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Futebol e Responsabilidade social: Um campo de transformação e inclusão

Por: André Tixa Orsine

Como o futebol transcende o campo e se transforma em uma poderosa ferramenta de responsabilidade social, promovendo educação, saúde e inclusão em nossa sociedade. Abaixo um relato detalhado sobre o impacto do futebol na transformação social promovida pelo AKA (Associação dos K-iauzeiros Ausentes) e como ele pode construir um futuro mais justo e equitativo para todos e promove uma verdadeira revolução no Vale do Jequitinhonha.

O futebol, mais do que um esporte, é uma ferramenta de impacto social, capaz de transformar vidas, reunir comunidades e promover a inclusão. Através de sua universalidade e apelo, oferece uma plataforma única para abordar questões sociais, educacionais e econômicas, contribuindo para o desenvolvimento humano e comunitário. Este artigo explora a interseção entre futebol e responsabilidade social, destacando como essa relação pode ser explorada para gerar mudanças positivas e sustentáveis na sociedade.

O FUTEBOL COMO VEÍCULO DE INCLUSÃO SOCIAL

A capacidade do futebol de unir diferentes camadas sociais é inegável. Em campos improvisados, praças e estádios, pessoas de diferentes origens e status sociais se encontram para compartilhar uma paixão comum. Esta universalidade torna o futebol uma ferramenta eficaz para a inclusão social. Programas que utilizam o futebol para reintegrar jovens em situação de risco ou expostos aos malefícios das drogas, têm mostrado resultados significativos ao redor do mundo. Esses programas não apenas ensinam habilidades futebolísticas, como também valores como trabalho em equipe, respeito mútuo e disciplina, que quando complementados aos estudos e demais programas de capacitação, elevam o interesse pelo desenvolvimento promovendo a inserção no contexto social.

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EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ATRAVÉS DO FUTEBOL

Além de promover a inclusão, o futebol também é um poderoso veículo educacional. Projetos sociais baseados no futebol frequentemente incluem componentes educacionais, como tutoria e programas de alfabetização. Essas iniciativas ajudam a manter as crianças e adolescentes longe das ruas e do perigo de atividades ilícitas, oferecendo-lhes uma alternativa saudável e educativa. Ao mesmo tempo, o esporte ajuda no desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, preparando os jovens para desafios futuros tanto dentro quanto fora do campo.

FUTEBOL E SAÚDE COMUNITÁRIA

O impacto do futebol na saúde física e mental dos indivíduos é bem explícito. A prática regular do esporte reduz o risco de doenças crônicas, como obesidade e hipertensão, e também serve como uma ferramenta eficaz na luta contra a depressão e a ansiedade. Por meio de torneios e eventos de futebol comunitário, os projetos sociais promovem um estilo de vida saudável e ativam o engajamento comunitário em questões de saúde pública.

RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS ORGANIZAÇÕES DE FUTEBOL

Os clubes de futebol e organizações esportivas têm uma responsabilidade social inerente. Muitos clubes já reconhecem essa responsabilidade e têm desenvolvido programas comunitários que vão além do esporte. Estes programas abrangem desde a oferta de bolsas de estudos para jovens atletas até iniciativas de sustentabilidade e campanhas de conscientização sobre questões críticas, como racismo e violência doméstica. Essas ações refletem não apenas um compromisso com o bem-estar da comunidade, mas também contribuem para a construção de uma marca forte e responsável.

DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Apesar dos muitos benefícios, a implementação de projetos de futebol com foco social enfrenta vários desafios. A sustentabilidade financeira é uma das principais barreiras, especialmente para organizações não governamentais e iniciativas comunitárias que dependem de doações e patrocínios. Além disso, a falta de infraestrutura adequada pode limitar o alcance e a eficácia desses programas. No entanto, as oportunidades para expandir o impacto do futebol na sociedade são vastas. Com o apoio adequado de entidades privadas e públicas, projetos de futebol e responsabilidade social podem se tornar um modelo replicável de desenvolvimento comunitário. Além disso, a crescente conscientização sobre a importância do esporte na promoção da igualdade e inclusão social sugere um futuro promissor para essas iniciativas.

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A JORNADA DO AKA EM TRANSFORMAR VIDAS NO VALE DO JEQUITINHONHA

Ao longo dos últimos 18 anos, a Associação dos K-iauzeiros Ausentes (AKA) vem redefinindo o papel do futebol na responsabilidade social, empregando o esporte não apenas como um meio de entretenimento, mas como um catalisador poderoso para o desenvolvimento socioeconômico. Fundada em 2006, a AKA não se limita ao gramado; ela se estende às vidas dos jovens do Vale do Jequitinhonha, utilizando o futebol como ponto de partida para um amplo ecossistema social.

DESENVOLVIMENTO INTEGRADO ATRAVÉS DO ESPORTE

Desde sua concepção, o projeto “Valemos pelo que Somos” abraçou uma visão multidimensional, atuando em diversas frentes como saúde, educação, capacitação e engajamento comunitário. O futebol, embora seja o núcleo inicial, é apenas uma das muitas ferramentas utilizadas pela AKA para fomentar a mudança. Esta abordagem integrada propicia o acolhimento e desenvolvimento dos jovens, oferecendo-lhes oportunidades para crescerem como cidadãos conscientes e ativos.

TRANSPARÊNCIA E INOVAÇÃO NA GESTÃO

A transparência e o compromisso com resultados palpáveis são pedras angulares na filosofia da AKA. Ao incorporar práticas modernas de gestão como compliance e governança, a associação garante a eficácia e a sustentabilidade de suas iniciativas. Essa metodologia permite não apenas alcançar, mas também expandir seus objetivos, multiplicando o impacto de cada ação realizada.

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MUDANÇA DE PARADIGMA: ALÉM DO ASSISTENCIALISMO

Contrariamente ao assistencialismo tradicional, o AKA promove um modelo de desenvolvimento que valoriza a dignidade e a autoestima através do exemplo e do estabelecimento de referências reais e tangíveis. A ideia não é se espelhar em heróis inatingíveis, mas sim em modelos inspiradores que compartilham experiências semelhantes com os jovens do Vale, demonstrando que é possível alcançar novos horizontes.

A FILOSOFIA DE CUIDAR E APOIAR

A essência do trabalho do AKA está em proporcionar desenvolvimento e capacitação, fomentando a inclusão social de maneira efetiva. O projeto se empenha em cuidar e apoiar cada indivíduo, garantindo que a assistência oferecida seja tanto um impulso quanto uma rede de segurança que permita a todos avançar com confiança em direção aos seus objetivos.

CONSTRUINDO UM LEGADO

O desafio assumido pela AKA é monumental: construir um legado duradouro no Vale do Jequitinhonha que não apenas resgate sonhos, mas também fortaleça a capacidade mental da comunidade, aproximando os sonhos de uma realidade viável e promissora. Para construir uma sociedade mais equitativa e rica em oportunidades, a AKA estabelece canais de acesso e incentivo, sempre disponíveis para aqueles que procuram um caminho para o crescimento. Neste cenário, o trabalho da AKA e do projeto “Valemos pelo que Somos” ressoa como um exemplo vibrante de como o esporte pode ser a base para uma transformação social abrangente e significativa, marcando não só uma, mas várias gerações no Vale do Jequitinhonha.

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CONCLUSÃO

O futebol, longe de ser apenas um passatempo ou entretenimento, é um elemento transformador na sociedade. Quando alinhado com objetivos sociais claros e estratégias sustentáveis, pode ajudar a moldar comunidades mais fortes, mais saudáveis e mais inclusivas. A responsabilidade social no futebol não é apenas sobre organizar torneios ou patrocinar equipamentos; trata-se de reconhecer o potencial do esporte como um catalisador para o bem social e agir de forma a maximizar esse potencial. Ao fazer isso, o futebol não apenas eleva o espírito humano, mas também reafirma seu lugar como uma força vital para o bem na sociedade global.

Imagem de capa: https://www.anf.org.er/wp-content/uploads/2018/12/Aula-na--Nova-Aurora.jpg

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Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Gol: o acontecimento quase impossível do jogo de futebol

Por: João Batista Freire

O futebol é um esporte inventado para que o gol seja quase impossível. Entre uma trave e outra apenas 7,32m de largura. Altura? Somente 2,44m. O campo tem mais de 100m de comprimento e aproximadamente 65m de largura. Os jogadores, quando atacam, só fazem o gol se a bola for dirigida a esse pequeno espaço de 7,32m, com 6, 7, 8 defensores na frente dela, mais o goleiro, que, ainda por cima, pode usar as mãos. Quanto aos defensores, podem chutar a bola para qualquer direção, exceto aos 7,32m entre as traves. A vantagem dos defensores é ampla. Além disso, existe a tal regra do impedimento, uma desgraça que anula boa parte dos gols obtidos a duras penas. Quem nunca jogou futebol não faz ideia do cansaço produzido em cada jogada. Aos que estão em más condições físicas, depois de um lance muito disputado, parece que terminou o oxigênio do mundo. À medida que o cansaço aumenta, as coordenações motoras e de pensamento diminuem, a visão se estreita, e passar ou finalizar torna-se um drama, quanto mais endereçar a bola para os diminutos 7,32m. Tudo favorece a defesa. Todas as vezes que uma equipe de futebol recupera a bola, a intenção é atacar o gol adversário, e todos os jogadores se mobilizam para isso. Vamos dizer que esse estar com a bola para atacar o adversário ocorra umas 95 vezes por jogo. Considerando que, de maneira geral, uma equipe faz um, dois ou três gols por partida, concluímos que ela fracassará em seu intento mais ou menos em 97 a 98 por cento das tentativas. Ou seja, o futebol é um jogo em que tudo favorece a defesa. Não foi feito para que aconteça gols, pelo contrário, foi concebido para impedir, quase a qualquer custo, a realização do gol.

É tão quase impossível fazer gols no futebol que, quando ele ocorre, assistimos a um verdadeiro orgasmo coletivo. Jogadores e público torcedor vão ao delírio. Em uma Copa do Mundo, esse orgasmo coletivo pode atingir mais de dois bilhões de pessoas. Por ser tão difícil fazer o gol, pela tensão que precede cada ataque, pela frustração da equipe e torcida ante cada sucesso da defesa, cria-se uma energia brutal, dificilmente contida. E quando essa energia não pode ser extravasada em comemoração do gol, explode em choros, gritos, agressões, palavrões. Foi diante do gol que assisti, pela primeira vez, anos e anos atrás, homens se abraçando, se beijando e chorando. Nunca vi tantos homens, que jamais admitiriam certos contatos com outros homens em outras situações, se tocando. Assisti a alguns dos mais bárbaros encontros entre homens no estádio e fora deles, mas também assisti aos mais esperançosos sinais de humanidade durante os jogos. E tudo porque o gol, no jogo de futebol, é quase impossível. E é isso, acredito, que o torna mais apaixonante que qualquer outro esporte.

