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O jogo que queremos

O meio-campista Paulinho, 29, titular da seleção brasileira que disputa a Copa do Mundo de 2018, contou no site “The Player’s Tribune” uma história que deveria ser obrigatória para todos que trabalham com futebol. Aconteceu em 2015, quando ele teve uma oportunidade de trocar o Tottenham, time em que vinha sendo pouco aproveitado, pelo chinês Guangzhou Evergrande.
“Meus amigos pensaram que eu tinha ficado maluco. Eles me escreveram dizendo: ‘China? O que você vai fazer na China?’. Eu respondi: ‘China, cara. Vamos ver’. Eu vivo de acordo com o que o Dani Alves uma vez me disse, quando eu estava passando por um momento difícil na minha vida. Ele falou: ‘Nós somos apenas moleques brincando na chuva, cara. Se der errado, e daí?! É o fim do mundo?! Não, cara. A gente encontra outro lugar para brincar’.”
A evolução do futebol em diferentes âmbitos mudou radicalmente o processo de tomada de decisão no jogo. Nas últimas décadas, cada passo de um atleta em campo tem sido sustentado por uma carga de estudo que abarca segmentos como preparação física, psicologia, pedagogia, fisioterapia, medicina e os próprios fundamentos do jogo. Ver uma partida de dez ou 20 anos atrás é suficiente para entender a alteração na dinâmica, na velocidade e nas demandas técnicas do esporte. Mas isso não muda um princípio basilar: por mais científico, sério e cheio de alternativas oriundas de diferentes áreas, o futebol é e sempre vai ser um jogo. No fim, aqueles atletas correndo atrás de uma bola são, como disse Daniel Alves, crianças brincando na chuva.
A comparação, importante frisar, não tem nada a ver com seriedade. Daniel Alves pode defender que jogadores não são nada além de crianças brincando na chuva, nunca usou essa lógica para ser irresponsável. Ao contrário: detém o currículo mais vitorioso da história do esporte. Respeitar o futebol também é saber levá-lo com alegria e tratá-lo como o entretenimento que é.
Entender essa lógica é parte fundamental de qualquer análise sobre desempenho de grandes seleções na Copa do Mundo de 2018. Sobretudo num momento em que há um debate extremamente polarizado sobre o estilo da Espanha, eliminada pela Rússia nas oitavas de final.
Forjada a partir da Euro 2008, a Espanha consolidou nos anos seguintes um perfil de troca de passes e valorização da posse de bola. Uma geração influenciada pelo Barcelona de Pep Guardiola, alicerçada no dueto entre Xavi e Andrés Iniesta no meio-campo. Foram dois títulos continentais e uma Copa, sempre a partir de um estilo.
No entanto, o futebol de hoje não é o de 2010. A média de passes trocados pela Espanha na Copa deste ano supera em quase 200 a quantidade de toques que os jogadores da Fúria distribuíram na campanha do título da África do Sul. A posse de bola continuou, mas as defesas evoluíram a ponto de isso não ser suficiente para encontrar espaços. O desafio que se apresentou a eles foi conciliar a valorização da posse de bola com o sentido mais agudo e mais capaz de decidir.
O estilo da Espanha é fundamental como marca e como identidade, mas a seleção se afastou do contexto durante os anos. E ao fazer isso, tornou-se um produto pouco afável a diferentes públicos – ainda existe um grande número de seguidores do que a equipe representa, mas o perfil também gerou um grupo significativo de detratores. Essa dicotomia é uma das marcas da Copa do Mundo de 2018.
Numa competição marcada por fracassos de times como Alemanha e Espanha e pelo ocaso de estrelas como Cristiano Ronaldo, Lionel Messi e o próprio Iniesta, uma das marcas mais evidentes do Mundial da Rússia é a distribuição de questionamentos sobre o jogo enquanto produto de entretenimento.
Como produto de entretenimento, o futebol tem uma missão de divertir. Ganhar é parte fundamental do jogo, mas o encantamento é uma vitória ainda maior na relação com o público consumidor. A Espanha da Copa de 2018 aqueceu novamente um debate sobre isso.
Há outros debates sobre a Copa de 2018 que partem da mesma lógica. O comportamento de Neymar, a falta de gols de Gabriel Jesus, as seleções que Messi e Cristiano Ronaldo não conseguem carregar nas costas: no limite, todas as discussões são sobre o futebol que o público gostaria de ver e não consegue.
A Copa do Mundo de futebol é o maior evento de entretenimento do planeta. Nada consegue atingir uma audiência tão massiva ou despertar tantas reações de impacto ao redor do planeta. Até por seu gigantismo, também é um exemplo de que o jogo real nem sempre é o que as pessoas querem ver.
Esse é um enorme problema de comunicação, aliás. A Copa pode ser gigante, movimentar orçamentos gigantes e chegar a públicos gigantes, mas o sucesso do futebol tem relação com sua essência: afinal, são apenas meninos brincando na chuva.