acho que é uma injustiça estar a dizer nomes.

O Porto teve grandes mexidas depois da sua saída. O que acha do trabalho de Jesualdo Ferreira?

Se contarmos com o Rui Barros, Jesualdo é o sexto treinador desde que eu saí. O Porto parece ter encontrado agora um rumo. Para já, foi campeão no ano passado e o treinador fez um bom trabalho. A equipa tinha características muito específicas e aquilo que mais prazer deve dar a um treinador é dizer: «Eu ganhei com a minha marca, com a minha filosofia». O Co Adriaanse fez um excelente trabalho. Este Porto do Jesualdo Ferreira é diferente. Ele está a tentar incutir as suas ideias e parece-me uma equipa boa, com bons jogadores, bem trabalhada, com competência suficiente para voltar a ser campeão. E para fazer coisas boas nas competições europeias.

Tem acompanhado o processo do Apito Dourado?

Não consigo acompanhar um processo que dura 100 anos.

Há um fundo de verdade no Apito Dourado?

Eu acho que a história dos árbitros é uma história interminável e só a tecnologia poderá melhorar as coisas. Não entendo como numa indústria tão forte como é o futebol, a tecnologia na arbitragem não existe. Ela reduz os erros e ao reduzir os erros, reduz a crítica e a suspeição. E reduz a responsabilidade dos árbitros. Uma coisa é um fiscal de linha decidir um jogo por um fora de jogo mal assinalado, outra coisa é a tecnologia substituir o fiscal de linha numa decisão crucial. A tecnologia no futebol é o fim de todos os Apitos Dourados que possam existir.

(.)

É um homem rico.

O que é isso?

Não se considera rico?

Ganho muito dinheiro. Mais do que pensei que podia ganhar. Não tenho problemas financeiros, vivo como vivia há alguns anos. A minha vida não mudou.

(.)

Que carro é que tem?

Só tenho um carro meu, que comprei há uma data de anos e que não vendo, porque a minha filha adora-o, diz que quer ficar com ele quando fizer 18 anos. É um Volvo Cabrio antigo. Os outros carros são os que os patrocinadores me dão. Em Portugal tenho um Lexus, aqui tenho um Audi e agora vai haver qualquer coisa com a Porsche. Gosto de relógios. De vez em quando compro um relógio bocadinho melhor.

Faz colecção de relógios?

Não é propriamente uma colecção. Mas gosto. Quando compro um para mim, compro também um para a minha mulher, na perspectiva de, no futuro, um ser para a Tita e um para o Zuca.

Diz que gosta de viver sob pressão. Isso normalmente traz algum sofrimento. As pessoas sob pressão tendem a ser ansiosas.

Não sofro no futebol. É evidente que, quando a bola bate no poste e não entra, há alterações no batimento cardíaco que têm a ver com a própria natureza do jogo. Agora o sofrimento de desespero ou de ansiedade, não tenho.

Parece a quem está de fora que nunca está satisfeito com o que tem. Uma vitória é apenas um passo para a vitória que vem a seguir?

As vitórias acontecem num momento e fazem parte da história. E é o fim da nossa carreira ou a seguir há mais.

Tem medo de se sentir demasiado feliz?

Quero é mais. Uma coisa que chateia a minha mulher é eu acabar um jogo e ela pensar que por umas horas não há futebol, mas eu já estou a pensar no próximo.

Logo na hora?

Se chego a casa às seis da tarde, como faço depois de um jogo, brinco com os miúdos um bocado, vou jantar fora com a minha mulher e sou capaz de regressar a casa e ir preparar o treino para daí a dois dias ou formar a equipa que vai jogar.

Mesmo depois de uma vitória retumbante?

Sim, pode acontecer. Fiz um acordo com a minha mulher e consegui cumpri-lo: quando a época acaba, há um período em que eu trabalho, para depois haver um período em que ninguém me vai telefonar nem eu vou telefonar a ninguém. Porque, no fundo, o futebol é continuidade. Se calhar um dia vou pôr uma meia-dúzia de meses sabáticos.

Depois de 2010, imagino.

Sim. Vou fazer qualquer coisa que nunca me permiti fazer. Não sei o q
ue são férias de Inverno, ir com os filhos para a neve. Não sei o que é passar um Natal e um fim de ano em família. Há coisas que eu e a minha família não sabemos o que é.

Quer dizer que não tem tido tempo para ser feliz?

Em qualquer família há momentos que são inesquecíveis também pela negativa. São coisas que deixam a sua marca de forma eterna. Podemos todos ter um Natal muito feliz, mas a minha família não se esquece que perdemos a minha irmã há meia dúzia de anos atrás e o sobrinho da minha mulher há meia dúzia de meses. Isso não nos permite a felicidade total. Mas consegui mais do que eu podia ter sonhado. Sou uma pessoa que se pode dizer feliz. Não é uma derrota ou um campeonato perdido que vai fazer com que eu deixe de ser um homem feliz.

Vai passar o Natal em Londres?

Pela primeira vez desde que estou cá, vou passá-lo a Portugal. A minha família vai mais cedo e vem mais tarde. Eu vou a 23 e venho a 25. Tenho jogos.

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

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O poder do futebol – Parte II

Caros amigos da Universidade do Futebol,

Já comentamos neste espaço sobre a grande dimensão do futebol, adquirida nas últimas décadas, e sobre o poder que o futebol exerce na nossa humanidade como um todo. Isso muitas vezes pode ser utilizado para boas ações, como reinserção social de determinadas comunidades, promoção da educação através do esporte, desenvolvimento de conceitos de moral e cívica, etc.

Hoje, ressaltamos os impactos negativos que o futebol pode gerar, pela utilização inadequada da sua popularidade. E para exemplificar essa questão, citamos os atos de barbárie ocorridos na Itália no jogo realizado entre Itália e Sérvia.

