Crédito imagem: Paul Hazlewood/Brighton&Hove Albion
Foi neste mesmo espaço, por algumas vezes, que conversamos sobre o quão importante pode ser olhar para as estruturas táticas de uma equipe (ou sistemas, ou qualquer outro nome) não como fundamentos rígidos e imóveis, mas como organismos abertos, fluidos – cuja existência acontece pelo movimento, e não apesar dele. Se você preferir, considere os sistemas como princípios – referências iniciais a partir das quais ocupamos o espaço, seja de forma individual, grupal ou coletiva. Desse modo, as estruturas não são exatamente um fim.
As estruturas táticas de uma equipe não são exatamente um fim por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque o papel das estruturas no acabamento de uma equipe (aqui, vamos entender acabamento como sinônimo de desempenho) é razoavelmente limitado, não porque o 4-3-3 ou o 4-4-2 não tenham valor, mas porque o seu valor não está neles mesmos, está na qualidade das relações que se faz dentro deles. Por isso, aliás, as estruturas também não podem ser vistas como fins porque servem, necessariamente, a um senhor anterior a elas – o modelo de jogo. É bem verdade que mesmo o modelo de jogo pode não ser exatamente um fim (porque o próprio modelo, por sua vez, serve a um senhor ainda maior, que é o próprio jogo), mas não deixa de ser importante considerá-lo como uma dimensão superior, a partir da qual vários de nós, se não todos e todas, pensamos nossas formas de jogar. O ponto é que, no caso do modelo de jogo, ainda que isso não seja dito de maneira explícita, parece que existe uma certa tendência para se pensar na contra-mão, quando o comparamos com aquela fluidez das estruturas, de que falávamos no começo: não são poucas as sugestões de que o modelo de jogo seria, na verdade, uma entidade meio etérea – portanto abstrata, reduzida ao campo das ideias – como também que o modelo de jogo seria uma entidade meio que rígida, fechada, inegociável e que, depois de definida, deve apenas ser o que é.
No primeiro caso, do modelo enquanto uma entidade etérea, me permitam fazer uma analogia: faz algum tempo que penso nas semelhanças desse nosso conceito de modelo de jogo, talvez não apenas no futebol mas também nas outras modalidades coletivas de invasão, com o conceito de areté dos gregos. A areté nada mais era do que um certo ideal de excelência, uma espécie de meta de perfeição moral a partir da qual se organizava a paideia, a educação do sujeito. Para citar dois exemplos rápidos, Homero e Hesíodo, poetas clássicos do entorno do século X a.C.: no primeiro caso, o ideal de excelência estava no belo e no bom (ou seja, numa junção de estética e ética); no segundo caso, o ideal era bem diferente, boa reputação e posses moderadas. Mas reparem numa característica, em especial, que é a que me faz lembrar da nossa noção de modelo de jogo: nos dois casos, ainda que nas entrelinhas, nunca se faz referência ao que se é. Pelo contrário, sendo um ideal, é uma referência ao que gostaríamos que fosse – logo, tanto a areté quanto o modelo de jogo seriam meio que bússolas a partir das quais norteamos as nossas ações.
Não deixa de ser uma comparação interessante porque o modelo de jogo também tem uma conotação pedagógica muito forte: seja de um ponto de vista agudo – porque de fato é preciso educar-se (literalmente ou não) para se jogar num certo modelo – ou de um ponto de vista crônico (pensando nos clubes cuja formação acontece a partir do modelo de jogo da equipe principal) o modelo de jogo não modela apenas um certo tipo de performance coletiva, mas modela o tipo de regras de ação que, como diz o próprio termo, rege as decisões de cada jogador dentro daquele sistema (aqui, diga-se, indico a entrevista do ótimo Gonzalo Villar, da Roma, publicada outro dia no El Pais). O ponto é que, assim como sabiam os gregos, a arte do jogo não se resume ao controle nem aos ideais deliberados, mas depende fortemente do que eles chamavam de tykhe – que os romanos chamariam de fortuna, e que nada mais é do que o acaso ao qual todos nós estamos submetidos. Coincidentemente, é um dos fundamentos de todos os bons estudos sobre o jogo, que geralmente aparece sob o nome de imprevisibilidade.
É por isso que proponho, desde o título, que o modelo de jogo seja pensado como um organismo vivo. Se os modelos, as aretés, ou qualquer outro ideal de excelência fossem apenas fechados, rígidos e imóveis, basicamente eles seriam uma negação do ambiente onde se criam – e, se fosse assim, seriam uma negação deles mesmos. Esse é outro motivo porque o modelo de jogo, como dizíamos ali em cima, não existe em si: ele depende não apenas da relação que faz com o ambiente, mas da nossa capacidade de interpretar, de dar sentido às respostas que o ambiente nos dá sobre o modelo que idealizamos. Se estivermos em sintonia com os movimentos do jogo (que acabam sendo, de alguma forma, os movimentos da vida que se vive), não há como não pensarmos no modelo de jogo como um organismo vivo, em constante mutação, sensível ao meio (seja esse ‘meio’ um certo tipo de interações em ou mais setores do campo, uma ou mais lesões ao longo da temporada, um determinado mecanismo de ataque, defesa ou transições que se mostra potencialmente interessante com o tempo, ainda que não o tivéssemos planejado e etc), e que portanto é constantemente adaptável, só pode existir, na sua plenitude, se estiver em aberto. Isso não significa, em hipótese alguma, que o modelo de jogo seja uma coisa anárquica que vai sendo amassada de um dia para o outro. Significa, na verdade, que o modelo sim ser negociável, especialmente nos seus pormenores, nos seus princípios micro, de acordo com as respostas que o ambiente (tykhe) nos dá. E isso, para além da razão, exige sensibilidade.
A mesma sensibilidade com a qual gostaria que vocês pensassem na seguinte provocação: será que o modelo de jogo de fato se resume ao ideal de excelência que procuramos ou será que o modelo, de um ponto de vista do jogo, pode ser menos o ideal que gostaríamos de alcançar e mais o real que nossas equipes já demonstram no treino e jogo? Será que o modelo, ao invés de ser o que gostaríamos que fosse, não é o que as nossas equipes já são, nas virtudes e nos vícios, independentemente das ideias de excelência?
Sobre isso, continuamos em breve.