Categorias
Sem categoria

Torneios e campeonatos em escolas de futebol: “vilões ou mocinhos”?

Por: Rafael Castellani e João Batista Freire

Em nossos dois últimos textos, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol” e “A “miniaturização” do adulto no futebol”, publicados na Universidade do Futebol, abordamos assuntos que, apesar de extremamente importantes e há tempo presentes nas discussões entre aqueles que compõem o campo esportivo e debates acadêmicos, parecem ainda estar longe de um entendimento e, principalmente, de uma transformação da prática profissional cotidiana daqueles que trabalham como professores, treinadores e/ou gestores, em escolas de futebol.

No primeiro deles, anunciamos o objetivo de nos dedicarmos à cansativa tarefa de “desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições”. Esperamos ter introduzido e discorrido o suficiente para, nestes dois textos antecedentes, justificar e argumentar contra a especialização esportiva precoce no futebol a partir do desenvolvimento moral e cognitivo das crianças, reafirmando nosso entendimento de que o tempo, características e interesses das crianças devem ser respeitados. Criança deve ser tratada como criança!  

Partindo desse pressuposto, as competições (campeonatos e torneios) organizadas pelas escolas de futebol e por empresas especializadas em eventos esportivos são, talvez (numa “briga” ferrenha com os treinos/aulas), o maior exemplo de materialização da especialização esportiva precoce e do tratamento de crianças como miniaturas de adultos no futebol.

É um problema crianças de 6, 8, 10, 12 e 14 anos disputarem campeonatos? Não! Crianças competem desde o primeiro ano de vida e o comportamento competitivo, além de enraizado em nossa cultura, é da natureza humana. Crianças de até seis anos de idade, por exemplo, disputam seus brinquedos, seus espaços, seus familiares mais próximos, entre outras coisas, porque são, ainda, bastante autocentradas, consideram o mundo quase que exclusivamente de seu ponto de vista. A partir dos seis ou sete anos de idade, essa referência começa a mudar, mas ela leva ainda alguns anos para demonstrar maior capacidade de se colocar, com segurança, no ponto de vista do outro. Portanto, durante toda a infância é esperado que as crianças sejam competitivas nesse sentido. Para se ter uma ideia de como é difícil colocar-se no ponto de vista do outro, donde resultam, por exemplo, a compaixão e a solidariedade, não é raro encontrar adultos incapazes de fazer isso.

O problema, então, é disputarem campeonatos nos moldes adultos, com princípios, regulamentos e comportamentos semelhantes aos dos profissionais (dos treinadores/professores, da arbitragem e da família), assim como vemos costumeiramente em todo o país. O problema é reproduzir com crianças as mesmas condições pelas quais passam jovens e adultos nas competições de que participam, voltadas à alta performance.   

Com essa afirmação, esperamos liquidar o questionamento trazido como subtítulo deste texto: campeonatos e torneios de futebol para crianças e jovens não são, em sua essência, nem bons, nem ruins, ou seja, nem mocinhos, nem vilões, eles são aquilo que fazemos deles.

São vilões se crianças e adolescentes disputarem campeonatos com o único objetivo de vencer… se o foco estiver exclusivamente no desempenho esportivo e na conquista do primeiro lugar, passando por cima daqueles que deveriam ser os principais objetivos: a formação humana e integral (que comtempla a formação esportiva nos seus aspectos técnicos, físicos, cognitivos, psicossociais, morais etc.) das crianças que jogam futebol.

São vilões se colocarmos crianças de 6 a 12 anos para disputarem jogos oficiais em campos (oficiais), com dimensões (do campo e das traves, por exemplo) não adaptadas a cada faixa etária. Tamanho e peso da bola, tempo de jogo, dimensões do campo, tamanhos das traves, número de jogadores, quantidade de substituições possíveis, penalidades, pontuação, premiação, perfil da arbitragem…praticamente tudo tem que ser adaptado para cada categoria.

Talvez não haja maldade maior nessas situações do que levar uma criança para um jogo competitivo e deixá-la no banco de reservas o jogo todo, privando-a do prazer e da rica experiência de disputar uma partida de campeonato contra outras crianças. Não obstante, tão triste e motivo de indignação quanto, é presenciar xingamentos, palavrões e cobranças absurdas realizadas por parte dos familiares. Isso é, ou deveria ser, inaceitável!  

O propósito, as regras e os regulamentos dos torneios e campeonatos de crianças devem ser para crianças! Devem respeitar as características, interesses e necessidades das crianças. Devem ser coerentes com o propósito educacional de escolas de futebol.  Se em clubes profissionais, em suas categorias de base, a discussão passa pela necessidade de destinarmos foco à formação, esportiva que seja, e não na conquista de títulos, em escolas de futebol isso deveria ser indiscutível.

Afinal, a competição, tal como a consideramos neste texto, não tem o mesmo caráter quando se trata de jovens em formação para o alto rendimento, tampouco de adultos profissionais. Professores, educadores e gestores preocupados com o bom desenvolvimento integral da criança, pensam a competição de maneira mais abrangente, considerando-a, também, como oportunidade de tomá-la como referência de competência frente ao outro. Não é exatamente um medir forças, mas uma observação da própria força (no sentido de capacidade geral de realização) na relação com o outro. Entendemos, ainda, a competição, do modo como a consideramos aqui, uma excelente oportunidade para que as crianças aprendam, aos poucos, que sem o outro, sequer haveria competição, que é por existir o outro correndo ao seu lado (por exemplo), que ela pode disputar uma corrida de velocidade. Pensar a competição dessa forma é também pensar que, ao mesmo tempo, ocorre cooperação.  

Foto: pixabay

Categorias
Sem categoria

A comunicação e a sua implementação pelo dirigente esportivo

Por: André de Souza Martins

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

O saber atual associado ao conceito de comunicação, aliado à importância assumida pela comunicação integrada no âmbito das estratégias de marketing, revelou-se decisivo para a aplicação desta abordagem direcionada a um segmento tão específico com é o do futebol profissional.

O desenvolvimento e crescimento de qualquer instituição (ou mesmo liderança desportiva) prende-se com a confiança que nela deposita o seu público. A conservação deste clima de confiança, que é, em grande parte, responsável pela consolidação de qualquer projeto, implica que se estabeleça, entre ambos, um diálogo ininterrupto, recorrendo aos diversos meios e canais disponíveis. Qualquer protagonista/entidade que queira manter uma imagem favorável junto do seu público de interesse terá de lhe dar informação sobre as suas atividades, o seu trabalho e a sua organização, concebendo, para o efeito, um sistema constante de comunicação cuidado e sempre dependente do contexto vivenciado.

No âmbito organizacional, a comunicação assume um papel fulcral na criação e estabelecimento de laços, não só das relações internas, mas, também, na vertente externa, isto é, com os consumidores e stakeholders. A comunicação organizacional centraliza-se, por isso, na estruturação e melhoria da imagem corporativa da organização e/ou empresa, devendo ser compreendida como uma ligação entre a entidade e o(s) consumidor(es). Por tudo isto, a comunicação das organizações funciona como um fator diferenciador no que concerne à performance de uma empresa e ao seu posicionamento no mercado. O mundo da comunicação mudou e, assim sendo, o investimento em produtos publicitários nos grandes media já não é maioritário como outrora se verificava. O marketing direto, promoção de vendas, eventos, relações-públicas, Internet, etc., prosperaram em detrimento dos media tradicionais. A comunicação multicanal está bem-adaptada ao desenvolvimento dos mercados. No entanto, esta tipologia transversal a diversos canais é bem mais complexa de gerir e, por isso, deve existir coerência na formulação das mensagens.

“O agenciamento e a coordenação de um processo completo de comunicação requere uma comunicação integrada de marketing (CIM), planeamento de comunicação de marketing que reconhece o valor agregado de um plano abrangente, capaz de avaliar os papéis estratégicos de diversas disciplinas de comunicação e combiná-las a fim de oferecer clareza, coerência e o máximo impacto por meio da integração coesa de mensagens criteriosas.” (Kotler & Keller, 2013).