Pela apuração dos fatos, tudo leva a crer que as ações dos “torcedores” sérvios tinham a clara missão de divulgar mensagens políticas pela reconstrução da chamada “Grande Sérvia”, com a reanexação de territórios como Kosovo.

Não é nenhuma novidade a utilização do futebol para fins políticos. Isso já ocorreu diversas vezes na história, como na Copa da Itália de Benito Mussolini. O contrário também: o futebol já foi utilizado para resolver questões políticas, como, por exemplo, a exclusão da África do Sul para forçar o término das práticas racistas realizadas pelo governo do apartheid.

Mas como fica o papel do órgão regulador do futebol, naquele caso específico da Itália vs. Sérvia, a Uefa? Como resolver essa situação?

Deveria a Uefa deixar esse episódio para ser tratado exclusivamente pelas autoridades públicas, limitando-se a decidir um placar justo para a partida? Ou deveria também punir a equipe da Sérvia como medida para coibir e manifestar a repudia contra a violência de seus torcedores?

Caso não houvesse outras manifestações por trás do puro fanatismo excessivo, não tenho dúvidas que a Uefa deveria punir a Sérvia, e eventualmente apurar responsabilidades de segurança dos mandantes da partida.

Entretanto, tendo em vista que pode ter havido um “envio” de manifestantes por parte de outras entidades ou organizações não ligadas ao esporte com o exclusivo fim de utilizar o futebol para escancarar ao mundo as suas reivindicações, imagino que uma punição à equipe da Sérvia, além da perda da partida, seria algo mais delicado e merecedor de outras ponderações.

O importante é que se encontre (sempre em colaboração com autoridades públicas) alternativas para coibir essa utilização do futebol para fins escusos, o que, além de manchar a imagem do jogo bonito, também pode provocar mortes e/ou graves acidentes.

Para interagir com o autor: megale@universidadedofutebol.com.br 

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A Bolha

Antes de mais nada, é preciso admitir que uma das coisas mais fáceis e divertidas que existem é escrever textos prevendo bolhas financeiras. De tanto que se escreve, uma hora você acerta, como foi o caso do Nouriel Roubini. Com isto em mente, atente às palavras a seguir.

Existe um fato histórico acontecendo no decorrer desta semana, e não é no Chile. O Liverpool, clube mais tradicional da Inglaterra, passa por um momento no mímino delicado. Algum tempo atrás, a dupla Gillet e Hicks (o mesmo do HMTF que investiu no Corinthians), comprou o Liverpool numa engenharia financeira semelhante ao que a família Glazer realizou no Manchester United.

Resumidamente, G&H emprestaram dinheiro para comprar o Liverpool. Assim que conseguiram, transferiram a dívida dos empréstimos pro próprio clube, que passou a ter que pagar milhões de libras por ano em juros. Com a piora do cenário econômico na Europa e outros problemas mais, como a não classificação para a Champions League desse ano, o clube começou a ter problemas em pagar esses juros e as parcelas da dívida, e ficou devendo umas 250 milhões de libras para o Royal Bank of Scotland que, ciente de que a dupla G&H não iria conseguir levantar a grana pra pagar a dívida, designou executivos para tomarem conta da diretoria do time, na tentativa de vender o clube pra zerar a conta. Obviamente, G&H não gostaram da idéia, uma vez que iam perder um bom bocado de dinheiro, e tentaram bloquear a venda. Aí começou uma batalha judicial que está um pouco longe de ser resolvida por completo, mas teve algumas decisões a favor do RBS e da venda para a New England Sports Ventures, dona do time de beisebol Boston Red Sox.

A batalha não é, em si, o problema, mas sim as dificuldades que G&H encontraram pra conseguir financiar a operação do Liverpool, que não é muito diferente dos problemas enfrentados pela família Glazer no Manchester United. É um claro indício de que clubes de futebol passam por uma fase financeiramente complicadíssima. E isso, é claro, impacta na quantidade de dinheiro que esses clubes podem gastar em transferência de jogadores, o que acaba respingando no faturamento dos clubes no Brasil. Para piorar, a Uefa não tem medido esforços para limitar os gastos de todos os clubes com salários e transferências e para incentivar o desenvolvimento de jogadores nas categorias de base. Com isso, menos dinheiro ainda vai para o mercado de transferências.

Isso foi visível na janela de transferências do Campeonato Brasileiro deste ano, em que poucos atletas deixaram o país. Pelo contrário, clubes do Brasil acabaram se reforçando com jogadores retornando do estrangeiro, com salários bastante elevados, o que significa maiores gastos e menos receitas. Bem menos receitas, diga-se, já que normalmente clubes geram entre 20% a 25% do total de receita com transferência de jogadores. Uma equação que é simples de resolver, e o resultado não é nada bom.

O que tem segurado os efeitos dessa complicação mercadológica são os fundos de investimento em atletas, que tem comprado jogadores a rodo. Se antes os clubes tentavam vender seus atletas para clubes estrangeiros, hoje muitos vendem para empresas, que por sua vez se preocupam em vender para os clubes de fora. Por enquanto, essas empresas estão segurando o rojão da liquidez, trocando o direito sob transferência de atletas por auxílio na contratação de outros jogadores. A dúvida, porém, é por quanto tempo essas empresas conseguirão manter esse cenário. Se você dá dinheiro aos clubes em troca de jogadores e não consegue vender esses jogadores, alguma rachadura no ciclo vai acontecer. E aí a bolha vai estourar.

Os efeitos do estouro da bolha do mercado de transferências no Brasil, se isso realmente acontecer, vai depender muito do acordo que essas empresas possuem com os clubes. Dependendo do que estiver acordado, essas empresas se afundam sozinhas ou levam os clubes consigo. Independente do que, alguém vai ter que continuar a pagar salários elevados para atletas, e é certo que esse alguém será, em última instância, o clube que é dono da camisa que esses atletas vestem. Com isso, clubes precisarão arrancar dinheiro sabe-se lá de onde, mas imagino que principalmente da televisão, que, por conta do desespero, será forçada a aumentar o valor dos contratos de transmissão. E, daí por diante, a coisa vai se degringolando.

