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O impacto das mudanças de comando técnico no futebol brasileiro

Amplamente reconhecido como uma potência na produção de jogadores de alto nível, o futebol brasileiro renova, aprimora e exporta gerações de talentos com consistência à economia global da modalidade. Considerando apenas latino-americanos em 2020, o Brasil posiciona 1535 jogadores profissionais em território estrangeiro, superando o volume absoluto de argentinos (913), colombianos (457) e uruguaios (358). Além disso, ao relativizar quantidade e qualidade, é possível notar que a nacionalidade brasileira se mantém como a líder no quesito minutos em campo na principal competição de clubes do planeta pelo terceiro ano consecutivo (onde também permanece no TOP 3 há 16 temporadas, desde 2004-05 a 2019-20). Seja por uma defesa subjetiva ou levantamento quantitativo, o jogador de futebol produzido pelo sistema brasileiro segue valorizado pelo mercado consumidor ao redor do mundo.

No entanto, um dos agentes prioritários da cadeia de formação e desenvolvimento desses talentos tem sido subestimado dentro do seu próprio território nacional. Diferente do jogador, o treinador de futebol brasileiro aparenta enfrentar dificuldades crônicas para ser reconhecido e projetado em seu país de origem, bloqueando sua ascensão rumo a ligas de maior impacto internacional e afetando, sobretudo, o padrão de qualidade do esporte praticado no país. Nada obstante, se as criaturas formadas pelo sistema são nitidamente exaltadas, não há sentido negligenciar os seus criadores. Por isso, antes de julgamentos que tentem simplificar os profissionais atuantes na função, ou até mesmo questionamentos sobre a ausência de treinadores brasileiros nos principais centros europeus, é imprescindível avaliar a realidade que os cerca dentro do Brasil como ponto de partida para uma reflexão crítica.

Sustentado por literatura acadêmica, aplicação de metodologia científica e avaliação econométrica, o estudo em questão (conduzido na Universidade do Esporte da Alemanha em Köln – Deutsche Sporthochschule Köln) investigou 16 temporadas de Brasileirão no formato de pontos corridos, reunindo todos os 6506 jogos disputados, 264 treinadores empregados e 41 clubes participantes da Série A no período entre 2003 a 2018 (2019 não faz parte da amostra por ser o ano de conclusão da pesquisa).

Com uma base de dados compreensiva, nossa análise estatística avançada utilizou um volume superior a 1 milhão de pontos sob observação, sendo que a coleta de dados foi conduzida de forma precisa através de fontes públicas confiáveis para assegurar resultados assertivos que pudessem gerar interpretações realistas

Respeitando uma metodologia científica adequada para a aplicação econométrica, o estudo atendeu aos parâmetros, testes e regras estatísticas já definidos (além de revisados e aprovados) pela comunidade acadêmica internacional de gestão e economia do esporte. Seguindo este raciocínio, a investigação se destaca por trazer um material inédito ao cenário do esporte brasileiro em termos de abrangência, profundidade e análise de dados, esclarecendo informações com embasamento e evidência científica para melhores decisões adiante na administração do futebol nacional.

Conforme esclarecido por pesquisas já existentes na literatura administrativa e econômica do esporte (reunindo estudos similares em 15 países), o treinador de futebol detém uma posição de liderança dentro de um sistema altamente complexo, dinâmico e competitivo. Por isso, para examinar a sua contribuição, torna-se necessário uma avaliação racional, com métricas objetivas e que estejam de acordo com o ambiente onde o seu trabalho venha a ser julgado. Caso contrário, resoluções superficiais, com base em argumentos simplistas e tomadas de decisão subjetivas tendem a minimizar o contexto real de um esporte (coletivo) de alto rendimento. Sobretudo, quando efeitos sensíveis ao tempo são considerados (como é o caso na mudança de treinadores), é imperativo estender a análise estatística (avançada, não básica) a períodos maiores antes de qualquer comparação de resultados.

