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#festanafavela, sim!

Sem treinador desde a saída de Levir Culpi, o Atlético-MG esperou o término do Campeonato Cearense para apresentar uma proposta a Rogério Ceni, que no último domingo (21) ergueu a taça regional comandando o Fortaleza. Se ele aceitar a proposta, será o quarto técnico a deixar uma equipe da elite nacional após os Estaduais, na semana que antecede o início do Brasileirão (Alberto Valentim, Lisca e Mauricio Barbieri já haviam saído, respectivamente, de Vasco, Ceará e Goiás). Passamos anos dizendo que os torneios locais valem pouco ou que tiveram seu significado debelado nas últimas décadas, mas os percalços vividos nos quatro primeiros meses da temporada custaram o emprego de oito profissionais que comandavam times da Série A. Afinal, seja nas demissões, nas contratações ou no tratamento dado a cada certame, o que os clubes brasileiros mostram ano após ano é que o elemento mais difícil de ser encontrado por aqui é a convicção.
Valentim, por exemplo, levou o Vasco ao título do primeiro turno do Estadual do Rio de Janeiro e à decisão da competição. Foi subjugado pelo Flamengo, que tem incomparável poder financeiro, elenco mais vasto e um trabalho mais sedimentado. Em termos de desempenho, era impossível esperar algo maior do comandante cruzmaltino. Pesaram contra ele, portanto, dois fatores: o desempenho e o “vestiário”. Se a demissão estivesse baseada no primeiro motivo, poderia representar até uma evolução de pensamento por parte dos dirigentes da equipe carioca. Contudo, o fator preponderante para a saída dele foi justamente o outro – a relação deteriorada com o grupo de jogadores.
É grande a lista de treinadores que perdem seus empregos no Brasil pela mesma razão. Foi assim com Roger Machado no Palmeiras, por exemplo: os números não eram absolutamente desfavoráveis, o time ainda estava vivo em todas as competições e o desempenho caminhava para uma ideia proposta meses antes, mas a diretoria não suportou ver que o técnico não tinha controle absoluto sobre o grupo de jogadores. Preferiu trocá-lo por Luiz Felipe Scolari, dono de longo histórico vencedor à frente do time alviverde e de uma persona mais assustadora para o elenco. O título do Campeonato Brasileiro de 2018 é um argumento a favor da decisão da cúpula do clube, mas foi o suficiente para quem investiu tanto?
O desafio que está posto para os treinadores de futebol no Brasil não é construir times ou fazer com que suas equipes joguem bem. A meta é vencer, e se possível vencer com absoluto controle do que os jogadores fazem no campo ou fora dele. É uma esquizofrenia entre buscar os fins sem pensar nos meios, mas ao mesmo tempo controlar episódios que têm pouca ou nenhuma influência para o contexto.
Enquanto isso, não se discute a qualidade do jogo. Se Valentim fosse bem-sucedido à frente do Vasco, por exemplo, estaria no patamar de Fabio Carille, treinador extremamente vitorioso no Corinthians, mas outro que falha miseravelmente quando precisa apresentar qualquer ideia de jogo. É um profissional pronto para identificar problemas e corrigi-los, mas ainda não demonstrou repertório para propor soluções que não sejam reativas. Seus times são seguros, mas pobres, e por isso a vitória é o único caminho para validá-los.
O torcedor que acompanha futebol pode dizer que pensa apenas na vitória, mas isso contaria apenas parte da história. A paixão que as pessoas nutrem pelo jogo não advém de triunfos ou de conquistas, mas da narrativa. O torcedor festeja taças, é claro, mas o que ele quer é se sentir emocionado com um espetáculo – e essa emoção pode nascer de diferentes caminhos.
Pergunte a um torcedor do Santos, por exemplo, e ele poderá relatar a alegria que é ver um novo garoto surgindo e carregando a camisa que já foi de nomes como Pelé, Pepe, Pita, Robinho ou Neymar. Pergunte a cruzeirenses ou palmeirenses o que significa o jogo bonito e a importância de suas equipes serem conhecidas nacionalmente como símbolos do jogo bonito. Veja um atleticano, um corintiano ou um gremista fazer loas à raça de seus atletas e à relevância da dedicação como definidor de uma partida. Há muitos aspectos cativantes no jogo, e a vitória nem sempre é um deles.
