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Os conceitos do jogo – parte II

As equipes podem fazer gol de transição ofensiva?

Sim ou Não? Qual a sua resposta?

Dando sequência ao tema da coluna anterior, será iniciada a discussão do questionamento proposto ao leitor sobre em qual classificação devem ser inseridos os conceitos de contra-ataque e transição ofensiva.
Aproveito a oportunidade para agradecer a participação de Willians Alves, Carlos Vargas, Baldini Myung, Ricardo Paraventi, Diogo Pereira e Rafael Bertelli. A contribuição de vocês foi fundamental para confirmar a relevância de discutir o tema.

O Rafael Bertelli, inclusive, disponibilizou uma entrevista de Júlio Garganta, referência mundial em pesquisa na modalidade. Abaixo, segue um pequeno trecho da entrevista:

“Que importância atribui à utilização de um léxico claro e universal no futebol?

Alguém disse um dia que uma rosa, ainda que se chamasse outra coisa, não deixaria de ter o mesmo perfume! Contudo, podemos rememorar o odor desta flor pelo simples facto de invocarmos o nome “rosa”. De facto, um léxico é um facilitador da comunicação e, no caso do Futebol, poderia ser um promotor da relação entre pares (atletas, treinadores, pesquisadores) e do avanço do conhecimento, porque permitiria centrar a atenção mais nos conteúdos do que nas respectivas designações ou “rótulos”. Por analogia com o exemplo anterior, permitia, precisamente, que não perdêssemos tempo à procura de vários nomes para “rosa” e nos detivéssemos nas suas características, nomeadamente no seu odor. Se, por exemplo, no domínio da medicina, ou da farmacologia, houvesse várias designações para cada órgão, cada patologia, cada princípio activo de um medicamento, imagine a confusão e as repercussões de tal profusão. Quem beneficiaria com isso? Nem o médico, nem o doente, nem a ciência! Só os falsos médicos e /ou os fraudulentos. É o que acontece com o desporto, onde a dispersão e a “inflação” terminológica, ao invés de se revestirem de alguma riqueza lexical, geram confusões recorrentes e desacreditam quem pretende ter uma atitude rigorosa e construtiva face à interpretação da realidade. Cada um inventa os termos a seu bel-prazer! De certo, haverá sempre espaço para inventar palavras, para criar neologismos. E ainda bem que assim é. Mas uma coisa é a arte de criar termos, criando sentido, outra é a proliferação obsoleta de termos sem que haja o mínimo consenso sobre os mesmos, o que “intoxica” a comunicação e embaraça a acção.”

Retomando aos conceitos de transição ofensiva e contra-ataque, para muitos estamos diante de uma classificação com CONCEITOS DIFERENTES E SIGNIFICADOS IGUAIS. Nessa perspectiva, transição ofensiva e contra-ataque dizem respeito a um momento do jogo que precede a organização ofensiva. É muito comum observarmos em ambientes em que se discute futebol expressões como: “a transição ofensiva da equipe A é muito veloz”, “a equipe B precisa de mais velocidade nas suas transições”, ou então, “a equipe C fez um gol numa grande jogada de transição ofensiva”.

Porém, quando se avança em leituras científicas sobre o jogo de futebol (sua interpretação e elementos que constituem sua organização), depara-se com uma classificação distinta da apresentada acima. Sob este viés, transição ofensiva é um conceito e contra-ataque é outro conceito. Logo, a situação apresentada refere-se aos CONCEITOS DIFERENTES E SIGNIFICADOS DIFERENTES. Lembrando que são as situações mais fáceis de serem solucionadas desde que não haja variações em suas interpretações.

Ao ter como sustentação teórica o pensamento sistêmico, assume-se que o jogo de futebol não deve ser divido (e pensado) nas quatro vertentes sabidamente conhecidas: Física, Técnica, Tática e Psicológica. Quando uma equipe (constituída por elementos) Joga, todas as suas ações com ou sem bola, quaisquer que sejam (não fazer nada, inclusive) são a manifestação da sua inteligência coletiva, que é tudo (Física, Técnica, Tática, Psicológica) ao mesmo tempo o tempo todo, como bem afirma Rodrigo Leitão.

