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Os impactos da covid no desempenho esportivo

Crédito da imagem – Bruno Ulivieri/AGIF/CBF

A covid-19 mudou os rumos da história da humanidade em 2020, e com o futebol não foi diferente. Paralisação das competições, jogos realizados sem público e uma mudança radical na rotina de jogadores, jogadoras e todos os envolvidos diretamente com o jogo, foram algumas das mudanças que testemunhamos após o espalhamento do vírus. Os protocolos de segurança adotados para tentar diminuir a taxa de contaminação entre os atletas contribuíram, mas não foram capazes de evitar que muitos deles fossem acometidos pela doença. Além do necessário afastamento dos contaminados, que traz um óbvio prejuízo esportivo para suas respectivas equipes, a própria doença é uma preocupação, pois seus sintomas, principalmente os acometimentos respiratórios, podem impactar diretamente no desempenho em campo, mesmo após o fim da infecção.

Para entender melhor como a covid-19 afeta o desempenho dos jogadores e jogadoras e conversamos com Páblius Staduto, médico do esporte, que compartilhou com a Universidade do Futebol um pouco sobre o que já se conhece sobre essa doença que ainda é uma novidade do ponto de vista da cronologia científica.

Universidade do Futebol – Quais são as principais exigências do futebol em relação ao corpo de um jogador ou de uma jogadora?

Páblius Staduto – Como existe um tempo determinado de jogo e a intenção de atingir os seus objetivos do jogo que é marcar gols e não sofrê-los, a distância percorrida ao longo desses 90 minutos costuma ser muito grande. Apesar de existirem as distintas posições com diferentes demandas, é importante para qualquer jogador ter bem trabalhada a resistência para suportar o período do jogo, que geralmente dura 90 minutos, mas às vezes extrapola esse período, com acréscimos e prorrogações em competições de mata-mata. Essa resistência é demandada também ao longo da semana, o que acontece no jogo é resultado do que foi trabalhado durante a semana e na pré-temporada.

Então podemos dizer que existe no futebol um misto de demanda da resistência cardio-respiratória e da força. O trabalho de força é feito sempre durante toda a temporada, para que além de aumentar a resistência, sejam prevenidas as lesões. Esse equilíbrio entre força e resistência também varia de acordo com a posição na qual o jogador ou jogadora atua. Pegando como exemplo os goleiros, eles têm uma semana muito forte de treinamentos, é exigido muita velocidade, respostas rápidas, que é o contexto do jogo. Se no caso dos goleiros o gasto de energia no jogo é aparentemente menor, durante os treinamentos da semana ele é bastante grande.

Agora quando falamos dos jogadores e jogadoras que correm o jogo todo, aqueles que atuam na chamada “linha”, alguns vão precisar de mais velocidade, mais explosão, outros vão precisar de um pouco mais de resistência para se manter o tempo todo correndo. Veja como a gente acabou falando de um misto de demandas que em alguns casos são comuns, e em outros são mais específicas, tanto é que temos grupos que treinam separados em muitas ocasiões, mas o trabalho de força e o trabalho cardiorrespiratório, vão estar sempre presentes ao longo da atividade.

Uma das características importantes da questão cardiorrespiratória é que quanto melhor se encontra essa capacidade melhor é a retomada. Por exemplo, se é realizado um esforço muito intenso durante uma jogada que pode ter um desfecho decisivo, um lance de gol ou de grande perigo, a recuperação desse esforço deve ser tão rápida quanto possível, para que esse jogador ou jogadora possa voltar ou jogo de novo na plenitude de seu desempenho. Quanto melhor a capacidade cardiorrespiratória ela, melhor essa resposta do atleta, não é difícil reconhecer aquele jogador que dá um pique e que não aguenta voltar. A pré-temporada é feita para dar esse start e depois se passa a fazer a evolução física até o atingimento de um pico em um momento importante da temporada, dependendo da estratégia de treino elaborada por cada comissão. A exigência tanto cardiorrespiratória, quanto muscular, é realmente bastante grande no futebol ao longo de todo o ano.

UdoF – Quais são os principais sintomas e sequelas que a COVID pode causar no corpo humano, pensando principalmente no desempenho exigido na prática do futebol no alto rendimento?