Foto: Toru Yamanaka – 16.dez.12/AFP

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Ensinar futebol a todos, ensinar bem o futebol a todos, ensinar mais que o futebol a todos

Por: João Batista Freire

Jogadores e jogadoras de futebol são mais que jogadores e jogadoras de futebol. São homens e mulheres, são seres humanos, são criaturas vivas. Assumem, ao nascimento (mesmo que não saibam disso), o compromisso de viver, de preservar a vida. Uma educação coerente com a natureza humana lhes ensinaria a nada fazer contra a vida e a tudo fazer a favor dela. De onde resulta uma espécie de compromisso ético primordial: nada contra a vida e tudo a favor da vida.

Treinadores e treinadoras de futebol, não importa se de equipes de base ou de equipes profissionais são professores e professoras, queiram ou não aceitar isso. Todos os professores e professoras, de futebol ou de qualquer outra matéria, ensinam a viver, fazendo isso de maneira consciente ou não. Seria melhor que assumissem que são professores e professoras e que sempre ensinarão mais que futebol, que ensinarão para a vida, e podem, com isso, causar benefícios ou danos, podem potencializar vícios ou virtudes.

É um erro enorme pretender ensinar futebol negligenciando o fato de que os jogadores, mais jovens ou mais maduros, são homens e mulheres, são seres humanos. O futebol não pode ser isolado da vida. O que se faz dentro do campo é viver, é realizar a vida. E não é necessário saber definir o que é a vida para lidar com isso. Deveríamos responder, quando nos perguntassem sobre ela, que viver é respirar, é chorar, é correr, saltar, sentar, comer, conversar, pensar… Viver é agir, é realizar a vida em cada ato. Não é necessário dar explicações complicadas sobre ela. Jogar futebol é viver, porque todo jogar é uma maneira sempre intensa de viver.

Anos atrás escrevi que devemos ensinar futebol a todos, ensinar bem futebol a todos e ensinar mais que futebol a todos. Aqueles a quem recusamos ensinar o futebol, porque avaliamos que não possuem talento para chegar ao estrelato, são, talvez, os que mais precisam aprender. Nossas falhas avaliações são incapazes de perceber talentos escondidos, aqueles que não se revelam de imediato. E se não formos capazes de reconhecer que somos educadores antes de sermos treinadores de futebol, negaremos a esses meninos e meninas a oportunidade de se educarem. É um direito humano aprender esporte, não importa se esse esporte é o futebol ou qualquer outro. Não recusemos ensinar o futebol a todos. Consideremos, inclusive, que um jogador maduro, com 38 anos de idade, ainda tem que aprender a jogar futebol, e ainda tem lições de vida a aprender. Ensinemos a todos, é a lição que vale.

Quanto a ensinar bem o futebol a todos indica que temos que nos preparar mais para ensinar melhor. Persiste, no campo do esporte, a ideia de que os talentos são natos, que não dependem de aprendizagens, mas apenas de desenvolvimento natural. Grande erro. O que sabemos sobre as coisas inatas? Sabemos distinguir entre o que é natural e o que é adquirido? Por mais que a ciência tenha avançado, ela ainda não nos responde adequadamente sobre isso. Entre os tantos erros que cometemos no esporte, um dos maiores é o ensino dele. Falhamos miseravelmente na pedagogia do esporte. No futebol, por exemplo, ainda somos piores em nossas metodologias que a rua. Por qual motivo crianças aprendem a jogar bola maravilhosamente bem quando brincam na rua ou em outros espaços, sem orientação de adultos, e sentem tanta dificuldade em aprender quando estão com professores e professoras? Claro que esse não é um problema só do futebol ou dos esportes. Uma criança aprende a falar sua língua materna com dois anos de idade, depois vai para a escola e fracassa na aprendizagem dos conteúdos da disciplina português. Passamos doze anos no ensino básico e nos tornamos analfabetos funcionais. Ensinar, quando se trata de fazê-lo nas escolas ou outras instituições, tornou-se um mistério. Provavelmente, entre outros problemas, isso ocorre porque o foco da educação é o da instituição, e não o do aluno. Na rua, ao contrário, o foco da educação é o aluno. Aliás, na rua não há aluno, há criança, há adolescente, há adulto, há a pessoa real. Na escola (e na escolinha de futebol etc.) não há criança ou adolescente, há aluno. Vamos imaginar uma criança chamada Lucas. O Lucas tem o direito de aprender futebol sem deixar de ser Lucas. É preciso que ele aprenda do jeito dele, porque o jeito dele é diferente do jeito de Antônio, Mário ou Pedro. Além disso, Lucas é criança e não pode ser tratado como adolescente ou adulto. E Lucas está aprendendo futebol para ter melhores recursos para viver, para dar conta de sua vida, o que é um projeto muito maior que aprender para jogar futebol. Futebol é meio e não fim. Lucas pode se tornar o melhor jogador de futebol do mundo, ou seja, ele pode ter extraordinário êxito no futebol…, mas pode fracassar na vida. Afinal, quando um jovem vai para uma equipe de base do futebol profissional, o ambiente da base deveria ser o de uma instituição educacional ou de uma incubadora de jogadores profissionais? Uma coisa é juntar novilhos numa fazenda para alimentá-los, garantir-lhes a saúde e aguardar que engordem para depois vendê-los com enorme lucro; outra coisa é acolher jovens em um centro de formação de futebol e bem educá-los para a vida, servindo-se do futebol como instrumento.

Com isso chegamos ao terceiro princípio, aquele que diz que devemos ensinar mais que futebol a todos. O que significa ensinar para a vida enquanto se ensina futebol? Entre os grandes astros e estrelas do esporte, há fartura de exemplos de pessoas que se arruinaram na vida fora do esporte e outras que se tornaram exemplos de cidadãos e cidadãs. O quanto essas consequências para a vida dependeram da formação que tiveram no esporte? E o quanto aqueles que ensinam esporte se preocupam com isso? De maneira geral o público entende que um jovem que veio de uma situação de extrema pobreza e se tornou um astro no esporte, ganhando, com isso, muito dinheiro, está com sua vida resolvida. Longe disso, muitas vezes esse tanto de dinheiro tornou-se sua desgraça, arruinando seu caráter, e não resultou em benefícios sociais para ele e outros em torno dele. Sair subitamente de um estado de pobreza para um estado de opulência não garante realização de vida. Teríamos, portanto, que resolver essa questão de ensinar mais que o esporte a todos, de modo a ensinar, acima de tudo, a se conduzir bem na vida fora do esporte, a ser ético, a pesar bem os valores humanos e não só o dinheiro, a beneficiar-se e a beneficiar a sociedade. Porém, como conduzir isso jogando bola, aprendendo futebol? Porque não estamos falando de jogar bola em um momento e fazer discursos sobre a vida em outro momento. Trata-se de aprender para a vida enquanto se aprende futebol, enquanto se joga bola. Para isso teremos que entrar no campo da metodologia.

Há, entre outras, duas maneiras básicas de aprender a jogar bola. Para sermos mais específicos vamos falar, por exemplo, do passe. Primeiro em uma situação de acordo com a escola tradicional, de acordo com uma rotina de exercícios em uma escolinha de futebol ou em uma equipe de base. Vamos pensar em crianças de 11 a 12 anos. Nessa situação que estamos criando, elas farão o seguinte exercício: ficarão em duplas, uma de frente para a outra, distantes cerca de 5 metros entre elas. Ao sinal do professor, trocarão passes uma para a outra, com a parte interna do pé dominante, até que o professor mande parar. A cada vez que ele parar, ele dirá para se afastarem uma da outra um passo, aumentando a distância entre elas. Ao sinal do professor, novamente trocarão passes até ele pedir para parar. E assim sucessivamente, até chegarem a uma distância de 10 ou 11 metros umas das outras. Com esse procedimento é possível, inclusive, ter uma ideia razoável do número de passes dados por cada criança.

Vamos agora a uma situação não tradicional, em uma equipe de base de um clube de futebol ou em uma escolinha de futebol. A turma tem 16 crianças. O professor pede que formem uma roda, com a distância de dois braços entre cada aluno. Pede que mandem para o centro da roda um dos alunos que eles escolherem, ao modo deles. Em seguida diz para começarem uma brincadeira de bobinho, com quantos toques na bola quiserem. Depois de uns 3 minutos, o bobinho ainda não conseguiu sair do meio da roda. Então o professor para a brincadeira, coloca o problema e pede uma solução: como fazer para o bobinho não ficar tanto tempo na roda? Ouve as sugestões e escolhe aquela que for mais adequada para seu plano de aula (se não houver nenhuma boa sugestão, ele pode acatar uma má sugestão e mostrar depois que não houve solução. E então pedir novas sugestões). Suponhamos que os alunos sugiram colocar dois bobinhos. Aí o professor perguntará por que eles acham que é uma boa solução. Ouvidos os argumentos recomeçam a brincadeira. De fato, os bobinhos interceptaram a bola muito mais rapidamente. Mas há um problema que persiste: o aluno menos habilidoso continuou como bobinho muito tempo, porque quem tocava na bola era sempre um outro mais habilidoso. Como solucionar isso? Problema passado para os alunos, conversaram entre eles e sugeriram que não precisava sair da rola, necessariamente, quem tocasse na bola. Com a ajuda (o professor deve sempre interferir e ajudar, dando pistas) do professor concluíram que deveria sair o que estivesse há mais tempo na roda. A brincadeira recomeçou e, de fato, o rodízio de bobinhos aumentou. Passados mais alguns minutos, o professor novamente parou a brincadeira e deu mais um problema para os alunos. Ele queria aumentar a dificuldade do passe. Como fazer? Os alunos discutiram por mais ou menos 1 minuto e deram boas sugestões. Uma delas dizia que era só aumentar o número de bobinhos para três. Outra era dividir a roda em duas rodas. O professor sugeriu começar pela primeira. Isso facilitou para os bobinhos e exigiu passes mais cuidadosos dos que estavam formando a roda. Depois formou duas rodas e também o passe foi mais exigido.

Para não nos alongarmos muito, vamos analisar rapidamente as duas situações. Afinal, este é um texto breve e não um curso. As situações criadas servem apenas para ilustrar a ideia de ensinar mais que o futebol. Na primeira situação, pensando no jogo de bola ou de futebol, o exercício tradicional realizado está fora de contexto. Cumpre-se a ideia de que podemos treinar partes do futebol descontextualizadas para depois juntá-las, na expectativa de que se ordenarão para melhorar a qualidade do jogo. Sem dúvida, essa prática facilita o controle dos professores sobre os alunos e sobre a realização do exercício. Porém, trata-se de um passar sem outro objetivo que não cumprir as determinações do professor ou da professora. Não é um passar necessário em uma situação de jogo e o ato de passar da maneira como é realizado no exercício não acontecerá em uma situação de jogo. Quando os alunos e alunas estiverem jogando bola, o que mais farão durante o jogo é receber e passar a bola, porém, não da maneira como se exercitaram. Quem pensa a atividade nesse exercício é o professor ou a professora, e não os alunos. Do ponto de vista metodológico, é uma ação criada a partir do ponto de vista de quem ensina, e não de quem aprende. Não se trata da realização de uma aprendizagem de futebol para os alunos, mas da realização de um plano dos professores. Nessa prática, o jogo lúdico, se é que existe, consiste em passar a bola um para o outro, frente a frente. Não se realiza o passe para cumprir um objetivo maior dentro de um jogo maior. A inteligência dos jogadores restringe-se a cumprir a determinação de passar a bola com precisão para o colega à frente.

