José Mourinho é já um nome marcante da história do futebol. Ainda ele não tinha vencido qualquer competição internacional já eu escrevia sem receio que ele seria, para o treino, o que o Pelé e o Maradona tinham sido para a prática do futebol.
Hoje, sinto-me mais afoito para adiantar que o José Mourinho não tem par como treinador – como o Pelé e o Maradona e ainda Cristiano Ronaldo e Leo Messi não têm par, no meu modesto entender, como jogadores de futebol. Acrescento ainda: ele é e será uma das principais referências para uma compreensão do futebol atual. E por quê? Porque foi o primeiro treinador a utilizar (e com indiscutível sucesso) o método da complexidade! Já escrevi inúmeras vezes: "É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser".
Quero eu dizer na minha que, sem capacidade de liderança, sem eloquência natural, sem uma sábia leitura de jogo, sem uma comunicação que permita uma constante motivação – não é possível exercer-se a profissão de treinador de futebol. Mas, para o nosso tempo, no futebol, como em qualquer outra área do saber, há necessidade que o treinador seja um "trabalhador do conhecimento", liderando uma equipa técnica de "trabalhadores do conhecimento". E qual é o tipo de conhecimento em que deve especializar-se um treinador? Numa nova ciência hermenêutico-humana…
Em 1982, frequentava o José Mourinho o primeiro ano da universidade e era eu o seu professor de Filosofia. Perguntei-lhe um dia o que pretendia ser ele, depois de licenciado. Respondeu-me, no seu estilo breve e lapidar: "Quero ser treinador de futebol!".
Diante da sua firme convicção (que me enterneceu, pois que se tratava do sonho de um jovem) respondi-lhe: "Mas nunca se esqueça de que, para saber de futebol, é preciso saber mais do que futebol!". Há mais de 40 anos que venho insistindo: "Para saber de desporto, é preciso saber mais do que desporto". E por quê? Porque o desporto (e, portanto, o futebol também) não é só uma atividade física, é verdadeiramente uma atividade humana!
O que está em jogo no futebol é a complexidade humana. No tempo em que José Mourinho era universitário, ainda o saber científico dominante era disjuntivo e analítico: separava, isolava para conhecer. A dispersão era a sua marca mais evidente. Hoje, é preciso dizer "não" a Descartes e unir… para conhecer!
E, quando no futebol (como o José Mourinho o faz de modo incomparável) se junta, na mesma totalidade, o físico, o biológico, o emocional, o intelectual, o espiritual, o moral – o simples é aparência, o fundo do ser é complexo e, portanto, onde tudo está em rede, onde tudo tem a ver com tudo! Enganam-se os que pensam que o futebol é uma coisa simples. Porque é uma atividade humana, é indubitavelmente complexa. No futebol (como no desporto) não há saltos, mas pessoas que saltam; não há chutes, mas pessoas que chutam. Se não conhecer as pessoas que saltam e chutam, jamais conhecerei os saltos e os chutos.
O doutor José Mourinho (ele é doutor pela Universidade Técnica de Lisboa) viu, antes de qualquer outro treinador, que o futebol deveria estudar-se, analisar-se, investigar-se, à luz das ciências humanas e o método a utilizar-se seria o da complexidade. E foi porque descobriu a complexidade, no futebol, antes dos seus colegas de ofício, que ele começou por mostrar a sua genialidade.
A grande revolução que é preciso, imperioso e urgente realizar no futebol foi a que ele fez e vem fazendo: numa equipe de futebol, o jogador é mais importante do que a tática porque, sem o jogador, não há tática. Já não basta uma periodização tática, é necessária, e com urgência, uma periodização antropológica e tática. É isto o que nos exige o método da complexidade de que o doutor José Mourinho é um magnífico cultor.
Um ponto a salientar: quanto mais complexos são os processos, maior é a zona de indeterminação. Mas é precisamente nos momentos de indeterminação que deverão surgir a lucidez e a serenidade do líder que há de ser, acima do mais, um grande "mestre da vida". Engana-se o homem que, por ser violento, julga que é forte. A violência, doença da força, só conduz aos triunfos efémeros. As grandes vitórias pertencem às naturezas calmas, aos heróis tranquilos que, antes de pretenderem dominar os outros, aprenderam a dominar-se a si mesmos.
O futebol é o fenômeno cultural de maior magia, no mundo atual. E, por isso, problemático, excessivo de sentidos e uma inesgotável rede de significações. Pensar é dialogar com o mundo convulso que nos rodeia e transformar a anarquia dos sinais no princípio de um mundo diferente. Um futebol absolutamente ordenado não existe (ao nível do mundo todo, antes de nós, já o compreenderam Aristóteles e Hegel).
Mas, existe o meu querido amigo José Mourinho que, no meio de um futebol anárquico, soube encontrar o sentido de um futebol novo. Daí, a sua genialidade. Não, o José Mourinho não é um gênio porque aparece, esplendoroso, na comunicação social e no mundo digital. Por lá, saltita muita gente que o tempo apagará depressa. Ele é, de fato, um gênio, porque viu o novo, antes dos outros.
As grandes revoluções científicas não nascem da subordinação ao que está estabelecido – nascem da recusa do que está estabelecido! Com José Mourinho nasceu um novo tempo no futebol, porque ele disse "não" ao saber dominante. Furtando-se à simples linearidade na história, recusando uma evolução que não passa de repetição, assumindo um corte epistemológico – José Mourinho aparece em toda a sua grandeza de fazedor de um corte epistemológico na história do futebol. E, portanto, de um novo logos, de um novo método, de um novo sentido, que um sem número de vitórias inolvidáveis assinalam e confirmam.
Não me interessa falar de um José Mourinho efêmero, sujeito às contingências da opinião pública, mas do José Mourinho eterno, criador de ciência e de conhecimento. Para um homem da sua estatura intelectual e com o seu currículo desportivo, importa esquecer o que não há interesse em ser lembrado e lembrar o que seria injusto que ficasse esquecido.
Como treinador de futebol, José Mourinho, pelo seu currículo, é o melhor treinador da história do futebol. Os adeptos do Real Madrid vão concluir isto mesmo, no dia em que ele abandonar os "merengues". É que o treinador que vier, depois dele, não faz melhor, nem se aproxima sequer do seu desempenho.
Enquanto não entendermos que o José Mourinho é um treinador genial, ficaremos sempre muito aquém de uma explicação (e compreensão) científica do atual treina
dor do Real Madrid. Científica? Sim, científica. No futebol (repito-me) encontramo-nos na área das ciências humanas, onde o método é o que decorre do pensamento complexo. Coisas que o José Mourinho sabe, há trinta anos!
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br