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Fabiano Costa, diretor jurídico do Cruzeiro

A transformação do futebol brasileiro, de muitas ideias e raras aplicações, passa pela profissionalização do setor jurídico dos clubes. Duas das pautas mais recentes, o Profut e a proibição de compra dos direitos econômicos dos jogadores por parte de terceiros esbarram na esfera do direito desportivo, que hoje é tratado com a devida importância no futebol brasileiro – salvo algumas exceções.
No Cruzeiro há quase 20 anos, Fabiano de Oliveira Costa é diretor jurídico e faz um trabalho integrado com as áreas comercial e administrativa, atuando na prevenção e orientação aos departamentos. Se não fosse o trabalho do jurídico, composto por cinco profissionais ao todo, o time mineiro não teria os 70 mil sócios-torcedores, afinal a participação do setor é crucial.
Recentemente, o Cruzeiro aderiu ao Profut, programa de refinanciamento das dívidas fiscais proposto pelo Governo Federal. A despeito disso, Costa diz que a nova lei não resolve os problemas do futebol nacional e sugere a criação de uma legislação destinada ao esporte, com o propósito de regular contrato de atletas, televisão, profissionalização da arbitragem, gestão desportiva, justiça desportiva, entre outras áreas.
“O Profut não é a salvação e nem foi feito com essa pretensão. O que salvará é uma legislação esportiva, trabalhista, tributária e civil voltada ao esporte”, defende.
Sobre a intervenção de terceiros, agora proibida oficialmente pela Fifa no que diz respeito à negociação de jogadores, o diretor jurídico do Cruzeiro faz ressalvas. “Acho que isso somente prejudicou os clubes da América do Sul, que precisam de investimentos privados no esporte. Não se contrata bons atletas, de renome, com recursos provenientes somente dos times. É claro que haviam abusos, mas acho que houve uma generalização da proibição, que poderá prejudicar hora da contratação e transferência de novos jogadores”, opinou Fabiano Costa.
Na entrevista concedida à Universidade do Futebol, o especialista em direito desportivo comenta ainda sobre a má avaliação da mídia e dos torcedores em relação aos tribunais de justiça desportiva. Admite que mudanças são necessárias, mas aponta para a falta de conhecimento dos torcedores sobre o trabalho dos auditores e procuradores. Confira:
Universidade do Futebol – Fale um pouco sobre a sua formação e ingresso na esfera profissional do futebol.
Fabiano Costa – Me formei em direito em 1999, com pós-graduação em direito civil e processo civil em 2003 e mestrado em direito empresarial em 2010. Comecei no direito desportivo como estagiário no Cruzeiro EC em 1997, quando estava no sétimo período. Desde então, há quase 19 anos, milito diariamente nessa área.
Universidade do Futebol – Como é o trabalho cotidiano no Cruzeiro e os problemas que enfrenta no dia a dia na sua área de atuação? Todas as questões jurídicas são tratadas dentro do clube ou há alguma área terceirizada?
Fabiano Costa – O trabalho realizado aqui é bem intenso. O Cruzeiro é um clube muito grande, com quase 600 funcionários, com dois clubes recreativos, dois centros de treinamento e uma sede administrativa. Assim, o clube se relaciona muito, com relações jurídicas em várias áreas, comercial e administrativa. Exatamente por isso, temos uma grande demanda interna de contratos, pareceres jurídicos, orientações e reuniões diárias entre os vários setores do clube. Atuamos de maneira muito intensa na prevenção e nas orientações aos departamentos. Atualmente, nossas principais demandas envolvem questões de torcedores e trabalhistas. Com exceção do tributário, todas as demais questões, contenciosas e administrativas, são tratadas internamente no departamento jurídico do clube, que é composto, além de mim, pelos doutores Felipe Fiedler, Fernanda Saade, Vinicius Machado e Edison Travassos.
Universidade do FutebolNa sua opinião, há clubes que não dão a devida importância e reconhecimento ao departamento jurídico? Explique.
Fabiano Costa – Sem dúvida, mas felizmente são poucos. Hoje em dia notamos que os dirigentes perceberam a necessidade da criação e manutenção de departamentos jurídicos nos clubes, com advogados atuantes e especializados no direito desportivo, com investimentos na sua formação e estrutura. Aqueles que ainda não concluíram por essa necessidade passam por diversos problemas de ordem administrativa e contenciosa. É muito comum em algumas negociações de atletas nos depararmos com bons advogados de outros clubes, mas que não possuem conhecimento jurídico da área desportiva, o que traz uma série de dificuldades no entendimento de conceitos básicos e a sua visão prática da área do futebol. Isso costuma até mesmo inviabilizar uma negociação.
Universidade do Futebol Um dos grandes problemas enfrentados pelo torcedor brasileiro em eventos esportivos diz respeito à comercialização de ingressos. E de acordo com o Estatuto do Torcedor, os bilhetes devem ser numerados e o consumidor tem o direito de ocupar o local correspondente ao número de seu ingresso no estádio. Por que há uma distância tão grande entre teoria e prática?