Na segunda situação, quando os alunos brincaram de bobinho, o professor passou o protagonismo para os alunos. A situação, neste caso, é inversa à primeira. O ponto de vista educacional passou a ser o dos alunos. Não há somente ensino, mas igualmente aprendizagem. Os alunos não se restringiram a cumprir as determinações do professor, mas igualmente suas decisões. Do ponto de vista educacional os ganhos, para além do futebol são muito visíveis. Os alunos ganharam autonomia, e essa autonomia decorreu de reflexões sobre o jogo e decisões tomadas por eles. O jogo termina, mas os ganhos em autonomia não. Os alunos tiveram a oportunidade de aprender a ser autônomos, e o fizeram conscientemente, e quando se aprende com consciência, a aprendizagem pode ser estendida a outros contextos (sobre isso comentaremos em outros artigos). O professor deu problemas para os alunos resolverem. Eles conversaram entre eles e mostraram competência para fazer isso. E, de fato, resolveram o problema de como evitar que um deles ficasse muito tempo no centro da roda (situações como essa foram vividas por mim com meus alunos, não são mera ficção). Para resolver os problemas colocados, eles tiveram que pensar sobre a situação, imaginar como aconteceram, verbalizar, trocar ideias e sugerir hipóteses, que foram testadas na prática. Exercitaram a imaginação e o pensamento. O jogo de bobinho terminou, mas os alunos saíram dali com o pensamento fortalecido. Serão beneficiados por isso em outras situações de vida. Reparem num detalhe entre os problemas colocados pelo professor: ele advertiu que havia alunos que iam exercer o papel de bobinho e ficavam nele por muito tempo, e isso era constrangedor. Os alunos tiveram que resolver um problema que não se resolvia só com o pensamento, mas também com o sentimento de solidariedade. Trata-se de uma questão lógica, mas também afetiva. O professor estava preocupado com a educação geral desses alunos, com seu modo de viver em sociedade, tendo como campo de vivência um jogo de bola. Por fim, quando ao aprendizado do jogo de bola ou de futebol. O jogo do bobinho mobiliza para o futebol, acima de tudo, o passe e o desarme. Quantas vezes os alunos passaram e desarmaram? Nem eles nem o professor sabem isso. Mas podemos garantir que a quantidade é enorme. Mas não se trata só de quantidade. Os alunos passaram e desarmaram dentro de um contexto. Fazia sentido passar para cumprir o objetivo maior do jogo, tanto quanto desarmar. Isso não afronta a inteligência dos alunos, pelo contrário, alimenta-a.

Na primeira situação os alunos estavam aprendendo a passar bola uns para os outros, frente a frente, e não mais que isso. Os ganhos para o futebol serão muito pequenos, se houverem. Na segunda situação, considerando o jogo do bobinho, um dos pequenos jogos da família dos jogos de bola com os pés (1), os alunos aprenderam a passar e desarmar para cumprir o objetivo do jogo. E, da forma como a prática foi orientada, aprenderam, não só a jogar bola, mas a serem solidários, a pensarem melhor, a viverem com autonomia. E por constatarem que jogaram com êxito, puderam se sentir competentes, capazes de realizar, ingredientes para a elevação da autoestima.

Na primeira situação aprende-se a passar a bola para um companheiro à frente, sem obstáculos. Na segunda situação aprende-se a passar e a desarmar para o futebol e aprende-se além do futebol – aprende-se para a vida.

Referências: Scaglia, Alcides José. O futebol e as brincadeiras de bola: a família dos jogos de bola com os pés. São Paulo: Phorte, 2011.

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Diniz, o aliado do caos (parte 2): No caos há ordem

Por: Matheus Almeida

Alternativas e dinâmicas específicas na Gestão do Caos

Durante as partidas, de acordo com o modo que o adversário apresentava lacunas e possibilidades para o Fluminense de 2023-2024, Diniz e os atletas já se comunicavam para que se gerasse caos nesses setores, com a interação entre jogadores de características específicas no mesmo local do campo.

O primeiro gol do Fluminense na final da Libertadores contra o Boca é a prova disso. Diniz orienta Keno para que ele atravesse o campo e faça uma dobra com o ponta oposto Árias, para gerar combinação de velocidade, habilidade e quebra de linha pelo lado direito. Assim, Keno vai para o lado oposto entrar na “estrutura caótica” para se associar ao Árias e assim participam da jogada do gol.

Quando Diniz faz um padrão de substituição muito realizado (Saída de Ganso para entrada de Lima e saída de Marcelo para entrada de Diogo Barbosa) dois jogadores com características diferentes dos que foram substituídos entram na estrutura caótica. Assim, muda-se a forma do todo, pois as características que estarão se relacionando serão outras.

Assim, a equipe se torna mais ofensiva em momentos em que se aplica a estrutura caótica nas beiradas, e também em momentos em que a equipe está com maior amplitude na construção, se organizando um pouco mais posicional (ainda com trocas de posição e muito peso na última linha adversária, mas sendo um ajuste estratégico específico que o Fluminense pode apresentar). A equipe, com essas substituições, passa a ter uma dinâmica mais veloz e vertical, com mais ataques à profundidade e mais rupturas de última linha em velocidade, principalmente com Diogo, que ataca mais o fundo que o Marcelo, assim como na grande chance criada por Diogo na final contra o Boca. Gestão dos elementos do sistema caótico.

Em questões estruturais, há muitas alternativas que podem ser aproveitadas fornecidas pela estrutura caótica, como é a busca do pivô, ou o giro caso jogadores em apoios frontais não recebam a bola, ficando de frente como opção, como no vídeo a seguir.

Vídeo 5. Padrão: Jogador sai de apoio frontal, fica de frente e ataca a profundidade como opção de passe.

Fonte: Globo

Nessa estrutura também se gera jogadas que se repetem, como por exemplo, a tabela 2×1 contra o lateral adversário com posterior domínio orientado para a área (como no movimento da expressão de jogo “bate para dentro” do basquete) em velocidade, seguido de cruzamento de retorno para o finalizador, como no vídeo abaixo.

VÍDEO 6. Padrão: Tabela 2×1 seguido de finalização

Fonte: Globo

Em documentário que mostra os bastidores da campanha do título da Libertadores do Fluminense em 2023, em uma das preleções Diniz, em tom de relembrar conceitos, diz aos seus atletas duas questões:

“Vamos dar ordem ao caos” […] “ficou na dúvida? Organiza. Organizou, Caos neles”. Fernando Diniz, Documentário Todo dia é 4 de Novembro da Globoplay

Dar ordem ao Caos, já abordei os motivos dessa fala. Mostra que Fernando Diniz tem conhecimento sobre a teoria do Caos no futebol e usa isso como base da sua ideia de jogo. No caos há ordem, os fractais são pequenos padrões que se repetem e dão ordem à uma estrutura caótica na interação entre os elementos do sistema.

Já o “organiza”, dito por Diniz, tende a se referir à ação coletiva de abrir os dois pontas, realizar uma saída a 3 com um apoio interno (3 +1), ou a 4 com dois apoios (4+2), Cano de 9 segurando zagueiros, laterais inicialmente abertos, ganso adiantado entre linhas, equipe com mais amplitude, aguardando o momento de saírem de suas posições para gerar a estrutura caótica, ou gerar situação de 1×1 em determinado lado do campo. Veja no vídeo.

VÍDEO 7 . Dinâmica ofensiva geral Fluminense

Fonte: CazéTV

Fragilidade

O sistema, porém, tem suas fragilidades. Uma delas é quando o adversário também leva muitos jogadores ao lado da bola, encaixando na estrutura caótica. Assim, a equipe busca retirar o lado, virar o jogo. Nesse momento, os jogadores da estrutura caótica permanecem onde estavam, e o adversário vai se movimentar para o lado que a bola foi lançada. Quando o Fluminense retira o adversário da sua estrutura caótica ele retorna à bola ao lado que a jogada estava, com a equipe em vantagem numérica e, com essa vantagem, consegue progredir em sua dinâmica. Ótima solução.

VÍDEO 8. Fluminense retira a bola da zona congestionada, e retorna a bola para a mesma zona após remover o adversário deste setor, agora atacando em vantagem numérica com a estrutura caótica posicionada

Fonte: ESPN

Entretanto, quando o adversário também leva muitos jogadores ao lado da bola e realiza encaixes agressivos nos jogadores da estrutura caótica e pressão forte na bola, dificulta para o Flu, como foi em alguns momentos contra o Manchester City, como foi contra o River Plate no primeiro tempo de jogo, no histórico 5×1 do Flu, e também contra o Palmeiras, na reta final do Brasileirão.

Quando o Fluminense perde a bola, está com seu lado oposto muito aberto. Caso o adversário esteja com jogadores posicionados e preparados para atacar esse espaço com velocidade e verticalidade, o Fluminense pode sofrer uma finalização ou até um gol. Como no vídeo abaixo.

VIDEO 9. River Plate encaixando a marcação com coberturas curtas | Palmeiras gera volume no lado da bola com marcações por encaixe, deixando apenas o jogador base da estrutura caótica livre, mas fechando suas linhas de passe, recuperando a bola e acionando jogadores no lado oposto | Man City gera volume no lado da bola com marcações por encaixe, forçando a bola longa, recuperando a posse já no lado oposto livre.

Fonte: ESPN, Globo e CazéTV

O jogo do Fluminense de Diniz tem seus riscos. Os treinadores não conseguem controlar tudo o que ocorre no jogo, e o jogo é caótico e imprevisível. Porém, alguns ajustes podem ser feitos, sem abrir mão do caos da maneira que se realiza, para que se possa ter uma maior proteção pós perda de bola, como por exemplo, fixar um volante à frente dos zagueiros, assim preencheria melhor o espaço vazio.

Diniz sabiamente aborda que jogar contra clubes do mais alto nível te ajuda a desenvolver a equipe. Adversários como City geram problemas e aproveitam lacunas que os sul-americanos não conseguem aproveitar com frequência e eficiência, assim, jogos como os do Mundial, fazem Diniz visualizar falhas do sistema que não eram problemas até então, ou por vezes não eram percebidas. Começo a ver que o Dinizismo é um novo óculos para o futebol brasileiro, pois nesses últimos anos tivemos muita influência da escola europeia, que nos ajudou a compreender que estávamos atrasados em muitos processos, porém acabou colocando de lado o melhor que o jogo dos atletas brasileiro têm: a relação com bola em alto nível técnico (por isso a constante exportação para a Europa). Diniz vem para mostrar que, se havia uma defasagem tática no atleta brasileiro, existem maneiras que já conhecíamos, nas ruas, quadras e campinhos de terra, que contribuem para que a tática também evolua, e de um jeito genuinamente brasileiro.

