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Breves notas sobre o processo de humanização no futebol

Heung-Min Son, em prantos: quanta humanidade existe em cada ação dentro do campo? (Divulgação: Washington Post)

 
Na última semana, neste mesmo espaço, fiz uma breve crítica à ideia de lado humano, que vejo bastante replicada ultimamente, quando se pretende falar sobre o processo de humanização de atletas, em qualquer nível. Em linhas gerais, é um termo bem-intencionado, mas que reforça (de maneira subliminar) o humanizar como se fosse secundário, lateral. É o oposto do que defendemos: o humano não tem lados e, mesmo se os tivesse, o lado humano não poderia ser comparado a nenhum outro. Atletas, antes de serem atletas, são humanos, não o contrário.
Por isso, tenho defendido aqui um debate mais rigoroso sobre o significado da humanização no futebol. Evidentemente, falamos de um aprendizado em mão-dupla: este mesmo espaço, a partir dos desafios que me cria, tem sido fundamental para refinar meu próprio entendimento.
Um dos resultados dessa troca – com leitores e leitoras ou mesmo pessoas mais próximas – é a desconfiança de que há um certo desejo por conteúdos mais ‘práticos’, aplicáveis. Bem, repare que a aplicação é menos dependente dos conteúdos, em si, do que do olhar de quem os vê. Mesmo assim, compreendo a importância de um olhar mais processual, talvez mais claro para quem trabalha no campo e precisa, de alguma forma, de resultados concretos.
Por isso, baseado não apenas nos estudos a que me dedico ultimamente, como na minha breve experiência profissional, como professor e treinador, deixo abaixo três perspectivas, três ajustes que julgo necessários caso queiramos avançar no processo de humanização – que me parece decisiva em um futuro próximo, independentemente do contexto no qual você trabalhe. Espero que os apontamentos sejam úteis e que, na medida do possível, despertem as inquietações capazes de pavimentar um caminho melhor.

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O primeiro ajuste que aponto é um ajuste do pensar. Sendo mais claro: é preciso que nosso pensar se reconcilie ao real, não aos ideais. Por algum motivo (talvez uma herança platônica incompreendida), várias das nossas expectativas sobre o jogo, como atletas, treinadores e afins, não estão baseadas nas contradições intrínsecas ao jogo real (que é o jogo que jogamos), mas nos ideais, nos devaneios auto centrados que alimentamos sobre o jogo, ainda que eles desconsiderem a imparcialidade, a indiferença e a independência do jogo frente aos seus próprios jogadores.
Uma das grandes manifestações modernas deste fenômeno, se me permitem, reside na ideia de modelo de jogo. Tenho me convencido de que o modelo está deixando de ser um norte, uma bússola criada exatamente para nos localizar, como equipe, nos diversos momentos do jogo, para se tornar uma utopia, um ideal absolutamente distante que compromete nosso olhar crítico sobre o real. Dessa forma, estabelecemos um sarrafo maior do que nossos corpos podem saltar.
Comprometer-se com o real significa, dentre outras coisas, comprometer-se com os limites humanos: a racionalidade humana é finita e, além disso, há uma série de variáveis no processo que escapam de qualquer controle racional de treinadores e treinadoras. Não se trata simplesmente de trabalho: trata-se de reconhecer que há variáveis invisíveis, intocáveis, mas que estão ali, dentro e fora do ambiente do jogoComo dissemos anteriormente, é noite e treinadores e treinadoras precisam virar-se no escuro.
Mas o quão preparados estamos?

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Um segundo ajuste importante é o ajuste do olhar. Sendo específico: um ajuste do olhar sobre o jogador.
Quando um atleta toma uma decisão em campo – uma ação tática, digamos – aquela não é uma ação apenas tática, é uma ação humana. Não creio que uma ação humana deva ser vista apenas como expressão das interrelações entre tático, técnico, físico e afins – isso está mais ou menos claro – mas sim algo maior: qualquer ação em campo é uma espécie de sintoma, é um rastro deixado pelo atleta, um sinal de algo mais profundo. O erro em um passe vertical forçado, ou uma distração na recomposição defensiva têm um significado anterior, são signos absolutamente particulares, que justificam aquela ação, daquele atleta, daquela forma. Se nos ativermos apenas aos sintomas (ou seja, às ações), desconfio que possamos nos equivocar, pois não é nos sintomas que reside uma patologia. É preciso investigar as causas, enxergar na escuridão.
(este, aliás, é um dos motivos que me fazem ter ressalvas com as metodologias de ensino/aprendizagem baseadas na técnica, como veremos abaixo. Elas agem sobre os sintomas).
Assim, nosso olhar deve perseguir o não-visto, a causa oculta. Isso não significa, sob hipótese alguma, que a função de treinadores e treinadoras seja, ao menor sinal, tirar conclusões taxativas, criar rótulos: além do caráter reducionista, atitudes neste nível são meras ilusões, opiniões distantes da verdade. O passo que proponho – imagino que os leitores e leitoras concordarão comigo – é o passo do reconhecimento diário da humanidade oculta nas ações tático-técnicas. Apesar do discurso politicamente correto que se ouve aqui e ali, isso ainda não ocorre. É preciso uma prática regular, reflexiva, para que nosso olhar seja de fato menos fragmentado, menos específico, mais humanizado.
Sem isso, caminhamos a passos largos para tratar nossos atletas como coisas, não como gente. E a humanização está no extremo oposto da coisificação.