Páblius – O primeiro ponto são as diferentes intensidades que essa doença pode manifestar no corpo humano. O atleta, como qualquer outra pessoa, pode ter se contaminado e ser absolutamente assintomático, ou pode apresentar sintomas leves, como um quadro gripal, por exemplo, uma indisposição, algo que não vá gerar repercussão nos pulmões ou no sistema respiratório de maneira geral. A partir daí você pode ter algo mais moderado e até os casos mais intensos, com a falta de ar e a hospitalização. A parte respiratória ainda chama bastante atenção, pois essa falta de ar, essa menor resposta respiratória ao esforço, pode acontecer com intensidades variadas afetando o desempenho esportivo. São inúmeros os cenários possíveis.

Falando primeiro dos assintomáticos, apesar de eles não sentirem nada, para um atleta de alta performance sempre vai existir uma preocupação, nesses casos tem chamado muito a atenção as alterações cardíacas decorrentes da covid. Logo, o afastamento dos 14 dias, um retorno paulatino aos treinos, uma observação dos exames e uma análise da resposta deles no campo, são muito importantes para prevenir que eles não desenvolvam uma patologia cardíaca no futuro. Existem muitas perguntas ainda a serem respondidas sobre a doença, mas pelo que a gente tem visto, não vem ocorrendo grandes alterações nos assintomáticos. São muitos os exemplos de atletas que estavam positivos, fizeram o período de quarentena e conseguiram retomar paulatinamente suas atividades sem maiores problemas.

Aqueles que apresentam sintomas têm uma alteração no desempenho respiratório, e consequentemente cardíaco, pois quando você tem uma dificuldade respiratória, vai puxar o oxigênio para dentro e eliminar o gás carbônico com menos eficiência, comprometendo o corpo do ponto de vista circulatório e a própria função cardíaca, que pode estar normal, mas não vai conseguir promover as trocas da maneira ideal. Para esses casos a recuperação não vai ser só de 14 dias, sendo importante que não exista nenhum sintoma seja ele a perda de olfato, paladar, que são sinais muito claros da presença da doença, ou qualquer outro antes do retorno às atividades. Para isso existem os testes de esforço, os testes físicos, que vão mostrar se a queda de desempenho foi muito grande, nesses casos a recuperação tem que ser lenta, devendo ser realizadas uma série de avaliações como eletrocardiograma e exames mais aprofundados tanto de coração como de pulmão.

Se houver uma alteração pulmonar, lesões que aparecem com certa frequência em tomografias, que deixam o paciente bastante debilitado, o jogador ou jogadora só vai poder voltar ao esporte assim que se tiver a certeza de que não apresenta nenhum sintoma que limite sua capacidade física. Isso não é empírico, não é apenas um chute, fazemos muitas avaliações de esforço etenho recebido muitas queixas desse tipo, não só de atletas, “a única coisa que não melhorou ainda é a fadiga”, escuto. Então imagine expor um atleta, que apesar de estar já negativo ainda está com a fadiga, a parte respiratória ainda está respondendo com um pouco mais de dificuldade, e colocá-lo em um ritmo de treinamento intenso. Apesar do risco que eu tenho dele perder a massa muscular, da resistência que ele tinha, é uma segurança que a gente dá para eles de fazer uma volta mais cautelosa, mas realmente saudável.

A outra questão também que tem chamado bastante a atenção são as alterações cardíacas, a literatura está descrevendo muito em atletas que tiveram covid e que tiveram problemas respiratórios, alterações no músculo cardíaco que a gente chama de miocardite, por exemplo. Não vou entrar em muito detalhe técnico, mas é importante saber que já existe uma atenção maior para isso, pois no esporte de alta performance, seja ele qual for, você mantém um grau de exigência do corpo muito intenso durante a semana toda. Então colocar o corpo sob um stress a mais, a partir de uma virose desse tipo, da qual não temos ainda todas as respostas e reações do corpo, é bastante temerário.

Então esses atletas que têm sintomas precisam ser muito bem avaliados, se existiu algum dano, ou até mesmo sequela, se existem limitações que ele não tinha e passou a ter depois da infecção e como é que vai ser essa curva de recuperação. Tudo isso precisa ter indicadores, avaliações, exames, que possam mostrar essa recuperação, mesmo que ela seja lenta. Senão a gente vai expor esses atletas de maneira desnecessária.

UdoF – Jogadores e jogadoras estão mais ou menos propensos a serem contaminados por conta de seu preparo físico e idade? Quando contaminados, eles estão menos propensos a desenvolverem sintomas mais graves do que a média da população?