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Futebol, um esporte transgressor

Por: João Batista Freire

É bastante incomum assistirmos o desenvolvimento de um talento para o futebol brasileiro nas chamadas “escolinhas de futebol”. Sem pretender desrespeitar as exceções que, certamente, existem, não há ambiente para desenvolver habilidades diferenciadas em futebol nessas escolinhas. Também não é muito frequente o desenvolvimento de talentos nas equipes de base dos clubes profissionais de futebol. Os meninos e meninas chegam a essas equipes, vindos dos mais diversos recantos do Brasil, cheios de habilidades, mas elas raramente crescem no ritmo que vinham crescendo em seus recantos, nas ruas onde aprenderam a jogar bola. Geralmente, só sobrevivem ao tempo consumido na base os excepcionais.

O futebol é, basicamente, um esporte de transgressões. Ele começa por ser uma espécie de transgressão biológica; somos animais bípedes, evoluímos para nos apoiarmos sobre os pés e manipular as coisas com as mãos. No futebol, ao contrário, manipulamos a bola com os pés. Os pés são as mãos dos jogadores de futebol. Além disso, enquanto os demais esportes com bolas as fazem transitar acima da linha de cintura, próximas à cabeça, no futebol a bola transita ao rés do chão, bem distante da cabeça. A maioria dos esportes exige paramentos especiais para serem praticados. No futebol pode-se jogar quase nu e descalço. Raramente se vê um esporte sendo praticado sem equipamentos e locais específicos. O futebol pode ser jogado em qualquer lugar, com ou sem grama, com terra ou areia, na lama, quase dentro da água, com chuva ou com sol, de dia ou de noite, com traves ou sem traves. No basquetebol, por exemplo, quando o árbitro marca uma falta, imediatamente todos se posicionam para aguardar a cobrança, sem discussões, e com raras exceções. No futebol não há marcação de falta indiscutível, todas as regras são relativas. É o único esporte em que falta pode não ser falta e não falta pode ser falta. O único esporte em que falta fora da área é uma coisa e falta dentro da área é outra. Por enquanto há nove pessoas encarregadas de fiscalizar as regras em cada jogo e, no futuro, talvez haja mais pessoas e equipamentos para isso.

Creio que não há erro maior no futebol que insistir em domesticar um esporte que é, naturalmente, transgressor. Queremos que os jogadores se comportem como se estivessem cumprindo rotinas cartoriais em um esporte que se mostra, desde suas raízes, avesso aos padrões estabelecidos.  

O que leva o futebol a ser tão transgressor? Se quisermos ainda podemos aumentar a lista das transgressões. Que tal pensar que boa parte dos esportes deriva de práticas lúdicas antigas em que as bolas representavam o sol e deuses, por isso manipuladas da cintura para cima e na direção desse sol e desses deuses? Homenagens ao deus, figura masculina, ao pai. Aí passamos ao futebol, com bolas manipuladas da cintura para baixo, na direção da terra, não do deus masculino, mas da deusa terra, do feminino, da mãe. Haja transgressão! Talvez tanta transgressão se deva ao fato de se tratar de um esporte de grande instabilidade. O chão, por onde rola a bola, por exemplo, por mais que a grama seja bem tratada, é repleto de irregularidades a desviar a trajetória da bola, a enganar o jogador, a surpreender o goleiro. Durante um ataque, o defensor torce para que o atacante repita as jogadas de sempre, neutralizadas com facilidade, e o atacante se desespera para conseguir fazer algo diferente que traia a expectativa do defensor.

Do ponto de vista das teorias da complexidade, nada, neste universo se repete. Nem as pedras são iguais a cada instante que passa. Teoricamente é impossível repetir ações. Porém, podemos realizá-las de modo que guardem bastante semelhança com anteriores. A arte de fazer com que sejam diferentes é o que torna o jogador de futebol eficiente, competente, decisivo. Ele pode trazer a bola da ponta direita para o bico da área e chutá-la ao gol cem vezes, mas fará o gol quando fizer isso com diferença suficiente para surpreender defensores e goleiro. Entre todas as transgressões possíveis no futebol, nenhuma será maior que a transgressão dos padrões estabelecidos, das rotinas, dos posicionamentos rígidos, das táticas engessadas. Treinar para lidar com a complexidade, com a imprevisibilidade, com a transgressão, essa é a questão básica que poucos ousam enfrentar. Em um esporte que tem o DNA da transgressão é preciso saber ser transgressor. Em um esporte que tem a imprevisibilidade exacerbada como núcleo, é preciso aprender a jogar com ela.

De tal maneira consolidou-se uma cultura de medo do enfrentamento do que é, na realidade, o futebol, que o que mais se assiste nele, das equipes de base aos grandes clubes, é a mesmice modorrenta de jogadores guardando posições como se fossem robôs guiados por inteligência artificial. Nada é mais punido que a transgressão dos esquemas pré-estabelecidos. É o que tem matado o futebol dos meninos e meninas talentosos nas equipes de base. Punir a transgressão é matar a galinha dos ovos de ouro do futebol. O sonho de todo marcador no futebol é o posicionamento rígido dos jogadores adversários. A transgressão do posicionamento é o inferno dos defensores. Não defendo que as regras de relacionamento entre as equipes em cada partida sejam transgredidas, pelo contrário, devem ser obedecidas. Porém, mesmo nesse caso, a transgressão persistirá. A tarefa dos árbitros seguirá árdua.

E então, para não me alongar muito, vamos ao fecho. Como ser coerente com as características do jogo de futebol e aprender a ousar, a transgredir, a ajustar-se ao que o futebol realmente é? Comecemos pelo fato de que os jogadores de uma equipe deveriam ser os mais diferentes possíveis uns dos outros. Uma boa equipe não é formada de jogadores com o mesmo comportamento, mesma habilidade, mesmo tamanho, mesma personalidade. Pelo contrário, quanto mais diferentes uns dos outros, maiores as possibilidades de um conjunto harmonioso que saiba lidar com a imprevisibilidade e a transgressão aos padrões. Pensemos na questão da imprevisibilidade. Vamos considerar uma equipe de futebol como uma pequena sociedade. Trata-se de uma sociedade que, por menor que seja, tem uma estrutura extremamente complexa. E, pela dinâmica do jogo, a surpresa será sempre a regra. Surpresa significa novidade. Os jogadores terão que aprender a conviver com o novo, o inusitado. Que não esperem que as coisas se repitam. Que não treinem para lidar com rotinas, com o igual. Porém, só há uma saída para isso. Precisam aprender a produzir autonomia e criatividade. Algo que não acontecerá se a autoestima dos jogadores estiver baixa. Tarefa número um dos treinadores, portanto: elevar a autoestima dos jogadores. Algo que precisará ser feito durante os treinamentos, durante conversas informais, durante as refeições, no vestiário, nas entrevistas e durante e após os jogos, entre outras situações possíveis. Autoestima é a palavra-chave do sucesso.

Foto de capa:  Nelson Coelho/Placar

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Diniz o aliado do caos (parte 1): caos, jogo e seres humanos

Por: Matheus Almeida

Durante 2023, andei refletindo com maior profundidade e engajamento os trabalhos de Fernando Diniz, principalmente o Fluminense da temporada 2023. Já havia tido contato com alguns conceitos do “Dinizismo” em 2017, por meio de uma palestra de Eduardo Barros, seu assistente técnico, na época no Audax, mas nunca havia concentrado meus estudos em Diniz. No Fluminense que foi campeão da libertadores e vice mundial em 2023, algo necessita ser destacado: O modo como jogam transcende a bola, é algo maior, uma filosofia coletiva com valores e princípios humanos muito presentes e, justamente isso que fazem a tática e as ideias de jogo, de fato, acontecerem em campo. Em minha análise, existem duas grandes bases para o “Dinizismo”: Valores Humanos e Caos, sendo o caos, uma maneira muito peculiar de lidar com ele. Sem essas duas coisas, acredito que o “Dinizismo” não existiria.

Valores Humanos como sustentação da tática

Como exemplo, é impossível uma equipe, no jogo mais importante para o clube, a final da libertadores contra o Boca Juniors, nas partidas da semifinal do mesmo torneio contra o Internacional, ou então no Mundial de Clubes contra o melhor time do mundo em 2023 (o Manchester City de Pep Guardiola), realizar uma saída curta, dinâmica, com trocas de posição para encontrar jogadores livres, se não houver coragem, solidariedade, dedicação nos treinos e nos jogos, e prazer em ousar e jogar dessa maneira, não importa o contexto.

Diniz já deixou isso bem claro em entrevista coletiva após o jogo contra o Internacional, vencido por 2×0, válido pela 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023, ressaltando que esses valores humanos são fundamentais para que o jogo proposto por suas equipes aconteça:

“[…] Então hoje acho que, preponderantemente, o time entrou muito agressivo, muito solidário. Jogar futebol, pra mim, é quando as relações humanas, elas conseguem, dentro do campo acontecerem. Nosso jogo é um jogo muito solidário, precisa de muitas coisas, precisa vontade para fazer, precisa disposição para fazer, precisa inteligência para fazer, então essas qualidades humanas, elas faltaram no jogo do São Paulo, aí a parte tática ela não funciona. Quando falta essas coisas a parte tática não corrige, essas coisas quando têm elas corrigem falha tática, mas falta de interesse em ganhar, a parte tática nunca corrige esse tipo de falta, ao contrário sim, quando a gente está com muita vontade, muito focado, jogando de uma maneira solidária, a gente pode errar alguma coisa taticamente como a gente errou hoje, taticamente sempre tem erro, mas a gente corrige de uma outra forma, porque essas coisas são mais importantes do que a parte tática […]” – Fernando Diniz coletiva após a 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023.

Nino, zagueiro do Fluminense campeão da Libertadores, que recentemente foi vendido ao Zenit, disse em carta de despedida, publicada no blog “The Players Tribune”, algo que se refere diretamente ao “Dinizismo” como uma filosofia de vida, além do campo:

“Esse cara (Fernando Diniz) me ensinou muita coisa, mas me ensinou principalmente a enxergar certas coisas que realmente importam de outro jeito. Eu tinha medo de fracassar. E talvez eu tenha transformado esse medo no meu combustível pra não fracassar. Mas é pesado viver assim. Então o que é fracassar? Falam muito em “dinizismo”, que o dinizismo isso, o dinizismo aquilo. Pra mim o dinizismo é ter outra perspectiva sobre tudo, enxergar o mundo e a vida de outro jeito. Pra isso é preciso ter coragem. E amigos” – Nino em The Players Tribune

Além dos valores humanos, outra base fundamental do “Dinizismo” é a ideia de caos ser muito presente no jogar das suas equipes.

Caos, o aliado do “Dinizismo”

Ricardo Drubski, em participação no podcast Charla, comenta que conversou com Eduardo Barros, Auxiliar Técnico de Fernando Diniz desde outros clubes. Segundo Drubski, Eduardo o disse que Diniz faz uma Gestão do Caos. Isso é muito interessante.