O sistema financeiro do futebol brasileiro sempre se apoiou bastante na venda de atletas. Agora, o sistema passa por mudanças profundas forçadas por elementos externos que aos poucos vão fragilizando a estabilidade desse sistema. Se o Banco BMG quebra, por exemplo, ele leva junto muita gente, ainda que essa quebra pareça ser uma possibilidade remota. Mas dá idéia do tamanho da fragilidade da estrutura da indústria do futebol brasileiro. Aos poucos, a bolha vai inflando. Se nenhuma espécie de controle começar a ser pensado, existe uma grande chance de haver problemas bastante graves em breve. Há muita oferta de jogadores para pouca demanda que pague bem.

Na crise do café no começo do século XX, o governo mandou queimar os grãos para conseguir estabilizar a relação entre oferta e demanda. Imagino que ele não vá fazer o mesmo com jogadores de futebol. É bom começar a pensar em uma segunda opção.

Para interagir com o autor: oliver@universidadedofutebol.com.br  

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A retórica do abstrato ou o discurso de Johan Cruyff

Na última página do jornal A Bola, edição de 13 de Julho de 2010, é notícia uma crítica de aberta oposição de Johan Cruyff ao futebol praticado pela Holanda e, afinal, pelas grandes potências europeias do futebol, que não têm estilo e cultura que as distinga umas das outras. As mais conhecidas seleções europeias jogam todas sob os mesmos princípios e os mesmos modelos de jogo. Nelas, impera a mesmidade e escasseia o inesperado e o insólito do futebol verdadeiramente espetacular. Cruyff aponta uma das causas: há demasiados estrangeiros nos campeonatos e, por isso, os melhores jogadores nacionais são forçados a emigrar. Se são convocados para as seleções dos seus países, surgem “mecanizados” por princípios que não refletem a cultura da terra que os viu nascer. É caso para perguntar: há futebol inglês, ou futebol na Inglaterra? Há futebol italiano, ou futebol na Itália? Há futebol holandês, ou futebol na Holanda?

A existência da Fifa significa que o futebol, nos vários países, se edifica sobre leis universais e sobre relações estáveis, duradouras, jerarquizadas. O futebol globalizou-se sob um poder mundializado. E, por isso, há futebol, na Inglaterra, na Holanda, na Itália, na Espanha, em Portugal, etc. E com semelhantes instituições e regras iguais. Só que o poder, qualquer que ele seja, traz consigo, hoje, a incontrolada tirania dos mercados.

A Fifa não globaliza só o futebol, mas também o mercado global que a faz viver, através dos grandes monopólios empresariais e dos poderosos conglomerados multinacionais. As vendas de jogadores, a realização de feéricas competições desportivas, os direitos televisivos, o merchandising, todos proporcionam lucros fabulosos aos donos de um mercado único de capitais, que concentra o dinheiro em meia dúzia de empresários e instituições e dele afasta a esmagadora maioria dos clubes de futebol. A mercantilização do futebol não passa de uma estratégia para excluir dos lucros que o futebol gera um número incontável de clubes que também são a sua razão de ser.

Nos campeonatos dos seus países, não jogam só o Barcelona, ou o Real Madrid; nem o Chelsea, ou o Manchester United; nem a Inter, ou o Milan; nem o Benfica ou o Porto (e não me sirvo de mais exemplos, agora) – muitíssimos outros clubes competem também. Ora, o capitalismo global e os mercados planetários, que a Fifa representa, não se encontram ao serviço das necessidades do futebol, mas dos imperativos do mercado.

Na Fifa, o futebol é a estrutura determinada, e o econômico, a estrutura determinante. Quem, como eu, vê futebol há 70 anos, parece-lhe justo capitular de vã quimera o pensar-se que os futebolistas atuais são admiráveis artistas, face aos seus predecessores de cinquenta anos atrás, tímidos, canhestros e desajeitados. É que, na seleção dos “Magriços”, em Portugal, ou nas “seleções canarinhas” de 58 e 62 (três exemplos, entre outros), não sei se teriam lugar qualquer um dos jogadores brasileiros e portugueses, que representaram os seus países, no Mundial da África do Sul. Incluindo o Kaká e o Cristiano Ronaldo, imobilizados numa inesperada mediania. Mas, as mutações sócioculturais e tecnocientíficas do século XX, mais vastas, profundas e céleres do que em qualquer outro estádio histórico, não chegaram ao futebol e não o transformaram também?

Entre o futebol do Eusébio e do Coluna e o de hoje a diferença é enorme, no profissionalismo dos seus agentes, nas inovações tecnológicas (incluindo as da cibernética, da electrônica, da informática), nas instalações desportivas, nos cuidados médicos, na gestão dos clubes, nos vencimentos dos técnicos e dos jogadores, etc., etc. Mas o futebol perdeu em beleza o que ganhou em eficácia. Hoje, um futebol-espetáculo sem gols perdeu interesse e cada vez mais ele se faz em função dos resultados e do lucro e cada vez menos em função doutros valores. De acordo, aliás, com o sistema capitalista mundializado. Tenho saudades do futebol interpretado pelo Rogério (Benfica), pelo Vasques (Sporting), pelo Hernâni (Porto), pelo Amaro (Belenenses), que eu aplaudia, sem pensar nos números do placar…

Pierre Bourdieu não deixa de surpreender, quando não descobre, no desporto contemporâneo, a passagem paulatina do belo ao útil, conforme as exigências do capitalismo global. É verdade que acentuou “o fato de a carreira desportiva, que se encontra praticamente excluída do campo das trajetórias admissíveis para uma criança de origem burguesa (…) representar uma das únicas vias de ascensão social para as crianças provenientes das classes dominadas” (Questões de Sociologia, Fim de Século, Lisboa, 2003, p. 196). Mas o futebol é o que é, principalmente porque se transformou no fiel servidor do deus-lucro. Ele é efeito de uma normalização, em proveito da homeostase do capitalismo que domina o futebol.