Imagem 1

A American Marketing Association define a Comunicação Integrada de Marketing (CIM) como “um processo de planeamento destinado a assegurar que todos os contactos com um cliente ou consumidor em potencial relativo a um produto, serviço ou organização sejam relevantes para essa pessoa e consistentes ao longo do tempo”.

A preparação eficaz de todo o processo de comunicação requer respostas inequívocas para três problemáticas fundamentais: o que dizer (estratégia de mensagem), como dizer (estratégia criativa) e quem deve dizer (fonte da mensagem). Verifica-se, por isso, que a eficiência da comunicação deriva de como a mensagem é exposta e, posteriormente, do próprio conteúdo que lhe está inerente. Uma comunicação ineficaz pode indicar que se escolheu uma mensagem errada ou que a mensagem certa foi transmitida insatisfatoriamente.

Conclui-se, desta forma, que a comunicação multicanal integrada tem por objetivo um melhor retorno dos investimentos de comunicação, aplicando uma estratégia baseada numa construção de canais diferentes, veiculando mensagens coerentes. É orientada para o cliente/consumidor e a sua eficácia passa pelas aptidões pluridisciplinares dos responsáveis que as dirigem e pelas próprias organizações.

A COMUNICAÇÃO NO DIRIGISMO DESPORTIVO

No contexto português, o fenómeno desportivo (futebol) funciona como elemento catalisador de afiliação, dedicação e paixão clubística, responsável pela generalidade das atenções que são, diariamente, conduzidas para os clubes. Esta realidade, que é partilhada pela esmagadora maioria dos emblemas que competem nos escalões profissionais do futebol português contribuíram, decisivamente, para construção da opinião pública veiculada no exterior da organização.

O dirigente desportivo está, atualmente, emparedado numa panóplia de temáticas, que não domina, mas que estão indelevelmente associadas à atividade desportiva e sobre as quais os adeptos esperam (e muitas vezes desesperam por) um posicionamento. Um dos problemas deste território é, pois, a sua (falta de) delimitação, dado que a multidisciplinaridade que o envolve levanta questões de natureza metodológica importantes para a sua sistematização.

Neste sentido, Manuel Queiroz (2009:13) considera que “a modernização do desporto – e da informação que gera – advém da sua transversalidade e da ligação que estabelece a outros campos científicos, como o Direito, a Economia ou a Saúde, que exigem outra preparação aos jornalistas” e, por conseguinte, a todos os outros atores.

Imagem 2

Além desta transversalidade, o dirigente desportivo está atualmente ciente que se move num ramo de negócio que, contrariamente a muitos outros, vive à base das emoções, tem ciclos de avaliação muito próximos (entre jogos) e têm de lidar com exposição mediática incomparavelmente superior a todos os outros sectores de atividade resultante da parafernália de jornais e sites especializados em futebol, programas de debate, blogs e, ainda, secções em todos os jornais generalistas. Para Hugo Gilberto e Manuel Fernandes Silva (2009:7) a comunicação em desporto é um produto multidisciplinar que tem de conviver com “erros de arbitragem, declarações de dirigentes, contacto com claques, blackouts e, ainda, com protagonistas que lidam de forma negativa com as notícias”.

Todo o processo comunicacional, tal como a própria formatação da mensagem, atualmente, é preparado à lupa, por profissionais especializados de forma a que o acompanhamento dos públicos externos seja um elemento definidor de notoriedade e, ao mesmo tempo, diferenciador no mercado mediático e publicitário. Assim sendo, optou-se por escalpelizar cinco princípios que devem ser tidos em conta pelo dirigente desportivo no que concerne à implementação de uma estratégia de comunicação: definição de objetivos, suportes de comunicação, definição de target, análise SWOT, definição de mensagem e cronograma de atividades.

OBJETIVOS

A definição de objetivos é um dos primeiros passos de qualquer campanha integrada de comunicação e serve, segundo Winters e Goodman (1984, p. 124), para determinar o caminho a trilhar durante a ação, devendo, por isso, estabelecer itens mensuráveis e quantitativos que, posteriormente, permitam uma avaliação eficaz.

Todo este processo inicial, que confere objetivos gerais à iniciativa, representa os alicerces em que vai assentar todo o plano e parte, invariavelmente, de uma análise contextualização rigorosa e pragmática ao espectro económico-social, à concorrência e, sobretudo, à performance da marca (resultados desportivos). Por outro lado, os objetivos específicos são passíveis de concretização num determinado eixo temporal, com um custo associado, e permite a associação da comunicação aos resultados financeiros obtidos (Castro, 2002).

Se em qualquer outro sector de atividade, que não tem associado uma carga emocional tão vincada este procedimento obedece já a um conjunto de alíneas significativo, no caso do futebol profissional, que vive muito do espectro sentimental, este tende a ser ainda mais complexo e está, invariavelmente, associado ao desempenho desportivo da equipa e aos tais ciclos curtos de avaliação. A idealização de um plano integrado de comunicação no futebol profissional não pode, por isso, descurar o contexto que o clube atravessa porque pretende, invariavelmente, manter ligada à sua falange de apoio e, posteriormente, fazê-la comungar dos ideais pretendidos.

SUPORTES DE COMUNICAÇÃO

Os clubes de futebol são, na sua grande maioria, empresas cujo alcance ultrapassa largamente as margens do país onde competem, devido uma legião de sócios/adeptos que, graças às plataformas digitais de comunicação, acompanham e participam no seu quotidiano.

Neste sentido, e de forma a responder eficazmente aos desafios lançados pela digitalização, os clubes estão, atualmente, dotados com uma panóplia de ferramentas que permite criar e manter lanços com os seus públicos de interesse como são website institucional, contas verificadas nas principais plataformas digitais de comunicação (Youtube, Facebook, Linkedin, Twitter, Instagram e TikTok), canais de televisão, newsletters, revistas ou jornais. Além de todos estes instrumentos de comunicação controlada, os protagonistas têm, ainda, de lidar com conferências de imprensa, flash-interviews e entrevistas one-to-one.

Contudo, o contacto direto com os associados/simpatizantes continua a ser fundamental para uma franja considerável do target. Por isso, um plano de comunicação que exalte as potencialidades destas plataformas permite, em primeira instância, marcar a agenda de informação, abranger todo o universo que segue a marca e, por fim, agir eficazmente perante as necessidades dos públicos.

Imagem 3

DEFINIÇÃO DE TARGET

Do inglês “Target”, significa “alvo”, mais precisamente o público-alvo que a organização pretende atingir.

A definição do target é um factor primordial na definição da Estratégia (de marketing e comunicação) do clube, sendo importante que a divulgação da nossa oferta seja realizada às “pessoas certas” para obter mais resultados e reduzir os custos. Deve-se, assim, pesquisar, delimitar o público, destacar a oferta e observar, para se poder definir a Estratégia de Comunicação.

Os serviços desportivos encontram-se projetados diretamente para os sócios que, apesar de fazerem parte do público-alvo, têm personalidades e ideias muito diversificadas. Importa, neste sentido, perceber a relação que se quer estabelecer entre clube e adepto/sócio, nomeadamente no que toca às campanhas promovidas para fidelizar de novos adeptos e, por conseguinte, torná-los sócios ativos e integrá-los no quotidiano da instituição. O objetivo é, então, captar público maioritariamente jovem para criar uma ligação longa e fidelizar aqueles que já são sócios do clube.

ANÁLISE SWOT

A Análise SWOT é uma ferramenta utilizada para traçar um diagnóstico de uma empresa ou organização, e que, através da exploração dos seus pontos fortes e fracos, permite agir eficazmente ao nível da gestão e do planeamento estratégico. Esta análise permite, a quem a coloca em prática, uma perceção correta de todo o contexto que norteia a organização, já que, na sua génese, contempla o ambiente interno (forças e fraquezas) e externo (oportunidades e ameaças). As forças e fraquezas são determinadas pela posição atual da empresa e relacionam–se, quase sempre, com fatores internos. Já as oportunidades e ameaças são antecipações do futuro e estão relacionadas a aspetos externos.