Sendo assim, a divisão didática que faz sentido à observação do Jogo, deixa de ser a de suas vertentes e passa a ser a de seus Momentos (Organização Ofensiva, Transição Defensiva, Organização Defensiva e Transição Ofensiva), em função da posse de bola. Se considerarmos o Futebol como um jogo de oposição, quando uma determinada equipe encontra-se em um momento (p.e Organização Ofensiva), inevitavelmente o adversário estará em um momento oposto, seguindo o exemplo, em Organização Defensiva.

E é na divisão dos Momentos do Jogo e na tendência de fragmentarmos (bem como nas vertentes) o conhecimento (presos ao paradigma do pensamento cartesiano) que surge o conflito conceitual que, consequentemente, se estende à aplicação prática.

Para tentar facilitar a interpretação vamos continuar a discussão através de algumas imagens: 

Quando uma equipe tem a posse de bola ela está em Organização Ofensiva
Assim que uma equipe perde a bola ela está em Transição Defensiva
Quando uma equipe não tem a posse de bola ela está em Organização Defensiva
Assim que uma equipe recupera a posse de bola ela está em Transição Ofensiva

Funcionalmente, ou seja, para o jogo acontecer, as equipes apresentam comportamentos operacionais em função dos diferentes Momentos do Jogo. São eles:

Qualquer equipe executará (em diferentes níveis, logicamente) estas referências ao longo de um jogo.
Quando uma equipe está em Organização Ofensiva, executando as referências operacionais relativas a este momento do jogo, em linhas gerais, ela possui três formas de atacar o adversário. Veja quais são na imagem abaixo:

Caro leitor, convido-o novamente para contribuir com a coluna, agora com mais elementos. A pergunta que deixo, é a mesma do início do texto: As equipes podem fazer gol de transição ofensiva?
Participe!
 

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Uma chance para aprofundar o debate

Ainda é impossível medir com exatidão as consequências e a abrangência do escândalo que chacoalhou o mundo do futebol na última semana – sete dirigentes ligados à Fifa, incluindo o brasileiro José Maria Marin, foram presos na quarta-feira (27) em operação liderada pela polícia federal dos Estados Unidos (FBI). A credibilidade da entidade internacional foi abalada, é claro, mas não impediu a reeleição do presidente Joseph Blatter, apoiado pelo baixo clero do futebol mundial e aclamado pouco mais de 48 horas depois das detenções. Marco Polo del Nero, atual mandatário da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), também foi citado (não nominalmente) na investigação, mas concedeu entrevista coletiva cínica para tentar evitar que os descalabros pespegassem em sua imagem. Entre as denúncias, o trabalho de comunicação para gerir crises e as negativas de todos os lados, o episódio já serve como um excelente exemplo para discutir semântica e responsabilidade.

Vivemos uma era de rótulos, e há vários fatores que contribuem para essa discussão rasa. As redes sociais inseriram mais gente no debate e reduziram o espaço para as ideias, por exemplo, e isso criou um perigoso cenário em que apontar dedos é mais simples do que tentar entender contextos.

Na última sexta-feira (29), mesmo dia em que Blatter foi reeleito e Del Nero negou qualquer envolvimento com os esquemas, um episódio em São Paulo mostrou o quanto a sociedade brasileira atual tem sofrido uma crise de ideias e valores. Protesto realizado na Universidade de São Paulo (USP) acabou com cinco manifestantes feridos, um deles detido. Uma garota levou UM SOCO NO ROSTO de um POLICIAL MILITAR, oficial que em tese vive para proteger os cidadãos.

Instantes antes, o mesmo policial disparou spray de pimenta na jovem e em outra manifestante. Tudo que elas faziam de extremamente perigoso era mexer na mochila de um jovem que havia sido detido, e a ação foi inteiramente gravada. O oficial não tentou conversar ou controlar a situação em momento algum.

