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A “ciência” do futebol

Por: Manuel Sérgio

O futebol, como qualquer outra modalidade desportiva é, para mim, uma das formas da motricidade humana – como é lógico! Embora a pretensa cientificidade de muitos comentadores do futebol seja proporcional à sua “desumanidade”, quero eu dizer: quanto mais falam de futebol menos humano se revela o seu discurso.

É verdade que, desde os inícios do pensamento moderno, mormente com Galileu e Descartes, o “homem” e a “ciência” sempre se constituíram como duas realidades estranhas uma à outra: a inteligência, a personalidade, os sentimentos humanos não podiam pesar-se, medir-se, quantificar-se – não eram, com toda a certeza, científicos. Demais, a ciência moderna nasce e desenvolve-se mecanicista. O universo é uma imensa máquina, composta por um enorme conjunto de máquinas cujas leis importa conhecê-las. E, por isso, Deus é o divino engenheiro, onipotente criador de um universo que pode ser estudado, matematicamente. Não é de estranhar assim que os filósofos e os cientistas de mais ampla inteligência teorizadora tenham comparado o Mundo a um relógio.

O homem-máquina de La Mettrie (1709-1751), filósofo materialista e médico que pretende ensinar que, no mundo todo, só matéria se encontra e é dessa matéria que o ser humano (e tudo) nasce e de que o ser humano é feito – La Mettrie, minucioso e irônico, não abandona o mecanicismo, apontando as leis mecânicas que regem, segundo ele, as funções do corpo de um ser vivo. Um ponto a realçar: a partir desta altura, o sábio deixa de ser o clérigo aristotélico-tomista e passa a ser um leigo, uma pessoa que sabe que não tem a verdade, mas que imparavelmente a procura, pela razão e pela reflexão e pelo método experimental. No meu modesto entender, a história das ciências, que vai de Copérnico (1473-1543) a Newton (1643 1727) é de um progresso admirável e prepara o Iluminismo e informa, claramente, a Revolução Francesa…

Não surpreende portanto que Ciência, Razão e Progresso caminhassem de mãos dadas e que, quando pela primeira vez, no século XVIII, a expressão Educação Física (que integrava a Ginástica, os Jogos e os Desportos) tenha surgido, no vocabulário científico, os exercícios ginásticos se destinassem ao homem-máquina, a um corpo-instrumento que a Razão esclarecia.

Vale a pena reler a Proposta de Lei, de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à Assembleia Nacional para a criação do INEF (Instituto Nacional de Educação Física) português, onde assim se define a Educação Física: “é uma ação intencional que o homem, devidamente dirigido, exerce sobre si mesmo, pela prática racional, sistemática dos exercícios físicos – ginástica, jogos, desportos – metódica e conscientemente executados, como complemento essencial dos restantes meios educativos e higiênicos e tendo como objetivos imediatos a saúde, beleza, força, resistência, disciplina, prontidão, espírito de solidariedade, optimismo, confiança em si, domínio de si próprio, coragem, prudência, caráter, personalidade, tornando o corpo o digno instrumento de uma vontade esclarecida”.

Como se vê, uma antropagogia, ou teoria da formação do ser humano, assente no corpo-instrumento e apontando para uma antropologia declaradamente dualista. Enfim, a dicotomia corpo-mente, sentimentos consciência, natureza-cultura emergia da educação física até meados do século XX. Muita gente que pontifica, no desporto nacional e internacional, ainda não ultrapassou, nem o mecanicismo cartesiano, nem o solo epistemológico do positivismo.

Ousaria mesmo escrever que, no futebol, há muita gente que pensa que sabe explicar o futebol, sem nunca o ter compreendido.

Compreendido? Sim, porque ao nível do humano nada escapa à ordem dos valores e das significações, mesmo como exigência do rigor metodológico.

O que eu aconselharia aos “agentes do futebol”?… Digo isto, após uma severa autocrítica (porque, à boa maneira socrática: só sei que nada sei): um corte epistemológico, em relação à pré-ciência de um senso comum que analisa o futebol, sem descontinuidade, nos problemas e na linguagem.

O curso de um conhecimento verdadeiramente científico não é linear, o seu grande objetivo é respeitar o Passado, mas construir o Futuro, o que implica pôr de lado e rejeitar muito do que a tradição nos oferece. “A exigência de objetividade, no sentido de objetivação, leva-nos necessariamente a descartar o caráter meramente acumulativo e continuísta do saber, bem como a fazer da ideia de progresso descontínuo a espinha dorsal de toda a cientificidade. Se é assim, também esse progresso precisa ser pensado em termos de ruptura” (Hilton Japiassu, Nascimento e Morte das Ciências Humanas, Francisco Alves editora, p. 145).

Ruptura, em primeiro lugar com uma organização apressada e desleixada dos clubes. Há dirigentes desportivos de exemplar amor pelos seus clubes, mas sem especialização bastante para, atualmente, organizarem um clube com alta competição, ou alto rendimento.

Já é clássica a definição de Peter F. Drucker: “Uma organização é um grupo humano composto por especialistas que trabalham numa tarefa comum (…). Uma organização é sempre especializada. Define-se pelas suas tarefas (…). Uma organização só é eficaz, se se concentrar numa tarefa. Uma orquestra sinfônica não tenta curar doentes, toca música. Um hospital cuida dos doentes, mas não procura tocar Beethoven (…).

A sociedade, a comunidade e a família, são as organizações que fazem (Sociedade Pós-Capitalista, Atual Editora, Lisboa, 2003, pp. 61/62). E, para as organizações fazerem, é imprescindível o contributo de direções competentes.

Donde, logicamente se conclui que organizar é tornar produtivos os conhecimentos. Mas, no âmbito das ciências humanas, um especialista é tanto mais eficaz quanto mais tiver em conta a complexidade humana, presente em todos os elementos que a constituem. Num treino de dominância física, o jogador de futebol (o atleta) é um ser de sentimentos.

E se ele se encontra incompatibilizado com o treinador?… E, se nesse dia o pai está gravemente doente?… E se um dos filhos ficou em casa, com febre alta?… É evidente que, assim, o treino se transforma num espaço de insanável aborrecimento e, nalguns casos, de aversão. Não passo sem sublinhar as palavras de António Damásio à revista do Expresso, de 2017/10/28: “Os humanos não têm apenas a inteligência, têm por exemplo a linguagem. E temos uma socialidade muito mais complexa do que a de outras criaturas. E os impulsos criativos. E, analisando estas respostas, vemos a ideia. A ideia forte é a de que tudo o que há de bom e de bem, tudo o que ajudou instrumentalmente a criar culturas nunca teria acontecido se não tivéssemos sentimentos. Sentimentos, ora de dor e sofrimento, ora de plenitude e prazer”. E diz mais adiante, numa entrevista superiormente conduzida por uma jornalista com dotes notórios para o jornalismo (o que nem sempre sucede) e pessoa culta, que se topa no seu infatigável interrogar: “O sentimento é a representação do imperativo homeostático”. O que é peculiar no jogador, por ser homem, é secundário e acaba por reduzir-se às necessidades primárias da tática, nos “estudos” de alguns pseudo-especialistas.

Não, eu não digo que a tática não é importante, o que eu digo é que não é essencial. Só podemos esperar respostas humanas dos jogadores, se os respeitarmos (e estudarmos) como homens. Só assim podemos fazer ciência… nas ciências humanas! Mas eu vou continuar com este tema.

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com

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O que sustenta boas decisões e indica talentos no futebol

Por: Nicolau Trevisani

No último texto publicado aqui na Universidade do Futebol, discutimos como o ambiente de treino pode ser manipulado para evocar estados emocionais específicos — e como essas emoções, quando bem guiadas, impactam o comportamento tático dos atletas. Hoje, gostaria de seguir nesse fio condutor: se as emoções influenciam o comportamento, o que elas nos dizem sobre a qualidade das decisões tomadas dentro do jogo?

Mais do que a técnica, ou mesmo o conhecimento tático, a tomada de decisão é atravessada por uma condição emocional específica: a capacidade de presença “no aqui e no agora”. Aquilo que alguns chamam de flow, outros de estado ótimo. Pensando no futebol, gosto muito da ideia de “estado de jogo” trazida pelo professor Alcides Scaglia, a qual tive acesso há muitos anos, na qual ele define o estado de jogo como: “Uma suspensão momentânea da realidade comum, na qual o jogador experimenta uma imersão completa na dinâmica do jogo. Nesse estado, tudo mais parece desaparecer — restando apenas o contexto da partida e a ação situacional como foco total.”

Ou seja, trata-se de um estado em que o atleta consegue viver aquele momento de maneira tão entregue e presente que atinge uma condição de isolamento de qualquer ruído externo, vivendo o jogo e alcançando o seu melhor nível de performance.

