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Onde está o futebol moderno? – Parte I

Garrincha e as pernas tortas: hoje seria ponta, extremo ou externo? (Foto: Reprodução/Blog do Gil)

 
Não são apenas as pessoas que precisam de alimento, o tempo também quer ser alimentado. E cada período é alimentado pelos seus mantras, pelas suas crenças, cada período tem um certo espírito que sobrevive pela repetição – repetição de palavras, por exemplo.
Hoje, começo uma pequena série em que escrevo sobre uma dessas palavras, na verdade um desses termos, que está mais do que naturalizado no nosso vocabulário: isto que se convencionou chamar de ‘futebol moderno’. Em linhas gerais, haveria um futebol antigo, ultrapassado, retrógrado, descartável, desnecessário. De outro lado, haveria um futebol novo, que cheira como novo, revigorado, intocado, irresistível e etc etc.
Neste texto, que divido em algumas partes (e que não tem nenhuma pretensão de definição nem nada disso), gostaria de colocar algumas dessas coisas sobre a mesa, para que possamos nos alimentar melhor e entender um pouco melhor do que se fala quando se fala deste ‘futebol moderno’.

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Muito bem, a origem da palavra moderno está no latim modernus (atual, pertencente aos nossos dias), que por sua vez deriva das palavras modo (agora, de certa maneira) e modus (medida, maneira). Ou seja, aquilo que é moderno corresponde a uma certa medida ou maneirismos de um tempo particular – no caso, o tempo presente.
O fato de ser algo pertencente aos nossos dias não é exatamente uma novidade. Quando alguém se refere ao ‘futebol moderno’, logicamente está se referindo ao futebol que se pratica hoje em dia, que alimenta o espírito do nosso tempo e que, sendo especificamente deste tempo, teria perdido uma parte ou todo o vínculo com o tempo passado, deixou os traços do passado, ou mesmo desfez os laços com o passado. Não por acaso, às vezes colocar-se do lado do ‘futebol moderno’ também significa uma certa grife, que sutilmente rebaixa (ou eventualmente exclui) quem está associado ao antigo, inclusive como uma forma de sobrevivência. Quem não fala ou pratica características supostamente modernas, estaria fora.
Muito bem, mas quais são essas características? Talvez aqui o bicho pegue, porque trata-se de uma pergunta mais difícil do que parece. E por um motivo, em especial: algumas das características que atribuídas ao futebol chamado ‘moderno’, podem não ser exatamente ‘modernas’. Deixem-me dar um exemplo: certamente alguém diria que a intensidade (seguramente um dos termos mais banalizados hoje em dia) é uma característica central do ‘futebol moderno’. ‘Basta comparar os jogos de hoje com os antigos, eram muito lentos!’, alguém diria. Bom, eu pediria truco: não seria este um argumento anacrônico? Será realmente coerente fazer esse tipo de comparação sabendo que o futebol de quinze ou vinte anos atrás simplesmente não tinha a percepção ou as medidas de ‘intensidade’ de hoje em dia? Ou, se você preferir: talvez o futebol fosse sim ‘intenso’, mas intenso ao seu modo, coerente com o seu tempo. E, por mais paradoxal que pareça, talvez uma parte da intensidade daquele jogo estivesse exatamente precisamente na pausa, na harmonia entre a velocidade e a sua ausência, enquanto que a intensidade de hoje está não apenas na negação da pausa, como em uma outra característica importante, sobre a qual escrevo no próximo texto desta série.
Por isso, durante este texto e os próximos, gostaria de especular exatamente algumas dessas características, que estão associadas ao futebol dito ‘moderno’. A partir delas, acho que podemos pisar em terreno mais seguro, ao invés de deixarmos palavras e ideias jogadas ao ar.