O ambiente interno pode ser controlado pela empresa, uma vez que resulta, quase exclusivamente, de estratégias de atuação definidas pelos seus elementos. Desta forma, e durante a análise, quando é percebido um ponto forte, este deve ser ressaltado ao máximo. Ao invés, perante um ponto fraco, a organização deve agir para controlá-lo ou, pelo menos, minimizar seu efeito. Já o ambiente externo está mais fora do alcance da organização. Ainda assim, apesar de não poder controlá-lo tão eficazmente, a empresa deve conhecê-lo e acompanhá-lo com frequência, de forma a aproveitar as oportunidades e evitar as ameaças.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

O timing é um dos aspetos mais importantes aquando da aplicação de um plano de comunicação empresarial eficaz. É necessário ter em consideração diversos fatores que poderão afetar a compreensão por parte do público-alvo, da nossa estratégia, que possam colocar em perigo a sua implantação e, em último caso, fazer com que os nossos públicos reajam com aversão às nossas propostas. O melhor exemplo deste princípio são as campanhas de angariação/renovação de associados que são, invariavelmente, lançadas no início das épocas, altura em que os adeptos têm mais esperança em bons resultados desportivos.

Imagem 4

CONCLUSÃO

O futebol há muito que saltou as linhas que delimitam o campo e é hoje um fenómeno social à escala planetária que apenas encontra paralelo em pontos do globo muito específicos com raízes culturais profundas.

Assim sendo, as instituições desportivas e, por conseguinte, os seus líderes têm estratégias cada vez mais direcionadas para as massas, confirmando, de resto, a premissa de que o futebol é um evento social e uma modalidade de excelência. Este é, contudo, um mercado muito específico onde, por exemplo, o conceito tradicional de concorrência, pura e dura, não existe, contrariamente ao que se verifica noutros sectores de atividade. Os adeptos/sócios não mudam de clube, estão fidelizados e o grande desafio do dirigente é criar condições para que o relacionamento não esfrie e, dessa forma, rentabilizar financeiramente a ligação levando, por exemplo, à compra de lugares anuais, equipamentos, merchandising, etc.,

Com a realização deste artigo, apresenta-se um conjunto de linhas orientadoras para o dirigente desportivo implementar uma estratégia de comunicação eficaz num emblema do futebol profissional. Esta proposta começa com a caracterização do ecossistema do futebol profissional, onde são exaltadas as especificidades ramo de negócios e a caracterização dos principais seguidores do clube. Feito o diagnóstico, passa-se aos alicerces que devem monitorizar um plano de comunicação integrado, e que engloba definição de objetivos, suportes de comunicação, definição de target, análise SWOT, definição de mensagem e cronograma de atividades.

Os novos formatos das competições europeias, a centralização dos direitos televisivos e a mais do que provável participação de emblemas em competições além-fronteiras são os desafios que se avizinham para os dirigentes desportivos que, perante este novo oásis de receitas, terão de se reajustar e refazer os planos operacionais de comunicação sob pena de perderem o comboio e, por conseguinte, deixarem escapar receitas importantes para a consolidação dos seus projetos desportivos.

Imagem de capa: https://soccerbo.com/wp-content/uploads/2024/01/ufjhp- tkweh-1200×686.jpg

Imagem 1: https://goalpoint.pt/wp-content/uploads/2023/02/Futebol–digital-1200×675-1.jpg

Imagem 2: https://soccerbo.com/wp-content/uploads/2024/10/qpfbrsetj- j-1200×686.jpg

Imagem 3: https://soccerbo.com/wp-content/uploads/2023/12/ogyszhtc- nm.jpg

Imagem 4: https://media.torcedores.com/wp-content/uploads/2023/11/ futebol-virtual-bet365.jpg

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Em volta daquela mesa

Por: João Batista Freire

Quando acabou meu futebol de menino, acabaram também minhas esperanças de me tornar profissional de futebol. Tive que trabalhar e o esporte possível era o de finais de semana. Insisti com o Atletismo, até que fui trabalhar com formação de jovens para esse esporte. Anos depois voltei ao futebol de várzea nos finais de semana. Meu time era de veteranos, gente com mais de 40 anos. Gente que só esperava o apito final para correr ao bar mais próximo, arrodear uma mesa e enfeitá-la com garrafas de cerveja. E aí começava o terceiro tempo, nosso melhor jogo, o tempo da falação. Aí a gente crescia enquanto voltávamos a ser meninos. Se o placar fosse adverso, e isso era frequente, nós o invertíamos com os argumentos da injustiça, das bolas na trave, do juiz comprado, dos gols perdidos, do domínio da bola, da pancadaria do adversário, do sol muito quente, do estado do gramado (que nem sempre existia), da diferença de idade.

Ríamos de nós mesmos, ríamos das mentiras deslavadas, das narrativas distorcidas. Os goleiros praticavam defesas naquela mesa de cervejas nunca vistas nos melhores clássicos do Maracanã. E a coisa crescia, as proezas germinavam ao sabor do líquido frio que massageava a garganta seca. “Viu como deixei o lateral esquerdo naquela descida? Deu até pena.” O campo de futebol é o único local em que se sobe ou se desce no plano. E tome de contar histórias, e tome de inventar um outro jogo, um jogo que nunca aconteceu antes de sentarmos naquela mesa, um jogo maravilhoso que nos transformava em heróis de nós mesmos, heróis sem troféus, sem medalhas, sem glórias e sem remuneração. Algo que escapa à maioria das pessoas é que o futebol não se resume aos 90 minutos de 22 jogadores perseguindo a meta adversária. O futebol transcende as quatro linhas e prossegue nas mesas de bares, nos debates pelo rádio e TV, nos intervalos do trabalho, no interior das famílias. Todo jogo de futebol tem muito mais que 90 minutos.

Aquela mesa de bar enfeitada por garrafas de cervejas era sagrada. Quantas vezes não chegamos atrasados à missa de domingo, ao almoço com a família, à bilheteria do cinema, para não faltar ao compromisso de nosso tão querido terceiro tempo, o tempo que nos tornava possíveis. Fazer o quê, éramos apenas meninos grandes, meninos inocentes que cresceram, mas não deixaram de ser meninos. Por vezes, em volta daquela mesa, fomos o melhor de nós mesmos.


Foto: Bruno Doro/UOL Esporte

Categorias
Sem categoria

O planejamento no futebol com uma visão integral e humanizada dos alunos/atletas

Por: Denise Lemos Fernandes

O planejamento no futebol vai muito além da organização tática e física das equipes. Quando concebido com uma visão integral e humanizada, ele se torna um instrumento poderoso para a formação não apenas de atletas, mas de indivíduos preparados para os desafios dentro e fora de campo. A partir da experiência adquirida no desenvolvimento de metodologias para categorias de base e na elaboração de guias para treinadores, compartilho aqui uma abordagem que busca equilibrar o desenvolvimento técnico, tático, físico e emocional dos jogadores.

A BASE DO PLANEJAMENTO: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Para que o planejamento seja eficaz, é essencial que ele contemple o desenvolvimento técnico e físico dos atletas. A preparação deve priorizar o fortalecimento da potência, força e velocidade, garantindo que os jogadores estejam prontos para as exigências do futebol moderno. Exercícios que simulam situações reais de jogo, treinos de explosão muscular e atividades de resistência são fundamentais para o crescimento esportivo. Mais do que aprimorar a parte física, é necessário criar desafios que incentivem a rápida tomada de decisão e a adaptação a diferentes cenários dentro de campo.

Outro ponto essencial no planejamento é o comprometimento e a pontualidade. Criar uma cultura de responsabilidade dentro da equipe significa estabelecer padrões elevados de disciplina e organização. Isso se traduz em treinamentos bem estruturados, respeito aos horários e à programação, o entendimento de que cada detalhe influencia diretamente na performance coletiva. Pequenas ações, como reuniões pré-treino para alinhamento dos objetivos diários e reflexões pós-treino sobre o desempenho, ajudam a consolidar essa mentalidade.