Diniz mostrou seu poder de influência com suas ideias, inclusive nas transmissões de jogos do Fluminense ou da Seleção Brasileira, pois até narradores e comentaristas começaram a falar sobre o caos nos jogos das equipes de Diniz, um conceito muito profundo sobre o jogo, que nas universidades, como na Unicamp, já se estudava e, que por meio do treinador, começaram a entrar no entendimento da imprensa.

Sobre a gestão do Caos, o Fluminense apresenta o que, para mim, seria uma “estrutura caótica”, geralmente nas beiradas, onde busca aglomerar muitos jogadores do lado da bola, com no máximo dois atletas para a retirada no lado oposto do campo. Nessa estrutura caótica, há a paralela cheia, apoios, jogadas e movimentações coordenadas, como se fossem geradas quadras de futsal onde está a bola. Um jogo caótico, mas com padrões, pois no caos, há ordem.

Diria eu que Diniz é um aliado do Caos, pois, pelo menos vendo de fora, se aproxima do Caos da mesma maneira que se aproxima de seus atletas para que a equipe crie fortes laços interpessoais. As equipes de Fernando criam laços fortes com o Caos.

A Teoria do Caos tem como objeto de pesquisa os sistemas não-lineares, buscando entender eventos aparentemente aleatórios, imprevisíveis e desordenados, sensíveis a pequenas alterações, sendo possível encontrar padrões no Caos como o pesquisador Gleick traz em 1989, mencionado por Rodrigo Leitão em sua Tese de Doutorado em 2009. Essas pequenas alterações são abordadas na ideia de “Efeito Borboleta”, de Edward Lorenz, ao observar que o sistema computacional que utilizava para fazer previsões climáticas chegou a resultados distintos partindo de mesmas condições iniciais, devido a uma diferença de casas decimais depois da vírgula, algo muito pequeno, que com o passar dos resultados, começa a gerar grandes alterações nos cálculos. (Leitão, 2009)

No caos há padrões, mas para observar a complexidade contida no caos é necessária a ideia de fractais, pequenas partes de um todo, que são a forma e conteúdo de sua figura maior (Leitão, 2009). As partes são a imagem do todo e o todo é a imagem das partes como na figura abaixo, o todo, triângulo maior, e seus fractais, triângulos cada vez menores.

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EDUARDO BARROS E FERNANDO DINIZ NA FINAL DO MUNDIAL DE CLUBES. FOTO DE LUCAS MERÇON /FLUMINENSE FC | EDIÇÃO DE MATHEUS ALMEIDA

Em um sistema caótico, a complexidade é presente, sendo o termo Complexidade, sinônimo da interação de elementos, cada qual com sua característica individual, se relacionando entre si, e formando uma organização específica da combinação daquelas características dos elementos, dando forma a um todo (Morin, 1997).

Para simplificar, vamos pensar de modo prático. Se em um espaço reduzido no campo, houver uma situação de 3×3 e, em uma equipe o trio for formado por Messi, Neymar e Suárez, ocorrerá uma combinação de características individuais, que, ao se relacionarem, formam um todo específico que se expressa no jogar deste trio contra seus adversários. Porém, se nesse trio, substituirmos Neymar por Thiago Silva, muda-se as características de um dos seus elementos, muda-se o todo e o modo como esse todo jogará. Relacionando as interações do trio com as interações do trio rival, percebe-se que o jogo de futebol é muito complexo e caótico e não se pode controlar o caos, mas geri-lo, como faz Diniz de modo muito peculiar.

Diniz, em suas equipes, busca gerar uma estrutura caótica, mas que apresenta padrões, fractais que se repetem e organizam esse caos. A “Estrutura caótica” de Diniz pode ser composta, segundo minha análise, por:

  1. Valores Humanos como sustentação das interações táticas;
  2. Características dos jogadores se relacionando formando um todo específico naquele pequeno espaço de campo;
  3. Posicionamentos, movimentações e jogadas coordenadas para o funcionamento da estrutura caótica que visa atrair o adversário em direção à bola e liberar jogadores livres nas costas da pressão

A principal ideia da equipe de Diniz, atacando, é atrair a pressão para a bola e libertar jogadores livres nas costas dessa pressão em vantagem posicional. Isso se observa no macro, quando o Fluminense faz uma saída de bola curta, sustentada, com muitos jogadores próximos à primeira fase de construção, induzindo o adversário a subir o bloco de marcação e pressionar sua saída de bola. Essa dinâmica acontece também nos seus fractais, nos espaços reduzidos, próximos à bola, onde o fluminense também busca atrair a pressão e quebrar linhas com passes e triangulações.

Muito importante dizer, porém, que o modo como se gera essa vantagem posicional é muito peculiar devido à mobilidade e trocas de posição, pois os jogadores que podem aparecer no setor da bola nas costas da pressão não necessitam ser um meia ou um ponta que jogam no lado em que a bola está, mas podem ser o ponta do lado oposto, que atravessou o campo para estar alí, ou outro jogador de outra posição.

A estrutura caótica gerada no lado da bola em espaço reduzido tem posições base para abrir a marcação adversária e gerar um corredor no meio deste pequeno espaço de campo, onde o Fluminense irá atrair a marcação para a bola e para fora, abrindo este corredor, que pode ser ocupado por qualquer jogador visando receber nas costas da pressão.

Vídeo 1. O todo está para as partes assim como as partes estão para o todo

A “Estrutura Caótica” de Diniz apresenta muitos jogadores atacando os espaços na paralela. Esse padrão pode ser chamado de paralela cheia, com o seguinte posicionamento inicial: Dois, três ou até quatro jogadores podendo se posicionar na paralela, pelo menos dois jogadores de apoio, por dentro em suas diagonais, um pivô e um jogador na base da estrutura como passe de retorno.

Vídeo 2. A estrutura Caótica (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

Os jogadores saem das suas posições para formar essa estrutura inicial, num jogo “aposicional” (chamo assim não para rotular, mas para compreender que os jogadores não se mantêm em suas posições, buscando gerar vantagem numérica no setor da bola, próximos à essa estrutura caótica). Pode-se perceber que se busca inicialmente de um a dois passes na paralela, em seguida, passes para os apoios internos, sempre de frente para o jogo, buscando tocar e passar da linha da bola, ou ocupar um espaço vazio dentro dessa estrutura caótica, gerando uma nova linha de passe. Os jogadores buscam aproximar desta estrutura caótica e podem formar triângulos ou “escadinhas”, com tabelas e corta-luzes para gerar situação de 3º jogador e infiltração.

VIDEO 3. Escadinha gerada com Marcelo circulando pelo meio e aproximando da bola

Fonte: Globo

Outro detalhe são as trocas de posição no setor da bola. Uma mecânica frequente é quando a bola está com o zagueiro, lateral vem por dentro, meia ocupa o espaço deixado pelo lateral, recebe a bola, em caso de manutenção de posse, faz o passe horizontal para o lado oposto e troca com o zagueiro, que ocupa a beirada. Veja no vídeo.

Vídeo 4. Trocas de Posição (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

(Esse texto continua na parte 2, semana que vem, sobre o tema “Diniz: No Caos Há Ordem)

Até lá!

📷 Foto de capa: Matheus Lima/Vasco da Gama

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Imaginem uma semana sem surpresas

Por: João Batista Freire

Imaginem uma semana de futebol em que todos os times favoritos vençam, nenhum pênalti seja registrado, jogadores não reclamem, técnicos não deem entrevistas polêmicas, técnicos não sejam demitidos, nenhum jogador se machuque, nenhuma jogada diferente chame a atenção, que os gols consignados sejam comuns, que não haja nenhuma goleada, nada de temporais alagando campos, torcidas bem-comportadas, que árbitros não cometam erros. A partida de futebol em campo seria apenas um detalhe. O que alimentaria os debates nas redes de rádio, televisão e internet ao longo da semana? O que alimentaria as discussões nos botecos? Que coisa chocha, não? Tudo normal. Imaginário vazio. Ah, o imaginário! É nele que mora o verdadeiro jogo. E o futebol, mais que qualquer outro esporte, é um estupendo alimentador de imaginação. Talvez venha daí seu enorme sucesso de público e de crítica.

Tal semana aqui descrita nunca existiu, para sorte e graça do esporte bretão, caso contrário ele desapareceria da face da terra. O futebol, como de resto, nenhum esporte, sobreviveria com a assepsia do incomum. O futebol é um jogo, um acontecimento lúdico, portanto, uma fonte inesgotável de alimentos para a imaginação. E nada há de mais rico na espécie humana que a imaginação. É ela que nos distingue, acima de tudo, dos outros animais. Não somos nem superiores e nem inferiores aos outros animais, somos apenas diferentes. Cada animal tem, na sua diferença, o instrumento decisivo de sobrevivência. A diferença que permite ao ser humano sobreviver é a imaginação – no resto ele é fraco. É por isso que não lhe basta o comum. Ele precisa do diferente, do inusitado, do imprevisível, do contraditório. E é aí que aguardamos, e até torcemos, tanto pela vitória de nosso time do coração, quanto pelo gol de bicicleta, pelo erro do árbitro, pelo temporal que alaga o gramado, pelo corte súbito de energia elétrica, pela contusão que afasta o craque do time, pela briga nas arquibancadas, pela expulsão do zagueiro, pelo frango do goleiro, pela goleada por sete a um, pelo choro sofrido dos derrotados na final do campeonato. Não é o futebol a questão maior, é a imaginação, que precisa ser alimentada. Essa imaginação que, durante a infância, constitui o principal motor da atividade das crianças, que as obriga a brincar em todos os momentos possíveis, até mesmo nos intervalos entre as misérias. Os seres humanos precisam brincar, as crianças em qualquer lugar, os adultos quando lhes sobra tempo e espaço. O futebol, em alguns países, é uma grande brincadeira.

Se parássemos de alimentar a imaginação, decretaríamos o fim da espécie humana. E aqueles que dominarem nossas imaginações, dominarão o planeta.

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Era uma vez uma rua

Por: João Batista Freire

Dedicado a Pepe Mujica, que disse:

“O único vício bom é o amor, o resto são pragas”

Para que tenhamos o direito e a coragem de pensar com liberdade e independência. Não precisamos de autorização para pensar.

Percebo que há alguma confusão a respeito do termo “Pedagogia da Rua”, desde que o lancei anos atrás. A confusão, acredito, dá-se pela dificuldade em torno de dois conceitos que compõem o termo: “Pedagogia” e “Rua”. Comecemos pelo segundo.