A simbiose capitalismo-futebol, reconheço, trouxe um evidente progresso ao futebol, mas dando à instância econômica um posicionamento e uma funcionalidade de infraestrutura – que é praticamente idêntica em todos os países. Daí, o Brasil jogar como a Holanda, ou a Alemanha como o Uruguai, etc. Afinal, o poder que os comanda é o mesmo e portanto não reconhecer estes elementos invariantes, na promoção e institucionalização do futebol atual, é descambar numa retórica do abstrato, onde se criticam os efeitos, mas não se apontam as causas… nem de leve!

Pensar, hoje, a administração e a gestão do futebol não é procurar a verdade, mas o lucro. Para os administradores dos grandes clubes, os problemas maiores não são os de ordem táctica (como para Johan Cruyff), mas os que se prendem com a crise financeira em que o capitalismo se encontra submerso. Entretanto, mesmo com dívidas astronômicas, o Real Madrid e o Barcelona e o Manchester United ainda são os clubes mais ricos do mundo. A Liga dos Campeões, os direitos televisivos, a bilheteira, o “merchandising” são receitas a ter em conta. E, em tempo de crise, como é de lei no capitalismo, há sempre fortunas colossais que têm a sua raiz, na miséria…dos outros!

Vale a pena ler o magnífico trabalho do jornalista Carlos Rias (A Bola, de 27 de Julho de 2010) para contemplar o panorama financeiro do futebol europeu. Vale a pena ler Karl Marx, para entendê-lo.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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O que o futebol não faz, o vôlei ensina

É redundante falar novamente sobre o sucesso das seleções brasileiras de voleibol face aos resultados expressivos dos últimos 20 anos. Acaba por ser inevitável a comparação com o esporte mais popular do país, o futebol, e se perguntar o que aquele fez de tão bom para chegar a patamares quase que hegemônicos nos naipes masculino e feminino.

Li muito artigo nessa semana creditando a vitória da Seleção Masculina de Voleibol no Tri-Campeonato Mundial ao seu técnico Bernardinho. De fato, trata-se de uma figura de incrível capacidade de reunir, engajar e trabalhar em prol dos resultados com o elenco de atletas que convoca e sua equipe de trabalho multidisciplinar.

Contudo, acompanhando há algum tempo a evolução da modalidade, percebemos que o sucesso esportivo nas seleções é proveniente de um trabalho de organização e gestão minuciosamente planejado, envolvendo em essência duas premissas básicas que percebo com alguma deficiência ainda no futebol: (1) a formação e capacitação profissional e (2) um programa contínuo de formação de atletas.

Na primeira, o voleibol adotou há algum tempo o CONAT, que é uma Escola de Treinadores, nivelando, conforme a categoria e a evolução profissional do treinador (e demais profissionais que complementam uma comissão técnica multidisciplinar), respeitando a evolução de conhecimento do mesmo em modelo semelhante ao que ocorre na UEFA, que classifica em níveis os técnicos do futebol.

Essa ideia vai além, de acordo com palavras do Presidente da Confederação Brasileira de Voleibol, Sr. Ary Graça Filho, que, certa vez, em entrevista para um canal de esportes mencionou o cuidado da CBV em observar jogadores de expressão que estão em vias de se aposentar para convidá-los a se capacitar durante os últimos anos de suas carreiras. Com essa medida, contribuem para a melhoria do conhecimento científico agregado com o nome e a experiência prática de ex-atletas.

Na segunda premissa é possível notar a enorme quantidade de jogadores que fizeram parte das seleções de base para então figurar na seleção principal. Esse processo contínuo de formação de jogadores é muito bem desenvolvido a partir de uma visão do todo e não específica de cada categoria.

Tanto na primeira situação quanto na segunda, o futebol encontra barreiras culturais que dificultam sobremaneira a sua aplicação na prática. No caso da formação profissional, há ainda uma ideia perene de que o conhecimento prático, puro e simples, são a chave para o sucesso nas equipes, indo de encontro a evolução científica e a era da informação e do conhecimento como fatores para evolução contínua da modalidade.

No que se refere às seleções de base, percebe-se que nem sempre os critérios técnicos são levados em conta no momento de uma convocação de atletas, dificultando um pensamento dos clubes brasileiros em torno daquilo que é benéfico para a Seleção Brasileira como um todo. Por tal razão, conta-se nos dedos os atletas que passaram por várias categorias até chegar à seleção principal.

A cópia integral de um modelo de gestão nunca é o mais indicado, mas a observação de pontos-chave no sucesso de instituições similares fazem parte daquilo que a literatura define como “benchmarking”. O voleibol brasileiro inovou e vem inovando continuamente e por tal razão pode e deve ser observado com uma atenção mais técnica e não puramente emocional sobre os fatores que o conduziram ao sucesso esportivo mundial.

Para interagir com o autor: geraldo@universidadedofutebol.com.br  

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Liberdade de imprensa?

Na reta final da votação do primeiro turno das eleições presidenciais, o tema “liberdade de imprensa” ganhou espaço, não apenas no noticiário, mas também no próprio discurso do presidente Lula. O debate acalorou-se ainda mais na última semana, quando o jornal “O Estado de S. Paulo” desfez-se dos serviços da psicanalista Maria Rita Khel, uma de suas articulistas.

O centro da decisão do jornal foi um artigo escrito por ela, em que se coloca relativamente contra o “Estadão” na decisão da escolha do candidato às eleições. Em seu texto, a articulista defende Dilma Roussef, candidata que não tem a preferência do veículo. Sim, o jornal já havia dito, publicamente, em editorial assinado na capa da edição do domingo anterior à eleição, que apoiava José Serra, e um dos motivos alegados era o de que Lula, o presidente, tentava cercear a liberdade de expressão da imprensa.