Para entendermos melhor o estado de jogo — e sua relação com a performance — precisamos fazer uma separação importante. É muito comum associarmos bom desempenho ao prazer. Mas nem sempre o prazer significa desenvolvimento ou desempenho. O prazer pode vir de atividades lúdicas e pouco desafiadoras (o que, quando pensamos em recuperação mental da equipe, tem muito valor se bem colocadas dentro da rotina e periodização).

Mas o estado de jogo exige mais: exige engajamento, risco e exposição a contextos realmente desafiadores. Para entrar nesse estado, o atleta precisa de um equilíbrio entre o nível de desafio proposto e sua capacidade de executá-lo. Se for muito simples (como, às vezes, são as atividades muito prazerosas), não se atinge a zona de equilíbrio necessária.

Além disso, há fatores que podem facilitar o alcance desse estado ideal, como:

  1. Tarefas claras e com significado — por exemplo, uma estratégia de jogo bem definida, com funções bem estabelecidas para vencer uma partida, ou até mesmo um treino com objetivos e regras claras.
  2. Segurança emocional para errar — um ambiente que permita o erro, sem cobranças excessivas por parte de treinadores ou responsáveis.
  3. Feedbacks claros e construtivos — mesmo quando negativos.
  4. Confiança na própria leitu

Da mesma forma, a ausência desses fatores pode funcionar como bloqueadora, impedindo que o atleta atinja o estado de jogo — seja em treino ou em competição. É claro que, dependendo de cada indivíduo — sua capacidade de regulação emocional e experiências prévias — o peso desses fatores varia. Cada jogador responde de forma diferente.

A tomada de decisão, muitas vezes tratada como um processo somente racional ou ligada unicamente à inteligência tática, é cada vez mais atravessada por aspectos emocionais. Isso interfere tanto no que o jogador decide quanto em como ele interpreta o contexto em que está inserido.

Treinar ou analisar decisões também é treinar como lidar com emoções (como falamos, por exemplo, na descoberta guiada emocional), mas também é treinar a capacidade do jogador de permanecer imerso no presente — no “aqui e agora” — para então ser mais eficiente e claramente como isso irá se traduzir em desempenho no jogo.

Como scout, me interesso cada vez mais por observar não apenas os atributos físicos ou técnicos, ou como o jogador interpreta suas opções de passe, mas o estado emocional que sustenta a decisão. Qual é o comportamento do jogador quando erra? Quão focado e imerso ele permanece mesmo vencendo por 6×0? Como é sua entrega em contextos adversos? Qual seu nível de atenção em momentos de definição?

Essas questões ajudam a entender o quanto o jogador consegue se manter presente no jogo — e no estado de jogo.

Quando analisamos um jogador, tão ou mais importante do que observar aspectos tangíveis é tentar entender o que sustenta aquilo que é visível de forma objetiva. Nesse sentido, entender o estado de jogo é um excelente termômetro.

Quando conseguimos observar um jogador com alta capacidade de foco  no presente  e  imersão no jogo, podemos estar diante de um talento mais sólido para o jogo de futebol. Muitas vezes, atletas com essa capacidade — de manter-se em estado de jogo e com alto nível de foco — têm mais a contribuir com a equipe do que jogadores tecnicamente excelentes que as vezes até são capazes de encontrar algumas boas soluções na partida mas de forma menos frequentes , mas que não conseguem se manter emocionalmente conectados com o jogo.

Foto: Reuters

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Os Clubes de Futebol e Modelos de Gestão

Por: Luis Filipe Chateaubriand

O notável Peter Drucker já ensinava que não são as empresas que devem ser gerenciadas, mas as Organizações em geral que precisam ser gerenciadas. Uma empresa precisa ser gerenciada, para gerar lucro. Uma organização não empresarial precisa ser gerenciada, mas para se obter credibilidade, institucionalização e, eventualmente, lucros.

Portanto, repete-se, são as Organizações que precisam de Gestão, e não apenas as empresas.

No futebol brasileiro, criou-se um mito de que as Sociedades Anônimas Anônimas do Futebol (SAFs) são a solução.

Não necessariamente.

Perceba-se que Flamengo e Palmeiras, considerados os principais clubes brasileiros no momento, não são SAFs.

O Flamengo, entre 2014 e 2018, fez um vigoroso ajuste financeiro, aumentando brutalmente as receitas e decaindo, mais brutalmente ainda, os gastos, o que lhe proporcionou saúde financeira ímpar. O clube Rubro Negro faturou o recorde de mais de um bilhão de reais em 2022, 2023 e 2024 e, para 2025, estima-se o hiper faturamento de mais de dois bilhões de reais.

Não foi preciso ser SAF para tal.

O Palmeiras, a partir de ajuda do ex-presidente Paulo Nobre, sanou dividas, passou a ter um estádio próprio rentável e, posteriormente, passou a ter o também rentável patrocínio da CREFISA. O alvo verde imponente ganhou, desde a Gestão de Paulo Nobre, três Copas Libertadores da América, quatro Campeonatos Brasileiros e duas Copa do Brasil.

Não foi preciso ser SAF para tal.

Já o Vasco da Gama, que foi SAF da 777 Partners, cumpriu o papel subalterno de formar grandes promessas das divisão de base, e ver a SAF vendê-las a “peso de ouro”, sem o clube receber dinheiro por isso. O clube chegou ao incrível endividamento de 1,18 bilhão de reais ao final de 2024, especialmente no período em que a 777 Partners conduziu a Gestão.

Era SAF e não funcionou.

Um clube de futebol pode funcionar como SAF, como é o caso do Bahia.

Assim como pode funcionar sem ser SAF.

Cada situação, em si, determinará se um clube qualquer deve ser SAF, ou não.

Em suma, não é o modelo de Gestão que determina o sucesso de um clube de futebol – mas, sim, a própria Gestão.

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A descoberta guiada emocional: Do individuo ao coletivo e o perfil do atleta

Por: Nicolau Trevisani

Já faz alguns anos que, em meio aos meus estudos sobre o futebol, me deparei lendo um dos livros de José Mourinho sobre o conceito de Descoberta Guiada, quando buscava conteúdos sobre diferentes periodizações e metodologias de treino. A ideia, de forma resumida, consiste em tentar, dentro do treino, criar um ambiente onde o treinador não “entrega todas as respostas prontas ao jogador”, mas sim um ambiente que estimule, através da manipulação do contexto (regras, tempo, espaço, comunicação…), o atleta a descobrir por si próprio as respostas adequadas para chegar aos comportamentos desejados pelo treinador no modelo de jogo. Essa abordagem, originalmente descrita por Mosston e Ashworth (2002) no ensino-aprendizagem, foi provavelmente adaptada e contextualizada por Mourinho ao contexto do futebol de alto nível, conferindo ao atleta maior protagonismo e engajamento no processo de treino.

Por exemplo: se quero que minha equipe tenha, como comportamento em organização ofensiva, cruzamentos de canal no terço final, crio no meu treino uma regra onde, se a equipe conseguir realizar um gol desta forma, ganha um ponto extra. Peço licença para aqui fazer um apontamento: existem alguns autores ou até mesmo treinadores que costumam colocar o gol com este comportamento como o único gol válido. Eu, particularmente, por entender o gol como o principal elemento do jogo, (aquele que de fato é capaz de alterar o placar) prefiro pensar em não limitar o gol e permitir que ele saia de qualquer maneira, para que o atleta não restrinja suas ações em busca do gol. Mas, se ele for pelo caminho que “gostaríamos mais e, portanto, incentivamos/guiamos”, a equipe ganha um ponto extra além do gol. Podemos até mesmo ser mais radicais e colocar o gol como a maior pontuação da atividade, e o ponto extra como uma pontuação menor, reforçando ainda mais que o gol deve ser a busca principal.

Entendendo agora de forma clara a ideia da descoberta guiada clássica como uma boa ferramenta para a construção de comportamentos táticos que podem ser trabalhados dentro de uma periodização, gostaria de avançar a reflexão. Como psicólogo e amante da psicologia, sabemos que o jogo também vai expor o jogador e a equipe a diferentes situações que irão demandar alta capacidade de lidar com diversas emoções para jogar (resiliência, ansiedade, frustração). Sabemos também que, com um processo de terapia e/ou acompanhamento individual bem feito, podemos ajudar cada atleta a se autorregular da melhor maneira possível como indivíduo para lidar com esses momentos dentro do jogo.

