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Sobre a quebra da pressão por encaixes

David Neres: no Ajax de Erik ten Haag, liberdade para buscar a bola fora do setor. (Reprodução: Uol Esporte)

 
Não faz muito tempo, e conversávamos aqui sobre a quebra da primeira linha de pressão adversária. Foi um momento interessante, no qual pude dizer, de maneira genérica, algumas ideias que me ocorrem sobre a primeira fase do ataque.
Quando atacamos, podemos enfrentar, grosso modo, três tipos de marcação: uma individual, outra individual dentro de um setor ou, por fim, uma terceira, por zona. Neste texto, gostaria de falar sobre a superação de uma pressão individual no setor, em um cenário muito específico: uma equipe que ataca a partir de uma linha de quatro contra uma equipe que se defende também com uma linha de quatro.
Vejamos.
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O motivo da minha escolha temática é simples: as pressões individuais no setor são, provavelmente, as que mais encontramos por aqui. Podemos pensar em dois motivos principais: I) são raras as marcações puramente individuais, seja pela grandeza do terreno de jogo, seja pela destruição em potencial que uma individual pura pode acarretar (imagine, por exemplo, as repercussões de marcar individualmente um jogador que sai de uma ponta para a outra); II) são poucas as equipes brasileiras que partem, puramente, de referências zonais, talvez por uma herança cultural, ainda capilarizada no nosso processo formativo, que pode até ser amenizada ao longo dos próximos anos. Por fim, talvez nem mesmo as individuais no setor existam puramente – o que nos leva a um caminho interessante, ainda que longe do objetivo deste texto: o ato de marcar não é sólido, é fluido. As referências existem, condicionam a ação, mas são inteiramente deslocáveis de acordo com as demandas do jogo.
Bom, a situação que desenho aqui se assemelha muito ao cenário visto no recente Vasco x Flamengo, pela final do Campeonato Carioca, no último domingo. Basicamente, tive a impressão de que a pressão do Flamengo, organizada a partir de encaixes no setor, e que o Vasco teve dificuldades para superar, foi central para o encaminhamento que já se desenhava no primeiro tempo e que, mais tarde, seria materializado no resultado. Pensemos aqui, portanto, em um cenário parecido ao que houve neste jogo: uma equipe que ataca em 4-2-3-1 contra uma outra equipe que se defende em uma espécie de 4-1-4-1.
Neste caso, há uma primeira superioridade muito clara. Ela está logo no início da construção: com dois zagueiros contra um atacante, temos invariavelmente uma possibilidade a mais nesta fase. Caso o goleiro desta mesma equipe se sinta confortável jogando com os pés (como é o caso de Fernando Miguel, do Vasco), nada impede que tenhamos, portanto, eventuais situações de 3 v 1, o que permitiria vantagens muito interessantes na primeira fase da construção. Para isso, é preciso circular a bola até encontrar o zagueiro, dentre os dois, que tenha tempo e espaço suficientes para conduzir a bola adiante, quebrando a primeira linha. Repare que a circulação, por si só, não basta: ela precisa ser consideravelmente rápida, ou então os deslocamentos tanto do atacante quanto da linha que o precede podem ser suficientes para bloquear a progressão deste homem livre.
Isto dito, pensemos no comportamento de laterais e volantes. Contra uma equipe que se defende em 4-1-4-1, com referências individuais no setor, você haverá de convir que temos encaixes bastante claros entre laterais que atacam e pontas que se defendem e entre volantes que atacam e meias que se defendem, correto? Da mesma forma, o meia central da equipe que ataca (neste exemplo, Bruno César) também está acompanhado pelo volante adversário (no caso, Gustavo Cuellar). Ou seja, em condições normais, ao menos cinco opções de apoio em potencial estão bloqueadas a priori, o que obviamente restringe as possibilidades de construção de uma equipe que pretende atacar por baixo – como são as intenções do Vasco. Em um cenário conservador, resta como alternativa a ligação direta entre goleiro/zagueiros e centroavante, o que não necessariamente é um recurso negativo mas, vez por outra, pode ser muito mais um recurso de emergência, ao invés de uma escolha deliberada e alinhada ao modelo.
Neste cenário, portanto, o que podemos fazer?