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Finalmente, acho preciso um ajuste do jogar. Neste caso, um ajuste metodológico: treinamentos baseados em jogos me parecem absolutamente mais humanizantes, em qualquer nível (iniciação, especialização ou rendimento) do que os métodos analíticos. Por ora, ofereço três argumentos:

  1. I) o método analítico, para além de fragmentar o jogo, fragmenta o próprio pensamento do atleta. Quando treina repetidamente um passe curto com o pé direito, o atleta está reforçando as estruturas cognitivas que sustentam os passes curtos com o pé direito. Mas o passe curto com o pé direito não é um fim em si mesmo: é um dos inúmeros instrumentos para se jogar bem.

Quando nossas metodologias enfatizam somente os instrumentos, separadamente, posso inferir que entendemos nossos atletas não como pessoas unas, dotadas de sistemas fisiológicos, cognitivos e morais em absoluto diálogo, mas sim uma série de compartimentos que, trabalhados e preenchidos separadamente, podem alcançar um fim maior. Veja bem, eles até podem fazê-lo, mas seria essa a solução mais realista? Será que a vida é uma série de histórias que se preenchem separadas ou de histórias que se fazem em intersecção?
Quanto mais separado o pensamento, me parece, menos humanizante ele será.

  1. II) o treinamento analítico é cúmplice do acerto. Se eu erro todos os meus passes curtos, não treinei bem. Se eu acerto todos – mesmo sem qualquer oposição, sem pressão externa, sem um objetivo coletivo, tive um ótimo dia! Em alguma medida, isso me lembra uma espécie de linha de produção, um apertar de porcas da bola, hiperespecífico, que nos traz novamente à crítica feita acima.

No jogo, repare que há uma diferença importante: o jogo (quando bem feito) não apenas permite, como induz o jogador à experiência do erro. Por quê? Porque no jogo, no jogo jogado, não há controle. Não há controle, há pura e simplesmente fluidez, constrangimento, tomada de decisão… e erro! Se o errar é humano, e se é a experiência do errar que permite o salto cognitivo para os acertos em base regular, por que a fuga do erro? Por que não aceitar o erro como parte inexorável do processo? Por que não encará-lo, exatamente como fazíamos na pedagogia da rua?
Em alguma medida, sinto que a fuga do erro cria atletas razoavelmente inseguros, não apenas desacostumados, como desconfortáveis com o erro no jogo formal, o que compromete não apenas a percepção do próprio jogo como, por conseguinte, a experiência existencial de cada um de nós. A ausência de linearidade, a sobreposição de erros e acertos, são parte da vida vivida e, neste sentido, fica claro que não apenas treinamos atletas para as situações do jogo mas, além disso, treinamos pessoas para os desafios existenciais dos quais não se pode fugir.
Este me parece o sentido da humanização.

  1. III) ou seja, para além da função puramente pedagógica, perceba que o jogo tem uma função existencial. O jogo, não se esqueça, opera na base da suspensão temporária da realidade. O jogo é uma forma de escape!

Metodologias baseadas em jogo – desde que com o devido rigor metodológico – permitem aos atletas a completa entrega ao mundo do jogo, o assim chamado estado de jogo. Entrar em estado de jogo é euforia, é licenciar-se do real através de elementos reais (repare na aparente contradição), e a riqueza deste processo é mais do que admirável, porque ao mesmo tempo em que nos damos ao direito da aprendizagem, o fazemos mediante um pequeno empréstimo, uma fuga requerida pela nossa própria sanidade mental. O jogo, em qualquer contexto, é uma experiência absolutamente terapêutica.
Que não se encerra em quem joga: repare que também é terapia para quem conduz o processo. Imagino quantos são os leitores e leitoras que, quando dão seus treinos, se esquecem inteiramente da vida externa, dos problemas que afligem a todos nós, por pura e genuína entrega ao jogo. Se a embriaguez, literal ou metafórica, é tão procurada, por que não embriagar-se regularmente do jogo, entregar-se sinceramente a ele, explorando sua riqueza ética e estética?

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Repare apenas, por fim, que em momento algum negamos a técnica. Muito pelo contrário! Humanizar também é deslocar: a técnica, estanque, é prata.
Mas a técnica, viva, é ouro puro.