Cerca de duas semanas depois desse texto, o mesmo “Estadão” deixou de ter em sua equipe uma pessoa que publicamente posicionou-se de maneira diferente da do jornal. A saída de Khel foi a gota d’água para que o debate sobre liberdade de imprensa fosse ampliado, com o “Estadão” deixando a posição de vítima para a de vilão.

Em meio a muita discussão, o ponto crucial foi deixado de lado. O que é, afinal, liberdade de imprensa? E qual é a liberdade do profissional de imprensa? Esse é um dos pontos mais fundamentais do exercício da profissão de jornalista, e infelizmente é deixado de lado na maioria dos cursos de jornalismo, o que gera uma grande falha no exercício da profissão dentro dos veículos.

Mas o que tudo a isso tem de ver com o esporte? Bem, no meio esportivo, esse debate seria fundamental para aprimorar a qualidade do profissional de imprensa que trabalha no dia-a-dia da profissão.

A liberdade de imprensa é o direito de qualquer veículo divulgar uma informação verídica. Uma democracia depende disso para poder ser considerada uma democracia de fato. Afinal, quanto mais livres para expressar suas opiniões forem os veículos, mais direito a encontrar diferentes opiniões tem a população de um país.

Mas à liberdade de expressão da imprensa se opõe outro tipo de forma de expressão, que é a liberdade de expressão do profissional de imprensa. E, essa, infelizmente, é limitada.

Apesar do que é dito nas faculdades de jornalismo, o jornalista não é livre para expressar sua opinião. Essa liberdade termina, necessariamente, nos interesses comerciais do veículo para o qual aquele profissional trabalha.

A origem da imprensa foi exatamente quando o primeiro dono de um veículo definiu que criar um veículo para defender um ponto de vista, falando para um determinado tipo de público. Um país democrático tem diversos veículos de imprensa, exprimindo diferentes pontos de vista, dando às pessoas a liberdade de decidir qual tipo de informação quer consumir.

Foi isso o que aconteceu no caso do “Estadão”. A liberdade de expressão do jornalista (ou, no caso, do seu articulista) se encerra a partir do momento em que aquilo que ela escreve vai de encontro ao que pensa o veículo para o qual ele trabalha.

Nos veículos esportivos, vemos constantemente isso acontecer. Jornalistas que colocam os microfones a serviço do patrão. Não há erro algum nisso, desde que ficasse claro qual é o interesse do veículo com esse tipo de ação. Não é, muitas vezes, o caso.

Liberdade de imprensa é algo extremamente importante. A liberdade do profissional de imprensa, porém, tem um limite. E isso é que deveria ficar muito claro para quem recebe a informação.

Para interagir com o autor: erich@universidadedofutebol.com.br  

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Chief Football Officer

Não sou afeito a estrangeirismos à toa. Acredito que a língua portuguesa é rica e pródiga para que o que se queira expressar seja encontrado.

Da mesma forma, não radicalizo os usos e costumes linguísticos que preservam aquilo de essencial que venha do estrangeiro.

Com efeito, em reuniões profissionais nos ambientes corporativos e publicitários, é absolutamente frequente – e, para mim, exagerado – o uso destes termos.

É CEO pra cá, CMO pra lá, C alguma coisa… Invencionices para deixar de chamar estas pessoas de Diretor disso ou Diretor daquilo.

Pois bem, já que a sede por mudanças e modernidade em nosso futebol é enorme, proponho a criação do CFO: Chief Football Officer.

Isso se deve ao fato de que o tão sonhado cargo de manager, que Luxemburgo sempre postula, realmente é tão necessário quanto raro em sua existência nos clubes brasileiros e na existência de profissionais com o perfil para ocupá-lo.

Também difere radicalmente do diretor de futebol, pois este se alimenta – oficialmente – da paixão que dedica ao seu clube e não é remunerado por isso e, na maioria dos casos, o planejamento que segue é riscado em reuniões realizadas informalmente em jantares e baseado em suas convicções administrativas e políticas.

Rodrigo Caetano personifica o melhor deste incipiente cargo que defendemos.

Ex-jogador profissional do Grêmio, ele teve a carreira interrompida por uma lesão, antes de embarcar para a Espanha na década de 1990. Não lamentou. Ao contrário, foi complementar a sabedoria adquirida na prática com o curso de Administração de Empresas e outros cursos de pós-graduação na área de gestão esportiva.

Virou referência unânime de bom trabalho nos quatro anos no clube gaúcho, que o levaram ao Vasco. Na vitrine nacional, está cotado para assumir cargo executivo na CBF, pois Mano Menezes conhece de perto seu trabalho.

Suas planilhas com informações de jogadores brasileiros, bem como a rede de relacionamentos com empresários, agentes e treinadores é um dos trunfos que provoca tamanho interesse em contratá-lo.

A diretoria que acaba de assumir o Grêmio está mais preocupada em convencer Caetano a voltar ao Olímpico que manter Jonas no clube no ano que vem.

Paulo Odone, o presidente eleito, disse que o clube já tentou outros profissionais para o cargo, mas o perfil “boleiro” atrapalha o trabalho de longo prazo.

Literalmente, o futebol brasileiro carece de Executivos-Chefe de Futebol (CFOs) como Caetano.

Aliás, manager, no bom português, significa gerente, e, no meu organograma, ficaria abaixo do CFO.

O que deixaria, naturalmente e, por meritocracia, Luxemburgo submetido ao trabalho de Caetano

Para interagir com o autor: barp@universidadedofutebol.com.br

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José Mourinho em entrevista: prenúncios de vitórias

Peço licença aos leitores para ao invés de, como programado, debater questões referentes a auto-organização e padrões de jogo, publicar em minha coluna um achado em meus arquivos.

Trata-se de uma entrevista de José Mourinho à revista “Selecções”, que foi publicada quando ainda o treinador atuava pelo Futebol Clube do Porto e acabara de ganhar a Taça Uefa.

Eu estava prepararando uma palestra quando a encontrei. Há muito a tinha lido. Realmente naquela época, em sua fala e nas colocações da entrevistadora, indícios de prenúncios.