Mas, coletivamente, será que não é possível gerar no ambiente, junto com os comportamentos táticos desejados, uma propensão emocional que ajude o indivíduo no contexto coletivo — e até mesmo a equipe em si — a lidar melhor com aquela emoção fruto daquela condição que o jogo ou até mesmo comportamento tático desejado geram com mais frequência para gerar uma maior eficácia? Por exemplo: para determinada forma de sair jogando que uma equipe utiliza, algumas emoções vão aparecer ou ser mais demandadas que em outra forma de jogar. Sendo assim, precisaremos de uma autorregulação de determinada situação bem estabelecida para que o comportamento tático aconteça da melhor forma possível. Isso também se estende a diferentes contextos de jogo, como adversários ou adversidades do placar, que podem ser trabalhadas dentro de cada contexto, mesmo que naturalmente já tenhamos os comportamentos mais recorrentes de determinado modelo de jogo.

Ainda que, quando trabalhamos a autorregulação do indivíduo, consigamos também ajudar o coletivo, acredito que, se assim como um comportamento tático, o “comportamento e regulação emocional” forem estimulados e treinados dentro do treino, respeitando princípios metodológicos comuns como especificidade, alternância horizontal, propensões, progressão de complexidade e, principalmente, a descoberta guiada, pode-se criar dentro do ambiente de treino situações que estimulem — em menor ou maior carga (a depender do dia da periodização, pois naturalmente conteúdos emocionais também podem ser mais ou menos complexos, ou mais ou menos estressantes ou desgastantes) — emoções que os comportamentos táticos do modelo de jogo e de determinada partida irão exigir com mais ou menos frequência. Assim, dentro do treino, com estratégias estabelecidas, os indivíduos e o coletivo poderão ir apreendendo a reconhecer, processar e lidar com diferentes emoções trazidas pelo jogo.

Claro, quanto mais atletas estiverem individualmente melhor preparados para lidar com as emoções, a transferência para o coletivo é facilitada. Mas é importante dizer que nenhum dos dois trabalhos emocionais propostos (coletivo ou individual) se substituem. Ambos podem ser de grande valia e se complementam.

E, como scout — função a qual hoje exerço — como esse processo ajuda? Entender, dentro do modelo de jogo da equipe, quais emoções serão mais demandadas (até mesmo para determinadas funções) de acordo com os comportamentos desejados pelo modelo de jogo pode ser uma valiosa informação no momento de observar um jogador. Será que, para o modelo de jogo que pretendemos ter como norteador do nosso jogo e no nosso contexto, aquele jogador já tem as habilidades emocionais necessárias para se adaptar mais rapidamente às demandas? Se a resposta for sim, pode indicar que aquele jogador tem um perfil mais pronto para transformar o seu potencial em performance rapidamente. Se a resposta for não, ao menos vamos saber melhor quais comportamentos — e eventualmente quais emoções — devemos ajudá-lo a desenvolver com diversas ferramentas no nosso ambiente para que ele possa, de forma assertiva, se adaptar melhor ao contexto em geral, inclusive podendo desenvolver as habilidades necessárias para se autorregular melhor.

Desta forma, poderemos ter uma leitura mais completa do perfil do jogador e entender os atributos dele, para que o clube possa gerar um ambiente o mais favorável possível para que o atleta possa transformar o potencial observado em performance o mais rápido possível.

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A tática e a criatividade: aceitar o caos, desdramatizar o erro

Por: Sérgio Raimundo

No treino do futebol profissional temos que escolher, se queremos organização extrema nos exercícios, muitas vezes dando feedback a cada bola jogada, para nos sentirmos no controle dos exercícios, ou se preferimos caos, um caos organizado, que permita aos jogadores tentar, errar, acertar, voltar a tentar, testar diversas soluções. 

Experimentar o erro e o acerto nos exercícios, jogar de forma espontânea e tomando constantes decisões dentro do modelo de jogo proposto (forma de jogar da equipe), enfrentando adversários chegando de diversos ângulos e com diversas velocidades, sem uma sequência única e definida, permite aos jogadores realizar decisões continuamente em jogo, em condições aleatórias, variáveis e imprevisíveis, que promovem uma auto-organização da equipe que deve funcionar como um todo, no qual o movimento de um jogador, a posição da bola e dos adversários fazem variar o posicionamento de todos os jogadores da própria equipe em campo. A equipe funciona como um sistema que se adapta constantemente e aprende coletivamente com os ajustes e experiências de treino que se tornam aprendizagem, quando se tornam rotinas. A equipe aprende em conjunto, não sabe o resultado do exercício antes de o iniciar, quando realiza jogos em espaços reduzidos ou em grandes.

Quando juntamos tática e criatividade na mesma linha, muitas vezes, podemos encontrar o conflito e discussão entre deixar os jogadores tomar as decisões, ou limitar as decisões que os mesmos podem tomar. Pensamos em jogadores que apenas seguem regras, ou jogadores que pensam em como decidir em jogo, de forma total ou dentro do modelo de jogo proposto. Se por um lado, creio que a maioria dos treinadores concorda, que os jogadores deverão ter alguma autonomia para decidir, pois é o que acontece em jogo, por outro, se cada um reagir por si durante todo o jogo, a equipe corre o risco de não estar organizada, pois ninguém sabe muito bem o que cada um vai fazer. 

O termo “modelo de jogo” foi introduzido há vários anos, por forma a servir como uma linguagem coletiva comum a todos os jogadores da mesma equipe, uma inteligência coletiva que permite que todos os jogadores antecipem as decisões dos próprios companheiros de equipe, em situações de grande estresse, nas quais as respostas devem ser dadas de forma automática. Em situações de estresse o cérebro vai sempre optar pela forma mais rápida de reação e decidir em aplicar as rotinas para as quais foi condicionado durante os dias de treino. No fundo, o modelo de jogo, a estratégia de jogo e as decisões sob estresse, geram os princípios de ação da equipe sob a forma de inteligência coletiva, e isso torna-se na cultura de jogo da equipe. 

O “caos organizado” nos exercícios de treino, isto é, as decisões abertas [uma possível decisão ou várias, sem imposição de uma resposta única por parte do treinador ao jogador], poderão ter um impacto positivo na criatividade dos jogadores, quando aumentarem a organização coletiva, tornando-se numa ideia comum e adaptável, quando ajudarem a antecipar e solucionar problemas e reduzir e aumentar a confiança dos jogadores. Mas poderá, também, ter um impacto negativo, podendo bloquear a criatividade, criando dependência de soluções, tornando-se numa ideia comum fixa, gerando ansiedade e diminuindo a confiança nos mesmos.

Segundo o professor Duarte Araújo, da Faculdade de Motricidade Humana, é importante que o caos, potencializando a variabilidade nos exercícios, promova a intencionalidade coletiva, compartilhando objetivos claros durante o exercício para que a equipe encontre a solução comportamental que vai variar constantemente em função do que está a acontecer em tempo real. É também importante que os mesmos contenham informação funcional, isto é, possuam elementos-chave do contexto de jogo (bola, adversários, gol), para oferecer possibilidades relevantes de ação para os jogadores encontrarem as soluções para os mesmos. Por fim, os exercícios deverão, também, permitir um movimento adaptativo, isto é, permitir variações na maneira como os jogadores adaptam seus movimentos para concretizar as affordances, isto é, as possibilidades que o envolvimento, constituído pelo campo e pelas regras, permitem, tendo em conta os elementos chave bola, adversários, gol [direção do jogo]. 

Dentro do movimento e ações nos exercícios, a aprendizagem e ambiente de incentivo aos alunos a se adaptarem e encontrarem suas próprias soluções, vão acontecer erros. Se tratarmos cada um desses erros como um drama e pararmos a prática para dar feedback a cada ação, então, o efeito de aprendizado, automatização coletiva e experimento de soluções, desaparece. Aí entra a importância do feedback pedagógico.

Se iniciarmos um exercício e todos os praticantes cometem o mesmo erro, então sim, devemos parar o mesmo e voltar a explicar, demonstrar, ou realizar as ações necessárias para o bom decorrer do mesmo. Se o erro fôr apenas praticado por um ou alguns jogadores de forma intermitente, então podemos dar feedback à ação enquanto o exercício estiver decorrendo. É como num jogo. Quando o jogador realiza um jogo, o treinador não pode parar o mesmo a cada erro que o jogador realiza. Até se torna importante o jogador desenvolver formas de lidar com os erros que comete e reagir aos mesmos, que não será possível desenvolver se o treinador pára o jogo, cada vez que algo errado acontece, na sua visão.

O feedback tem várias dimensões e ainda mais subcategorias, e é altamente dependente do estilo de liderança dos treinadores, mas há formas de estruturar o mesmo, para evitar constantes paragens nos exercícios. Para isso, é chave conhecer, também, o jogador como pessoa. Cada jogador tem a sua vida e o seu tipo de personalidade e enquanto alguns necessitam de saber o porquê de tudo o que fazem, outros necessitam de motivação, outros regras, outros de serem envolvidos no processo de liderança, outros espaço para experimentar sem qualquer feedback, etc.