No Brasil, o calendário competitivo apresenta uma configuração muito particular, pois favorece o desgaste físico sem sequer oferecer tempo para a preparação no início do ano (uma vez que a pré-temporada dos clubes participantes do Brasileirão tende a durar menos de 30 dias em janeiro, com variações de duas a três semanas) e tampouco para a recuperação ao longo do panorama anual (devido à alta incidência de jogos com agendas apertadas de fevereiro a novembro). Ademais, duas janelas de transferência
inevitavelmente comprometem a composição dos elencos, sendo que a principal fase de negociação de jogadores da economia global ocorre no meio da temporada brasileira. Devido a essas particularidades, testemunhar flutuações no desempenho esportivo pode estar diretamente relacionado a falta de preparação, descanso e reposição de recursos, aliado a exposição dos jogadores a um maior volume de jogos e o risco iminente de lesões, que afetam a produtividade em longo prazo.

Além disso, desvios de programação são recorrentes no futebol brasileiro. Especificamente no período que integra a nossa pesquisa, somente o ano de 2015 respeitou o calendário de jogos original, conforme fora previamente estabelecido pela organização do campeonato. Todos os outros 15 anos que compõem a nossa amostra testemunharam uma série de jogos antecipados e adiados, envolvendo distintas equipes, datas e rodadas dentro da mesma temporada. Com isso, infelizmente tornou-se inviável estudar o efeito das posições na tabela durante o Brasileirão, pois a informação histórica disponível ao público não recalcula precisamente as disparidades do calendário conforme cada rodada acontecera. Para tornar a nossa análise precisa, assertiva e realista, todos os 6506 jogos das 16 temporadas foram reordenados de acordo com a sequência cronológica exata ao longo do período.

Já antecipando uma das implicações práticas deste estudo, o que percebemos após um profundo diagnóstico sobre o cenário de pontos corridos do Brasileirão desde 2003 a 2018 (lembrando que 2019 não faz parte da amostra por ser o ano de conclusão da pesquisa) é que, por estar desprovido de condições minimamente sustentáveis para exercer o seu trabalho, potencial e carreira, o treinador de futebol brasileiro tem visto o seu crescimento profissional ser barrado ao longo dos últimos anos (ou décadas) por fatores desassociados a uma avaliação racional no país.

Enraizados a um sistema político que privilegia ações impulsivas e benefícios de curto prazo, os dirigentes, diretores e presidentes de clubes de futebol no Brasil aparentam seguir tendenciosos ao engajamento de decisões subjetivas, emotivas e passionais, almejando atingir de forma desesperada os resultados desejados através da especulação no controle da liderança. Sob tais circunstâncias, descartar treinadores ressoa simplesmente como uma resposta arbitrária e sem esforço frente a pressão externa (ou conflito político interno), uma tensão que pode ser precipitada por derrotas, por expectativas superestimadas ou até mesmo pela manipulação da opinião pública em veículos de imprensa esportiva.

De fato, ao compararmos a média de trocas de comando técnico do Brasileirão a outras importantes ligas de futebol do planeta, o Brasil se destaca com números alarmantes e assume a posição isolada como o campeonato que detém a taxa mais alta de mudanças de treinadores (considerando apenas trocas realizadas durante o Brasileirão, desde o primeiro ao último jogo de cada temporada – sem contabilizar mudanças que ocorreram entre uma edição e outra da liga nacional, que naturalmente incluiria os campeonatos estaduais e aumentaria os números).

Para tornar viável o emprego de treinadores efetivos e interinos, o estudo em questão definiu que os técnicos que foram publicamente anunciados como interinos e permaneceram no cargo até no máximo 15 dias (durante a transição entre a saída de um líder efetivo e a entrada do seu substituto) receberam a classificação final como interino. Tal medida respeitou a aplicação de um critério métrico (evitando contradições subjetivas) ao calcular que um treinador interino poderia ficar no cargo até aproximadamente um quarto do tempo médio que um treinador efetivo permaneceu durante a vigência do Brasileirão (apenas 65 dias, em média – que ilustra uma janela de 8 a 10 jogos na liga nacional).