A situação de quem renega a história é sempre mais frágil, e a constante troca de treinadores no futebol brasileiro tem a ver com isso. Num mundo em que falta convicção e o que se vende é apenas a vitória, sempre haverá mais insatisfeitos do que torcedores comemorando.
É justamente por isso que os clubes precisam abraçar suas histórias nos departamentos em que há essa possibilidade. Se o futebol é pragmático e prefere sucumbir aos caminhos fáceis usando a muleta da modernização ou da falta de talento, a comunicação e a gestão têm obrigação de entender as raízes das agremiações enquanto produtos.
Tome como exemplo a comemoração do título brasileiro do Palmeiras no ano passado, sequestrada por políticos ávidos por alguns segundos de fama. Ou o que aconteceu no domingo, em plena Arena Corinthians: o time alvinegro foi campeão em casa, superando um grande rival, e o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo dividiu com o goleiro Cássio, herói do título, a primazia de erguer a taça. Isso sem falar em um senador que invadiu a festa alvinegra a ponto de ter deixado o estádio com uma medalha destinada aos atletas vencedores.
O Corinthians, lembremos, é o time da “democracia corintiana”, um dos movimentos políticos mais relevantes da história do esporte brasileiro. É um clube popular, cujo alicerce está colocado na periferia da capital paulista. Há muito significado contido nesses capítulos do passado alvinegro, e qualquer associação política feita no presente deve considerar fortemente os laços estabelecidos naquele período. Não há uma obrigação de posicionamento à esquerda ou à direita, e tampouco existe uma necessidade de apoiar ou rejeitar determinados políticos, mas o clube precisa ter diretrizes e entender quais caminhos são mais eficientes no processo de aproximação com o torcedor.
O Flamengo tem feito exatamente o contrário disso. O clube que se orgulha de ser o mais popular do país, outro que tem raízes extremamente ligadas às camadas menos abastadas, tomou decisões institucionais que acabaram ganhando mais relevância do que o título conquistado sobre o Vasco. A principal delas foi o veto à expressão “#festanafavela”, algo comum entre os torcedores rubro-negros. Segundo reportagem publicada no último sábado (20) pelo jornal “Extra”, a X-Tudo, empresa responsável por administrar as redes sociais da equipe, vetou o uso do termo por entender que geraria uma associação a um contexto de violência.
O veto apareceu em mensagem distribuída pela própria X-Tudo aos funcionários que participam da administração das redes sociais do Flamengo, e a nota oficial em que o clube tentou desmentir a informação conseguiu ser ainda mais antipática do que essa clara tentativa de se voltar contra a própria história.
A condução da história consolida um momento especialmente conturbado para a imagem do Flamengo, que já havia cometido seguidos erros de comunicação e posicionamento na gestão de crise do incêndio ocorrido em um de seus centros de treinamentos. São nítidas a letargia e a dificuldade para dimensionar o tom nos posicionamentos recentes.
Também tem sido complicado o posicionamento político da atual diretoria, que tem oferecido espaço nos eventos do clube a um político que ficou famoso por ter quebrado uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro – ela era, aliás, torcedora da equipe rubro-negra.
O Flamengo recente tem feito de tudo para mostrar sua aproximação com políticos de um espectro mais conservador – o que não é proibido, diga-se, mas é um erro se partir de posicionamentos pessoais em detrimento de valores do clube. Já passou da hora de a atual diretoria explicitar quais são as predileções institucionais da equipe, o que acabaria com qualquer discussão sobre A ou B participarem mais ou menos do cotidiano.
Da mesma forma, o veto à “#festanafavela” é uma tentativa de elitização que demandaria um processo mais aberto e menos sussurrado. O Flamengo é e sempre foi povo, e não vai ser apenas com medidas assim que o clube conseguirá se afastar de sua história. Se é outra a imagem que a diretoria deseja, que isso seja dito de forma clara.
No fim, o que se viu no domingo foi um uso de “#festanafavela” entre torcedores, jogadores e funcionários do clube. A tentativa de sequestrar os valores que formaram a imagem de uma das instituições mais populares do país ainda não encontrou alguém que a encampe de peito aberto. E assim como acontece em campo, ninguém vira as costas para a história impunemente.