Algumas das técnicas para fazer desaparecer a necessidade constante de feedback por parte dos participantes e deixar os mesmos tomar suas decisões em jogo, passam por realizar, por exemplo, um feedback sumário. Desta forma, os treinadores apenas dariam feedback após uma série de tentativas, ou no intervalo das séries ou blocos de cada exercício. Outra técnica, passaria por apenas dar feedback se certos erros fossem cometidos, que não seriam admissíveis no contexto de equipe e do modelo de jogo. O estilo de pergunta e resposta, também chamado de descoberta guiada, pode, também, influenciar nas decisões do jogador sem lhe impôr a solução. Por exemplo, se perguntarmos “onde está o homem livre”, essa simples questão pode fazer o mesmo levantar a cabeça mais cedo ou seguir “ligado” de onde está o homem livre ao longo do jogo. Por fim, se dermos mais feedback descritivo, em vez de ordens prescritivas, o jogador poderá sentir-se encorajado a encontrar as suas respostas. Um mero exemplo poderia ser dizer “ o centroavante vem pressionando diretamente fechando passe para o meia” em vez de dizer “passa para o outro zagueiro”, de forma prescritiva.

Outros fatores essenciais para a qualidade e gestão da sessão de treino seria a adequação dos conteúdos à cultura e realidade dos jogadores do time, diminuir o tempo de transição efetiva entre exercícios, aumentar ao máximo possível o tempo dedicado ativamente em aprendizagem, o clima da sessão que deverá permitir aos jogadores serem criativos sem temer consequências negativas por cometer “erros honestos” que advêm da tentativa honesta de tomar decisões em prol do time, a adequação a diferentes necessidades individuais e o conhecimento pessoal do atleta e envolvimento do mesmo no processo de desenvolvimento como jogador.

Foto: Marc-Graupera (FC-Barcelona)

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Desafios do scouting de futebol em países não desenvolvidos: adaptar à realidade local

Por: Ricardo André Encarnação

Introdução

Explorar e identificar jogadores talentosos em países não desenvolvidos representa uma oportunidade única, quer para clubes, quer para as academias/comunidades locais. Este processo, amplamente conhecido como scouting, envolve a observação cuidadosa, a avaliação detalhada e a seleção rigorosa de jovens atletas promissores para serem integrados em contextos competitivo, profissionais e/ou semiprofissionais em diferentes países. Contudo, realizar ações de scouting em regiões que se encontram não desenvolvidas torna-se particularmente complexo devido aos múltiplos desafios económicos, sociais e culturais que prevalecem. A instabilidade política, a pobreza generalizada e as desigualdades sociais muitas vezes comprometem as condições fundamentais para o desenvolvimento desportivo e a valorização justa dos talentos locais.

Neste cenário, os scouts enfrentam uma série de obstáculos que ultrapassam em larga escala a simples observação técnica e física dos atletas. Problemas relacionados com infraestruturas inadequadas ou simplesmente inexistentes, deficiências nutricionais graves, condições higiénicas precárias e formação técnica insuficiente, tornam muito difícil uma avaliação objetiva e precisa dos jogadores. Com intuito de colmatar as distintas realidades entre países desenvolvidos e não desenvolvidos, torna-se fundamental que os profissionais responsáveis pela observação compreendam profundamente as dificuldades que os jovens atletas e respectivas famílias enfrentam diariamente e adotem estratégias eficazes para ultrapassá-las, evitando que talentos puros e genuínos sejam desperdiçados devido a circunstâncias adversas.

Este artigo pretende analisar detalhadamente esses desafios, identificando abordagens práticas e eficazes que permitam aos scouts adaptar-se adequadamente à realidade local. Procura destacar o papel transformador do scouting enquanto motor de desenvolvimento social e económico sustentável nas comunidades mais carenciadas nomeadamente em países não desenvolvidos, demonstrando como uma abordagem bem estruturada pode gerar benefícios duradouros, tanto para os clubes envolvidos como para os atletas e suas famílias.

Scouting em países não desenvolvidos

Um dos obstáculos mais evidentes para o scouting em países não desenvolvidos é a precariedade ou inexistência das infraestruturas desportivas. Muitos campos de futebol carecem de condições básicas adequadas, apresentando superfícies irregulares, sejam em terra batida, relva – muitas vezes um misto de ervas e terra – frequentemente com pedras e buracos, que não só aumentam o risco de lesões como prejudicam significativamente a avaliação técnica dos jogadores. Esta situação obriga os scouts a interpretar cuidadosamente o desempenho dos atletas, tendo em conta fatores que possam indicar potencial desportivo apesar das dificuldades ambientais, estruturais, educacionais e naturalmente avaliar a capacidade de adaptação dos jovens atletas.

Os principais problemas a par do terreno em si, das infraestruturas inexistentes, nomeadamente balneários e/ou sítios para observação, incidem naturalmente nas linhas/marcas no campo, na ausência frequente de iluminação adequada, que limita drasticamente os horários disponíveis para observação e treino, condicionando a capacidade dos scouts de realizarem avaliações completas e precisas, em distintos contextos. A falta de equipamentos básicos essenciais como bolas de qualidade, luvas para os guarda-redes, coletes e redes adequadas para as balizas, contribui ainda mais para dificultar o processo, exigindo métodos criativos e adaptativos de avaliação por parte dos scouts. Para enfrentar estes desafios, é indispensável que se desenvolvam critérios de avaliação mais abrangentes e projetivos, utilizando as grelhas pessoais, no entanto têm de considerar especialmente qualidades como resistência, capacidade de adaptação e inteligência futebolística, e  por fim avaliar o potencial de desenvolvimento futuro dos atletas em ambientes e condições bem mais favoráveis, nos países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, mas com complexos em condições para a prática desportiva.

No âmbito de saúde e higiene, considero que um desafio significativo é a precariedade das condições nutricionais e sanitárias dos atletas. Muitos dos jovens promissores vivem em contextos de insegurança alimentar, o que afeta diretamente o seu desempenho físico, diminuindo a resistência e comprometendo as avaliações técnico-táticas. Estes problemas nutricionais frequentes resultam em fadiga precoce, dificuldade de concentração e incapacidade de demonstrar plenamente o potencial físico e intelectual do jogador em campo. As condições de higiene inadequadas aumentam a vulnerabilidade dos atletas a doenças infecciosas, prejudicando a continuidade dos treinos e jogos e dificultando ainda mais uma avaliação precisa e consistente.

A título de exemplo, aquando de uma das minhas deslocações à Nigéria, muitos dos atletas além de se encontrarem desnutridos no momento dos jogos, pois apenas alimentavam-se de amendoins, chegavam aos campos com níveis de ansiedade elevadíssimos e completamente desgastados, por realizarem viagens de até 24 horas através de péssimas estradas, jogavam em campos com condições altamente precárias, num tal misto de terra com erva, cheio de buracos. Por breves momentos, principalmente nas primeiras experiências em países não desenvolvidos, no primeiro contacto com os jogadores e antes dos jogos, o scouting acaba por sentir sobressair mais o ser humano do que o profissional de futebol.

Para abordar de forma eficaz estas dificuldades, os scouts devem ser formados para realizar avaliações abrangentes que incluam fatores de saúde e nutrição, garantindo que atletas com potencial genuíno não sejam descartados injustamente devido às circunstâncias atuais da realidade local. Quando ocorre a visita de um scout europeu, é frequente que os jovens jogadores desenvolvam expectativas muito elevadas em relação à possibilidade de alcançar rapidamente uma carreira profissional bem-sucedida e de topo mundial. Torna-se assim fundamental que os scouts saibam gerir estas expectativas, esclarecendo os atletas sobre os desafios e a alta competitividade existentes no futebol profissional europeu. Preferencialmente falar de atletas com as mesmas origens e demonstrar todo o sacrifício necessário para alcançar um primeiro contrato profissional, a necessidade de rápida adaptação ao futebol no destino, ao estilo de vida, ao clima, incentivando igualmente à necessidade de formação/educação continua para salvaguardar o futuro do jovem atleta.

Trabalhar a resiliência emocional e psicológica dos jovens atletas é fundamental, de forma a prepará-los para enfrentar adversidades, críticas e o eventual fracasso em testes ou avaliações. Os scouts têm a responsabilidade de explicar claramente que o percurso para o sucesso no futebol profissional é longo e incerto, requerendo persistência e dedicação constantes. É igualmente importante assegurar um acompanhamento emocional adequado aos jogadores que não são selecionados, para que estes possam gerir o fracasso de forma construtiva. Apoiar e incentivar estes atletas na definição de objetivos realistas e sustentáveis permitirá que mantenham a motivação e continuem a desenvolver-se a nível pessoal, a nível familiar, académico e por fim desportivo.