Vale ressaltar que até a liga nacional ser equilibrada (em 2006) com a composição atual de 20 equipes na disputa, os anos de 2003 e 2004 foram conduzidos com 24 clubes participantes, enquanto 2005 reuniu 22 clubes.

Em termos descritivos, entre todas as 594 mudanças de comando técnico identificadas ao longo das 16 temporadas de Brasileirão sob análise (2003 a 2018), 131 trocas referem-se a passagens de treinadores interinos na função, cuja participação total representa somente 1,48% da nossa amostra.

A fim de facilitar o entendimento sobre o formato de pontos corridos na disputa da liga nacional, registramos cada um dos 264 treinadores que atuaram no período respeitando a ordem cronológica de suas aparições na competição. Desta forma, visualizamos que, em média, 34,6% dos treinadores por temporada são novos entrantes na Série A (ou seja, novos treinadores entrando pela primeira vez na competição de pontos corridos do Brasileirão), que ajuda a ilustrar uma abertura do mercado brasileiro a novos profissionais (independente da idade ou experiência do treinador).

Muito embora novas oportunidades teoricamente recebam espaço constante na Série A, torna-se nítida a insegurança da profissão no topo do cenário nacional. Porém, apesar de reclamações, argumentos e discussões públicas iniciadas pelos próprios treinadores acerca da volatilidade na função, a incidência de profissionais que se repetem na mesma temporada chamou muito a nossa atenção, pois aparentemente quase um quarto dos indivíduos (por ano) não colocam em prática a teoria que a sua classe defende

Em média (por ano), 22,7% dos treinadores atuantes no Brasileirão aparecem duas ou mais vezes na mesma temporada. Isto significa que, em média, 10 profissionais por ano aceitam assumir o cargo de treinador em pelo menos duas situações distintas durante a mesma competição (apesar de argumentos públicos contrários às trocas por parte da classe de treinadores no país). Tal repetição pode ocorrer por quatro motivos: (a) treinador exerceu a função como interino pelo menos duas vezes; (b) treinador exerceu a função como interino e também como efetivo; (c) treinador exerceu a função em pelo menos dois clubes distintos; (d) treinador exerceu a função duas vezes no mesmo clube, sendo recontratado após uma rescisão (voluntária ou involuntária).

Considerando a importância da sucessão de líderes (técnicos) por meio de planejamento estratégico na gestão esportiva (além de assustados com números tão expressivos, porém nada invejáveis sob uma perspectiva econômica no esporte), resolvemos aprofundar o tema e examinar minuciosamente as potenciais causas que antecedem as mudanças de comando técnico no futebol brasileiro, bem como as consequências das trocas de treinadores sobre o rendimento esportivo.

Por meio da econometria, respondemos exatamente as duas perguntas abaixo:

  1. Sobre as CAUSAS:
    Quais são os fatores determinantes para as trocas de comando técnico no Brasil?
  2. Sobre as CONSEQUÊNCIAS:
    Como as trocas de comando técnico impactam o desempenho esportivo no Brasil?

Visão geral de todas as mudanças de comando técnico inclusas na amostra (em ordem cronológica, 2003 a 2018)

A PARTE 2 trará as respostas da primeira pergunta do estudo, dissecando a evidência científica sobre as causas que determinam asmudanças de comando técnico no Brasileirão.

Em seguida, a PARTE 3 irá tratar das respostas da segunda pergunta do estudo, explicando o impacto da alta rotatividade de treinadores e as reais consequências sobre o rendimento esportivo.

Por fim, a PARTE 4 concluirá o estudo, revisando as principais implicações práticas em torno dos treinadores, dirigentes e torcedores interessados no avanço do futebol brasileiro.

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