Categorias
Sem categoria

Legado: quando o futuro encontra o passado

Não só por razões profissionais do momento, com também pela identificação com o tema da responsabilidade social no futebol, volto a abordá-lo, após brevíssimo “período sabático” que me manteve afastado da Universidade do Futebol.

Destreinado, aos poucos pego o “ritmo de jogo” nesse contato com você, leitor.

E, como aprendi desde sempre, ritmo de jogo se adquire jogando. Ou, ao que me toca, escrevendo.

Talvez por estar, deliciosamente, mergulhado na leitura do livro “Cuentos de Fútbol”, que reúne textos de ilustres autores latinoamericanos sobre futebol e cujo organizador é Jorge Valdano – o filósofo dos gramados – salta-me a inspiração para tentar “contar uma história”.

Pois bem.

Onde você acha que Pelé disputou seu milésimo jogo?

O milésimo gol, sim, é fácil. Até as histórias de tentativas, venturas e desventuras para que o Rei, finalmente, o marcasse e acabasse com a expectativa, conhecemos.

Todos queriam estar presentes nesse momento histórico. Algo como todos os que, vivos à época, afirmarem que estavam no Maracanã na final de 1950…

1971. 26 de Janeiro. Suriname. País vizinho ao Brasil ao norte. Faz calor – mesmo porque, lá, as duas estações são “calor” e “muito calor”.

Pelé chega com o Santos para disputar um amistoso contra o Transvaal, equipe da capital do país, Paramaribo.

Um único jornalista, da revista Placar, foi incumbido de acompanhar esse pouco conhecido episódio do futebol brasileiro. A missão: entregar a Pelé uma “Bola de Prata”, prêmio recém-instituído pela revista, como homenagem ao grande ídolo pelo seu 1000º jogo.

O estádio, de dimensões acanhadas para hospedar o Rei (13 mil lugares), possuía a grandeza da solidariedade humana: o lucro da partida serviria para ajudar na construção de um viaduto que pretendia servir para a redução do número de acidentes e mortes no trânsito local.

Em meio ao Primeiro-Ministro local, representante do Reino da Holanda e de estupefatos jogadores do Transvaal, Pelé recebe as homenagens e, com o jogo correndo, Pelé, no seu milésimo jogo, faz seu gol número 1070, de pênalti.

2013. 26 de agosto. Curitiba. Frio típico da cidade, daqueles em que se faz piada que “aqui, até o verão tira férias em outro lugar”.

O maior hospital pediátrico do Brasil recebe a visita de três ídolos do Botafogo, dentre eles, um craque que, um dia, foi criança no Suriname.

Clarence Seedorf. Na visita ao Complexo Pequeno Príncipe, conversa a respeito do Programa Gols pela Vida, que tem como padrinho Pelé, e que se presta a promover o legado social do grande ídolo do futebol brasileiro, na aproximação da família do futebol junto à causa da saúde infantil por meio de um grande conjunto de iniciativas.

Seedorf também fala, com orgulho, de sua entidade “Champions for Children” e do trabalho desenvolvido junto às crianças do Suriname, tendo o futebol como vetor de educação, saúde e protagonismo juvenil.

Disse a mim que seu maior sonho e, também, desafio, é fazer com que a instituição permanece viva por muitos anos, sem dele depender, porque isso é o seu LEGADO para o futuro.

Pelé, antes mesmo de Seedorf nascer, havia feito seu milésimo gol e dedicado às crianças do Brasil, afirmando que se lhes devia dar atenção e carinho, pois sempre seriam o futuro de um grande país.

Antes mesmo de Seedorf nascer, no Suriname, Pelé também havia feito seu milésimo jogo. Quis o destino que fosse lá mesmo.

Seedorf cresceu e se tornou jogador de futebol. Mais do que ídolo, virou exemplo, daqueles que são condecorados pela Fundação Nelson Mandela com o título de “Legacy Champion”, por promover a integração e igualdade étnicas.

O futuro, hoje, visitou o passado, no encontro do sonho de dois craques da bola em torno da responsabilidade social por meio do futebol.

Um grande gol pela vida, que encontrará eco até mesmo quando não estivermos mais aqui.
 

Categorias
Sem categoria

Conversa

Questionado no último domingo sobre a estreia do zagueiro Antonio Carlos, que havia sido contratado do Botafogo, o técnico Paulo Autuori enfatizou a liderança do defensor.

"Isso é algo que eu venho cobrando de todo o time. Precisamos nos comunicar mais e melhor", disse o comandante do São Paulo após a vitória por 2 a 1 sobre o Fluminense.

Como na vida, a comunicação muitas vezes é subvalorizada no futebol. Não há relação que se sustente sem atenção a isso.

Ao contrário de modalidades em que as movimentações são marcadas e treinadas com base em repetição, o futebol está alicerçado em improvisos. Por isso, qualquer lance tem potencial para mudar o panorama de um jogo. Muitas vezes, falha de atenção ou erros individuais são imperceptíveis para quem apenas vê uma partida.