Conclusão

Para realizar sessões de scouting via torneios ou jogos-treino em países não desenvolvidos envolve enfrentar desafios complexos que ultrapassam as questões técnicas, táticas e físicas dos jogadores, tornando-se essencial que os profissionais envolvidos estejam preparados para lidar com as dificuldades estruturais, sociais e emocionais, académicas e desportivas adotando uma abordagem compreensiva e adaptada à realidade local.

Investir em formação especializada e contínua para os scouts de todos os clubes é fundamental para garantir uma avaliação justa e precisa de jovens atletas, que sejam observados em quaisquer condições, principalmente nas mais precárias. Estabelecer parcerias sólidas entre clubes, escolas, instituições locais e academias, pode criar condições favoráveis ao desenvolvimento sustentável do futebol e à melhoria das condições de vida nas comunidades.

A gestão adequada das expectativas dos jogadores e o suporte emocional perante o sucesso ou fracasso são essenciais para garantir que a experiência dos jovens jogadores observados por um ou mais scoutings, seja um processo positivo e enriquecedor para todos os envolvidos. Para concluir, reforço que a de adaptação à realidade local, em países não desenvolvidos, não só facilita o processo de identificação de jovens talentos, como também permite transformar desafios em oportunidades valiosas de desenvolvimento social e económico nas regiões menos favorecidas.

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A escolha pela psicologia sendo analista de desempenho e mercado: qual o sentido? Como a escolha por Psicologia foi — e ainda é — fundamental no entendimento do jogo e do jogador de futebol.

Por: Nicolau Trevisani

Antes de iniciarmos o texto em busca de responder à pergunta do título, permita-me me apresentar, pois estarei aqui no portal novamente depois de alguns anos, compartilhando reflexões frequentemente (pelo menos uma vez por mês). Por isso, considero importante contextualizar minha trajetória. Além disso, naturalmente, o futebol tem muito de contexto, e, por isso, também é importante que se entenda o contexto em que vou, neste texto, buscar responder à questão.

Atualmente, sou formado em Psicologia, pós-graduado em Gestão de Pessoas e Lideranças, e estou Scout do FC Dallas, da MLS, na América do Sul, desde outubro de 2022. Mas acho relevante voltar ao início da minha história para compreender toda a questão.

Desde muito cedo, sou um aficionado por futebol. Como muitos brasileiros, também sonhei em ser jogador de futebol, mas meu fraco desempenho, já nas aulas de Educação Física, me mostrou rapidamente que isso não seria possível. Sendo assim, já aos 12 anos, decidi que gostaria de trabalhar com o esporte e me coloquei a estudar, com todas as minhas forças, o jogo e tudo o que se envolvia nele.

Muito graças a esta instituição e ao professor João Paulo Medina, pude começar, já aos 12 anos, a fazer cursos e me aprofundar em tudo aquilo que dizia respeito ao jogo, tentando absorver todo conhecimento possível.

Ainda bem cedo, pude fazer estágios importantes na minha trajetória (passei por uma importante agência de jogadores por um período relativamente longo, além de clubes como o Novorizontino — onde fiz um estágio de observação com Eduardo Barros, então treinador da equipe Sub-20 — e na equipe Sub-20 do Corinthians, que era liderada pelo treinador Osmar Loss). Até que, depois de muito estudar e ter algumas boas oportunidades de estágio, aos 20 anos, recebo o convite para ajudar a estruturar e desenvolver, junto com outros profissionais, o Departamento de Análise de Desempenho na base do clube, o qual a direção da época havia entendido ser importante possuir.

Logo de início, mesmo com certo conhecimento técnico do jogo e já com o pensamento sistêmico sobre as partes (técnico, tático, físico e psicológico) que compõem o futebol, um detalhe tomava conta da minha cabeça, já nas minhas primeiras semanas de clube: como posso querer analisar o jogo sem entender melhor sobre cada um destes meninos que jogam as partidas? Eu já sabia que a parte mental tinha bastante relevância, mas, ao me deparar com vários jovens (e, claro, muitos colegas de trabalho) de muitas culturas e idades diferentes com quem convivia por lá, essa questão foi ficando cada vez mais forte em mim, até que, nas minhas primeiras semanas de SPFC, defini fazer Psicologia.

Essa escolha me acompanhou, desde então, em todas as etapas da minha carreira. Tive a honra, durante a minha faculdade, após três anos e meio trabalhando na base e tendo contato com diversas categorias, de subir para a equipe profissional do SPFC como analista de desempenho (onde, posteriormente, migrei para o departamento de Scout). É claro que, naquele momento e contexto específicos, as perguntas se modificaram um pouco, mas a inquietação de tentar sempre me aprofundar e entender sobre o indivíduo que joga o jogo permanecia. Todos que um dia foram meninos apenas, mas, ali, já homens com outra exposição social e relação com o futebol, em relação à maioria dos meninos com quem convivi em Cotia (ainda que parte deles fosse oriunda de lá), eram indivíduos em um contexto completamente diferente — e era importante entender isso para entender o jogo.

Ao todo, entre base e profissional, análise de desempenho e mercado, foram sete anos de SPFC e, embora tenha vivido em contextos e perspectivas diferentes, a busca por entender (e a importância dada aos) indivíduos que jogam o jogo sempre esteve muito presente na minha cabeça. A faculdade foi me respaldando com mais e mais conhecimento para lidar com as diferentes questões que, no fim, buscavam por um entendimento mais complexo do jogo e de suas partes em constante interação.

Mesmo depois de aceitar o desafio de deixar o SPFC e mergulhar em um novo desafio em um clube internacional, a busca por entender o indivíduo que joga o jogo permanece sempre presente, ainda que em um contexto diferente.

Levando para a prática, para tornar mais palpável o meu raciocínio, considere que, como Scout de um grande clube do Brasil (hoje uma potência econômica, principalmente em relação aos demais países da América do Sul), eu esteja analisando e observando um jogador que vem se destacando em um clube médio do Uruguai. Ao analisar esse jogador, é fundamental tentar observar a parte humana para entender se o desempenho que ele mostra na sua equipe local pode, de fato, ser traduzido em outro contexto. Algumas perguntas são importantes, como, por exemplo: quais as diferenças culturais entre os clubes? Quais as diferenças culturais entre os países? Os comportamentos esperados pelo clube que está recebendo o atleta aparecem, de alguma forma, no seu clube atual? Se possível, entender como é aquele indivíduo no seu dia a dia? Todas essas questões são tão ou mais importantes do que atributos técnicos ou táticos de um atleta, para entender se a adaptação ao contexto e ao ambiente é possível e, a partir daí, consequentemente, possa-se buscar o melhor rendimento possível. Esse entendimento só me foi plenamente possível de ser levado em conta com a seriedade que exige (não de forma rasa), com a ajuda da Psicologia.

Portanto, mesmo entendendo que todos os outros componentes que ainda busco sempre estudar (físico, técnico e tático) são fundamentais e estão em constante interação, posso dizer que a minha escolha por fazer Psicologia como faculdade (e seguir estudando toda a parte mental) foi muito importante para me ajudar, como analista, a entender mais sobre o jogo e, consequentemente, na minha visão, o principal fator do futebol, que, apesar de se ajustar a diferentes contextos, sempre estará presente numa partida: a pessoa que compõe o jogador(a).

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Saúde Mental: Ciência e Performance Aplicada ao Futebol

Por: Ricardo André Encarnação

No dia 15/07/2025, a Universidade do Futebol realizou uma roda de conversa conduzida por Maurício Rech — mestre em Psicologia e Saúde, educador, pesquisador e ex-diretor executivo de futebol profissional e de base.

evento exclusivo contou com a participação de especialistas nacionais e internacionais das áreas de futebol e psicologia, incluindo:

  • Psicólogos
  • Psiquiatras
  • Diretores de futebol
  • Coordenadores (técnicos, metodológicos e de performance)
  • Atletas profissionais
  • Mães de atletas
  • Assistentes sociais

Representantes de clubes como São Paulo, Red Bull Bragantino, Internacional-RS, Grêmio, Vasco e da Federação Paulista de Futebol estiveram presentes.

Este artigo sintetiza os principais debates e conclusões do encontro.

Introdução

A saúde mental no futebol é, ainda hoje, uma dimensão frequentemente negligenciada, apesar da crescente evidência científica que sustenta sua importância para o rendimento desportivo e bem-estar dos atletas. O professor Medina, iniciou a roda de conversa, destacando a urgência de integrar a saúde mental no cotidiano dos clubes, rompendo com o paradigma tradicional que prioriza exclusivamente o desempenho físico e técnico. A proposta deste resumo é refletir, com base em testemunhos e evidências científicas, sobre a centralidade da saúde mental no futebol contemporâneo, apresentando desafios, práticas emergentes e caminhos possíveis para uma cultura desportiva mais humana e sustentável.

