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Sobre a cultura da competitividade nos ambientes de treino

Crédito imagem – Rodrigo Coca/Agência Corinthians

Não há muitas dúvidas de que o processo de treino tem (e precisa ter) relações diretas com o jogo formal de futebol. É bem verdade que ainda não está claro que essas relações, ainda que diretas, ocorrem em diversos graus: por exemplo, para dois microciclos idênticos, inclusive dentro de uma mesma metodologia, os resultados podem ser completamente diferentes. Dentre outros motivos, isso acontece pela subjetividade do humano – cuja significância é inquestionável -, pelo caráter sistêmico do jogo de futebol – a partir do qual não cabem simples relações de causa/consequência – mas especialmente pelo ambiente no qual se desenvolve o processo de treino: em ambientes saudáveis, e digo isso de um ponto de vista humano, não raro o treino tende a ser melhor do que em ambientes doentios, nos quais a qualidade das relações não se sustenta.

Dentre as características que fazem dessas relações mais leves ou tensas, me permitam tratar de uma delas, em particular: a competitividade. Não sei vocês, mas a experiência tem me mostrado que a criação de determinados hábitos individuais e coletivos será tanto melhor quanto mais alto for o nível de competitividade de um dado processo de treino – especialmente durante a fase de especialização esportiva (entre cerca de 15 a 20 anos). Isso significa, inclusive, que pode haver uma relação hierárquica entre as duas coisas: de nada adianta sabermos dos mais elaborados conteúdos de jogo se, antes disso, não soubermos criar ambientes nos quais apareçam repetidamente os conteúdos macro e micro que nos interessam, mas também ambientes que sejam tão ou até mais competitivos do que a própria competição que se sucede no jogo (lembrando, evidentemente, do treino como jogo e do jogo como treino).

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Bom, para cultivar ambientes competitivos de um ponto de vista do treino, acho importante citarmos o lugar da pedagogia. O cultivo de ambientes competitivos pode perfeitamente ser incidental, mas caso deseje ser intencional, precisa caminhar junto da didática e do método. Isso não significa que a criação de ambientes competitivos aconteça a partir da decoração pura e simples de determinadas metodologias de treinamento, como um ator decora um texto, ou pela mera reprodução de determinadas estratégias didáticas, mas sim que o nível de competitividade do processo de treino depende da aplicação particular e subjetiva dessas duas variáveis pedagógicas na constante relação com o ambiente. O método, como nos revela a origem da palavra (do grego méthodos), é o caminho, o percurso a partir do qual um certo objeto é e será tratado ao longo do tempo. A didática, como escreve a respeitabilíssima Selma Pimenta neste artigo, tem como objeto a prática social do ensinar – o que vai absolutamente ao encontro das exigências do futebol, notadamente pela profunda complexidade do ato de ensinar, que está para muito além de qualquer tipo de mecanicismo.

Portanto, reparem que a criação de um ambiente competitivo não está unicamente sob o domínio da incerteza – embora esteja claramente permeada por ela, como ocorre em todos os sistemas complexos. Uma rápida lembrança da obra do professor Alcides Scaglia e veremos que há pelo menos dois objetivos que o pedagogo (leia-se, o treinador) deve perseguir: o surgimento de um ambiente de jogo e de um ambiente de aprendizagem – este artigo trata bem de ambos. Mas também considerem a importância disso que chamamos de estado de jogo – onde me parece estar, de alguma forma, a gênese pedagógica de um estado competitivo. Sobre isso, vale uma citação do próprio Alcides (no livro O jogo dentro de fora da escola, de 2005), sobre a diferença do jogador que alcança o estado de jogo, enquanto liberação da potência humana:

“(…) Ou seja, aquele que jogando não cumpre apenas um papel formal do jogo como atividade (ataque e defesa), mas realiza uma experiência de estado de jogo – jogar plenamente, engendrando formas particulares de interação entre o organismo e o ambiente, em uma dimensão de tempo histórico, evidenciando um caráter paradoxal de entrega e inutilidade aparente.”

Portanto, aqui traçamos uma linha importante do ponto de vista metodológico: há sim uma relação importante entre o cultivo de estímulos competitivos com a metodologia de treinamento adotada. O treino que parte especialmente da técnica como fundamento pode perfeitamente criar situações de competitividade, mas talvez não consiga fazê-lo com a mesma largura e profundidade do que as metodologias nascidas e criadas no jogo – dentre outros motivos, pela natureza complexa do ato de jogar. 

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De um ponto de vista mais micro, uma estratégia que tenho adotado há algum tempo na Elleven Academy – e sei que é do agrado de outros colegas – é o que o colega Eduardo Barros apresentou, em coluna nessa mesma UdoF, como Planilha de Aproveitamento. Basicamente, trata-se do seguinte: cada um dos jogos realizados ao longo da semana de treino vale um determinado número de pontos. Esses pontos podem variar de acordo com a importância do jogo dentro do microciclo, tanto de um ponto de vista fisiológico quanto de um ponto de vista tático-técnico. Os pontos vão se somando, de um modo que geram uma espécie de classificação – sempre tornada pública para os atletas. Com isso, é possível observar padrões de rendimento tanto de um ponto de vista semanal ou mensal, mas também o aproveitamento dos atletas ao longo de vários meses, o que passa a ter maior valor estatístico. No meu caso, ainda proponho que a equipe que somar mais pontos naquela sessão de treino vai direto para o descanso, enquanto que a equipe derrotada (ou as equipes, no caso de três ou mais times) ainda cumpre mais uma tarefa física previamente estipulada.  

Por um lado, de fato a adoção de um controle pedagógico do aproveitamento dos atletas em cada jogo aumenta substancialmente a intensidade do treino. Me arrisco a dizer que um estudo com dois grupos diferentes, um deles sob intervenção dessa estratégia e outro não, provavelmente traria indicadores fisiológicos favoráveis ao primeiro. Mas além de um ponto de vista fisiológico, minha sensação é que a profundidade do estado de jogo decorrente dessa estratégia pedagógica é um grande facilitador na implementação de comportamentos de jogo. Por exemplo, se percebo uma certa morosidade na mudança de atitude em transição defensiva, a adoção de jogos que estimulem a mudança de comportamentos em transição, nesse tipo de ambiente, me parece mais profunda do que a mesmíssima intencionalidade num ambiente distinto. Também noto um envolvimento muito maior dos garotos, especialmente dos que estão descansando num determinado momento (num jogo conceitual qualquer, com número reduzido de atletas), o que permite outra capacidade importante, que é a do jogador externo ao jogo manter-se envolvido ainda que não como jogador – avaliando o que se passa no jogo, especialmente de um ponto de vista tático, podendo depois relatar a mim e à comissão o que viu. 

Como uma ressalva, observo o seguinte: embora a adoção desse tipo de estratégia possa de fato aumentar substancialmente o nível de competitividade de um determinado grupo, especialmente naqueles onde parece haver um certo grau de conformismo e relaxamento, é importante cuidar do ambiente para que a competitividade não se transforme em agressividade crônica. Embora me pareça muito importante, de um ponto de vista humano, que o treino seja um espaço de liberação de tensões emocionais, é importante cuidar da linha tênue que separa uma coisa da outra, pois quanto maior o nível de agressividade, menor me parece a capacidade de absorção daqueles conteúdos de jogo de que falávamos. Dai que seja preciso encontrar um estado ótimo de competitividade – o que não acontece por fórmulas objetivamente inventadas, mas sim pela sensibilidade pedagógica do treinador ou treinadora.

Seguimos em breve.