Páblius – A atividade física é um fator protetor sim, existe descrição disso, e um condicionamento melhor não é só que você vai fortalecer a imunidade, mas deixa o corpo mais atento à essa resposta quanto aos agentes externos que o cercam que podem ser potencialmente infecciosos. O grande problema é exatamente o treino em excesso, pois, no esporte de alta performance, o limiar entre estar bem de saúde ou com o próprio sistema de defesa comprometido é muito estreito.

Por exemplo, não é incomum que atletas profissionais, dependendo da modalidade, quando a intensidade das atividades se intensificam próximo de uma competição importante, comecem a desenvolver alguns sintomas como resfriados, sinusites, rinites, quadros gripais. O que ocorre nesses casos é uma queda da primeira defesa do organismo dada a intensidade dos treinos nesse momento específico de sua temporada. É aqui que nós médicos questionamos quanto um treinamento de alta intensidade, sem períodos de recuperação suficientes, é bom ou não para a saúde.

No futebol a gente tem notado algumas medidas que ajudam e diminuir essa sobrecarga, como o aumento do número de substituições, o uso de máscaras nos arredores dos gramados, o que de certo modo deu um pouco mais de segurança para os competidores, e também o afastamento dos que são detectados como positivos nos testes, medida bastante positiva.

O fato de você isolar esses atletas os 14 dias, de ter um decréscimo da presença do vírus e da posterior negativação permite que esses jogadores e jogadoras afastadas possam seguir a vida normalmente após esse período. Temos essa preocupação com o alto rendimento quando o treinamento é extremamente intenso, com pouco tempo de recuperação isso pode levar a um problema de ordem de defesa do organismo, que é o que a gente chama de imunidade.

Em relação ao desenvolvimento dos sintomas os atletas estão tão propensos a eles como qualquer pessoa. Evidências de sintomas como dor no corpo, dores musculares, indisposição, febre, dores articulares foram e tem sido relatados por atletas. Em situações mais graves, falta de ar – a dispneia, comprometimento de pulmões. Outra situação importante, é a volta ao esporte pós covid. Estudos mostram pequenas, mas significativas alterações cardíacas com pericardite e miocardite, principalmente se o retorno ao esporte for intenso e repentino após cessados os sintomas. 

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Sobre a beleza e a transcendência de uma final

Outro dia, assistindo alguns videos antigos, encontrei um comentário maravilhoso deste grande sujeito que foi o Armando Nogueira, no programa Apito Final da noite que antecede a decisão da Copa do Mundo de 1994, entre Brasil e Itália. Em um minuto de fala, ele diz basicamente o seguinte:

“… uma final é uma transcendência, uma final é uma comunhão. Ela transcende todos esses limites extremamente humanos da técnica, da tática, da física. Essa equipe não é a melhor equipe que no Brasil se poderia formar, do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista físico, do ponto de vista mental (…) me infundem uma confiança muito grande, e sobretudo um jogador, que eu considero estar ungido, que é o Romário.”

Para quem tem um coração em ordem, é muito difícil não se sensibilizar com uma fala dessas, pelo menos por dois motivos. Primeiro, porque não é uma análise puramente objetiva, não é uma espécie de anatomia do jogo de futebol, como agora estamos nos acostumando a fazer: pelo contrário, é uma impressão absolutamente subjetiva, muito mais empírica do que teórica, e justamente por isso é quase que inteiramente poética – é uma compreensão mais do que lúcida sobre o funcionamento de um evento esportivo decisivo. Depois, é uma fala tão importante porque, passados 26 anos, ela praticamente não envelheceu. Além de ter acertado que Romário sairia daquela Copa do Mundo canonizado – sem que tenha sido o astro daquela final, o que nos leva a crer que Romário já estivesse canonizado quando Armando Nogueira disse o que disse, praticamente todas as palavras continuam valendo, para várias equipes diferentes, e uma final continua sendo uma transcendência, uma comunhão, que vai para muito além dos limites extremamente humanos da tática e da técnica e do físico e da mente.