Além disso, a construção da equipe e a identidade de jogo são aspectos determinantes. Para formar um grupo coeso e estratégico, é fundamental que cada atleta compreenda seu papel dentro do modelo adotado. Trabalhar a coletividade, promover interações constantes entre os atletas e estimular a comunicação são estratégias eficazes para potencializar a coesão tática. O uso de pequenos desafios em grupo, dinâmicas de confiança e jogos reduzidos com regras específicas são formas de integrar e reforçar os princípios que nortearão a equipe dentro das partidas.

ESTRUTURA DAS SESSÕES DE TREINO

A estrutura das sessões de treino deve ser adaptada às diferentes faixas etárias, respeitando o nível de maturação dos atletas. Para crianças de 4 a 7 anos, as atividades devem ser lúdicas e estimulantes, priorizando a coordenação motora e o contato inicial com a bola. Jogos como “rouba bandeira” e desafios simples ajudam a desenvolver habilidades motoras e a criar uma relação prazerosa com o futebol.

Dos 8 aos 11 anos, as sessões devem começar a introduzir conceitos básicos de tática e posicionamento, sem perder a essência divertida do jogo. Exercícios como triangulações, passes curtos e longos e finalizações começam a ser incorporados, garantindo que os atletas desenvolvam habilidades técnicas fundamentais. Na faixa etária dos 12 aos 15 anos, o treinamento se torna mais específico, com ênfase na tomada de decisão e na leitura de jogo. A transição entre setores, marcação e compactação são trabalhadas com mais intensidade. Jogos reduzidos 5×5 e 7×7 com objetivos específicos ajudam os atletas a pensar estrategicamente dentro do campo.

A partir dos 15 anos, o foco se amplia para a consolidação da identidade do jogo, com ajustes táticos refinados e treinos voltados para a alta performance. Sessões que simulam situações reais de jogo e desafios técnicos que exigem inteligência tática são essenciais para preparar os atletas para a competitividade do futebol profissional.

Imagem 1

A DINÂMICA DO CUBO MÁGICO: UMA METÁFORA PARA O DESENVOLVIMENTO

A Dinâmica do Cubo Mágico é uma das estratégias aplicadas nos treinamentos para reforçar a importância da organização, do trabalho em equipe e da adaptação às mudanças. Durante os treinos, os atletas são divididos em pequenos grupos e recebem um desafio: organizar cones de maneira estratégica, simulando a lógica de um cubo mágico. Por exemplo, cada jogador pode mexer em uma peça do cubo e precisa encontrar a melhor forma de encaixar dentro da estrutura. O exercício estimula a leitura de jogo, a comunicação eficiente e a rápida tomada de decisão. Além disso, a relação entre a dinâmica e o jogo formal se dá na necessidade de ajustar constantemente a posição e a estratégia para alcançar um objetivo comum, reforçando conceitos de compactação, movimentação e transições rápidas, seja para atacar ou defender.

Essa abordagem permite que os atletas desenvolvam raciocínio lógico, resiliência e a capacidade de solucionar problemas sob pressão. Ao compreender que cada peça do cubo mágico tem uma função específica e que todas precisam trabalhar juntas para formar a estrutura ideal, assimilam a importância do coletivo no futebol.

Esse entendimento é transferido para o jogo formal, onde o sucesso da equipe depende da conexão entre os setores e da inteligência tática aplicada em tempo real.

A VISÃO HUMANIZADA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO

O futebol deve ir além da preparação esportiva, incorporando elementos que fortaleçam a identidade e o crescimento pessoal dos atletas. O uso de textos e livros como A Boa Sorte, que trabalha a construção estratégica e a resiliência, e A Arte da Guerra, que reforça conceitos de planejamento e adaptação, permite ampliar a visão dos jogadores sobre o esporte e a vida. Além disso, textos de Rubem Alves incentivam a reflexão sobre aprendizado e criatividade, promovendo um ambiente de treino mais estimulante e significativo.

Para consolidar essa abordagem, os atletas são incentivados a realizar tarefas diárias/semanais/mensais, como reflexões sobre seus pontos fortes e áreas de melhoria, e a participar de discussões sobre leituras que estimulem a tomada de decisão e a resiliência. O uso de um formulário personalizado pode ajudar a entender melhor seus objetivos, motivações e desafios, garantindo um acompanhamento individualizado e promovendo um crescimento contínuo.

Imagem 2


PLANEJAMENTO COMO DIFERENCIAL COMPETITIVO

Um planejamento bem estruturado impacta diretamente o desempenho da equipe. A organização em blocos de tempo dentro dos treinos permite otimizar a aprendizagem sem comprometer a intensidade. Além disso, a inclusão de espaços para feedback e a adaptação constante das atividades garantem que cada jogador possa evoluir dentro do seu ritmo.

CONCLUSÃO

A formação de um atleta deve ir além do aprimoramento técnico/tático e físico. O estudo contínuo sobre o jogo, aliado à busca por conhecimento em diferentes áreas, amplia a compreensão do esporte e potencializa a tomada de decisões dentro de campo. Compreender a teoria, refletir sobre o próprio desempenho e buscar novas referências são atitudes que diferenciam os grandes jogadores e treinadores.

Além do conhecimento tático e técnico, o fortalecimento dos laços de afetividade dentro da equipe é essencial. O ambiente de treino deve ser um espaço de trocas, aprendizado e cooperação, onde o respeito e a empatia são incentivados diariamente. Relações sólidas e saudáveis dentro do grupo favorecem a evolução coletiva e criam um ambiente propício ao desenvolvimento humano.

Dessa forma, ao promover uma abordagem integral e humanizada no planejamento esportivo, contribuímos para a construção de indivíduos mais preparados, conscientes e comprometidos. O verdadeiro legado do futebol não está apenas nos títulos e conquistas, mas no impacto que ele gera na vida daqueles que o vivenciam com dedicação e paixão.

Imagem 1: https://cdn.futbollab.com/storage/blog/seo/blog—preven-cion-de-lesiones-de-isquiotibiales.jpg

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Um dia nosso futebol foi brasileiro

Por: João Batista Freire

Um dia tivemos um futebol livre, alegre, independente. Um dia que começou quando crianças e jovens pobres, pretos e brancos, das periferias das cidades brasileiras, tiveram contato com o futebol vindo da Inglaterra e de outros países europeus. Estávamos no começo do século XX. Esses mesmos brasileiros, quase sempre reprovados e excluídos do sistema de ensino oficial, considerados incapazes de aprender, passaram, não só a brincar com essa nova modalidade, mas a criar um outro jeito de jogar futebol. Por não poderem frequentar os grandes clubes, por não sofrerem a influência do modo de jogar dos ingleses, e por não serem controlados por professores e técnicos, brincaram de futebol ao modo deles, transformaram o futebol em uma brincadeira de jogar com qualquer tipo de bola em qualquer terreno possível. Essa gente considerada incapaz de aprender, eternamente esmagada pelo peso da cultura discriminatória europeia, não só era capaz de aprender bem, mas até de reinventar o grande e nobre esporte que encantava as elites brasileiras. E o austero futebol inglês, o sofisticado esporte bretão, virou, nos pés de nossos meninos pobres, o futebol brasileiro.

