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Carta a um jovem atleta

Prezado atleta,

São grandes as chances de não nos conhecermos pessoalmente. Na verdade, talvez você nem saiba da minha existência, como eu posso não saber da sua. Mas de um ponto de vista prático, isso não faz muita diferença. O bom leitor sabe que um pingo é letra. O fato de não sabermos um do outro com detalhes não impede que saibamos um do outro. Lembre-se disso no futuro.

Você ainda é muito jovem, embora não tenha a exata noção do que significa a juventude. Na verdade, a própria noção da juventude só vem com o tempo. E tempo é aquilo que, hoje, você tem e não tem: por um lado, você não tem tempo porque de fato ainda viveu muito pouco, juntou poucos anos no quebra-cabeças da vida e ainda está grávido ou grávida da vida adulta – e talvez nem saiba disso. Por outro lado, ainda te resta demasiado tempo de vida: a vida que ainda não veio é muito grande e comprida, de modo que, sim, você tem muito tempo. Isso é motivo de alegria! Mas também deve ser motivo de cuidado.

Talvez você já tenha ouvido, aqui e ali, alguém dizendo que o atleta morre duas vezes. O atleta morre quando deixa de ser atleta e morre quando deixa de viver. Às vezes, uma coisa é igual a outra. Mas às vezes não, e quero que você repare nas diferenças entre os dois casos: a morte do atleta, salvo uma lesão grave ou algum outro problema extraordinário, geralmente é uma escolha: um acordo com o próprio corpo ou com a própria vida em que os dois, enviando sinais recíprocos, decidem que aquele tempo, o tempo de atleta, acabou (esse tempo, aliás, geralmente acaba rápido). No caso da morte de uma pessoa, infelizmente não se trata de uma escolha: da mesma forma como não se escolhe nascer, também não se pode escolher o contrário. É justamente por isso, pela sua responsabilidade enquanto atleta, que você não pode ser cúmplice do arrependimento: enquanto atleta, faça tudo o que puder. O depois é uma ilusão, o antes também. O tempo que te existe é o tempo do agora.

Pode ser que você se ache muito bom – talvez até muito melhor do que os outros. Ou pode ser que não, que você não se ache tão bom assim – talvez pense ser muito pior do que todos os outros. Nos dois casos, você provavelmente está errado. Se não se acha tão bom assim, você certamente não se conhece o suficiente: veja bem, não existe outro exemplar seu no mundo. Por isso, não te cabe ser igual aos outros – é preciso ser quem você é. Aquilo que te falta geralmente serve para esconder as coisas que te sobram: se te falta o drible, talvez te sobre o passe. Se te falta o passe, talvez te sobre potência. Se te falta potência, talvez você seja um líder. E se não for um líder, você pode se preparar para sê-lo. O que você não pode é acreditar no mundo quando ele disser que você não é nada: o mundo é especialista nisso, ele fará o possível para te afastar de quem você realmente é, mas cabe a você escolher entre acreditar consistentemente nele ou não. Por outro lado, se você estiver no primeiro grupo, dos que se acham bons demais, saiba que você está em desvantagem: comparado aos outros, o seu tombo pode ser muito maior. Para saber se você é realmente especial, trabalhe muito. Ninguém se torna especial de véspera.

Da mesma forma, não se esqueça dos porquês que te fazem ser atleta e seja honesto consigo mesmo. Você quer ser atleta ou quer apenas os holofotes? Você quer ser atleta ou quer apenas enriquecer (não se esqueça, aliás, que é possível ter muito dinheiro e não ser rico)? Você está disposto a eventualmente ganhar pouco, não ganhar nada? Ser rejeitado uma, duas, três, dez vezes? Trabalhar eventualmente nas piores condições possíveis? Você se importaria em passar toda uma carreira como anônimo, finanças moderadas, motivado especialmente pelo coração? Se não, veja bem, não se sinta mal: apenas lembre-se de que, infelizmente, há poucos ingressos para as melhores festas – e sim, muita gente boa não costuma frequentá-las. O peso que a vida faz sobre a gente é maior do que o peso que a gente faz sobre a vida. E o bom marinheiro, você sabe, não reclama do mar – ele apenas navega. O esforço não é dispensável, mas mesmo o maior dos esforços pode ser insuficiente. E isso não deve ser motivo de lamento, mas de orgulho.
Aliás, muita gente dirá que tudo só depende de você. Não é verdade.