Vale a pena ler…

– Entrevista reproduzida na íntegra, no português de Portugal.

«Não quero um Ferrari e uma quinta. Quero a alegria e ser reconhecido» diz José Mourinho que nasceu a 20 metros do Estádio do Bonfim, aprendeu a andar no relvado do estádio do Setúbal, jogou à bola com o pai, (o antigo guarda redes Félix Mourinho), a quem disse que queria ser treinador de futebol. Com o Futebol Clube do Porto acaba por sagrar-se campeão nacional e conquistar a Taça UEFA. A ambição, extraordinária, é da medida do seu talento. Ninguém duvida que a carreira, a procissão, ainda vai no adro. (Por Anabela Mota Ribeiro)

Selecções do Reader`s Digest – Formou-se no ISEF aos 24 anos e completou um curso para treinadores na Escócia. Não é muito comum no mundo do futebol esta preocupação com a instrução.

José Mourinho – Sempre existiu em mim a ambição de me licenciar, independentemente da minha vocação. Talvez influenciado pela minha família: «Não sabes qual vai ser o teu futuro no futebol, pelo menos constrói algo sólido».

SRD – Havia essa preocupação?

JM – Havia. O meu pai esteve a vida toda ligado ao futebol com todas as dificuldades inerentes ao mesmo. Se eu tivesse sido mal sucedido nesta minha aposta, como treinador, na pior das hipóteses era professor de educação física. Paralelamente a esta preocupação, sabia o que aquilo me podia dar. Tenho uma máxima, que não é minha, mas que ouvi em qualquer lado e que guardei para mim: «Um treinador de futebol que só sabe de futebol, é um péssimo treinador de futebol».

SRD – De que outras coisas tem de saber?

JM – De tudo. Há áreas científicas que nos podem ajudar no nosso trabalho, nomeadamente psicologia, pedagogia, fisiologia. Posso falar com o meu departamento médico sobre lesões, músculos, bio-mecânica, teoria do treino. São temas que domino. Dominar as competências psicológicas, é fundamental. Pode fazer a diferença.

SRD – Imputam-lhe essa competência e apontam-na como uma das razões do seu sucesso: a autoridade que tem sobre os jogadores, e, mais do que isso, o reconhecimento da individualidade de cada um deles.

JM – Vou mais por aí. A execução da autoridade vai-se esbatendo com o tempo e com a empatia que vou criando. Quando chego a um clube sinto necessidade de mostrar quem sou e o que posso fazer; tenho necessidade de me afirmar e estabelecer algumas regras. A minha liderança, toda a gente a sente mas ninguém a vê. Ter enveredado pela via académica, possibilitou-me ser melhor treinador. O Jorge Costa dizia numa entrevista: «A partir do momento em que fui treinado pelo Mourinho, conheci o filet mignon. Se o Porto mudasse de treinador e me oferecessem carapau ou sardinha, deixava de jogar à bola». É isto: os treinadores de hoje têm de ir à procura do conhecimento.

SRD – Esse estigma, de que as pessoas do futebol são incultas, grosseiras, quase sempre provenientes de camadas sociais muito humildes, tende a dissipar-se?

JM – Mudou de forma radical. Nos anos 60 o meu pai ia ao estrangeiro às competições europeias e era o único que podia comunicar em francês ou inglês.
 
SRD – O seu pai falava línguas?

JM – Era auto-didacta. Fez o antigo curso comercial, equivalente ao sétimo ano; mas gostava de línguas e de ler, e queria evoluir.

SRD – Foi ele que o ensinou a falar inglês?

JM – Não. A sua competência no inglês não é tão grande, mas era o suficiente para poder comunicar. Hoje em dia, a minha equipa vai ao estrangeiro e há um ou dois que não podem comunicar em francês ou inglês. Nos anos 70, o que é que os jogadores faziam nos tempos mortos de estágio?

SRD – O que era?

JM – Jogavam cartas. Agora estão ligados à internet, consultam a imprensa internacional porque querem saber o que dizem deles, estudam, lêem.

SRD – Aos 15 anos teve a noção de que queria ser treinador. E essa noção era acompanhada de uma outra: a de que dificilmente seria um jogador de excepção.

JM – Sim.

SRD – Ora o que queria para si era justamente a excepção. Porquê?

JM – Como qualquer miúdo, cresci a adorar jogar. Não posso dizer que não era um miúdo com talento. No meu grupo de amigos, era dos mais talentosos. Mas a via académica exigia-me responsabilidades, tive que fazer as minhas escolhas. Senti que não valia a pena arriscar porque as possibilidades de sucesso não eram grandes.

SRD – Isso é que é a coisa extraordinária: ter tido essa lucidez aos 15 anos.

JM – Sabia das minhas limitações e das minhas qualidades. O meu skill não era melhor que o skill dos outros. As minhas qualidades físicas não eram de excepção; não era rápido, e a velocidade é fundamental para o futebol de alto nível. Aquilo que me fazia melhor do que os outros era a minha capacidade de ler, analisar equipas. A visão que tinha da situação. Eu conseguia ver coisas que os outros não conseguiam, inclusive adultos.

SRD – É verdade que o seu pai lhe pedia para fazer a observação das equipas adversárias?

JM – Sim.

SRD – Foi verdadeiramente a sua escola?

JM – A escola de qualquer treinador começa aí. Na capacidade de assistir a jogos com outros olhos. Não é ir para o futebol e ver o jogo como um adepto normal, preocupado se A ganha ou B ganha. É a tentar perceber como é que uma equipa funciona, quais são os seus princípios de jogo.

SRD – Nesse processo de aprendizagem, que dura desde sempre, e que vai durar a vida toda – sei que continua a ser obsessivo na observação dos jogos, passa horas agarrado ao vídeo -, tinha um interlocutor? O seu pai, outros jogadores, amigos.

JM – Não tinha muito. Vivi praticamente separado do meu pai.

