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Onde está o futebol moderno? – Parte II

Franz Beckenbauer: onde termina o defensor e começa o atacante? (Foto: Reprodução/Site Oficial FC Bayern)

 
Não faz muito tempo, começamos aqui uma conversa sobre isso que se chama de ‘futebol moderno’. Na primeira parte deste texto, falamos que algo que é ‘moderno’ é geralmente próprio de um tempo (do tempo presente, no caso) e que falar de ‘futebol moderno’ pode ser, antes de tudo, falar de um jogo que se joga pelas ideias e pelas palavras. Ou seja, há determinados termos que são ‘modernos’, em substituição aos termos ‘antigos’ mas, na ponta do lápis, esses termos não necessariamente falarão de coisas ‘novas’ – podem ser apenas sinônimos.
Nesta segunda parte, gostaria de falar de uma outra característica que me parece central: vamos chamá-la de flexibilidade.

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Outro dia, perguntei numa dessas redes sociais o que os colegas identificavam como sendo traços inconfundíveis disso que se chama ‘futebol moderno’. Do ponto de vista do campo, recebi contribuições realmente interessantes. De alguma forma, vou agrupá-las (sem tomar partido, ou seja, não significa que eu concorde com elas) nos tópicos abaixo:

  • maior participação dos goleiros na fase ofensiva;
  • um caráter mais ativo da fase defensiva, pressionando o adversário desde o começo da construção;
  • um certo aumento no ritmo do jogo jogado, tanto do ponto de vista físico quanto tático (com espaços mais curtos, maior pressão ao portador da bola e etc)
  • uma certa substituição da ideia de posição, pelas funções no campo;
  • grandes responsabilidades defensivas dos jogadores mais ofensivos e grandes responsabilidades ofensivas dos jogadores mais defensivos;

Acho que essas cinco características são mais do que suficientes por ora. Muito bem, vamos olhar para elas com mais atenção. Há algumas coisas aqui que me interessam bastante.

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Em primeiro lugar, acho importante que todas essas coisas que citei acima não sejam lidas de maneira literal. Vamos olhar para as entrelinhas: por exemplo, o fato de jogadores de ataque se ocuparem de atribuições defensivas não deve ser visto como uma novidade (está longe de sê-lo) mas parece que não é disso que falamos aqui. A impressão é que, agora, o peso das atribuições defensivas para um jogador de ataque (e vice-versa) é praticamente o mesmo peso que se dá à sua capacidade de atacar, de modo que um jogador de ataque pode sim ser escalado não mais pela sua capacidade de atacar, mas de defender, percebem? Partindo deste ponto, vocês concordam comigo que estamos falando de um outro tipo de jogador e que, portanto, precisamos exatamente formar um outro tipo de jogador. Pense na formação de goleiros, por exemplo. Goleiros devem, cada vez mais, ser bons atacantes, atacantes devem ser bons defensores, a defesa vai se fazendo no ataque, o ataque vai se fazendo na defesa… a linha que separa defesa e ataque parece cada vez mais fina, assim como as linhas que separam as coisas supostamente contrárias vão se desfazendo.
Daí que uma característica realmente importante desses nossos dias é que as fronteiras dentro do jogo jogado estão se dissolvendo tão rapidamente, mas tão rapidamente, que às vezes não sabemos mais identificá-las. Isso já seria um fenômeno significativo nele mesmo, mas é mais ainda quando percebemos que a mesmíssima coisa, sem tirar nem por, ocorre na vida vivida. Não é preciso termos lido o Zygmunt Bauman para sentirmos que as fronteiras do tempo e do espaço estão reduzidas a quase zero (pela internet), que os smartphones e seus aplicativos reduziram as nossas fronteiras de comunicação e de ação, que as pessoas todas estejam tão próximas, independentemente do lugar, ao mesmo tempo em que a solidão também parece uma epidemia. Tudo o que é sólido desmancha no ar, disse o Marshall Berman, e este mundo em que vivemos e o futebol em que vivemos, não são mais sólidos, em que as coisas estão claramente separadas, mas estão de fato líquidos, em que o trabalho é fluido, as nossas atribuições são fluidas, os relacionamentos são como água, as coisas escorrem, sem que seja possível pegá-las, ou mesmo parar por um instante, e com o futebol não é diferente, as atribuições de cada jogador estão aumentando, as fases do jogo se distinguem cada vez menos, os profissionais têm que saber cada vez mais coisas (e conectá-las), temos que transitar por mais áreas, tudo passa muito rápido. E quando alguém não se adapta, nunca é problema das coisas – o problema sempre é outro.
Não sei se fica claro, mas o que quero dizer é que essa flexibilidade, da qual estou falando, é um espelho do que se passa na vida vivida, embora use uma roupa muito própria no futebol, uma roupa do todo, uma roupa de fato sistêmica. Ao jogador, não basta ter o domínio de uma determinada posição do campo mas, na verdade, é preciso saber desempenhar funções mais elaboradas, eventualmente desconfortáveis (especialmente entre a iniciação e a especialização esportiva), mas que eventualmente serão úteis à equipe e ao próprio atleta, no presente e no futuro. Aos profissionais, nos é e nos será exigida a mesma habilidade, nas mais diversas áreas, pois não basta mais saber das posições, talvez não baste ter apenas um ofício (treinador, preparador físico, analista, gestor…), mas é preciso ter algum conhecimento do processo como um todo, é preciso conversar com as diferentes áreas, é preciso ter um certo domínio do campo e do jogo que possa ter efeitos específicos, em detalhes bastante específicos, como também possa ter efeitos gerais, inclusive do ponto de vista mais geral de todos, que é o humano. As fronteiras estão de fato dissolvidas, e parece que o que nos resta, como profissionais, é desenvolver uma certa flexibilidade – ou teremos problemas.