O futebol brasileiro, que por tantas décadas encantou o mundo, nasceu em um espaço que escapou ao mundo colonializado. A colonialidade é o fenômeno de submissão de um povo ao poder dos povos colonizadores – de modo geral, países do Norte global -, e preenche o espaço deixado pela colonização, quando a submissão é imposta fisicamente, presencialmente, como ocorreu no Brasil português e na América Espanhola durante séculos. Ter proclamado a independência não livrou os povos da América do Sul, assim como os da África, das imposições aos modos de pensar, de falar, de se comportar, de comer, de ouvir e assim por diante. A colonialidade se impôs onde antes havia colonização. Todos os dias, quando nossas crianças vão às escolas, os antigos colonizadores, com suas culturas atuais de povos do Norte global, invadem suas mentes através dos currículos escolares, que possuem, todos eles, em seus núcleos, as insinuações invisíveis dos antigos colonizadores. O mesmo ocorre quando ligamos nossos aparelhos de TV, quando vamos aos fast-foods ou quando abrimos nossas redes sociais. No entanto, aqueles meninos pobres das periferias das nossas cidades, por serem excluídos do nobre esporte bretão, puderam brincar com ele sem as pressões do chamado primeiro mundo. Ou seja, puderam jogar futebol como brasileiros. Aprenderam tão bem que superaram os inventores do futebol inglês. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa; depende do modo de ensinar e de aprender. Deslocaram o foco da aprendizagem para aquele que aprende, ao passo que, nas escolas, o foco está em quem ensina.

Com o passar das décadas o futebol brasileiro incomodou sobremaneira os europeus. A partir do início dos anos 2000, ele foi sendo solapado por influências europeias e econômicas e está, atualmente, em extinção. Disso já tratei em outro texto que publiquei na Universidade do Futebol (A assepsia da arte de jogar futebol). O resultado aí está: preferimos assistir aos jogos das ligas europeias – e até da liga árabe. Nossas crianças pedem aos pais para comprarem camisas de ídolos de clubes europeus. Não há jogador jovem de destaque no Brasil que não seja negociado com clubes europeus (às vezes para países árabes ou norte-americanos). Nossos técnicos (com algumas exceções), preferem seguir os esquemas rígidos dos técnicos de clubes europeus a serem criativos e jogar ao modo brasileiro. Nossos craques, quando entram em campo, não conseguem representar o futebol brasileiro; jogam um futebol europeu, não conseguem mais ser brasileiros e ficam perdidos em campo.

Mas não bastam as críticas. Criticar é fundamental, mas, no mundo do esporte, apontar soluções é sempre mais interessante.

Não só os esportistas, mas todas as pessoas do mundo, aumentam suas chances de sucesso quando têm oportunidades de agir como elas mesmas. Somos pessoas únicas, originais. Nossa educação deveria nos orientar para sermos cada vez mais nós mesmos. Não se trata de uma proposta individualista, pelo contrário; quando somos cada vez mais nós mesmos, nos tornamos cada vez mais diferentes uns dos outros. E só pessoas diferentes podem realizar trocas ricas. Só pessoas diferentes têm o que trocar. Uma sociedade rica, democrática, deve ser feita por pessoas cada vez mais diferentes. As chances de sucesso de João são tão maiores quanto mais João puder ser João. Isso é válido para qualquer pessoa. Portanto, o futebol brasileiro terá tanto mais chances quanto mais puder ser brasileiro. E ele já o foi um dia, criado pelos meninos pobres das periferias das cidades brasileiras. Não é loucura aspirar a volta do futebol brasileiro, não como já foi um dia, mas inspirado por ele e do modo como poderia ser hoje. Não é loucura, é sanidade.

E como fazer para voltarmos a ter um futebol brasileiro? Há muitos obstáculos, é evidente. Basta ver como a imprensa desportiva trata aqueles técnicos que buscam esse modo de jogar futebol. Serão muito mais cobrados que aqueles que buscam as formas tradicionais, seguras, fundadas na ideia de não perder, no sentimento de medo. Um futebol fundado na alegria, na diversão, no lúdico, é muito mais arriscado. Aqueles que buscam esse caminho são mais cobrados, menos perdoados quando perdem, às vezes massacrados e até encerram suas carreiras por falta de oportunidades.  

Não se trata de saudosismo. Esse futebol inventado pelos brasileiros constitui um saber considerável, um saber que está guardado nas memórias dos que o viveram e dos que conseguem ter contato com ele por diversas formas. Esses que viveram esse futebol, não necessariamente possuem belos discursos a esse respeito, e por isso não são reconhecidos por quem só considera a linguagem culta, acadêmica. São discursos proferidos na linguagem de quem viveu a prática, porém, acolhedores de um saber profundo, que pode ser resgatado e inspirador de modos de educar para o futebol e para a vida. Portanto, promover um ensino do futebol, hoje, fundado nos saberes do futebol inventado pelos brasileiros, e pelo ponto de vista de quem vai receber essa educação, é plenamente viável.

Sem dúvida, o mais forte motor desse futebol brasileiro é o lúdico, porque ele foi inventado em brincadeiras de crianças e adolescentes. Foi do lúdico que ele surgiu, tendo como modelo o futebol que já se praticava em vários países europeus e, em seguida, nos clubes de elite do Brasil. E por qual motivo o lúdico tem esse poder criativo de forjar, a partir de um modelo europeu, um futebol tipicamente brasileiro? Que força tem esse lúdico? Todos os que lerem este artigo foram ou ainda são pessoas brincadoras. Quando crianças provavelmente eram mais brincadoras que hoje. Se revirarem suas memórias perceberão o quanto já criaram enquanto brincavam, quantas coisas inventaram, quantas brincadeiras foram modificadas, recriadas. Porém, para a ideologia conservadora do futebol, que preconiza a eliminação do risco, que tem o medo como referência, o não perder como estratégia, o defender mais que o atacar, a rotina em vez da criatividade, o lúdico é um fantasma a ser evitado. Sei que é difícil definir o que é o lúdico, mas, sem dúvida, fazem parte dele o mistério, o risco, o imprevisível, a graça. Que graça tem um jogo de cartas marcadas?

É mais viável vivenciar o risco no ambiente lúdico que no ambiente de rotina, de tarefa, de trabalho. Quando nos pomos a executar uma rotina de trabalho, nosso compromisso é quase que exclusivamente com quem exigiu a tarefa, portanto, o compromisso é com algo externo a nós. Por outro lado, quando realizamos ações lúdicas, isto é, quando jogamos, não há compromisso com algo externo a nós. Sem contar com o fato de que o jogo é, em seu núcleo, uma simulação, um faz-de-conta, portanto, as consequências do erro não são graves, não há punição, porque não é necessário prestar contas fora do jogo. No caso do futebol profissional, como em qualquer esporte profissional, as ações comportam um misto de lúdico com trabalho, uma vez que os jogadores são contratados, recebem remuneração para jogar, precisam prestar contas do que fazem. Porém, há a parte lúdica, uma vez que futebol é um jogo, e todo jogo é lúdico. Por mais que o jogador tenha que prestar contas de suas ações, ele é envolvido nessa atmosfera lúdica que lhe permite, como uma criança, correr riscos de errar sem o peso das punições face aos erros cometidos no trabalho. Os treinadores de futebol precisam compreender o significado do lúdico no jogo de futebol e explorar esse fator em treinamentos e partidas. Os jogadores precisam ser convencidos a jogar, ao passo que certos esquemas de futebol os obrigam a apenas trabalhar.

É preciso, portanto, criar, nos treinamentos, um ambiente lúdico; sem abandonar, claro, o ambiente de trabalho. Os dois não são incompatíveis. Só no ambiente lúdico os jogadores serão capazes de ousar, de ir um pouco além do habitual, de se arriscar, de se divertir brincando de jogar bola. Só nesse ambiente lúdico serão capazes de se preparar para não abandonar o lúdico enquanto cumprem a tarefa de disputar partidas contra adversários. Portanto, nessa mistura de lúdico com trabalho, que é o jogo de futebol, é o lúdico que permitirá ao jogador a audácia de correr riscos ao lidar com o imprevisível (há outras ocasiões em que o ser humano corre riscos, e até extremos, fora do lúdico, mas não é nosso tema aqui).