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Existe uma limitação importante nas individuais por setor. Talvez esteja até menos no individual e mais no setor: há um limite espacial até onde um certo jogador será acompanhado. Mas este limite, expresso no espaço efetivo de jogo, não é um limite claro e estático. É um limite dinâmico e fluido, que não pode ser inteiramente determinado, pois é dado pelo jogo. É neste limite que está o gatilho para o engano. Por exemplo, até onde o volante adversário está disposto a acompanhar o nosso meia central, caso ele se movimente? Até onde ele estará disponível para deslocar-se vertical ou lateralmente? Se for metros e metros distante da posição, quais serão os comportamentos da equipe para suprir este espaço?
(aliás, indico aqui este vídeo, que mostra brevemente como Pep Guardiola desenhou a superação da pressão do Chelsea, sabendo dos comportamentos defensivos de Jorginho, visíveis desde o Napoli).
No caso do Engenhão, Bruno César (ou quem quer que jogasse por dentro) seria acompanhado por Cuellar – dentro de um determinado raio. Portanto, atrair a marcação de Cuellar, deixando o setor vago, era uma alternativa bastante razoável. Mas quem poderia ocupar aquele espaço? Se for o centroavante (sabendo que partimos de uma estrutura em 4-2-3-1), repare que o recuo do centroavante será acompanhado por um dos zagueiros, ficando o outro na cobertura. Caso o atacante não seja claramente superior, ou mesmo se não houver comportamentos coletivos para aproveitar uma eventual parede, talvez não seja ele, centroavante, o mais indicado para ocupar este espaço.
Uma outra possibilidade, inclusive apresentada pelo Flamengo neste mesmo jogo, é o movimento dos volantes/meias, saindo do espaço inicial, deixando os marcadores sem referência. Cuellar, William Arão, e Èverton Ribeiro (como um terceiro homem) giravam pelo centro do campo, o que me parece ter trazido importantes problemas defensivos ao Vasco, especialmente quando associados ao movimento de Arrascaeta, que também se juntava por dentro, de modo que o centro ficava ocupado e os flancos, livres para os laterais (sabendo que Bruno Henrique e Gabriel jogavam por dentro, adiante).
Portanto, é preciso haver um trunfo, pelo menos um. E o trunfo, me parece, está no movimento dos pontas. Veja bem, se os pontas tiverem comportamentos dóceis, obedientes ao espaço, eles darão à defesa exatamente o que ela precisa: previsibilidade. Na ausência de apoios (laterais, volantes, meia), os pontas devem movimentar-se, recusando o próprio setor (enganando o lateral) e criando espaços sem qualquer lugar, seja no corredor central, às costas dos volantes, seja no corredor oposto, junto do ponta oposto (por quê não?), seja próximo do círculo central, mesmo que no campo defensivo, buscando inclusive superar a linha num drible, caso seja possível (por quê não?), mas é preciso criar instabilidades, nomeadamente no setor da bola, pois se não houver liberdade, se não houver a fluidez necessária ao momento ofensivo e ao jogo, basicamente o ataque será domesticado por sistemas defensivos com atletas de bom nível. Da mesma forma, quantas possibilidades surgiriam se uma dada equipe, no início da construção, tivesse mecanismos de inversão entre lateral e ponta (especialmente quando os pontas jogam com pés invertidos), causando novos enganos ao marcador responsável pelo indivíduo e pelo setor? Qual seria o comportamento do adversários neste caso? (dica: ficariam perdidos).
Ainda neste sentido, Yago Pikachu, aos 33 minutos do primeiro tempo, fez uma leitura absolutamente precisa, saindo do próprio setor e recebendo às costas de Cuellar, no espaço deixado por Bruno César, causando enorme desequilíbrio na defesa do Flamengo.
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Evidente que este é um mero recorte. São inúmeras as possibildades para superar as mais diversas estruturas e referências defensivas. Mas várias delas (se não todas) se baseiam em uma premissa muito parecida: o movimento. Quanto mais estáticas e mecanizadas nossas equipes, maiores serão os triunfos defensivos. Quanto maiores forem as instabilidades, criadas pelas ideias ou pelo instinto, maior será a força do possível. Talvez o sucesso do Ajax, pura fluidez, deixe isso ainda mais claro.
Continuamos em breve.