Legado é um dos assuntos mais frequentes em debates sobre a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, que serão realizados no Brasil.
No entanto, quase todas as discussões sobre o tema abordam estruturas físicas ou de serviços que o país terá de desenvolver para acomodar os dois eventos. Pouco se fala sobre algo que os torneios poderiam promover: uma revolução na cultura esportiva nacional.
A Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos são grandes oportunidades para mostrar ao mundo um pouco da cultura do país que os organiza. Mas, também são, por tudo o que representam, uma chance de o local criar novos costumes e condições. Sobretudo em sedes como o Brasil, que demandam mais intervenções na estrutura física.
O exemplo da África do Sul serve para deslindar a situação: a Copa do Mundo de 2010 foi uma plataforma para o país mostrar a relação que tem com o futebol – as vuvuzelas, por exemplo –, mas exigiu um novo conceito de consumo do esporte, guiado pelo perfil escolhido para os estádios.
Esqueçamos por alguns momentos os orçamentos estourados, a necessidade das obras, a locupletação ou a pasteurização desses equipamentos. Isso à parte, o fato é que a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos exigem um padrão diferente do que é usado, por exemplo, no cotidiano brasileiro. São estádios cobertos, com lugares numerados, lojas, restaurantes de qualidade, camarotes bem estruturados e até gramados baixos e menores, feitos para acelerar o ritmo das partidas.
Todos esses atributos são bases usadas pela Alemanha para alicerçar a Bundesliga como a liga de futebol que mais cresce no planeta. É o campeonato com maior média de público entre os grandes, tem uma política mais austera do que outras ligas e vê crescer gradativamente o faturamento dos participantes. Essa evolução tem ligação intrínseca com a transformação que o país sofreu para receber a Copa do Mundo de 2006.
A África do Sul também precisou se transformar para sediar o Mundial de 2010. O país também ergueu novos estádios, reformou outros e uniformizou a excelência entre essas arenas. Contudo, a estrutura nunca foi plenamente aproveitada.
O que distancia a Alemanha da África do Sul, nesse caso, é o foco. A Copa do Mundo feita em solo germânico foi concebida com um propósito e foi colocada em um projeto muito maior. O evento foi meio. No exemplo africano, o evento foi fim.
Entre os dois exemplos, o Brasil está, evidentemente, muito mais próximo do segundo. O país ainda pode percorrer ambas as rotas, e o que vai determinar a escolha nacional é uma combinação entre dois aspectos: organização e comunicação.
Organização aqui é um conceito extremamente amplo, que passa pela criação de uma liga administrada de forma equânime, que trate o futebol como produto e que exija profissionalização de gestão para campeonatos e clubes. Esse é um caminho claro, que só não é obrigatório porque destruiria a estrutura política e coronelista que beneficia poucos.
Quanto à comunicação, o processo ainda não é tão nítido assim, mas não há outro meio de incutir nos consumidores a necessidade de uma mudança na relação com o esporte.
Por natureza, o ser humano é avesso a mudanças. Algo como se a homeostase fosse um novo patamar na escala evolutiva. O maior desafio não é criar novidades, mas fazer com que elas sejam assimiladas.
Pensemos nos estádios, então: a Fifa exige, por exemplo, que as arenas usadas na Copa do Mundo tenham lugares marcados. O respeito a isso, porém, só será possível com um grande esforço de comunicação dentro e fora dos aparatos.
Houve problemas com desrespeito a lugares marcados na Copa do Mundo de 2010. Curiosamente, alguns deles envolveram brasileiros. Os mesmos brasileiros que respeitam locais marcados em cinemas e teatros.
Lugares marcados são apenas um exemplo do quanto a cultura em eventos esportivos pode mudar com as novas arenas. Há outros, como o fim dos ambulantes circulando dentro e fora dos estádios. É necessário que essa prática seja regulamentada e que não seja predatória. As lojas oficiais são importante fonte de receita, e a emoção de um jogo normalmente é um bom impulso para fazer os consumidores gastarem.
Tudo isso demanda comunicação. O torcedor precisa saber, por exemplo, que a Fifa cria um raio de proteção em torno das arenas usadas na Copa do Mundo. Nesse setor, é impossível circular com produtos de marcas diferentes das que patrocinam o evento. Até os bares e restaurantes nas imediações dos estádios precisam se adaptar.
O torcedor precisa saber quais são as funcionalidades de cada novo estádio e precisa entender como usá-las. Não basta prepará-lo para o clima de festa ou tentar forjar no país um Carnaval em torno dos eventos esportivos; é fundamental mostrar de forma prática como eles podem afetar o cotidiano do povo.
Nesse ponto, nenhum estádio entre os que foram inaugurados recentemente no Brasil foi competente. O último exemplo veio do Maracanã, reaberto no último sábado. O primeiro jogo no novo palco, que será sede da Copa do Mundo de 2014, foi um amistoso entre amigos dos ex-jogadores Bebeto e Ronaldo.
(Parênteses: Sim, o estádio mais importante da Copa do Mundo de 2014 foi reinaugurado em um jogo de amigos. Sim, essa é uma representação incrível de como o país funciona. Os amigos, chegados e cupinchas são sempre os primeiros.)
O foco da discussão, todavia, não é nem esse. O importante é pensar que a reabertura do Maracanã não foi sustentada por grande campanha de comunicação. E que todo o espaço foi usado para divulgar o evento, não para mostrar ao torcedor o que isso muda na vida dele.
Em Salvador, a maior campanha sobre a inauguração da Itaipava Arena Fonte Nova foi feita pela cervejaria que comprou os naming rights do aparato. Mas também foi, a exemplo do Maracanã, algo com perfil totalmente institucional.
A sensação que fica é como se Brasil estivesse comprando 14 novos supercomputadores, mas não capacitasse pessoas para operá-los ou para aproveitar plenamente as funcionalidades oferecidas.
O maior exemplo disso também foi dado na Itaipava Arena Fonte Nova. No último fim de semana, torcedores que foram ao estádio ganharam caixirolas, instrumentos criados pelo compositor e músico Carlinhos Brown e adotados pelo governo federal como artefatos oficiais da Copa do Mundo de 2014.
A experiência não podia ter sido mais frustrante. As caixirolas produziram barulho chato, comparável ao da vuvuzela sul-africana. E a situação ficou ainda pior durante o jogo: enquanto o Bahia perdia para o arquirrival Vitória, torcedores atiraram os instrumentos na direção do gramado.
As cenas dos jogadores recolhendo os objetos rodaram o mundo. Autoridades ligadas à Copa do Mundo de 2014 já
se sarapantaram com a possibilidade de algo semelhante acontecer no evento internacional.
As caixirolas, assim como os estádios modernos e reformulados, são equipamentos estranhos para o público. Não basta simplesmente jogar as coisas nas mãos das pessoas e esperar que a cultura emerja sozinha.
Essa noção é fundamental para que o Brasil comece a pensar em um plano de comunicação para os grandes eventos esportivos. Não apenas para a duração desses campeonatos, mas para o que eles deixarão no país.
O problema é que um plano de comunicação assim depende de uma abordagem sistêmica, que admita as peculiaridades de cada sede e que coloque isso a serviço de um projeto maior. Fazer algo assim é extremamente difícil com a estrutura politizada do comitê organizador local e das entidades esportivas do Brasil.
A comunicação, afinal, depende da gestão. Ignorar isso é abrir mão de todas as possibilidades que o esporte oferece.
Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br