Rua, eu a utilizo como metáfora. Quer dizer muita coisa. Rua são todos os lugares e momentos que me levam a aprender alguma coisa sem ter alguém encarregado de me ensinar. Rua é onde aprendi muitas coisas, algumas nunca respeitadas como saberes; na Rua aprendi a rir e chorar, aprendi a falar, aprendi a amar, aprendi também a odiar, aprendi coisas simples como contemplar, me aproximar, ver e ouvir, também tocar e degustar. Na Rua aprendi a ter medo, aprendi a ceder ao medo e a ter coragem de superá-lo. Aprendi a ser fiel e infiel, aprendi a chutar bola, a me esconder e procurar, a jogar bolinhas de gude, a brincar de casinha, de comidinha e de bonecas. Aprendi tantas coisas na Rua, coisas boas e coisa ruins, que não cabem todas aqui. Aprendi que para a Rua não há coisas boas e ruins, e é aí que moram a virtude e o perigo. A Rua é uma escola sem nome, uma professora invisível, sem intenções e julgamentos, um outro jeito de aprender, completamente diferente dos jeitos utilizados nas instituições encarregadas de educar as pessoas. Mas se na Rua há pessoas e eu aprendo com elas, elas me julgarão. Sim, mas são elas que julgam, não a Rua.

Assim que nascemos a família começa a nos ensinar. No começo ela ensina sobre segurança e comportamentos básicos e, em seguida, passa a incutir na criança seus conceitos morais, sua ideologia. Se seguíssemos assim, teríamos enormes chances de crescer e ser como nossos pais e familiares mais próximos. Mas não é como funciona. Mesmo nesse comecinho existe outro espaço de aprendizagem, que inclui a mãe, essa professora primordial, a professora que não sabe que é professora, aquela que ensina como se fosse nossa natureza ensinando. A mãe que semeia o amor que a sociedade deveria cultivar. Tem a mãe e tem os sons, pessoas falando, ruídos, objetos para tocar, sabores para degustar, muita, muita coisa que não pretende ensinar, mas que nos faz aprender. Porém, muito acontece fora da família, e o destino traçado por ela sofrerá desvios, cada vez mais precoces.

Pouco depois do nascimento, somos levados para creches e escolas. A escola começa cedo, aos dois anos de idade, os pais precisam trabalhar, alguém tem que cuidar. A escola também nos ensina comportamentos básicos, segurança e sua ideologia, que é a ideologia do estado e das corporações. A igreja faz de tudo para atuar na educação da criança, e o faz dentro e fora da escola. A instituição militar, com menos frequência, também. O esporte, quando a criança tem a oportunidade de aprendê-lo em instituições, é outro que exerce forte influência. Parte das escolas é de caráter privado, e ensinam, não só a ideologia do estado, mas também a ideologia dos interesses privados. Todos querem seu quinhão da criança que não tem nunca razão, é a criatura a ser medida, moldada, tosquiada. Querem formar nelas cidadãos que acatem as regras, as ordens, que sigam o destino traçado. Os conteúdos declarados pela escola – português, matemática, geografia, química… -, boa parte das vezes não passam de adereços. Nem todos os aprendem. A escola sabe disso, mas não se importa, porque os verdadeiros conteúdos não podem ser declarados, são o mapa de um destino. Por falta de outros significados, os conteúdos declarados pela escola serão avaliados em frequentes provas, infelizmente a maior razão para aprendê-los. Deveriam ter vínculos com as vidas dos alunos e, aí sim, seriam significativos. A questão a ser colocada é: aquilo que a escola ensina cai na prova ou cai na vida?

Um capítulo à parte, ou um texto à parte, deve ser reservado à educação exercida pelos meios de comunicação, especialmente, em nossos tempos, trazida pelos ventos da Internet. Ter um celular à mão deveria fazer parte do que chamo aqui de Rua, mas não, os conteúdos das telinhas foram quase todos sequestrados pelos interesses públicos e privados. Elas são a nova e mais poderosa ferramenta de educação atual. Por trás delas estão os educadores mais poderosos do planeta. Por trás delas atuam o estado, várias instituições e as corporações privadas, estas últimas, as mais agressivas, porquanto vendem seus celulares, que educarão as pessoas para que comprem seus aparelhos, entre eles os próprios celulares.

Parece que tudo conflui para que sigamos, pelo resto da vida, um roteiro traçado finamente, irrepreensivelmente, sem final feliz. Por qual motivo então, com tanta frequência, nos desviamos? Por qual motivo tantos de nós seguem caminhos tão diferentes dos sonhados por nossos pais, pelas corporações, pelo estado ou por outras instituições? Que ruídos desviantes são esses? São os ruídos da Rua.

Eu queria escrever este ensaio, mas me faltava inspiração. Precisei de ajuda e fui ler alguns autores. Li o que pensa Mano Brown, poeta e filósofo, alguém suficientemente sensível para entender o povo, para entender a Rua. Um extraordinário artista. Com palavras mais poéticas que as minhas e com mais sabedoria, ele descreve alguns dos ruídos: Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo”. “Às vezes eu penso que o Brasil foi construído em cima de uma pirâmide de injustiças”. “Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber”. “A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo”.  Não sou poeta, não sou compositor, não tenho arte, só posso escrever o que está ao meu alcance. E aqui me proponho a escrever sobre a Rua e seus ruídos desviantes dos caminhos tão bem traçados para todos nós.

Onde aprendemos o que sabemos? Uma parte aprendemos na família e nas instituições, embora estas não declarem o que verdadeiramente pretendem nos ensinar. A família e a escola, por exemplo, tomam como referência de educação aquele que ensina, muito mais do que aquele que aprende. Se é para traçar um destino irrevogável, o destinatário não deve interferir. O resto do que sabemos, e é muito, aprendemos na Rua, esta sim, sem a intenção de exercer controles, sem plano de destino traçado e sem tomar como referência aquele que ensina, até porque não há um visível que ensine. Na Rua o ponto de vista do processo educacional é aquele que aprende. Fora esse o ponto de vista da escola e de outras instituições teríamos uma revolução. Lembro, nesse ponto, de minha infância na escola, preso ao meu meio metro quadrado de carteira, sonolento e balançando as pernas sob a mesa, único movimento possível. Até quando a professora me pilhava nesse movimento proibido e batia com a régua na carteira para me lembrar que qualquer movimento seria castigado. Ela era muito querida, mas tinha que seguir a regra da régua. Não foi por falta de boas professoras que não aprendi, mas porque não via sentido no que aprendia, a não ser porque caia na prova. Dona Jaci e Dona Célia eram quase nossas mães. Mas todo movimento que não fosse com as mãos era proibido. Mesmo assim aprendi com elas uma boa porção de bondade e carinho, mas não matemática e português. Quem sabe essas matérias do coração não deveriam ser as protagonistas, dando à matemática e português o papel de coadjuvantes? Quando Dona Jaci pegava em minha mão para desenhar as letras, deixava marcas que nunca se apagaram. Isso era educação para a vida.

Embora a Rua esteja fortemente influenciada pelas redes sociais, uma vez que boa parte das pessoas nada faz sem uma tela à frente do rosto, é nela que aprendemos a maior parte do que precisamos saber para viver nossos dia-a-dias. Raramente nos perguntamos de onde veio o conhecimento para construções tão extraordinárias como o samba, o futebol brasileiro e a capoeira. Não foram passes de mágica. Aprendemos a fazer essas coisas do mesmo modo como uma criança aprende a resolver sozinha um quebra-cabeças, a rolar por um gramado, a medir forças com uma colega, a assobiar ou a andar de bicicleta – basta que ela tenha um modelo inicial em mente ou à sua frente para iniciar a aprendizagem. Como aprendemos a fazer o incrível cálculo prático que nos permite atravessar uma rua movimentada evitando os carros? Milhares ou milhões de exemplos possíveis atestam a competência da Rua para nos ensinar a viver, para o bem ou para o mal. Ou alguém acha fácil aprender a traficar drogas? A Rua é, no sentido de nos ensinar a viver, depois da mãe, a grande professora de nossas vidas, a professora invisível, e a única em que o ponto de vista para aprender é o nosso próprio.

A Rua pode ser uma rua mesmo, dessas por onde passamos todos os dias, ladeada por calçadas. No meio dela passam carros de todos os tipos, pode ser asfaltada, calçada por pedras, ser de terra ou areia, ser chamada de rodovia, avenida, servidão, viela ou somente rua. A Rua pode ser o quintal de casa onde as crianças se reúnem sem a presença de adultos, pode ser o pátio da escola, a quadra do condomínio, o quarto de dormir, a mesa do bar, a festa, o encontro fortuito entre pessoas etc., ou seja, qualquer espaço onde podemos aprender sem a presença de pessoas ou instrumentos autorizados a ensinar. A Rua é habitada por crianças e por gente grande. Ensina a todos. As ruas da minha vida foram muitas, entre elas o pátio da minha primeira escola, uma pequena área de cimento de minha casa, e o campinho de terra onde chutei bola pela primeira vez. Interessa-me, neste estudo, acima de tudo o meu campinho de terra e os outros onde milhares de meninos e meninas do Brasil brincam de jogar bola. Porém, como se trata de diminuir as dúvidas sobre o que vem a ser Rua, não me aprofundarei na complexidade do jogo de bola nas ruas do meu país. O fato é que, nessa Rua, eu e meus amigos aprendíamos, e muito. Aprendi mais nela que na escola. Sei disso pelo que sei hoje. E sei que eu queria aprender na Rua mas não queria aprender na escola. E, ao longo de minha vida, não tenho dúvidas de que aprendi mais nas tantas ruas da Rua que nas tantas escolas por onde passei. E, mesmo nas escolas, quando mais aprendi foi quando consegui transformar a escola em Rua. Provavelmente o caso mais extraordinário de educação da Rua é a aprendizagem da língua materna. A criança, de maneira geral, aprende a falar nos primeiros dois anos de vida, em família. Não há ninguém na família responsável por lhe ensinar a língua. Porém, ao fim desses dois anos ela fala suficientemente bem sua língua para se comunicar com sua família. Aprende pelo convívio, aprende repetindo o que ouve, aprende por se divertir com sons até se tornar habilidosa em articular tais sons, aprende por relacionar os sons com os efeitos deles, aprende porque é necessário, aprende porque faz sentido falar no contexto da família, aprende porque está aprendendo de seu ponto de vista no grupo familiar. Aprende com método, com técnicas,  e isso poderia inspirar todas as outras aprendizagens formais, mas isso não acontece. Essa maneira de aprender se repete em todos os outros grupos de que a criança participará. Assim como essa aprendizagem da fala foi lúdica, as demais em grupos infantis também serão. Nas pequenas sociedades lúdicas a criança recebe, em troca de seus esforços, de suas renúncias, prazer, o prazer que o lúdico confere. E por ser gostoso ter essa sensação, ela tende a repetir o que fez, o que deu certo. E quando erra, por não ter a mesma sensação, ela busca corrigir o erro para obter o retorno prazeroso e poder repetir a ação causadora do prazer. Não foi assim que todos nós aprendemos a língua materna? Os sons produzidos e ouvidos pela criança são fonte de prazer, que precisa ser mantida, e a única forma de manter tal prazer é repetir e repetir tais sons. O resultado é o desenvolvimento da extraordinária habilidade de articular sons, que viram vocábulos, que viram palavras, que viram frases… A mesma lógica é válida para aprender qualquer coisa, do futebol à astrofísica, o que me faz pensar em uma Pedagogia da Rua, uma pedagogia inspirada nas aprendizagens das crianças em suas Pequenas Sociedades Lúdicas.