SRD – Isso representa uma grande dor para si?

JM – Em criança, sim. Sentia a falta da sua presença, de poder falar com ele. Mas foi uma opção que a nossa família tomou: o meu pai era treinador, ia circular de equipa para equipa, e eu e a minha irmã, enquanto estudantes, não podíamos fazer isto. Vivemos em Setúbal com a nossa mãe, e o nosso pai, nos tempos livres, quando podia, voltava sempre a casa.

SRD – Que marcas lhe deixou essa opção da sua família?

JM – De tal forma me marcou que defini com a minha mulher que, onde eu for, eles vão. A minha filha tem seis anos e já esteve em três cidades diferentes. E para a formação dela, não é nada mau. A capacidade de dominar línguas, lidar com a diferença, mudar de cidade … É uma miúda com uma capacidade de adaptação fantástica. No fundo, ter carinho e estabilidade, ter o pai, a mãe e o irmão ao seu lado é muito mais importante que a tristeza momentânea de abandonar uma escola, uma professora e uns amigos.

SRD – Quando ganhou a Taça UEFA em Sevilha, no final do jogo olhou na direcção em que sabia que eles estavam. Era importante tê-los ao seu lado naquele momento?

JM – Era. Não queria que a alegria deles depend
esse do ganhar ou do perder; mas comecei a perceber a importância que a carreira do pai tem para eles. Eu ganho, chego a casa e eles estão em festa. Eu perco, chego a casa e eles estão tristes.

SRD – Eles assistem a todos os jogos?

JM – Não vão nunca ao futebol. Por opção da minha mulher. Não gosta que decifrem o seu estado de espírito; prefere ver [os jogos] em casa, a sós. Mas os miúdos entram dentro dela, conseguem extrair a angústia, o sofrimento… Naquele dia quis que estivessem porque sabia que podia ser o dia mais importante da minha vida desportiva. Foi meu desejo saber onde é que estavam. Até posso dizer como é que soube onde é que estavam…

SRD – Diga.

JM – Pelos bilhetes, consegui perceber o sector onde iam estar; antes do jogo começar pedi a um fotógrafo amigo que, com a tele-objectiva, fosse à procura deles. «Pronto, estão ali». Do banco não conseguia ver, mas sabia que estavam naquele sítio. Quando o jogo acabou, imaginei o que estavam a viver … e foi para eles.

SRD – É muito importante que os seus filhos tenham orgulho em si?

JM – É. Mas aquilo que queremos é que tenham orgulho, independentemente do sucesso. Magoa-me que, na inocência, as crianças sejam cruéis umas com as outras.

SRD – Na escola, no dia seguinte?

JM – No dia seguinte, quando as coisas não correm bem, a vida não é fácil para a Matilde; ela é capaz de sofrer em silêncio, guarda para ela. Ele, que tem três anos, não é assim; já percebi que daqui a dois ou três anos, quando o pai perder, no dia seguinte vão chamar-me à escola. Porque ele é pai! É impulsivo. Nos seus impulsos, apesar do grande coração, é agressivo. Acho que há colegas que vão levar uns estalos fortes…

SRD – A obstinação e a ambição são o seu talento. São, pelo menos, instrumentos que servem o seu talento. Não consigo compreender completamente a fúria com que responde, para usar uma expressão sua, ao «chamamento da vitória». Onde radica esta confiança? Porquê esta pulsão tão violenta para chegar lá?

JM – A auto-confiança nasce da convicção no trabalho que realizo. O mais importante é passar aos jogadores a mesma convicção. O desejo de vitória e a convicção na vitória partem fundamentalmente dessa crença.

SRD – Pode instigar-lhes essa convicção sem estar, você, completamente convicto?

JM – Não consigo. Porque eu estou sempre convicto.

SRD – Mas não se acredita em super-homens. Com certeza tem momentos de fragilidade.

JM – Tenho os meus momentos de fragilidade. Creio que os tenho mais na vida pessoal que na profissional. Os momentos mais difíceis, sob o ponto de vista profissional, são os momentos em que me revelo mais, em que me supero. Exemplo claro: quando a minha equipa ganha, às vezes são os meus adjuntos que vão à conferência de imprensa. Quando a minha equipa perde, sou eu que vou. Vesti bem a pele de líder, de homem sem fragilidades. Que as tenho!, enquanto homem.

SRD – Não se admite tê-las enquanto profissional?

JM – Não é admitir: não as sinto. Nos momentos de maior responsabilidade é quando me sinto mais cómodo, nos jogos mais impactantes é quando sinto mais prazer em lá estar.

SRD – Trata-se de arriscar? Ouço-o e parece que assisto a um jogo de roleta. Há o prazer do risco e de estar completamente envolvido nesse lance.

JM – É, é realização. Não há nenhum jogador ou treinador que, em miúdo, sonhasse com um jogo de chacha. Quando sonhei com jogos, acordei sempre a pensar que ia ganhar a Taça UEFA, que ia jogar o Benfica-Porto. Um jogador quando sonha marcar golos, não sonha fazê-lo no Porto-Gil Vicente. Quando sonha, sonha à grande. Se tenho o privilégio de estar metido nessa realidade com que sempre sonhei, tenho de desfrutar. Os meus jogadores têm também este espírito. Gostam de jogos grandes, gostam de responsabilidade. Na minha vida, tenho obviamente as minhas fragilidades.

SRD – Onde é que se refugia?

JM – Nos meus.

SRD – Era capaz de revelar essa fragilidade, por exemplo chorar, à frente de uma pessoa que não fosse da sua família?

JM – Se fosse um bom amigo, sim.

SRD – Chora?

JM – Pouco, muito pouco.

SRD – Quando chorou a última vez?

JM – Em Sevilha.

SRD – Mas isso foi uma explosão de felicidade. Refiro-me ao choro que resulta do sofrimento.