Fabiano Costa – Essa distância se dá, a meu ver, por uma razão muito simples: pretende-se impor ao torcedor uma cultura pela lei, e não pela instrução, educação e orientação. Isso somente será resolvido quando se perceber que a legislação não muda cultura, não a impõe. É imprescindível que se oriente o torcedor e que se demonstre a ele os benefícios dessas mudanças, a fim de que possa aderir de maneira consciente e definitiva. O trabalho deverá ser contínuo, persistente e adequado.
Universidade do Futebol – O Cruzeiro está entre os primeiros na lista de sócios-torcedores no Brasil. Qual o segredo do sucesso e até que ponto o departamento jurídico contribui?
Fabiano Costa – O departamento jurídico participou de todo o projeto desde a sua concepção. Elaboramos os regulamentos, verificamos as possibilidades, avaliamos consequências. Dentro da execução do projeto, participamos ativamente das adequações e aperfeiçoamentos. Hoje o Cruzeiro é o sexto no país de adesão ao sócio do futebol, com cerca de quase 70 mil torcedores, com baixíssimo nível de demandas e problemas. Há de se ressaltar que é um trabalho constante, sempre disponibilizando o melhor serviço ao torcedor. Em algumas intervenções e adequações feitas pelo departamento jurídico, como por exemplo a alteração de datas e prazos do regulamento, evitamos uma série de problemas ao clube.

Fabiano 6

Universidade do Futebol – A Lei Pelé já completou uma década e passou por algumas atualizações. De maneira geral, você acredita que a legislação brasileira favoreça a gestão de um clube de futebol? Em sua opinião quais os pontos positivos e negativos a serem ressaltados nesta atualização?
Fabiano Costa – A Lei Pelé é, sem sombra de dúvidas, o maior problema do direito desportivo. É uma legislação ruim, contraditória, confusa e de baixo entendimento. Foram várias e sucessivas alterações que nada acrescentaram. Faz-se necessário uma nova legislação desportiva, valendo-se de conceitos e institutos consagrados no Direito do Trabalho, Direito Civil, Direito Empresarial, Tributário…, mas com regras próprias para as atividades desportivas, inclusive para o futebol, mas não somente para ele. Talvez seja o momento de discutirmos um Código do Desporto, que regulará todas as relações desportivas, contrato de atletas, televisão, profissionalização da arbitragem, da gestão desportiva, a justiça desportiva, etc. A legislação atual é péssima para a gestão e péssima para torcedores e atletas. O Brasil, pela complexidade que o desporto se apresenta, precisa urgentemente de uma regulamentação compatível com a grandeza das instituições, com a dedicação e esforço de clubes e atletas, para que o espetáculo seja cada dia melhor, em todas as modalidades desportivas.
Universidade do Futebol – Quais as principais medidas de caráter estrutural que você julga fundamentais para o avanço da legislação desportiva brasileira? Pela importância e tradição, não deveríamos ter uma legislação que contemplasse unicamente o futebol?
Fabiano Costa – Acho que devemos pensar num Código Desportivo ou Código do Desporto, uma compilação de leis que alcance todas as áreas do esporte. Evidentemente que, pelo volume de negócios, interesses e pessoas envolvidas, o futebol mereceria um capítulo à parte, tratando das relações desportivas de maneira mais objetiva, clara e eficiente. Como exemplo que sempre defendo para alteração da legislação desportiva é a possibilidade de flexibilização das regras trabalhistas, em contratos de trabalho e imagem a serem firmados entre clubes de futebol e seus atletas, desde que com parâmetros claros e objetivos. No futebol europeu é possível a contratação de atleta por temporada, mediante valor fixo, sem delongas. Estabelecido alguns parâmetros, como por exemplo o piso salarial mínimo, a lei pode se tornar flexível para permitir melhores salários, objetividade e simplicidade nas relações. O que acontece hoje é uma legislação demasiadamente interpretativa, que não fornece segurança jurídica e nos torna incapazes de atender devidamente aos interesses das partes.
Universidade do Futebol – Recentemente, a Fifa acabou de maneira oficial a intervenção de terceiros no futebol por meio de direitos econômicos. Quais as consequências que isso terá para o nosso futebol?
Fabiano Costa – Acho que isso somente prejudicou os clubes da América do Sul, que precisam de investimentos privados no esporte. Não se contrata bons atletas, de renome, com recursos provenientes somente do clube. Os clubes europeus são ricos e independem de investimentos de terceiros, ao contrário dos brasileiros. É claro que haviam abusos, nos quais o clube se passava por mero detentor do contrato de trabalho sem qualquer participação na venda de atletas que formava, pagava salários e custos. Isso é abusivo e merece controle. Mas acho que houve uma generalização da proibição, que poderá prejudicar os clubes na contratação e transferência de novos atletas. Talvez fosse o momento da proibição, mas com critérios mais razoáveis e equilibrados.
Universidade do Futebol – Em sua opinião, por que os tribunais de justiça desportiva, invariavelmente, não têm uma boa avaliação por parte da mídia especializada e do torcedor? Que tipos de procedimentos poderiam ser adotados para melhorar essa avaliação ruim?