A competência da Rua para ensinar é extraordinária, e estou convencido de que isso deve-se ao fato de que, na educação da Rua (reparem que não estou falando de pedagogia da Rua), quem aprende, aprende de seu ponto de vista. Na Rua, não há ensino, há aprendizagem (e não estou pregando que não haja ensino nas escolas e outras instituições). Essa educação é tão eficaz que os meninos brasileiros do começo do século XX, pobres pretos e brancos, moradores das periferias das cidades, inventaram um novo jeito de jogar futebol: o futebol brasileiro, que encantou o mundo por décadas. Foram criadores apenas de um dos fenômenos culturais mais importantes do século XX e um dos maiores fenômenos culturais da história do Brasil. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa, desde que o método respeite aquele que aprende. E isso remete para uma particularidade da educação, que é a formação de grupos. De maneira geral, na infância, a Rua constitui grupos, que chamarei aqui de Pequenas Sociedades Lúdicas. Não é só em grupos que se aprende, mas, especialmente na infância, é por fazer parte de grupos lúdicos que a criança mais aprende. No grupo, as aprendizagens realizadas fazem sentido, aquilo que a criança faz tem sentido dentro do grupo. Ela aprende aquilo que a faz se sentir pertencendo ao grupo, aprende aquilo que a confirma, que lhe confere identidade, que eleva sua autoestima. O lúdico e a autoestima são os motores das pequenas sociedades lúdicas.

Pronto, isto é Rua. Não é suficiente, mas é o possível em um pequeno texto.

Posto isso, podemos passar à outra parte do termo, isto é, Pedagogia. A pedagogia é um arranjo de elementos que orienta um processo educacional, cujas raízes são realizações práticas. O modo como o observador enxerga tais realizações o conduz a descrever e interpretar o fenômeno ao seu modo, donde resultam muitas teorias educacionais, às vezes, sobre o mesmo fenômeno, se os observadores forem vários. Essas teorias resultantes das observações práticas, arranjadas de modo a pretender orientar processos educacionais, nós as chamamos de pedagogias. Elas comportam um modo de educar, um método. Portanto, uma pedagogia é uma teoria da educação, assim como uma metodologia é uma teoria do método. Daí resulta que não podemos falar de uma pedagogia da Rua enquanto as crianças aprendem nas suas ruas, mas sim de uma educação da Rua. Ou seja, a Rua educa, mas a rua não tem uma Pedagogia. Ela não tem uma pedagogia, mas pode e deve inspirar pedagogias, porquanto sua eficácia é inegável. A criança aprende com imensa eficácia a língua materna, orientada por esse método da Rua (método no sentido de procedimentos, de maneira de fazer as coisas), e não aprende, de maneira geral, o que lhe pretende ensinar a escola. Não por falta de tempo, pois que são quatro horas por dia, duzentos dias por ano, durante doze anos de escolaridade (até que se conclua a adolescência). O ambiente escolar é constituído por prédios fechados, salas retangulares fechadas, repletas de carteiras simetricamente dispostas, onde terão que se sentar as crianças, em seus exíguos espaços de movimentação de meio metro quadrado. Isso não é ambiente para criança aprender, a não ser comportamentos morais, passividade etc. Na Rua, com suas pequenas sociedades lúdicas o ambiente é completamente diferente, a criança aprende o que não lhe ensinam, e aprende muito bem, para o bem ou para o mal. Esse modo de aprender, se inspirasse uma pedagogia, eu a chamaria de Pedagogia da Rua, que poderia ser adaptada, inclusive, ao ambiente escolar, caso houvesse interesse da escola em verdadeiramente ensinar para um bem viver, para um mundo melhor, mais justo. Nessa Pedagogia da Rua, diferentemente do que ocorre na educação da Rua, há quem ensine, porém, o modo de ensinar deve ser completamente diferente do que ocorre tradicionalmente na escola. Há ensino, mas o ponto de vista, a referência, é o do aluno, o de quem aprende, e não o de quem ensina. Vamos ensinar Matemática, por exemplo, mas vamos tomar como referência o modo de aprender do aluno, para então ajustar nosso modo de ensinar. Vamos ensinar Futebol, mas vamos tomar como referência o ponto de vista de quem aprende.

Na Rua, não é a idade que define a entrada da criança. Ela participa de grupos de crianças que são, aproximadamente, da sua idade, mas vai conviver com mais novos e mais velhos, também. Outro critério é o interesse que ela demonstra, de acordo com sua vontade de participar do grupo, do tipo de brincadeira que se realiza nele etc. Também existe a questão da oportunidade, do local onde reside, da escola que frequenta e assim por diante. A criança pode permanecer no grupo ou sair dele. Pode sair e pode voltar. Pode ser convidada ou pode ser excluída. Quando ela está na sua pequena sociedade lúdica onde a brincadeira principal é, por exemplo, o futebol, ou, como elas costumam chamar, o jogo de bola, ela vai entrando aos poucos, observando os mais velhos e os mais habilidosos jogarem, aguardando oportunidades, submetendo-se ao que lhe reservam, experimentando, errando, acertando, atrevendo-se, recuando, levando as aprendizagens para casa, exercitando-se sozinha para depois voltar mais confiante para o grupo etc. Quando erra, não é castigada, pode tentar quantas vezes quiser, quando acerta é aplaudida, pode rir ou chorar com acertos e desacertos, pode receber críticas e comentários dos colegas, pode conversar sobre o jogo quando ele termina. Acima de tudo, ela quer participar do grupo. Podemos dizer que essa adaptação ao grupo é o jeito que as crianças desenvolvem para irem, aos poucos, tornando-se parecidas com o grupo; sem deixar de ser elas, tornam-se, também, a cara de sua pequena sociedade. Claro que várias crianças, em suas fantasias, aspiram ser, um dia, jogadoras de futebol. Mas não creio que seja isso que as mantenha no grupo. Elas possuem essas e muitas outras fantasias. O que elas mais aspiram é ser integrantes do grupo, pertencer a ele, fazer coisas dentro do grupo que as tornem aceitas, que as reforcem, que lhes confiram identidade, que lhes elevem a autoestima. Seu grupo é a coisa mais importante de suas vidas fora da família. E nada será mais importante que serem aceitas nele, que fazerem parte dele. É sua grande oportunidade de se sentirem bem, de terem a autoestima elevada, de serem reconhecidas. Talvez isso não ocorra na família ou na escola, mas na sua pequena sociedade lúdica elas podem ser reconhecidas e aceitas como são, mesmo não sabendo que, com o tempo, elas serão tão mais aceitas quanto mais parecidas com o grupo se tornarem. Se a brincadeira mais importante de um grupo for o jogo de bola, como era no meu caso, nada me fortalecia mais no grupo que aprender a jogar bola. E tudo eu fazia para aprender bem e ser aceito, ser reconhecido. Pensando no que ocorre hoje com a Internet, os grupos, ou pequenas sociedades lúdicas, continuam ensinando muito, e as crianças e jovens de tudo fazem para ser aceitos neles, mesmo que isso lhes custe dissabores e, em alguns casos, a própria vida.

Todas essas coisas são elementos para inspirar uma Pedagogia da Rua. Reparem que há um método nas aprendizagens obtidas na Rua. Não falo aqui do método científico, ou do método usado por adultos para realizar certos trabalhos e apresentações. Falo de método como maneira de fazer as coisas, como uso de técnicas, de gestos para realizar as intenções. Não se aprende ao acaso. Há intenções, há caminhos melhores e piores, há imitações, repetições, exercitações isoladas, temores, audácias, exibicionismo, timidez, porém, ao modo de cada criança. Esse modo de ser de cada criança é o modo de ela ser no grupo, não um modo isolado, destituído de influências nas relações dentro do grupo. Portanto, o modo de ser de cada um é também o modo do grupo, o modo de ela ser no grupo. Sim, não podemos negar as crueldades, o bullying e outras aberrações que conduzem ao sofrimento e ao crime dentro dos grupos. A Rua não tem compromisso com algum tipo de moral. Eventualmente ela repete a moral que vem dos mais velhos, dos adultos, da família, mas não há na Rua um julgamento moral ao modo da família ou da escola. Na Rua há também castigos, repressões, mas as crianças resolvem isso ao seu modo, sem pressões externas. Na Pedagogia da Rua, por outro lado, não se repetirá a crueldade da Rua. Na Pedagogia da Rua perde-se o ambiente da Rua, mas pode-se criar, de outra maneira, a Pequena Sociedade Lúdica. Pode-se compreender que o ponto de vista da aprendizagem é o do aluno. Ele deve ser o protagonista. Os professores podem participar de outra maneira, mais indiretamente, mais sugerindo, mais propondo problemas, mais criando situações, mais fazendo rodas de conversa, mais levantando as opiniões dos alunos, mais ajudando, mais acolhendo, mais perguntando. Na pedagogia da Rua, assim como na educação da Rua, sempre estão em destaque alguns pontos que são fundamentais: o lúdico, o grupo e o interesse do aluno. Na Pedagogia da Rua deve-se trabalhar com uma educação moral de autonomia, levando os alunos a discutirem regras e a criarem as regras necessárias aos seus jogos.

               Os exemplos aqui descritos, a maioria sobre futebol, são apenas ilustrações de uma educação inspiradora de pedagogias que, se aplicadas a outros ambientes educacionais, podem se mostrar muito mais eficazes que as pedagogias escolares, geralmente destituídas de sentido para os alunos. A educação processada na Rua pode ser inspiradora se ficarmos atentos ao modo como se dá essa educação e aos seus efeitos.

Não se trata, portanto, apenas de melhorar a maneira de ensinar futebol ou outro esporte. Quando abordo uma possível Pedagogia da Rua, penso em uma outra maneira de educar o ser humano, nas escolas ou em quaisquer outras instituições. Penso naqueles que já fizeram algo semelhante, como Paulo Freire, entre outros. Por ser brasileiro, o educador que sempre me aparece primeiro é Paulo Freire. O tempo passou, envelheci, e continuo nascendo a cada dia sempre que me empenho por alguma coisa. E as coisas pelas quais mais me empenho são aquelas que me fazem ser aceito nos meus grupos, nas sociedades que habito, das menores às maiores. Tenho a família, tenho os amigos, tenho o meu bairro, minha cidade, meu estado, meu país e meu mundo.

A criatura humana, dada sua fragilidade anatômica, carece do grupo para tornar-se forte. Talvez mais que qualquer outra criatura, estar em grupo é sua chance de sobrevivência. Apesar da fragilidade anatômica, o sistema nervoso da criatura humana é excepcional e produtor de um instrumento extraordinário, que é a imaginação. Sua imaginação lhe permite compreender sua própria fragilidade e a necessidade de estar em grupo. Porém, isso dependerá de educação. Portanto, qualquer educação individualizante enfraquece a criatura humana. Quando livres, as crianças buscam formar grupos, e isso não se dá por acaso, é da natureza humana. Uma educação coerente com a criatura humana deveria entender que toda educação deve ser coletiva. O ser humano não precisa resolver seus problemas sozinho, ele pode resolvê-los coletivamente, sempre com ajuda. A escola, de maneira geral, pratica uma educação individualizante. Na educação da Rua ocorre, tanto educação coletiva quanto individualizante. Porém, no caso das crianças, elas buscam sempre formar grupos e aprender umas com as outras.