Em campo, portanto, os jogadores são submetidos constantemente às duas situações: há erros, falhas ou apenas adversários mais perspicazes, e eles precisam perceber isso a tempo, planejar uma estratégia contrária e comunicar isso ao time.

Exemplifico: um jogador pega a bola na direita, faz uma trajetória em diagonal e dribla três adversários. Os defensores que ainda estiverem postados precisam pensar rapidamente em meios de compensar os espaços abertos e evitar que a bola chegue ao gol.

A lista de decisões possíveis passa por "fazer a falta", "tentar o desarme individual", "tentar o desarme com dois jogadores" ou "posicionar o corpo para impedir que ele seja obrigado a mudar de direção", por exemplo. Há muitas outras hipóteses, e a decisão é sempre de quem está em campo.

Quando eu digo que o campo dá total autonomia, muita gente já questionou e citou os treinos. Por mais que a defesa seja preparada para lidar com ataques que tenham mais adversários ou lances individuais, por mais que os movimentos sejam ensaiados, o futebol sempre tem peculiaridades. É praticamente impossível que um lance no jogo seja a repetição exata de uma simulação feita durante a semana.

O que acontece no jogo pode remeter a exemplos dos treinos, e isso pode automatizar as decisões dos atletas. Para amenizar a margem de erro, contudo, o melhor é que esses atletas consigam entender o que está acontecendo e planejar soluções. Essa capacidade de resolver problemas em um espaço curtíssimo de tempo é o maior diferencial de qualquer esporte coletivo.

Tomada a decisão sobre o que fazer para interromper a jogada do adversário, cabe ao jogador comunicar isso. Não há estratégia eficiente se for totalmente individual, descolada das ações do restante do time. Se todos tiverem iniciativa ou se ninguém tiver, as chances de o lance prosseguir são igualmente grandes.

É importante que as decisões, por mais individuais que sejam, tenham reflexo no contexto. Um zagueiro pode optar por fazer a falta para interromper o lance individual do rival, mas os companheiros dele devem se posicionar para evitar a sequência do lance. E se o atleta que sofreu a infração conseguir tocar a bola, por exemplo? E se esse toque for direcionado ao espaço deixado pelo defensor que foi fazer a falta?

Não existe decisão, por mais técnica que seja, que possa ser dissociada da comunicação. E quando eu digo comunicação, não precisa ser necessariamente um estímulo verbal. Atletas podem se falar por gestos, olhares ou até pela movimentação. O corpo também fala.

Dissociar processos é um dos erros mais comuns no esporte. É como o jogador que tem excelente índice de aproveitamento de finalizações nos treinos, mas não repete isso nos jogos. Ele pode ter a mecânica certa, o movimento correto, mas precisa saber colocar isso em prática com ações dos rivais, pressão da torcida, cansaço e outros fatores.

Volto a Paulo Autuori. Depois da vitória sobre o Fluminense – o São Paulo não triunfava desde a segunda rodada do Campeonato Brasileiro – o técnico enalteceu o ambiente que tem sido criado no time do Morumbi. "Eu acredito na harmonia", afirmou o técnico.

Conheci um jogador que pedia para levar tapas na cara antes de entrar em campo, só para aumentar a motivação. O nadador Cesar Cielo faz alto parecido ao desferir fortes tapas contra o próprio peito nos momentos que precedem as provas. Comunicação é passar mensagens. Nem sempre com harmonia.

O contraexemplo de Autuori é o técnico Dunga, que tem feito boa campanha com o Internacional no Campeonato Brasileiro. Ele pode até criar um ambiente de harmonia, mas não se comunica assim.

Dunga é raiva, é explosão, é pressão. É radicalmente o inverso de profissionais como Autuori ou Oswaldo de Oliveira, que comanda o Botafogo. E existe um estilo melhor entre os dois caminhos?

Não, não existe.

Sempre que foi questionado sobre o excesso de palavrões à beira do campo, o técnico Vanderlei Luxemburgo respondeu coisas como "ali, no calor do jogo, é impossível pedir por favor". Se você vociferar um pedido a alguém na rua, dificilmente será atendido.

Comunicação é conhecimento. É conhecer o ambiente, por exemplo, e saber que a linguagem usada durante um jogo de futebol não é pertinente em outros ambientes. Mas também é conhecer o receptor da mensagem e saber como ele lida com cada tom.

Há jogadores que se assustam com gritaria e que não rendem bem com esse tipo de cobrança. Outros, como o que eu relatei, preferem tomar tapas na cara só para atingir o grau certo de adrenalina.

A comunicação eficiente em campo segue o mesmo roteiro do que acontece fora das quatro linhas. É fundamental conhecer o assunto, o ambiente e o destinatário. A grande diferença entre as duas situações é a velocidade. Em campo, além de conhecer tudo isso e lidar com a pressão, jogadores, treinadores e outros profissionais precisam tomar decisões muito mais urgentes.

Urgência só não pode ser confundida com "de qualquer jeito". A boa comunicação é a que tem estratégias prontas para lidar com esse prazo curtíssimo. É a que entende que não se pode tratar indivíduo algum com base em generalizações.