Maurício Rech, cuja trajetória profissional transita entre a advocacia desportiva e a psicologia aplicada ao desporto, representa uma voz qualificada nesse debate. Ao suspender temporariamente o futebol em 2014 e retornar em 2023 com uma nova formação em psicologia, neurociência e saúde, Rech exemplifica como a experiência prática pode ser enriquecida com conhecimento científico, contribuindo para transformar o ambiente futebolístico.

Fundamentos Científicos da Saúde Mental

Ao contrário da tradição cartesiana que nos ensinou a ver o ser humano como um ser predominantemente racional, a neurociência contemporânea tem revelado que somos essencialmente emocionais. Emoções influenciam a tomada de decisões, moldam comportamentos e afetam o rendimento em contextos de alta pressão, como o desporto. A investigadora brasileira Susana Herculano contribuiu significativamente para esta compreensão ao demonstrar que o cérebro humano possui aproximadamente 86 mil milhões de neurónios, formando cerca de quatro bilhões de conexões sinápticas — uma rede intrincada que sustenta não apenas funções cognitivas, mas sobretudo emocionais.

Neste contexto, a psicologia positiva, particularmente através do modelo PERMA (Positive Emotion, Engagement, Relationships, Meaning, Achievement), assume um papel relevante. Longe de promover uma visão irrealisticamente otimista da vida, o PERMA enfatiza o uso de forças pessoais como ferramentas para enfrentar desafios e alcançar equilíbrio emocional. No futebol, a sua aplicação pode significar maior resiliência, coesão de grupo, e motivação intrínseca, fatores fundamentais para o sucesso sustentado.

Experiências Práticas e Casos Reais

O testemunho de Gabriel Bussinger, treinador em início de carreira, ilustra como a insegurança e a ausência de autoconhecimento podem comprometer a liderança e a dinâmica de grupo. Ao adotar um estilo autoritário, fruto do medo de perder o controlo do balneário, Gabriel reconheceu posteriormente a importância da gestão emocional e do desenvolvimento da inteligência emocional como pilares para uma liderança eficaz.

De igual modo, Deis Chaves compartilhou os impactos psicológicos do colapso institucional vivido num clube profissional, salientando a fusão entre paixão e trabalho no futebol como um fator agravante para o adoecimento psíquico. O seu relato reforça a urgência de criar ambientes desportivos que respeitem os limites emocionais dos profissionais.

Élio Carravetta, por sua vez, define o treino desportivo como um processo de “neuroaprendizagem”, onde o desenvolvimento cognitivo e emocional é tão determinante quanto a habilidade técnica. Atletas como Cafu e Michael Jordan são exemplos de sucesso baseado não apenas em talento, mas em domínio emocional e capacidade de aprendizagem adaptativa.

Desenvolvimento Infantil e Ambiente Seguro

A neuroplasticidade — capacidade do cérebro de modificar-se em resposta à experiência — desfaz o mito de que “pau que nasce torto não endireita”. Tal conceito é essencial no contexto do futebol de formação, onde jovens atletas estão em processo de maturação cerebral. No entanto, a exposição prolongada ao stress, especialmente durante a infância, pode comprometer essa plasticidade, afetando negativamente o desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental.

Estudos demonstram que o stress crónico, frequentemente presente em crianças oriundas de contextos de vulnerabilidade social, gera alterações estruturais no cérebro. Tais alterações estão associadas a maiores índices de ansiedade, défice de atenção e comportamentos desregulados, influenciando diretamente o percurso desportivo e de vida desses jovens. Assim, a criação de ambientes seguros, afetivos e previsíveis é uma condição sine qua non (indispensável) para a promoção da saúde mental e do rendimento desportivo.

Relatos de Experiências no Futebol de Formação

Os relatos sobre o futebol de formação são particularmente preocupantes. Fabrício Vasconcellos descreve situações de atletas marcados por tragédias familiares, como pais assassinados e mães viciadas. Estes jovens, frequentemente rotulados como indisciplinados, são, na verdade, produtos de um sistema que os expõe a traumas sem oferecer suporte emocional. O resultado são trajetórias marcadas por instabilidade, inadaptação e, muitas vezes, abandono precoce do desporto.

Ana Teresa Ratti, mãe de um atleta de 13 anos (na data do acontecimento), criticou a prática de separar precocemente as crianças das suas famílias. O caso do seu filho, único selecionado entre mais de mil candidatos, revela a pressão desproporcional imposta a jovens atletas. A comparação com um modelo existente num clube europeu — que integra escola, família e clube — sugere caminhos mais humanos e sustentáveis para a formação e desenvolvimento do potencial desportivo dos atletas.

Modelos Inovadores e Alternativas

O modelo adotado pelo Red Bull Bragantino, apresentado por Leandro Floriano, representa uma alternativa à cultura dominante do sofrimento e da pressão de crescimento precoce no futebol. Ao manter os jovens atletas nos seus núcleos familiares até aos 13 anos, o projeto visa promover uma infância saudável e proteger os jovens das pressões desmedidas do alto rendimento.

Este modelo também desafia a narrativa comum de que o sucesso exige sofrimento. A ideia de que “sem dor não há ganho” normaliza práticas abusivas e negligencia os danos psicológicos a longo prazo. Ao contrário, uma cultura de bem-estar e suporte pode gerar atletas mais resilientes, motivados e preparados para os desafios do desporto profissional.

Perspectiva Internacional dos jovens atletas

Na sua intervenção, André Encarnação abordou a difícil adaptação dos atletas estrangeiros e mais especificamente de jovens atletas brasileiros em Portugal, destacando a ausência familiar como um fator crítico para a saúde emocional e o desempenho desportivo nos primeiros tempos no novo país. As dificuldades de integração cultural, as barreiras linguísticas – no caso dos atletas provenientes de países não pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – e as mudanças alimentares, são elementos que agravam o sentimento de isolamento e dificultam o sucesso desportivo. Por outro lado, revelou que a constante evolução tecnológica facilitou o contacto e reduziu o sentimento de distância familiar, isto quando comparado com o seu início da atividade profissional em 2010.

A pressão por resultados imediatos em clubes estrangeiros também contribui para elevar os níveis de stress e ansiedade entre os jovens atletas. Trata-se de uma nova realidade – independentemente de ser melhor ou não do que a da sua proveniência – sendo a mesma conhecida pelas ações de scouting que realizou nos países dos atletas selecionados.  A ausência de suporte psicológico adequado nesse processo de transição internacional, reforça a importância de um acompanhamento emocional contínuo e individualizado para os atletas e staff do clube que os acolhe.

Soluções e Caminhos

A psicoeducação desponta como ferramenta estratégica para transformar a cultura do futebol. Ao capacitar atletas, treinadores e gestores para reconhecer e lidar com as próprias emoções, promove-se uma maior autoconsciência e empatia. Esta abordagem é especialmente eficaz quando integrada em programas de formação continuada, permitindo a atualização constante de práticas e valores.

A mudança, no entanto, deve começar em nível individual. Como um “trabalho de formiguinha”, requer que profissionais conscientes encontrem aliados dentro das estruturas dos clubes, formando redes de apoio e disseminação de boas práticas. A capacitação contínua é uma exigência ética e estratégica: profissionais bem formados são capazes de construir ambientes mais saudáveis, produtivos e humanos.

Conclusão

A saúde mental no futebol precisa deixar de ser uma exceção para se tornar uma prioridade. As evidências científicas, os relatos de profissionais e os modelos alternativos apresentados neste artigo demonstram que o bem-estar psicológico não é apenas compatível com o alto rendimento — ele é, de facto, uma das suas condições mais importantes.

Romper com a cultura do sofrimento, da pressão para um crescimento precoce e da negligência emocional exige coragem, investimento e compromisso com o ser humano que existe por trás de cada atleta. É necessário reconfigurar o futebol como espaço de desenvolvimento integral, onde corpo, mente e emoção coexistam de forma equilibrada. Atualmente a saúde mental é imposta como uma das maiores urgências sociais, o futebol — com sua visibilidade e poder simbólico — tem a oportunidade e a responsabilidade de liderar essa transformação dos jovens atletas à escala global. A mudança de paradigmas depende de todos os gestores desportivos, desde as escolas, clubes de formação aos clubes de topo, de modo a salvar e guardar o talento e promover o desenvolvimento desportivo, intelectual e social de todos os atletas.