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Os diferentes estilos de futebol no Brasil

Por: Cristiano Bassoli

No Brasil, o futebol tem uma diversidade de estilos que muitas vezes reflete as características culturais, históricas e geográficas de cada região. Essa diversidade cria variações interessantes no modo como o esporte é jogado, de fato, muitos associam certos estilos de futebol a estados ou regiões específicas do país. Aqui estão algumas características dos estilos de futebol em diferentes partes do Brasil:

REGIÃO SUL (PARANÁ, SANTA CATARINA, RIO GRANDE DO SUL)

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Estilo de jogo: De força física e marcação intensa.

Características principais: O futebol do sul é conhecido por ser mais competitivo e focado na defesa e na organização tática. Times dessa região tendem a privilegiar uma postura mais defensiva, com muita disciplina tática, e a priorizar um jogo mais reativo. Isso é atribuído em parte ao clima mais frio e ao estilo de vida mais europeu, especialmente no Rio Grande do Sul.

REGIÃO SUDESTE (SÃO PAULO, RIO DE JANEIRO, MINAS GERAIS, ESPÍRITO SANTO)

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Estilo de jogo: Futebol de habilidade técnica e o famoso “futebol-arte”

Características principais: São Paulo é o estado com o maior número de clubes de destaque no futebol brasileiro. A capital paulistana, com vezes como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, desenvolveu um estilo que valoriza o jogo disciplina tática, o coletivo e a organização em campo, sem deixar de lado a habilidade técnica. Já no interior de São Paulo, os clubes também adotam uma forte estrutura tática, mas muitas vezes dependente de revelações jovens e de um jogo mais pragmático, focado no resultado. O estilo carioca é frequentemente associado ao drible, à criatividade e à leveza. Os jogadores do Rio têm tradição de habilidade individual e capacidade de improvisar em campo. Isso deu origem ao conceito do “futebol-arte”. Em São Paulo, o futebol é considerado um pouco mais pragmático, com vezes que costuma adotar uma postura mais equilibrada entre defesa e ataque, enquanto no Rio de Janeiro se valoriza mais a criatividade e a improvisação.

REGIÃO NORDESTE (BAHIA, PERNAMBUCO, CEARÁ, ETC.)

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Estilo de jogo: Futebol de muita garra e velocidade.

Características principais: No Nordeste, o futebol é marcado pela força física, intensidade e pela paixão dos torcedores. Times dessa região têm uma tradição de jogar de forma aguerrida, e jogadores com velocidade são muito valorizados. As condições climáticas mais quentes também influenciam o ritmo do jogo, com partidas muitas vezes mais rápidas e diretas.

Fatores culturais: A rivalidade intensa entre os clubes e a forte ligação com suas torcidas são características marcantes do futebol nordestino, onde a emoção e a intensidade se destacam.

REGIÃO CENTRO-OESTE (GOIÁS, DISTRITO FEDERAL, MATO GROSSO, MATO GROSSO DO SUL)

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Estilo de jogo: Futebol de transição rápida e com ênfase no ataque.

Características principais: Os times do Centro-Oeste tende a jogar um futebol mais ofensivo, com foco em transições rápidas do meio para o ataque. No entanto, a região ainda está em processo de consolidação no futebol nacional, se comparada a outras regiões mais tradicionais.

REGIÃO NORTE (PARÁ, AMAZONAS, ETC.)

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Estilo de jogo: Futebol de resistência e adaptação climática.

Características principais: O futebol no Norte é muito influenciado pelas condições ambientais, com campos mais pesados (principalmente durante a temporada de chuvas) e temperaturas muito elevadas. Os jogadores dessa região costumam ter uma grande resistência física e o jogo pode ser mais cadenciado, para suportar o desgaste causado pelo clima.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Esses estilos não são regras rígidas, mas sim tendências que refletem influências históricas, culturais e até climáticas. O futebol brasileiro, de forma geral, tem uma forte ênfase na criatividade, técnica e habilidade dos jogadores, embora os estilos possam variar de acordo com a região. O “futebol-arte”, que é mais associado ao Rio de Janeiro, contrasta com o futebol mais pragmático e tático de São Paulo. Essas variações tornam o futebol brasileiro muito rico e imprevisível, sendo uma das razões pelas quais o país tem uma das maiores tradições no esporte mundial. Dando continuidade à análise dos estilos de futebol no Brasil, é interessante observar como cada região e estado evoluíram ao longo do tempo e se desenvolveram para o cenário nacional com seus especialistas. Cada estado e região do Brasil contribuem com elementos únicos para o futebol nacional.

Esses estilos refletem a diversidade cultural e geográfica do país, criando uma variedade rica que se traduz em diferentes abordagens táticas, formas de jogar e, acima de tudo, na paixão dos brasileiros. Essa multiplicidade de estilos faz do futebol brasileiro algo único, onde tanto a técnica quanto a força, o improviso e a disciplina coexistem, tornando o Brasil um dos maiores celeiros de talentos no mundo do futebol.

Foto de capa: Lucas Andrade/Pexels

Imagem 1: Luiz Erbes/AGIF

Imagem 2: César Greco

Imagem 3: Felipe Oliveira/EC Bahia

Imagem 4: Roberto Corrêa

Imagem 5: Divulgação/Remo

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Torneios e campeonatos em escolas de futebol: “vilões ou mocinhos”?

Por: Rafael Castellani e João Batista Freire

Em nossos dois últimos textos, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol” e “A “miniaturização” do adulto no futebol”, publicados na Universidade do Futebol, abordamos assuntos que, apesar de extremamente importantes e há tempo presentes nas discussões entre aqueles que compõem o campo esportivo e debates acadêmicos, parecem ainda estar longe de um entendimento e, principalmente, de uma transformação da prática profissional cotidiana daqueles que trabalham como professores, treinadores e/ou gestores, em escolas de futebol.

No primeiro deles, anunciamos o objetivo de nos dedicarmos à cansativa tarefa de “desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições”. Esperamos ter introduzido e discorrido o suficiente para, nestes dois textos antecedentes, justificar e argumentar contra a especialização esportiva precoce no futebol a partir do desenvolvimento moral e cognitivo das crianças, reafirmando nosso entendimento de que o tempo, características e interesses das crianças devem ser respeitados. Criança deve ser tratada como criança!  

Partindo desse pressuposto, as competições (campeonatos e torneios) organizadas pelas escolas de futebol e por empresas especializadas em eventos esportivos são, talvez (numa “briga” ferrenha com os treinos/aulas), o maior exemplo de materialização da especialização esportiva precoce e do tratamento de crianças como miniaturas de adultos no futebol.

É um problema crianças de 6, 8, 10, 12 e 14 anos disputarem campeonatos? Não! Crianças competem desde o primeiro ano de vida e o comportamento competitivo, além de enraizado em nossa cultura, é da natureza humana. Crianças de até seis anos de idade, por exemplo, disputam seus brinquedos, seus espaços, seus familiares mais próximos, entre outras coisas, porque são, ainda, bastante autocentradas, consideram o mundo quase que exclusivamente de seu ponto de vista. A partir dos seis ou sete anos de idade, essa referência começa a mudar, mas ela leva ainda alguns anos para demonstrar maior capacidade de se colocar, com segurança, no ponto de vista do outro. Portanto, durante toda a infância é esperado que as crianças sejam competitivas nesse sentido. Para se ter uma ideia de como é difícil colocar-se no ponto de vista do outro, donde resultam, por exemplo, a compaixão e a solidariedade, não é raro encontrar adultos incapazes de fazer isso.

O problema, então, é disputarem campeonatos nos moldes adultos, com princípios, regulamentos e comportamentos semelhantes aos dos profissionais (dos treinadores/professores, da arbitragem e da família), assim como vemos costumeiramente em todo o país. O problema é reproduzir com crianças as mesmas condições pelas quais passam jovens e adultos nas competições de que participam, voltadas à alta performance.   

Com essa afirmação, esperamos liquidar o questionamento trazido como subtítulo deste texto: campeonatos e torneios de futebol para crianças e jovens não são, em sua essência, nem bons, nem ruins, ou seja, nem mocinhos, nem vilões, eles são aquilo que fazemos deles.

São vilões se crianças e adolescentes disputarem campeonatos com o único objetivo de vencer… se o foco estiver exclusivamente no desempenho esportivo e na conquista do primeiro lugar, passando por cima daqueles que deveriam ser os principais objetivos: a formação humana e integral (que comtempla a formação esportiva nos seus aspectos técnicos, físicos, cognitivos, psicossociais, morais etc.) das crianças que jogam futebol.

São vilões se colocarmos crianças de 6 a 12 anos para disputarem jogos oficiais em campos (oficiais), com dimensões (do campo e das traves, por exemplo) não adaptadas a cada faixa etária. Tamanho e peso da bola, tempo de jogo, dimensões do campo, tamanhos das traves, número de jogadores, quantidade de substituições possíveis, penalidades, pontuação, premiação, perfil da arbitragem…praticamente tudo tem que ser adaptado para cada categoria.

Talvez não haja maldade maior nessas situações do que levar uma criança para um jogo competitivo e deixá-la no banco de reservas o jogo todo, privando-a do prazer e da rica experiência de disputar uma partida de campeonato contra outras crianças. Não obstante, tão triste e motivo de indignação quanto, é presenciar xingamentos, palavrões e cobranças absurdas realizadas por parte dos familiares. Isso é, ou deveria ser, inaceitável!  

O propósito, as regras e os regulamentos dos torneios e campeonatos de crianças devem ser para crianças! Devem respeitar as características, interesses e necessidades das crianças. Devem ser coerentes com o propósito educacional de escolas de futebol.  Se em clubes profissionais, em suas categorias de base, a discussão passa pela necessidade de destinarmos foco à formação, esportiva que seja, e não na conquista de títulos, em escolas de futebol isso deveria ser indiscutível.

Afinal, a competição, tal como a consideramos neste texto, não tem o mesmo caráter quando se trata de jovens em formação para o alto rendimento, tampouco de adultos profissionais. Professores, educadores e gestores preocupados com o bom desenvolvimento integral da criança, pensam a competição de maneira mais abrangente, considerando-a, também, como oportunidade de tomá-la como referência de competência frente ao outro. Não é exatamente um medir forças, mas uma observação da própria força (no sentido de capacidade geral de realização) na relação com o outro. Entendemos, ainda, a competição, do modo como a consideramos aqui, uma excelente oportunidade para que as crianças aprendam, aos poucos, que sem o outro, sequer haveria competição, que é por existir o outro correndo ao seu lado (por exemplo), que ela pode disputar uma corrida de velocidade. Pensar a competição dessa forma é também pensar que, ao mesmo tempo, ocorre cooperação.  

Foto: pixabay