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Aliás, talvez aí esteja uma primeira característica deste tempo e do futebol que praticamos hoje em dia. Tenho a impressão, não sei se vocês concordam, que o primeiro jogo que se joga no futebol dito ‘moderno’ é um jogo de palavras. E, em razão disso, o que está em jogo, em primeiro lugar, é um conflito de ideias. De fato, existe uma questão fundamental no futebol de hoje em dia, que mora na linguagem, e portanto tornou-se obrigatório pagar determinados pedágios, acatar determinadas ideias e/ou palavras que nos façam dar a aparência de que estamos sempre antenados ou atualizados, de que estamos sempre em dia, é preciso estar sempre correndo, que saibamos e usemos as palavras e as ideias da moda, ainda que elas (as ideias) possam não ser exatamente novas ou ainda que elas (as palavras) sejam notadamente estrangeiras – mesmo havendo sinônimos em português.
Por exemplo, lembro-me de ter lido, não faz muito tempo, alguém que escreveu que as marcações individuais eram um problema, e que ninguém no futebol europeu (leia-se, no ‘futebol moderno’) faz esse tipo de coisa. É mais ou menos desse conflito de que estou falando. Primeiro, é um erro associar um determinado tipo de marcação (zonal) com a modernidade e associar o seu oposto ao passado, não apenas porque ambas as formas de marcação existem há muito tempo, mas porque dá-se uma impressão (equivocada) de evolução, de superação de uma forma para outra mais sofisticada – mas não é exatamente disso que se trata quando falamos de referências defensivas. Depois, porque há várias e várias equipes marcando (e bem) de maneira individual no mais alto nível europeu. Escrevi recentemente sobre isso aqui e aqui.
Perceba que o uso de ‘novas’ palavras, em si, não é um problema. Na própria vida cotidiana, nós mesmos nos habituamos a falar dos smartphones, dos wi-fi’s, de uma série de termos (especialmente estrangeiros) que nos tomam de assalto independentemente da nossa vontade. Os problemas, a meu ver, são outros. Estão em saber até que ponto o uso de novas palavras reflete de fato uma evolução, do ponto de vista dos nossos saberes, ou se servem apenas como uma espécie de maquiagem, máscaras que precisamos usar para nos mostrarmos atualizados, ainda que isso não nos faça melhores, de fato. O mesmo vale para os conceitos que se dizem ‘modernos’ e que, tentando anular os ‘antigos’, podem acabar nos fazer menores do que éramos antes.
E talvez daí nasça um segundo problema, que também é bastante importante: a ideia de que os profissionais ‘antigos’ não saibam, ou não entendam, aquilo que se passa no ‘futebol moderno’ simplesmente quando não usam as palavras e as ideias do ‘futebol moderno’. Ora, se um treinador fala do ponta, ao invés de falar do extremo, ele não está necessariamente desatualizado, ou desconhece o termo, mas ele simplesmente prefere falar ‘ponta’ ao invés de falar ‘extremo’. Percebem como também é um jogo linguístico? Reparem quantos maneirismos fomos introduzindo na nossa linguagem, que às vezes fala do extremo, às vezes fala do box-to-box, às vezes fala do pivote – e poderíamos dar muitos exemplos mais. Isso não significa, em hipótese alguma, que devamos nos acomodar no passado ou recusar o movimento do tempo, não é disso que se trata. O que estou propondo é diferenciarmos o que é, de fato, um passo adiante, do ponto de vista dos nossos saberes práticos, daquilo que pode acabar sendo apenas uma maquiagem, que nos deixa no mesmo lugar (como é este assistente de vídeo, por exemplo).

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Portanto, um primeiro traço, que acho característico deste futebol que se diz ‘moderno’, é um conflito de palavras e de ideias. Criamos e estamos criando novas linguagens, que nascem da academia, das mídias sociais e da experiência, e tudo isso tornou-se corrente nas nossas conversas de futebol. Quais são as consequências práticas, neste caso? Nos vemos usando outros termos e conceitos, mas é possível (ainda que isso desagrade alguns colegas, especialmente da imprensa) que alguns dos novos termos e conceitos não necessariamente representam um saber novo – podem ser o mesmíssimo saber, com outras palavras.
Seguimos em breve.

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Para não incomodá-los no Natal e no Ano Novo, esta coluna tirou um pequeno recesso e retorna hoje. Ainda que essas coisas dependam mais da vida do que de nós mesmos, desejo a todos e todas um novo ciclo de muitas realizações e progressos – não apenas no futebol.