É muito difícil definir as características do jogo. No entanto, não há jogo sem a presença do lúdico e do imprevisível. Como qualquer outro jogo, o futebol é um território de imprevisibilidades e de ludicidade. Quem pratica futebol somente por profissão, nunca terá a oportunidade de jogar e será incapaz de lidar adequadamente com o imprevisível durante uma partida. No mundo do trabalho evita-se o risco, teme-se o imprevisível. Porém, no mundo do lúdico, o modo como encaramos o que chamamos de responsabilidade, muda. É como se, no mundo do lúdico, tudo pudesse sempre começar de novo quando algo desse errado. E isso é verdade no jogo. Por pior que seja o resultado, outros jogos existirão em seguida e tudo poderá ser retomado.   

Aos saudosistas do futebol arte do Brasil, dos tempos em que tínhamos o melhor futebol do mundo, do futebol que parecia com a brincadeira de jogar bola na rua, posso adiantar que esse tempo não voltará. Mas o modo como esse futebol foi criado está nas memórias de todos nós e pode servir de inspiração para reinventarmos novamente o futebol, tornando-o brasileiro. Os caminhos nós já conhecemos e eu tentei descrevê-los, ao menos parcialmente. É preciso recriar o ambiente lúdico nos treinamentos e partidas. Um jogador de futebol precisa, antes de mais nada, aprender a jogar e, em seguida, aprender a jogar futebol de maneira lúdica. A cada momento de uma partida, o imprevisível surge inevitavelmente. Não adianta lutar contra o inevitável, o caminho é aprender a lidar com esse imprevisível, e só o ambiente lúdico permite lidar bem com ele. Um jogador nunca saberá exatamente o que acontecerá no lance seguinte, mas, sem dúvida, será algo diferente de tudo que já viveu antes, por mais que guarde semelhanças. Para dar conta de algo, portanto, pelo menos parcialmente novo, ele terá que criar uma solução nova. Ou seja, terá que ser um jogador criativo. E onde se forma esse jogador criativo? Na brincadeira de jogar bola.

Categorias
Sem categoria

Futebol de rua e a importância da brincadeira

Por: João Batista Freire e Rafael Castellani

É praticamente impossível conhecermos uma criança que não goste de brincar. Para elas, tudo aquilo que é percebido como brincadeira, causa um efeito irresistível de experimentá-lo, de se deixar envolver. É tentador para toda, e qualquer criança, deixar qualquer coisa que esteja fazendo para se envolver com uma brincadeira. Essa tentação também é experimentada pelos adultos, no entanto, passam anos aprendendo a resistir a sedução da brincadeira. Fazem-no para se tornarem sérios e poder trabalhar, dar conta das obrigações, governar, obedecer. Tornam-se pessoas disciplinadas. Reservam, para a diversão, apenas momentos especiais. Mas brincar, cair na farra, é muito bom! De vez em quando esses adultos não resistem e quebram a disciplina, fogem às obrigações, distraem dos trabalhos… é como se, nesses momentos, entregassem o controle de suas ações ao jogo. É, esse tal de jogo, brincadeira, chamem do que quiser, é irresistível! começar pela raiz que justifica o mandato do Presidente da Confederação Brasileira de Futebol:

Houve um tempo, não muito longevo, que brincar de bola na rua era a principal diversão e passatempo das crianças. Brincava-se de golzinho, bobinho, altinha, rebatida e, quando a situação tomava ares de seriedade, até “jogo contra” a rua vizinha acontecia. Não que os videogames não tenham nada a ensinar às nossas crianças, mas nada se compara ao poder educativo de uma boa brincadeira de futebol na rua. E aprendia-se muito! É uma pena que as escolas de educação formal, e as “escolinhas de futebol”, não tenham se dado conta ainda do quanto a criança aprende brincando.

Parte do desinteresse que nossas crianças apresentam pela escola deve-se ao fato de não verem sentido e razão naquilo que ensinam. Mas, principalmente, pela forma com que cada conteúdo, relacionado à matemática, português, história, dentre outros componentes curriculares, é ensinado. É chato aprender. Sentados numa carteira por horas, sem poderem levantar-se, correr e rir, ouvindo e copiando “matéria” da lousa, é de se esperar que não gerem interesse nas crianças mesmo. Se fosse do jeito que as brincadeiras se mostram para elas, sem dúvida qualquer matéria escolar seria interessante, afinal, seriam coisas de crianças. E raramente uma criança é tratada como criança.

Até nas “escolinhas” de futebol crianças são tratadas, frequentemente, como miniaturas de atletas profissionais. Às vezes para satisfazer os interesses dos pais ou do mercado, às vezes por puro desconhecimento, é comum os professores das escolas de esporte reproduzirem os treinos realizados por atletas de alto nível ainda que, obviamente, respeitando critérios de complexidade e intensidade. O mesmo acontece em outros ambientes que fazem parte da vida da criança. É comum, na família, serem tratadas como protótipos de adultos projetados pelos pais, na escola, como projetos de adultos idealizados por este ou aquele grupo de adultos, na religião, idem.

E onde as crianças possuem mais liberdade para se expressarem como crianças? Na rua! Por isso, o futebol de rua é tão divertido, é tão atraente e gera tanta aprendizagem.

Acostumamo-nos à ideia de que, para aprender futebol atualmente, devemos nos recorrer às “escolinhas” de futebol ou às categorias de base dos clubes. Afinal, é nestes espaços que se encontram os “detentores” do saber (não à toa as escolas comandas por ex-atletas são muito procuradas). No entanto, pouco refletimos sobre a aprendizagem propiciada nestes ambientes. Via de regra, se reconhece que as crianças aprendem algo, sobre futebol, especificamente, fora da escola de educação formal ou escolas e clubes de futebol, mas pouco valor se dá à forma como aprendem nestes outros espaços. É como se educação sem mestre declarado não fosse exatamente uma educação, de forma que não poderia ser descrita. Ou seja, a ideia geral ainda é aquela, segundo a qual, quando aprendemos algo, é porque alguém preparado para ensinar nos ensinou.

A rua é entendida por nós como um espaço público de educação quando nos referimos a formação para a vida em cidadania, a vida coletiva, a vida política e social. Vale destacar, também, que a rua, conforme a entendemos, não se limita ao intervalo delimitado pelas calçadas e onde trafegam os carros e bicicletas, mas, também, as praças, praias, campinhos de várzea; é um ambiente no qual as crianças aprendem a jogar bola, independente da presença de um adulto ou professor, pois nela, eles brincam. E quando brincam, se divertem. Se interessam por aquela prática, pois ela lhe dá prazer. Brincar, para as crianças, é coisa séria!

A APRENDIZAGEM INEVITÁVEL E INCONTROLÁVEL DA RUA

Imaginemos um grupo de quatro crianças, dois meninos e duas meninas, entre quatro e cinco anos de idade brincando de “Copa do Mundo de futebol” na garagem da casa de uma delas. Vamos chamar esse espaço de rua, porque não é convencional, não há adultos ensinando crianças, tampouco há um currículo, livros didáticos, aprendizagem institucionalizada e outras características típicas da educação formal que se desenvolve no ambiente escolar.

Portanto, vale destacar novamente que a rua, tal como a abordamos neste texto, não se restringe a um espaço público, limitado por calçadas, onde circulam pessoas, automóveis, bicicletas… No espaço das crianças de nosso exemplo, há bolas, roupas, bonecos, caixas de papelão, chinelos (os gols) e outros objetos. Todas falam aqui e ali, a mais velha fala mais, pegam objetos, colocam em lugares combinados, tiram, colocam de novo, organizam os bonecos torcedores, os bonecos da imprensa, e começam a brincar de futebol enquanto uma delas passa a narrar o jogo durante o jogo. Difícil acompanhar e entender o que fazem; é tudo muito criativo e diversificado.

Aparentemente, imitam o que é feito pelos jogadores profissionais, mas não é igual. Tudo tem uma conotação mágica, os problemas são resolvidos rapidamente, as brigas, que ocorrem com frequência, dissipam-se, não restam mágoas, a brincadeira prossegue. Há algumas aprendizagens visíveis pela diminuição das dificuldades em realizar um gesto ou uma jogada, pelo entendimento das sugestões da criança mais velha, pelas imitações etc.