Bom, foi com esse trecho em mente que recebi várias das críticas ao jogo entre Palmeiras x Santos, no último sábado, pela decisão da Conmebol Libertadores. Particularmente, achei muito interessantes as críticas que denunciaram uma certa falta de qualidade estética no jogo, como se uma final precisasse ser um espetáculo surrealista – ou mesmo como se várias das finais recentes de campeonatos importantes tivessem sido jogos inquestionáveis. Onde estávamos em Brasil x Itália em 1994, Espanha x Holanda em 2010, Argentina x Alemanha em 2014 – onde estávamos em Liverpool x Tottenham, em 2019, para citar um exemplo mais recente? Entendo que um jogo dessas proporções cause uma certa expectativa, mas acho curioso como as expectativas que criamos, a partir dos torcedores, da imprensa, e às vezes de nós mesmos, profissionais do futebol, são tão demasiadamente afastadas do real, de um jeito que não seja possível qualquer outro sentimento que não o da decepção – daí a importância da gestão de expectativas, como dizem alguns colegas.

Ao contrário de algumas das denúncias que li, não me parece que o problema estético de um jogo decisivo esteja no fato de ser jogo único. Não é disso que se trata. O ponto mais importante, anterior ao fato de ser jogo único ou não, é o fato de que quando falamos de futebol, falamos de jogo: falamos de um terreno em que reina a imprevisibilidade, a incerteza, falamos de uma espécie de suspensão temporária do real, que cria uma outra realidade (é por isso que, quando jogamos, o tempo passa de uma forma diferente). Quando falamos de jogo, acho que ainda precisamos nos educar no sentido de que as forças do jogo são maiores do que as nossas forças, o jogo não existe para atender as nossas próprias vontades enquanto sujeitos, mas existe para fazer valer as suas próprias vontades enquanto jogo. Quando nos dedicamos ao planejamento, à aplicação e à avaliação de processos de treino, nós precisamos ter em mente que não fazemos isso para controlar, de alguma forma, o jogo que se joga, porque essa é uma batalha perdida na origem: todas as tentativas de controlar o jogo deslizam pelos nossos dedos sem que tenhamos a mínima condição de segurá-lo, de fato. O que podemos fazer, ao menos da forma como eu vejo o treino/jogo, é refinar as nossas capacidades de resposta aos problemas que o jogo nos apresenta. Ou seja, ao invés de treinarmos para controlar o jogo, treinamos para responder, cada vez melhor – individual, grupal e coletivamente – ao jogo que se joga, evitando ao máximo nos apegarmos a qualquer delírio de controle, pois me parece que quanto mais confrontamos a força do jogo, mais ela se impõe sobre nós. É com esse tipo de pensamento que acho que deveríamos encarar, com a mais absoluta naturalidade, que duas equipes bem treinadas – ou equipes ‘ricas de ideias’, para usar um dos clichês da moda – possam fazer um jogo decisivo abaixo da expectativa do público médio.

Como eu mesmo falei em algum outro lugar, existe um texto muito bonito do Nietzsche – que falava de futebol sem saber, diga-se, salvo engano meu no Zaratustra mesmo, em que ele defende que o sentido de um texto não está no texto em si: está na capacidade do leitor em relacionar-se ativamente com o texto que se lê, porque as possibilidades de interpretação de um texto são infinitas – quanto mais refinado e insistente for o leitor, talvez mais amplas sejam as possibilidades de leitura. Digo isso porque, a meu ver, é justamente o que acontece num jogo de futebol. Se olharmos para um jogo de futebol esperando apenas e tão somente analisá-lo, como se ele tivesse um sentido único, universal, inquestionável, sinto que perderemos aquela que talvez seja a grande potência do jogo de futebol, que é a potência do infinito, dos vários jogos dentro de um único jogo, da admissão de todos os olhares possíveis e da importância de fazer com que nosso entendimento sobre o jogo de futebol não seja necessariamente melhor apenas de acordo com a quantidade de conhecimentos que – supostamente- temos sobre o jogo – mas sim de acordo com a nossa capacidade de refinamento dos sentidos que damos ao jogo que se joga.

E é também com essas lentes que acho que poderíamos ler o jogo de sábado, pois o mesmíssimo jogo que pode ter induzido ao sono um ou outro espectador, também pode ter inquietado vários outros, e machucado vários outros, e alegrado vários outros e permitido todo e qualquer tipo de análise, inclusive de um ponto de vista tático – e com esse tipo de olhar, que lê o jogo de corpo inteiro, é que acho que podemos avançar no sentido de uma outra prática, de um outro futebol e de uma outra vida.