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O jogador de futebol mercadorizado

Crédito imagem: Reprodução/Palmeiras

Finalizamos nosso último texto, sobre o futebol como negócio, levantando a bola para compreendermos o papel atribuído aos jogadores, e por vezes assumido por eles, de mercadorias, produtos, coisas. No momento atual do futebol brasileiro de abertura da “janela de transferências”, essa questão se torna mais evidente. Apesar de evidente, não está explícita e é pouco problematizada no contexto do futebol profissional. Por outro lado, recentemente, um atleta do Palmeiras, ao ser questionado se poderia jogar no rival, fez a seguinte declaração: “Sou uma mercadoria. Não sei o dia de amanhã.”

Há muitos anos, autores da Educação Física e das Ciências Humanas se dedicam à discussão do processo de coisificação do sujeito e, consequentemente, do atleta de futebol, o que o transforma numa máquina, numa coisa, num produto e mercadoria. Arlei Damo e José Florenzano são referências conhecidas por nós. Mas a psicóloga social Ana Quiroga e, principalmente, o precursor do termo, Perdigão Malheiro, já problematizavam, há décadas, sobre essa questão. Não se trata, evidentemente, de um fenômeno exclusivo do esporte. O tipo de sociedade que vivemos busca transformar todos nós em consumidores, clientes e em mercadorias. Vende-se, de ar a sonhos, nada escapa à ganância do lucro desenfreado. Porém, trata-se, neste ensaio, de colocar o fenômeno da mercadorização apenas no futebol.

No entanto, ainda que este termo tenha sido cunhado há anos e questionado e discutido desde então, ainda é muito comum a mídia esportiva, dirigentes, torcedores e até mesmo os próprios jogadores atribuírem aos atletas do futebol profissional a qualificação de mercadoria. Quantas vezes não se ouviu dizer, “fulano foi comprado”, “ciclano foi vendido”, “precisamos só trocar umas peças”, “tal jogador pertence e tal clube”, “quando não render mais, a gente vende ou descarta” etc. Tais falas explicitam o processo de transformar pessoas, seres humanos, em coisas. Afinal, como nos diz Florenzano, o futebol moderno está impregnado pelo discurso que associa o jogador a uma máquina, como uma peça de engrenagem, e que pode ser tranquilamente reposta/substituída quando vendida ou inutilizada.

Nenhuma outra expressão soa tão agressiva e impactante quanto “plantel”, expressão designada atualmente para nomear um grupo de profissionais, os jogadores principalmente, de um clube esportivo. Tal expressão remete aos tempos feudais para denominar um “conjunto de escravos de um senhor, uma província, uma região, um país” (GEIGER, 2016). Obviamente, não estamos querendo comparar jogadores de futebol aos escravos, mas ressalvadas suas particularidades, levantar similaridades quanto à negação de seus direitos, sentimentos e subjetividade.

O Brasil é farto na produção de talentos para o futebol. Afinal, foi nosso povo mais vitimado, mais marginalizado, que reinventou o futebol, transformando o jogo que nos chegou dos ingleses em uma espécie de brincadeira de bola, onde a beleza e a sutiliza do gesto, a diversão, a alegria, a criatividade, despontavam soberanas. Não se passa um ano sem que surja um menino ou menina de quem digam que será craque, embora ainda jovem, quase criança. Quando isso ocorre, acompanhamos com ansiedade seu desenvolvimento, mas não sem apreensão. Por vezes nos perguntamos quanto tempo se passará até que os mercadores do futebol o destruam.

O caso mais recente é o do menino Endrick, jovem talento das categorias de base do Palmeiras, quinze anos de idade, pouco mais que uma criança. Notamos a cautela no trato com esse menino por parte do técnico da equipe palmeirense que disputa a Copa São Paulo, versão 2022, deixando-o no banco para participar somente da segunda etapa (até quando ele conseguirá manter essa cautela?). O menino é um artista da bola e o demonstra isso fartamente quando entra em campo. Porém, confrontando a cautela do técnico de Endrick, vemos os vídeos de suas melhores jogadas exibidos à exaustão na mídia, lemos os comentários feitos por alguns profissionais da imprensa, que fortalecem a ganância dos mercadores; notamos a ansiedade de dirigentes pelo que representa Endrick como mercadoria, valores absurdos em dólares e euros são colados à imagem do menino. Clubes e imprensa da Europa falam do jogador palmeirense, monitorando-o para uma possível negociação. Quanto tempo dura a estrutura psíquica de um menino submetido a tal pressão? Que medidas cautelares contra essa mercadorização, além de seu técnico, o protegerão? Família? Amigos? Dirigentes? Endrick é só um menino. Ele poderá viver sua vida de menino? Endrick é criativo. Ele poderá seguir sendo criativo? Para Endrick, o futebol ainda é uma brincadeira de bola. Ele poderá seguir brincando de bola? Por quanto tempo? Endrick tem vestígios de artista. Ele poderá se tornar um artista da bola?

Todos os anos surgem “Endricks”, “Neymares”, “Zicos”, “Maradonas”, em todo o mundo. Quantos, depois de tornados mercadorias, sobrevivem à arrasadora sanha dos mercadores do futebol? Inevitavelmente caem nas garras desses mercadores, que olham para pessoas e só veem cifras, lucros, negócios. Todos somos cifras, lucros, negócios para os mercadores, mas jogadores de futebol são tudo isso potencializados. Nesse mundo balizado pelo modo de produção capitalista, poucas mercadorias produzem lucros tão astronômicos quanto jogadores de futebol