O caso de abuso é apenas um exemplo da falência da PM como instituição. O modelo militarizado e opressor simplesmente não condiz com a sociedade moderna. Não cabe e não pode ser admitido. E aqui não interessa se ela começou, agrediu, incitou ou provocou – nem foi o caso, mas esses são os primeiros argumentos usados por qualquer defensor da Corporação. Os policiais trabalham para a sociedade e não para combater a sociedade. Essa violência – como tantas outras, aliás – é simplesmente inaceitável.

A digressão e a relação com o exemplo do PM serviram apenas para mostrar que temos vivido uma crise de ideias. Nosso padrão de debate tem sido cada vez mais o que se viu no vídeo do protesto da USP: violência, confronto, excesso de força e poucas palavras.

O risco que se corre, nesse caso, é perder a razão. Ainda que a manifestante estivesse errada, o policial acabou com qualquer chance de discussão ao partir para a agressão. Ainda que ela tivesse feito isso antes, NÓS NÃO PODEMOS ADMITIR UMA SOCIEDADE DE OLHO POR OLHO.

Por tudo isso, é fundamental ter cautela quando acontece um escândalo de proporções tão grandes quanto o da Fifa. Como escreveu o jornalista Juca Kfouri, o benefício da dúvida a Del Nero só pode ser má fé ou ingenuidade. No entanto, não se pode confundir a convicção com base jurídica.

Enquanto houver uma investigação em curso, suspeitos são apenas suspeitos. Sobre isso, costumo citar sempre o filme “12 homens e uma sentença”, obra de tribunal dirigida por Sidney Lumet em 1957. Sem qualquer comparação com o caso atual, aquele é baseado em um júri de assassinato: todos os indícios levam à condenação do réu, mas um dos jurados começa a desconstruir os argumentos até incutir a dúvida na cabeça de todos.

Nesse caso, portanto, não se trata de ingenuidade, promiscuidade ou pusilanimidade: os fatos são suficientemente fortes para que sejam apurados e causem impacto nos alicerces do futebol mundial. Transformar isso em rótulos rasos só faz mal para o debate.

O futebol mundial tem atualmente uma oportunidade rara para criar uma discussão ampla, que inclua diferentes segmentos e que contribua para a evolução do jogo como evento social. Para isso, porém, é fundamental que o debate supere os rótulos ou a gritaria.

Marin foi preso, e Del Nero ainda deve sofrer consequências. Apontar dedos, porém, vai apenas mudar as moscas. Como disse o Ulisses Guimarães, em frase relembrada pelo jornalista Luis Augusto Simon, “não existe vácuo de poder”. Derrube os atuais comandantes do futebol e mantenha as estruturas intactas, e os problemas vão persistir.

É claro que achar culpados é relevante. É claro que necessitamos de um trabalho de investigação que seja minucioso e que indique as pessoas que se beneficiaram ilegalmente de um jogo que é paixão global. Contudo, o que está em jogo é a cultura de todo o esporte, e nesse cenário os nomes importam menos do que a discussão.

Como segmento, o futebol precisa de auditoria. Ainda que instituições como a CBF e a Fifa sejam privadas, elas são foco de interesse público. Por isso, devem prestar contas à sociedade – e não apenas no aspecto financeiro. Saber quanto essas entidades ganham e como elas gastam esses recursos é relevante, mas aqui a palavra “auditoria” é mais abrangente: é preciso saber por que elas tomam determinadas decisões e como elas usam a influência que o esporte oferece.

Pela abrangência que tem e pelas paixões que desperta, o futebol é um agente social com enorme potencial de formação e transformação. Até por isso, é fundamental que criemos ambientes em que o segmento seja discutido – esses debates não podem ficar restritos ao ambiente acadêmico ou às pessoas que fazem parte do segmento.

Como em qualquer crise, o futebol tem agora uma chance de autoanálise, e isso tem de ser muito maior do que apenas algumas prisões. Resta saber se as pessoas que comandam a modalidade terão maturidade para enxergar numa crise de imagem uma chance de reinvenção. Sem rótulos e com profundidade.