Depende uma parte de você e outra parte do mundo. Não é por acaso que existem companheiros, existem adversários, existe uma equipe de arbitragem, existem os outros profissionais de um clube, existe a imprensa, existe a sua família e existem os seus amigos, existem pessoas que gostam de você e torcerão incansavelmente pelo seu trabalho, assim como existem pessoas que não gostam de você e, saiba disso, não torcerão nem um pouco pelo seu trabalho. Você percebe que, exceção feita a você mesmo, não te cabe controlar nada do resto? Não brinque de fantoches com a vida e não tente ser mais, nem menos: de novo, seja exatamente quem é. Assim, te será possível separar o que deve e o que não deve ser feito, o que merece e o que não merece a sua atenção (e quem a merece ou não), saberá jogar o jogo de abrir mão.

Isso fará toda a diferença na sua vida enquanto atleta. Não se trata de ser mais, mas de ser melhor. O excesso (inclusive de ambição) é perda.
E talvez agora, depois dessas linhas, você perceba que não, de fato nós não nos conhecemos, mas que sim, nós sabemos algumas coisas. O fato de não sabermos um do outro com detalhes não impede que saibamos um do outro.

Lembre-se bem disso no futuro.

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O bom jogador de hoje

Quando somos crianças e jogamos futebol nos mais diversos ambientes, o melhor da turma é aquele que tem o gesto técnico mais bonito, mais apurado: o melhor é aquele que dribla mais, que chuta melhor, que faz mais gols e etc. Se pegarmos o futebol profissional “antigo” – de cerca de quinze, vinte anos atrás – isso quase sempre também acontecia. O grande jogador era aquele que mais aparecia pra torcida, que dava ‘caneta’ nos adversário, que dava chapéu e por aí vai.
Essa máxima não se alterou por completo. Explico: o talento sempre vai prevalecer. O jogador que desequilibra será bem-vindo no futebol de qualquer época. Mas duas coisas importantes mudaram: esse jogador talentoso passou a ser ainda mais reverenciado quando usa sua técnica em prol da equipe e aquele jogador que pouco aparecia, que não tinha um jeito de tocar na bola e até de correr tão plasticamente dentro do padrão, mas que apresenta uma eficácia gigantesca pra resolver problemas, passou a ser mais valorizado.
O contexto tecnológico nos permite observar jogos e jogadores do mundo todo. É possível contabilizar jogadas e movimentos com e sem a bola de todos. E mais: se algum lance nos impressiona voltamos rapidamente a imagem e destrinchamos todos os pormenores. Diferentemente de antes que um “olheiro”, por exemplo, ia pelos campos desse mundo e tinha uma, no máximo, duas impressões do jogador.
Esse avanço na análise nos leva a saber quais jogadores resolvem os problemas de maneira mais eficaz em todas as fases do jogo. Nos permite observar quem faz a leitura correta das jogadas. Conseguimos saber quem toma as melhores decisões. Quem se comunica melhor com o jogo, companheiros de equipe e tira vantagem disso diante dos adversários. Com isso, os treinamentos tendem a evoluir e se não é possível e talvez nem mais necessário aprimorar o gesto técnico em sua plasticidade é totalmente inteligente criar mecanismos para os jogadores terem respostas mais rápidas e eficientes ao que o jogo apresenta.
Esse ponto específico da tecnologia com o avanço da análise quantitativa e qualitativa é um fractal de vários aspectos do jogo que mudaram. Há inúmeros outros. Mas a valorização de jogadores que no “futebol antigo” eram tidos, talvez, como ‘desengonçados’  ao correr, passar, driblar e chutar, mas que com um olhar mais criterioso e amplo nos revelam coisas surpreendentemente positivas e complexas é uma das grandes vitórias do futebol tido como moderno.