JM – Chorei de forma descontrolada em situações irreparáveis, na morte daqueles que amei. Falo de avós, da minha irmã, da mãe da minha mulher, de um dos meus melhores amigos. Foram momentos em que senti que não podia fazer nada. Tudo tinha acabado.

SRD – Ou seja, o que o faz sofrer é a impotência?

JM – É exactamente a impotência. Podem-me vir as lágrimas aos olhos quando um filho tem um gesto especial, quando recebo no telefone uma filmagem da Matilde a ganhar uma competição de natação. Sou capaz de ficar mais emocionado com isto que com outra coisa qualquer. Perante as dificuldades, não. Perante a impotência, sim.

SRD – Ambiciona para si uma carreira internacional. Quando no Barcelona decidiu não seguir o Bobby Robson até Newcastle, estava já convicto do caminho que queria trilhar? Portugal primeiro e o mundo depois?

JM – Sim, claramente!

SRD – Mas você dorme? Quando é que pensa nessas coisas todas?

JM – Eles próprios, o Bobby e o Van Gaal, perceberam que tinham de me libertar de algum vínculo moral que pudesse ter.

SRD – Se não o libertassem, seria capaz de o fazer autonomamente? Sentia-os como pais putativos?

JM – Seria capaz, mas não naquele momento. Não sou pessoa de dizer: «Sr. Pinto da Costa, muito obrigado por me ter contratado». Ao Bobby e ao Van Gaal não disse: «Muito obrigado por me teres dado este contrato, muito obrigado por me teres trazido para Barcelona, muito obrigado por teres mudado a minha vida». O meu trabalho e a minha dedicação são a minha forma de gratidão. Eu nunca senti, em nenhum momento, que lhes devia alguma coisa. Quando decidi ser treinador principal e vir embora, nunca pensei que estava a ser incorrecto. Não lhes devo nada, paguei-lhes tudo, e por isso senti-me sempre livre para decidir. Se sentisse que não tinham pernas para andar sem mim, se calhar hipotecava um ano ou dois da minha independência. Era capaz de o fazer. Mas eles não precisavam de mim para nada. Tanto um como outro disseram: «Tu estás preparado».

SRD – Em que momentos pensa nessas coisas, «agora vou fazer isto», «já estou preparado»?, quando está no chuveiro, quando anda de carro?

JM – É um grande problema… Muitas vezes as pessoas estão comigo, mas eu não estou com elas.

SRD – Parece um homem solitário. Pensei nisso quando o vi a correr, de fato e gravata, depois da conquista da taça em Sevilha. O seu movimento era o de um menino solto, ondulante, exalando pura felicidade. Paradoxalmente, ainda que estivesse com milhares de pessoas, parecia correr por sua conta, entregue apenas a si.

JM – Foi um bocadinho isso. No meu livro, escrito pelo Luís Lourenço, há uma parte em que a minha mulher diz qualquer coisa como: «Ele fala tão pouco… Muitas vezes estamos juntos e ele não está comigo. Só por conhecê-lo tão bem, consigo perceber aquilo que me quer dizer sem me dizer nada». Sou um bocadinho assim. Fechado. Preciso do meu espaço. Muito tempo do meu dia é para reflectir, faço a avaliação do treino, o que correu mal, o que pode correr melhor.

SRD
– A quem queria provar que era bom, ao seu pai?

JM – Não, não, não. Os meus pais nunca puseram qualquer pressão sobre mim. Nunca senti que tinha de lhes provar nada. À minha mulher, tão pouco. É das pessoas que mais acreditam em mim, no meu potencial, incentivou-me a deixar Barcelona e vir para Portugal. Em Barcelona a minha situação era fantástica: ganhava uma pipa de massa, uma pipa redondinha, bem cheia; era adjunto, não tinha tantos cabelos brancos porque as preocupações não eram tantas, queriam que continuasse. E ela, por perceber que eu era um tipo angustiado porque queria mais, disse-me para esquecer tudo e ir à luta.

SRD – Então, teve necessidade de provar apenas a si mesmo?

JM – A mim mesmo. Há quem pense que eu queria provar àqueles que não gostam de mim… Porque há muita gente que não gosta de mim.

SRD – Quando finalmente se impôs como um grande treinador e pôde calar aqueles que olhavam para si como o tradutor do Bobby Robson, nessa altura riu à gargalhada?

JM – Ri, ri. Mas se me disser «Vamos falar deles, vamos falar do que disseram de si», não falo.

SRD – Verdadeiramente eles não contam, pois não?

JM – Mas para muita gente contam. Para mim não têm interesse absolutamente nenhum.

SRD – E o dinheiro?, é o seu móbil?

JM – Não. Quero qualidade de vida. Quero que os meus filhos andem num bom colégio, quero poder vestir bem, quero ter boas férias. Não quero mais do que aquilo que um cidadão comum quer. Não tenho ambições desdemidas. Não quero ter uma casa com 800 m2, não quero ter uma quinta, não quero ter um Ferrari. Não quero nada disso.

SRD – Então?, se não é o dinheiro que o faz correr, é o quê?

JM – O sucesso! O prazer pessoal. A alegria. Ando à procura de felicidade, de plenitude. Quero ganhar títulos, quero ser reconhecido, quero, como já está a acontecer, que noutros países saibam que há um tal José Mourinho que é um treinador de futuro. Ando à procura disso.

SRD – Espero que nos encontremos daqui a dez anos! Vou gostar de saber o que mudou na sua vida.

JM – Terá mudado pouca coisa. Familiarmente vai ser igual, com o privilégio, Deus me ajude nesse sentido, de ter visto os meus filhos crescerem dez anos espectaculares. E profissionalmente espero ser bem sucedido, acredito que vou ser bem sucedido. Espero ganhar títulos. Espero ter a mesma alegria naquilo que faço.

SRD – No fundo, aquilo que tem agora, mas numa quantidade superior?

JM – É só isso. Mais velho fisicamente, mas mentalmente mais rico. Sinto-me cada vez mais forte, mais rico. Só vou perder pró físico, nada mais.

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br