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Mas há uma outra questão, amigas e amigos, da qual não podemos fugir. É uma questão silenciosa, mas quase que namorada disso que se chama de ‘futebol moderno’: a ideia de que o moderno é necessariamente ‘melhor’, ou ‘superior’, ou um ‘avanço’ ou um ‘progresso’ em comparação ao ‘antigo’. É como se fosse, ao mesmo tempo, uma noção bastante ingênua da história, em que ela é vista como uma grande linha, desde que, no fim da linha, exista uma espécie de paraíso (ou seja, quanto mais próximo do fim da linha, ‘melhor’). Da mesma forma, também parece haver um certo tipo de negação coletiva da história, em que fica subentendido que o que passou, o que foi, pode ter sido um grande equívoco e deva, por isso, ser descartado.
Por isso, acho preciso ter um cuidado enorme com este termo ‘moderno’. Não sei se vocês concordam, mas ele está tão banalizado que corre o risco de começar a cheirar um pouco mal, de começar a caducar e, por mais curioso que pareça, de ficar atrasado nele mesmo, porque parte exatamente deste ponto equivocado: o ‘moderno’ seria, necessariamente, uma evolução do ‘antigo’. Daí, não admira que passemos a procurar modernidade onde não existe (no 2-3-5, por exemplo, que já havia há muitíssimo tempo, sendo apenas adaptado ao momento atual, especialmente via Pep Guardiola) ou mesmo, o que é mais grave, que passemos a rotular doentiamente os profissionais do futebol como ‘antigos’ e ‘modernos’, às vezes baseados apenas nas palavras, como dissemos no último texto desta série, mas com uma crítica que não tem exatamente fins pedagógicos ou de elevação do jogo jogado, mas sim fins de extinção: tudo aquilo que não for ‘moderno’, ou tudo aquilo que não parecer ‘moderno’, ou tudo aquilo que não for de um determinado gosto, não apenas é questionado ou refletido, mas é apresentado como se devesse ser extinto.
Não sei como vocês recebem este tipo de coisa, mas a mim me parece um problema muito grave. E que também faz parte disso que se chama de futebol ‘moderno’.

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Para terminar, permitam-me só fazer uma provocação: jogar sem posições fixas, jogar o jogo todo, saber o que fazer em cada momento do jogo e demorar-se a se especializar em apenas uma posição/função, não era exatamente o que fazíamos no futebol de rua?
Pense nisso.
Continuamos em breve.