Foto: Vitor Jubini/A Gazeta

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O treino e a complexidade humana

Por: Manuel Sérgio

1. Será de referir, antes do mais, que os treinadores e os jogadores treinem e se treinem como se joga, ou seja, de modo competitivo, tendo em conta os factores de rendimento (físicos, técnico-tácticos, psicológicos e morais), todos igualmente importantes e incluindo neles o treino invisível. Há, no treino, fatores quantitativos e qualitativos. Saber interpretar a quantidade de ácido láctico; manejar os dados obtidos, através da pulsometria; entender os resultados dos exames médico-desportivos dos atletas – tudo isto (são exemplos, entre outros) permite dar prioridade ao quantificável. Mas, o essencial é invisível aos olhos e, por isso, dificilmente quantificável. Assim, como é possível medir-se a capacidade de comunicação de um treinador, ou a sua liderança? Há dimensões da subjectividade de fundamental importância, na profissão de treinador e no desempenho desportivo. É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser. Luís Alonso Perez, conhecido por Lula nos meios do futebol: “coube a ele comandar o maior time de futebol de todos os tempos, o Santos Futebol Clube dos anos 50 e 60” (Maurício Noriega, Os 11 Maiores Técnicos do Futebol Brasileiro, Editora Contexto, S. Paulo, 2009, p. 79). Entre 1954 e 1966 treinou uma equipa onde pontificavam Pelé, Coutinho, Pagão e Pepe. E, no entanto, Lula nunca jogou futebol profissional, era motorista de táxi e falava uma linguagem com muitos erros gramaticais. Mas, teve um êxito espectacular como treinador dos juvenis do Santos e, daí, passou a treinador da equipa principal. Em 12 anos, conquistou 38 títulos! O que o distinguia dos demais treinadores? Os jogadores deliciavam-se com o que ele dizia e com a simpatia que manifestava por todos. A relação era sujeito sujeito e não sujeito-objecto. Por fim, sabia ler um jogo, como poucos. Os êxitos (e os inêxitos) do treinador não podem dissociar-se da sua personalidade e da sua conduta. Um treinador informado, mas sem qualidades de liderança e sem um admirável comportamento moral, não é um treinador eficaz. Já digo, há muito, que para saber de futebol é preciso saber mais do que futebol. Fazer- se respeitar, pelas qualidades de liderança e pelo comportamento moral – tudo isto, essencial ao treinador de futebol, é bem mais do que futebol…

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2. Mas não é também, trabalho inadiável, no desporto, a qualificação dos recursos humanos? Não há que promover e realizar um trabalho científico de excelência, visando o desenvolvimento desportivo? “Devemos saber combinar inteligência instrumental-analítica, donde nos vem o rigor científico, com a inteligência emocional-cordial, donde derivam as imagens e os mitos” (Leonardo Boff, Saber cuidar, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1997, p. 37). Segundo o “erro de Descartes”, a alma (a res cogitans) e o corpo (a res extensa) são substâncias distintas, dando primazia à razão e ao more geométrico, ou seja, ao modelo das ciências ditas exactas. Dizer que se deve pensar o mundo físico, no quadro de uma axiomática geométrica, significa reconhecer que algo desse mundo se torna impensável: a qualidade. Ora, é precisamente sob a influência de Descartes (1596-1650) que nasce a educação física, entendida como educação do físico, ou do corpo que outra coisa não era, na cultura ocidental, do que físico, ou seja, matéria. Portanto, o corpo deveria treinar-se, para obedecer com celeridade e aprumo aos ditames da razão. Por outro lado, em Descartes, para conhecer, é preciso dividir “em tantas parcelas, quanto possível e necessário, para melhor resolver as dificuldades”. Assim, o método, na educação física e no desporto, começou por ser analítico e quantitativo, tentando fazer de cada educando, ou de cada atleta, o homem-máquina, já que tudo o que é natureza nada mais é do que uma máquina. Aliás, o mecanicismo constituiu o pressuposto de toda a investigação científica. Era portanto o homem-máquina, que os números davam a conhecer, o grande objectivo da educação física e do treino desportivo. Deverá acentuar-se também criou uma íntima relação entre a classe burguesa ascendente, ou seja: os homens de negócios, e a matemática, entendida como método universal: é que o quadro próprio dos negócios é o cálculo. Enfim, a educação física, como educação de um físico que será tanto mais perfeito quanto mais se aproximar do funcionamento de uma máquina nasce depois de Descartes e o primeiro autor a utilizar a expressão “educação física” é um médico, Ballesxerd, que, em 1762, escreveu o livro “Educação Física para as crianças”. Ora, esta educação física, como educação do físico, e um treino visando o homem-máquina, chegam até meados do século XX…

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3. “Não nos podemos esquecer que a ciência moderna conferiu uma extraordinária importância à quantificação. Temos boas razões para crer que esse procedimento epistemológico de valorizar o quantitativo tenha raízes sociais. O que significa quantificar senão contar, medir e pesar? A quantificação pressupõe a posse dos métodos de cálculo, de balanças, de todo um equipamento material e mental (…). A ciência moderna nasceu num momento histórico em que a quantificação possuía uma significação fundamental na prática social” (Hilton Japiassu, A Revolução Científica Moderna, Imago, Rio de Janeiro, 1985, p. 129) é que a ordem e a quantificação interessam sobremaneira ao desenvolvimento do capitalismo! A educação física e a medicina, ambas produto, em termos modernos, do cartesianismo, apresentam, até meados do século XX, as características da ciência moderna. E assim a ginástica, os jogos e os desportos destinam-se à formação de um corpo, máquina autêntica, mesmo quando ao serviço de grandes ideais sociais. O treino desportivo, ao longo da modernidade, mais propriamente a partir dos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, centrou-se em primeiro lugar na técnica, depois no treino físico e, por fim, no volume de treino. Num livro intitulado Metodologia do Treino Desportivo, da autoria da Associação Nacional de Treinadores de Basquetebol e editado pelo ISEF de Lisboa, em 1981, David Monge da Silva escreve: “Para detectarmos quais as tendências de evolução do treino, deveremos conhecer qual a situação actual, nos domínios da investigação. Com efeito, são os resultados desta que imprimem a orientação futura do treino. Neste momento, nos centros de investigação mais avançados, os estudos os estudos centram-se fundamentalmente nas seguintes áreas: técnicas de recuperação; métodos inabituais de treino” (p.67). Este texto, de há 30 anos atrás, permite que eu possa apresentar a minha teoria da motricidade humana ou, usando as palavras de Nietzsche, a minha “teoria da acção”. De acordo com este autor (que eu conheci, através de Júlio Garganta, no livro Olhares e Contextos da Performance nos Jogos Desportivos, editado pela Faculdade do Desporto da Universidade do Porto, pp. 150 ss.) no desporto, uma acção é um comportamento táctico. Para mim, a motricidade humana é a energia para o movimento intencional da transcendência (ou da superação). Assim, no corpo em acto, ou motricidade humana, o comportamento táctico encontra-se integral, mas superado. É que a transcendência (ou superação) é o sentido da vida. De facto, viver é uma tentativa incessante de superação. O desporto é um dos aspectos deste anseio inato de transcendência e portanto o treino desportivo persegue-a, prepara-a, antecipa-a, à luz do conhecimento do jogo.

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4. A Ciência da Motricidade Humana (CMH), por mim teorizada, foi apresentada, publicamente, nas minhas provas de doutoramento, em 1986. Porque estuda o movimento intencional da transcendência, é uma ciência social e humana. Aliás, a transcendência é uma dimensão especificamente humana, inédita nas demais criaturas, já que se afirma como ruptura e como projecto: ruptura, em relação ao mundo tradicional, que nos foi transmitido; projecto como criação de um mundo novo. São especialidades da CMH o desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação psicomotora, etc., ou seja, práticas onde se torna visível o movimento intencional da transcendência. José Mourinho, considerado pela FIFA o melhor treinador de futebol do mundo, no ano de 2010, foi capaz de transcender e transcender-se, criando um método anti-dualista e anti-cartesiano, longe dos métodos analíticos de treino e bem próximo do método da complexidade que a CMH defende. Em José Mourinho, a preparação dos jogadores, para a alta competição, subordina-se a um modelo de jogo, que se torna o elemento regulador das variáveis físicas, técnicas e psicológicas. Chama-se a esta metodologia a periodização táctica. Mas há mais: José Mourinho sabe que a prática desportiva se funda no sujeito, no humano na sua globalidade. Problematizá-la significa equacionar, não um físico, mas o Homem, em toda a sua amplitude e profundidade. Também no desporto não é pensando que somos, mas é sendo que pensamos. Em José Mourinho, a preparação do atleta é simultânea com a preparação do homem que o jogador é. No treino, que José Mourinho lidera, o físico, o técnico, o táctico, o psicológico e o moral são trabalhados ao mesmo tempo. “Por isso, a noção de organização passa a ser capital, dado que é através da organização das partes num todo que aparecem as qualidades emergentes e desaparecem as qualidades inibidas” (Edgar Morin e Jean Louis Le Moigne, Inteligência da Complexidade: Epistemologia e Pragmática, Instituto Piaget, 2009, p.43). Aqui, a organização obedece a princípios e a um determinado modelo de jogo. Portanto, José Mourinho tem uma forma de pensar (o pensamento complexo), um método (o método da complexidade, fundamentado em Edgar Morin) e tudo isto sujeito a um questionamento sistemático. Uma profissão é conhecida e respeitada, a partir do que produz, da qualidade do que produz, da utilidade do que produz e, sobretudo, da postura crítica diante do que produz.