Fabiano Costa – Não restam dúvidas de que algumas mudanças são sempre necessárias, como maior rotatividade dos cargos, critérios técnicos na admissão de auditores e procuradores, independência maior do tribunal, mediante contratação remunerada de auditores e procuradores pelo próprio tribunal (profissionalização), com orçamento e independência financeira, entre outros. Mas as queixas dos torcedores contra o tribunal são geralmente resultado de desconhecimento sobre seriedade do trabalho e da dedicação que se desenvolve ali e da entrega pessoal dos auditores e procuradores em favor do esporte. Ademais, nenhum torcedor gosta de ver seu time punido, e isso é feito exatamente no tribunal.
Universidade do Futebol – De maneira geral, como você analisa os departamentos jurídicos dos clubes brasileiros? Eles estão realmente preparados para as responsabilidades para as quais são designados?
Fabiano Costa – Na grande maioria dos departamentos que conheço, a qualidade é inquestionável. São pessoas dedicadas ao trabalho, interessadas no direito desportivo, muito ao contrário do que havia há 15 ou 20 anos atrás, quando o trabalho não era feito por profissional específico, mas geralmente ligado a conselheiro ou amigo do clube que trabalhava no departamento jurídico de maneira espontânea, com menos cobranças e metas. Hoje a profissionalização leva a resultados.
Universidade do Futebol – Atualmente, o clube formador tem até 5% dos direitos sobre o jogador que revelou para o futebol em negociações futuras. Você não acha esse valor pequeno e a regra confusa? E qual é o papel do departamento jurídico e do clube para garantir a indenização sobre o atleta formado?
Fabiano Costa – Sinceramente, minha opinião pessoal é que acho a própria existência do direito de formação questionável. Ao vender o atleta formado no próprio clube, este já foi devidamente remunerado e indenizado pela formação, ou seja, ao colocar o seu preço de venda, o clube formador tem que ter como parâmetro um valor de negócio compatível com os custos da formação e com o retorno que considera justo pelo investimento que fez durante essa formação. No início, a Fifa criou essa regra a fim de democratizar os lucros na venda de atletas, principalmente visando os clubes menores pelos quais o atleta passou. Acho que é pouco e não resolverá problema financeiro de clube nenhum. O que precisamos é uma legislação bem feita, adequada à realidade, garantindo a formação, melhor racionalidade tributária, profissionalização da gestão, auxílio institucional aos clubes, e não essas participações da venda.
Universidade do Futebol – O Cruzeiro aderiu ao Profut recentemente. O que você pensa sobre a lei e quais as dificuldades que o clube tem encontrado para se adequar às exigências? Além disso, você acredita que o Profut significará, de fato, a salvação financeira dos times brasileiros? Por fim, o que você pensa sobre as contrapartidas exigidas? Explique.
Fabiano Costa – Como disse, o que salvará os clubes é uma boa legislação desportiva, trabalhista, tributária e cível voltada ao esporte. A grande maioria dos clubes somente aderiu ao Profut em razão da ilegalidade e inconstitucionalidade do artigo da lei que alterou o Estatuto do Torcedor, estabelecendo como critério técnico para participar das competições a exigência de CND – Certidão Negativa de Débitos. Ou seja, se não tiver CND é rebaixado de divisão a qual estiver classificado, e não mais por critérios técnicos conseguidos dentro de campo. Não fosse isso, certamente não haveria adesões ao Profut, que se revelou um ingerência ilegal na organização desportiva. Até mesmo estatutos dos clubes precisaram ser alterados. Não é a salvação dos clubes e nem foi feito com essa pretensão.
Universidade do Futebol – O jogador de futebol não tem direito à aposentadoria e, muitas vezes, a maior parte dos vencimentos é pago via direitos de imagem. Por outro lado, há grupo de dirigentes que dizem que os atletas são beneficiados pela lei, ganhando diversas causas trabalhistas. Qual é a avaliação que você faz sobre o tema?
Fabiano Costa – O atleta sempre terá direito à aposentadoria, desde que o clube esteja recolhendo devidamente os encargos trabalhistas e, se não tiver, o atleta tem meios de defender seus interesses, seja por meio do Sindicato dos Atletas ou de advogado particular. O atleta é, sem sombra de dúvidas, o maior beneficiado pela atual redação da Lei Pelé, em especial no que se refere às questões trabalhistas, ressalvando-se, claro, que há diferenças substanciais nas relações entre atletas de clubes grandes e pequenos. São causas milionárias, absolutamente injustas. A existência do pagamento do direito de imagem fora do contrato de trabalho, por vezes, é exigência do próprio atleta, que se torna beneficiado no pagamento dos tributos. Entretanto, ao sair do clube, procuram a justiça do trabalho para ver reconhecido o suposto salário “por fora”. Por outro lado, se não há pagamento de direito de imagem, também procuram a justiça por que seu nome e imagem foram usados “ilegalmente” em álbum de figurinha, video games, internet, aplicativos e outros. Vejam, pois, a contradição e a dificuldade. Como a legislação é muito ruim, acaba por tornar as coisas ainda mais difíceis que já são pela especificidade da atividade desportiva.