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5. Passemos a escutar o próprio José Mourinho: “Treino para mim só é bom, quando se consegue operacionalizar o que é a ideia-chave, isto é, o treinador tem de encontrar exercícios que induzam a sua equipa a fazer o que se faz no jogo” (A Bola, 2003-1-10). “O mais importante numa equipa é ter um determinado modelo, determinados princípios, conhecê-los bem, interpretá-los bem, independentemente de ser utilizado por este ou por aquele jogador. No fundo, é aquilo que eu chamo organização de jogo” (A Bola, 2002- 2-2). “A equipa que eu desejo é aquela que, num determinado momento, perante uma determinada situação, todos os jogadores pensam da mesma maneira” (revista Dragões, Janeiro de 2002). “Defendo a globalização do trabalho, a não separação das componentes físicas, técnicas, tácticas e psicológicas, embora para mim o psicológico seja fundamental” (revista Única do Expresso, 2004-11-27). Um jornalista da revista Ideias & Negócios (Junho de 2003) questionou José Mourinho que era, nesse ano, treinador do F.C.Porto: “O treinador, Felipe Scolari, diz que o sucesso deum jogador é feito em 50% por preparação física, em 25 por cento por técnica e em 25 por cento por psicologia. Concorda?”. Resposta pronta de José Mourinho: “Discordo totalmente. Eu digo que, para haver sucesso, numa equipa de futebol, a equipa tem de estar cem por cento preparada. E quando eu digo cem por cento não consigo dissociar aquilo que é físico, daquilo que é táctico, daquilo que é psicológico. Para mim, um jogador é um todo, tem características físicas, técnicas e psicológicas, que tenho de desenvolver como um todo. Não consigo separar. Eu não faço trabalho físico. E, quando dizem que o Porto está muito bem preparado fisicamente, refuto isso totalmente. O Porto utiliza uma metodologia que rompe com todos os conceitos tradicionais do treino analítico” À SportTV, no dia 2003-5-14: “Nós começámos esta época e, desde o primeiro dia, trabalhámos tacticamente”. – Ao jornal Record (1999/2/7): “Quando vejo referências às pré temporadas das nossas equipas e me mostram imagens dos atletas a correr, a trabalhar no espaço que não é o campo de futebol, da praia ao campo de golfe, dou comigo a pensar que são métodos ultrapassados, para não dizer arcaicos”. “Os meus treinos não são treinos demorados, não ultrapassam a hora e meia, mas com muita dinâmica e um tempo útil altíssimo”. Para o José Mourinho, a intensidade de esforço significa muita concentração: “correr por correr tem um desgaste energético natural, mas a complexidade desse exercício é nula. E, como tal, o desgaste, em termos emocionais, tende a ser nulo também, ao contrário das situações complexas, onde se exigem aos jogadores requisitos técnicos, tácticos, psicológicos e de pensar as situações – isso é que representa a complexidade do exercício e conduz a uma concentração maior” (Público, 2002/7/14). Sublinho, neste passo que, no arrolamento das minhas ideias sobre o treino em José Mourinho, a responsabilidade não é do treinador do Real Madrid, pois que elas me nasceram da leitura de livros que desta problemática se ocupam. Há nelas uma construção lógica, ou mental, do que encontro em obras várias.

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6. As ideias de José Mourinho informam profundamente os seus jogadores, porque ele tem qualidades de liderança, sabe ler o jogo e sabe comunicar para poder motivar. A liderança, a leitura de jogo e a motivação nem todos os treinadores as fazem, com mestria. E assim um conhecimento teórico do desporto é insuficiente, se não se têm as qualidades humanas típicas de um líder. Um ponto a salientar: porque o ser humano é um ser cultural, não há futebol sem filosofia. É que, em todas as grandes equipas de futebol, há um pensamento prévio que as informa. Compreende-se assim porque se fala da filosofia que subjaz ao jogo do Barcelona. Onde há futebol, há filosofia, ou seja, há uma tentativa de racionalizar, incluindo o que não é racionalizável. No futebol, há causalidade (causa) e caosalidade(caos), há pensamento e vivência. A realidade(neste caso, o futebol) é mais do que pensamento e mais do que a linguagem. Esta serve, sobre o mais, para motivar e explicar que o mais importante ainda está dizer e… fazer!

Assim, o futebol não se resume ao seu saber. A realidade excede sempre o que se sabe. Um treinador, como Jorge Jesus, tem a teoria da sua própria prática e, porque tem uma prática de mui tos anos, tem a teoria que criou mais a prática de todos os dias. Mas não é a cultura a aliança do saber e da vida?

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Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Jogo ou profissão?

Por: João Batista Freire

Um funcionário de cartório recebe de seu chefe imediato a tarefa de elaborar uma planilha de custos do mês de maio. Em dois dias ele entrega o trabalho pronto, seu chefe fica satisfeito e elogia o trabalho. Eufórico o funcionário sai correndo e gritando, rola no chão em cambalhotas, é abraçado por seus colegas, arranca a camisa e cai no choro. Agora o mundo real: depois de preencher corretamente a planilha o funcionário volta discretamente para sua sala, arruma suas coisas e vai para casa descansar da rotina que cumpre, fielmente, há vinte anos.

Continuemos no mundo real, jogo decisivo, Copa do Brasil, o vencedor vai para a final. Último minuto da prorrogação, zero a zero, a bola teima em não entrar, eis que, de repente, o craque do time, salário milionário, finta o zagueiro, rompe o ferrolho, encobre o goleiro e faz a bola dormir no fundo da rede. Ele arranca a camisa (toma cartão amarelo), sai correndo e gritando, rola pelo chão em cambalhotas, é abraçado por seus colegas, a torcida vai à loucura, ele chora copiosamente, o jogo termina e nosso craque vira herói, o comentário quase exclusivo por toda a semana que antecede a final.

O funcionário do cartório e o funcionário do grande clube de futebol, o primeiro mal pago, o segundo milionário. A diferença de salário seria a diferença da alegria diante do gol? Ambos cumpriram suas obrigações profissionais. O jogador terminou sua tarefa tanto quanto o funcionário do cartório, não haveria o que comemorar… ou haveria? Nenhuma tarefa de rotina profissional produziria tanta alegria.

Por mais que alguns insistam em dizer que o futebol profissional deixou de ser jogo para ser apenas uma profissão, diante do gol os jogadores insistem no contrário. Jogador é contratado profissionalmente para jogar bem e produzir vitórias, títulos e lucros para seu clube, em troca de salários, alguns deles, altíssimos. Jogador não é contratado para rir ou chorar, para comemorar gols e vitórias com choros, risos, cambalhotas, abraços, beijos, gritos. Jogador não é contratado para brigar com adversários, para festejar com a torcida, para brincar com a bola, para se exibir. Tudo isso que ele faz e para o que não é contratado profissionalmente escapa à profissão, faz parte do jogo, é lúdico. O lúdico é o grande poder, a tentação que nos tira da rotina, que nos faz transgredir regras, que produz as deliciosas irresponsabilidades que temperam nossa vida e a faz valer a pena. O craque, esse que fez o gol decisivo, já fez mais gols que planilhas e ofícios fez o funcionário do cartório em suas rotinas. Fazer gol para o craque é rotineiro. Não é a rotina de gols que o jogador comemora, não é o cumprimento da obrigação que o faz chorar, é o lúdico, é o tanto de lúdico que não está em seu contrato. Não há paixão no documento que ele assinou ao se transferir para o clube, a paixão está no compromisso que nenhum jogador assina, o compromisso com o próprio jogo. Ele não recebe um tostão para isso, ele não presta contas disso ao patrão, mas a si mesmo, aos companheiros, à torcida e ao próprio jogo.

O futebol, como outros esportes, é a boa profissão, embora não consiga se livrar das imundícies que o invadem, trazidas por aqueles que cultuam, acima de tudo, o lucro e seus subprodutos, entre eles, a corrupção. É a boa profissão porque não é só profissão, é também jogo, festa, diversão, lúdico, comemoração da vida. Que fossem assim os cartórios, as agências de publicidade, os escritórios de engenharia e de advocacia, os consultórios médicos e as salas de aula. Quando exercemos um ofício e somos apaixonados por ele, parte do trabalho vira jogo.

Profissão e trabalho têm a ver com promessa, compromisso, esforço, tarefa. Jogo tem a ver com a ação em si mesma, com diversão, com risco, com imprevisibilidade, com vertigem. Juntos formam o casamento perfeito. A festa do artilheiro ao fazer o gol decisivo é uma festa de casamento.  

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