Mas isso não é tudo. Numa avaliação convencional, somente essas coisas visíveis poderiam ser solicitadas. Se deixarmos de lado hipóteses de avaliação, podemos aventar inúmeras outras aprendizagens não perceptíveis superficialmente, portanto, impossíveis de provas convencionais.

Em todo processo de formação de conhecimento, ou de aprendizagem, há uma maneira de formar o conhecimento ou de aprender. Na família, de modo geral, há imposições de comportamentos feitas pelos adultos em relação às crianças: “Não”, “Isso está errado”, “É melhor fazer assim”, “Você vai se machucar” etc. Na escola convencional, o processo é orientado por professores com autoridade para transmitir conhecimentos, seja pelo cargo que ocupam, seja pela formação acadêmica que possuem. Esses conhecimentos são previamente preparados, desde um currículo nacional até um plano de aula, e impostos aos alunos. Senão com a mesma severidade que ocorre em família, pelo menos com advertências igualmente rigorosas em relação às consequências da recusa ou do fracasso quanto à aprendizagem. Na rua, é outra coisa. Embora no grupo aqui considerado haja uma criança mais velha sugerindo, e até dando ordens, não há a mesma seriedade quanto a isso, nem da parte de quem sugere, nem dos mais novos. É um faz-de-conta, um tipo de jogo, onde tudo é de mentirinha. Portanto, a pressão do compromisso, típico da família, da escola e de qualquer tarefa obrigatória, não existe.

Até porque, no ambiente lúdico, o descompromisso com algo exterior aos jogadores é o fundamento. Na brincadeira dessas crianças, nada parece ser sério na visão dos adultos, nada parece ter utilidade. Portanto, é um jogo. Se não é útil, então, é jogo. Claro que estamos considerando o termo utilidade somente do ponto de vista da visão adulta utilitária. As consequências dessas brincadeiras para a formação de vida dessas crianças ainda estão longe de ser compreendidas por nossos pesquisadores.

Os riscos imaginários de tentar o novo e de criar em ambientes institucionais, como a família ou a escola, fazem as pessoas, boa parte das vezes, relutar, recuar, evitar enfrentar as novidades ou apresentar alguma criação. Mas no ambiente lúdico, até o medo é de mentirinha, e surge como desafio a ser enfrentado. No caso das crianças brincando de futebol, elas inventam um ambiente onde muitas situações podem ser criadas, dando margem ao enfrentamento de novidades e mesmo à provocação de novidades. São apenas quatro crianças, mas elas criam um ambiente que, além de lúdico, é fora das instituições reconhecidas pela sociedade como responsáveis pela educação das crianças, como a família e a escola. De certa maneira, trata-se de outro grupo social; um grupo que agora habita um espaço público, o que é bem diferente da família e da escola, embora com as restrições do insipiente desenvolvimento de crianças muito novas.

Mesmo considerando que o desenvolvimento moral e social dessas crianças é insuficiente, elas estão começando a habitar um mundo que não é mais o mundo privado. A literatura costuma descrever a entrada da criança no mundo público a partir do momento em que, segundo determinadas teorias, ela está madura, por volta dos seis a sete anos de idade. Mas isso não procede, porque não é algo que um dia começa, afinal, sempre esteve lá na criança, potencialmente.

Apenas que, enquanto amadurecem funções como a imaginação, a motricidade, as relações afetivas, a própria ampliação da motricidade e do pensamento, com a consequente ampliação do espaço de atuação, a criança entra em relação com outros que não os da vida privada. É o caso das crianças aqui descritas. Claro que estamos falando da sociedade de hoje; no mundo antigo, as relações, tanto em casa como fora dela, eram bastante distintas das atuais.

Também não nos referimos à vida privada e pública, familiar e social ou política dos adultos. Nosso interesse, neste momento, é exclusivamente em relação às crianças e sua passagem do espaço privado para o espaço público. Essa passagem para a vida pública, que no grupo das crianças aqui descritas, não distingue as meninas dos meninos, daí por diante ganha diferenças notáveis.

Especialmente quando nossa atenção volta-se, acima de tudo, para a educação da rua e, como decorrência, a Pedagogia da Rua, manda a tradição de nossa sociedade, que os meninos terão acesso menos limitado à rua que as meninas. E isso terá consequências dramáticas e, possivelmente, devastadoras. Entre elas uma sociedade definida e dirigida, por vezes, desastrosamente, pelos homens. Há um mundo a ser descoberto, porque negligenciado historicamente por nossas pesquisas. Um mundo habitado por crianças, em um espaço público que escapa à educação familiar e escolar, que ainda não foi compreendido. Possivelmente os grupos infantis constituem a sociedade mais precoce de nossas vidas. A formação para a vida pública deve começar nesses grupos, essas pequenas sociedades infantis, que ainda não compreendemos, porque não as estudamos.

A RUA NOS ENSINA MUITO MAIS DO QUE DRIBLAR, PASSAR E FAZER GOLS

A escola não é a Rua. Tampouco a rua é a escola. A rua é outro ambiente, com outra orientação, outro modo de fazer as coisas, e onde as relações se estabelecem de outra forma. Diferente. Nem melhor, nem pior. Aprender a controlar bem a bola em uma brincadeira de rua, não significa que fazer do mesmo jeito na escola levará ao mesmo resultado. Principalmente porque não será possível fazer do mesmo jeito. A Rua, isto é, o espaço de convivência de crianças (mas também de adolescentes e adultos em diversas situações), tem características irreprodutíveis.

Quando a prática da Rua vai para a aula na escola – por exemplo, uma brincadeira – ela é, ou deveria ser, pedagogizada. Significa que servirá a propósitos diferentes, porque a escola, ou qualquer outra instituição de ensino, tem compromissos com a sociedade fora dela mesma. Ela prepara conscientemente para uma vida em sociedade (mesmo que esse trabalho não seja bem-feito); a Rua não tem essa orientação. A brincadeira de Rua esgota-se nela mesma, é jogo apenas, isto é, aquele tipo de acontecimento que não tem qualquer compromisso além dele mesmo.

Isso não quer dizer que as aprendizagens da Rua não terão repercussões em diversas outras situações ao longo do tempo futuro, inclusive na escola. Porém, na Rua não há esse propósito, afinal, a Rua não é uma instituição cujos propósitos e ideologias estão declarados. Mais especificamente no caso do Futebol, quando o ensino é institucionalizado, tal como se busca fazer principalmente nas escolas de futebol e categorias de base dos clubes, é possível ocorrer uma orientação pedagógica totalmente desvinculada da cultura da Rua, assim como é possível também adotar uma orientação pedagógica que procura reproduzir a Rua ou tê-la como referência. Em parte, isso significa trazer para as aulas e treinos de futebol, seja nas escolas de esporte ou categorias de base dos clubes, o aspecto lúdico, sobretudo por seu caráter de diversão, de alegria e de prazer, e as questões afetivas que permeiam toda e qualquer prática social, neste caso, o futebol.

O prazer e a alegria de jogar futebol não estão presentes somente em crianças e jovens. Sim, está certo que é nesses períodos de vida que mais podemos brincar e nos divertir, mas não é porque crescemos e nos tornamos adultos que o futebol precisa se tornar algo maçante, chato, repetitivo e desprovido de alegria e divertimento. O que mais diverte crianças e jovens na prática do futebol: aguardar numa fila seu raro momento para dar um chute na bola ou brincar de rebatida? Driblar cones em direção ao outro lado do campo ou brincar de driblinho/golzinho na rua? E os adultos (e aqui vale considerar até mesmo os(as) atletas profissionais): quando correm em volta do campo para aquecer ou quando brincam de bobinho?

É comum vermos, independente da instituição/espaço na qual se ensina o futebol às crianças e adolescentes, cones dispostos simetricamente em filas para serem fintados ou driblados. Vale ressaltar que tal prática também é notada, com frequência, no âmbito do futebol profissional, com adultos. Diante destas circunstâncias, não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar a finta ou drible, não há tensão, não há diversão, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados.

Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue. Quando muito, resta, para quebrar a monotonia, uma ou outra fantasia que meninos e meninas produzam, intimamente, sem que ninguém saiba disso além deles mesmos.

Julgam os inventores da tal “pedagogia do cone”, que isso levará os praticantes ao conhecimento e desenvolvimento de determinadas ações técnicas relacionadas ao futebol, tal qual a finta, drible, condução, entre outras. Há método nisso, claro, mesmo que esse método não habite a consciência do inventor. Nada se faz sem método. Trata-se de um método de transmissão, pura e simples. Um professor ou treinador diz para um aluno ou atleta repetir o gesto de contornar os cones, porque, dessa maneira, o aluno/atleta repetidor aprenderá a conduzir a bola e driblar um adversário. O adversário, no caso, é o cone, e o repetidor terá que realizar um enorme esforço criativo (talvez consiga, talvez não) para imaginar que o cone é seu adversário. É esperado pelo inventor, ou mero reprodutor, da pedagogia do cone que, como resultado desses exercícios, os jogadores (repetidores), quando estiverem participando de um jogo contra um time adversário, possam aplicar o conhecimento de conduzir e fintar cones diante de pessoas de carne e osso.

Há algum sentido nisso? Com tal procedimento, os meninos e meninas aprenderão o difícil gesto de fintar e driblar adversários em jogos de futebol? Sim, é impossível que nada se aprenda agindo dessa maneira. Os pés dos meninos e meninas se ajustarão ao gesto, que ficará mais refinado. Há um objetivo nisso que orientará o modo de tocar a bola, de se ajustar a ela, de mantê-la sob controle enquanto a pessoa muda de direção etc. As repetições filtrarão o gesto, eliminarão resíduos e, ao final, algum conhecimento restará. Alguns dirão que o gesto técnico estará refinado! Ainda assim, de que forma se espera que crianças e jovens se envolvam em exercícios como esse? Com alegria e prazer? Ou com tédio e impaciência diante do “interminável” tempo de espera nas filas?

Porém, é bom que se esclareça: embora ocorra alguma aprendizagem a respeito da arte de fintar, driblar ou conduzir a bola, neste caso específico, essa arte se aplica, antes de tudo, aos cones, não às pessoas.

Considerando que cones são pouco semelhantes às pessoas, quando, no jogo, no lugar de cones houver adversários de carne e osso, a generalização desse conhecimento será, provavelmente, muito pequena, ou insignificante. Convenhamos que é bem diferente fintar um cone e fintar uma pessoa! Ou seja, de que adianta um(a) jogador(a) possuir uma técnica refinada para determinados gestos se este não poderá ser reproduzido no contexto do jogo?

Imaginemos agora outra situação: meninas e meninos aprendendo a fintar ou driblar pessoas. Uma professora propôs um jogo em que seus alunos serão incentivados a fintar ou driblar e conduzir uma bola durante uma prática muito divertida. Eles tentam fazer gols, mas há mais defensores que atacantes. E qualquer gol feito após uma finta vale o dobro.

Como difere esta situação da anterior, em que os praticantes (sejam eles crianças, adolescentes e até mesmo adultos que já praticam o futebol profissionalmente) tinham que conduzir a bola e fintar ou driblar cones, não é mesmo?! Os adversários não estão dispostos estaticamente em filas. O risco de perder a bola é permanente, os adversários não param de se movimentar, o tempo para agir é mínimo, a imprevisibilidade é a marca de todas as ações, a tensão é constante, mas, ainda assim cria diversão, há jogo, há alegria, há prazer. Os adversários são de carne e osso, não ficam inertes, dóceis e os gestos de quem vai fintar não podem ser previamente determinados.

Imaginemos, também, que, na mesma aula/treino, a criança viveu, não uma, mas dez ou quinze situações em que teve que enfrentar um adversário e decidiu fintá-lo. A cada vez, seus gestos, mesmo sendo semelhantes a gestos anteriores, não eram iguais. Não eram iguais, porque seus oponentes eram diferentes, a posição no espaço era diferente, as reações dos adversários eram sempre diferentes, e porque ela, a cada vez, mantinha uma relação estreita com o adversário, suas reações tornavam-se sempre diferentes.

Algumas vezes ela conseguia fintar, em outras não, e tudo isso se incorporava ao seu baú de repertórios, ao seu leque de oportunidades. Em uma única aula ela acumulou em seu repertório, talvez, centenas de novos movimentos, somente em relação à finta. Claro que todos esses movimentos guardam semelhanças, pois têm em comum o gesto mais geral da finta (ou drible), mas que, na vida de ações práticas, não existe; é apenas um esquema geral que une todas as ações de fintar, pois nunca um gesto para fintar será igual a qualquer gesto anterior.

Seguramente, a criança que fintava pessoas repetiu muito mais vezes o gesto de fintar, durante uma aula, que a criança que fintava cones, mas em ambas as situações, as repetições eram de caráter completamente diferentes.

Sob nosso entendimento, é muito mais significativo o enriquecimento das coordenações que formam a habilidade de fintar (ou driblar e conduzir a bola, por exemplo) quando se trata de fintar pessoas. Sem contar que consideramos apenas o plano das coordenações motoras.

Sequer discutimos (e isso deverá ser feito em outro momento), por exemplo, o plano afetivo, afinal, não é preciso ter coragem para fintar um cone, mas é preciso ter coragem para fintar uma pessoa. Um cone não dá medo, uma pessoa pode dar, e assim por diante. Tentemos traduzir em um exemplo aquilo que vimos buscando explicitar. Imagine uma menina, criança, de apenas nove anos de idade, chamada Cinara. Cinara tinha frequentado durante seis meses uma escola de futebol. Nessa escola de futebol, seus maiores oponentes eram cones. E ela aprendeu a fintar cones. Tornou-se exímia dribladora de cones. Mas Cinara pediu para deixar a escola de futebol depois do primeiro jogo contra a equipe de outra escola de futebol, pois ela não conseguiu driblar ninguém e nem marcou gols. Deu “tudo errado” e saiu do jogo chateada. Sua mãe ouviu falar de uma escola de futebol que as crianças adoravam e matriculou Cinara nessa outra escola. Ela começou a aprender a jogar futebol de outro jeito, não havia cones, parecia mais difícil, mas a professora inventava um monte de brincadeiras de driblar e as crianças se divertiam muito. Erravam bastante e, num primeiro momento, Cinara errava muito mais do que quando driblava cones, mas também acertava bastante. Quando foram fazer o primeiro jogo contra outra equipe, Cinara conseguiu driblar várias vezes e saiu muito feliz do jogo. Até hoje ela está nessa escola de esporte.

Quando a Cinara, ou qualquer outra criança, jovem ou adulto em fase de aprendizagem, conduz a bola durante o jogo e pára na frente do adversário, ela pode ter várias opções, mas tem um tempo mínimo para se colocar diante de tais opções e escolher a melhor. Isso não quer dizer que, conscientemente, colocará à sua frente todas as opções de gestos que acumulou. Trata-se de um processo quase que inteiramente inconsciente. Vamos supor que ela tenha escolhido como melhor opção fintar seu oponente.

Novamente, vale ressaltar, o adversário não é um cone, é uma pessoa e tem um tamanho diferente de todos os outros adversários. Seu oponente se mexe, ele não fica parado como um cone, e isso dificulta tudo. Cinara experimenta se mover para o lado direito, o adversário faz o mesmo e a cerca, ela volta, para, movimenta-se para frente e volta, imediatamente sai pela esquerda, pára, retrocede, avança pela esquerda de novo e consegue enganar seu(- sua) rival. Ao contrário do que ocorria quando tinha que driblar um cone, ela fez, não um, mas dezenas de gestos diferentes.

Teve êxito, mas poderia não ter tido. Mas se fracassasse, o enriquecimento de seu repertório para fintar, ainda assim, seria enorme. Cada gesto feito ficou guardado, como em um banco de dados. Nas próximas vezes em que ela tiver que enfrentar a situação de fintar, poderá recorrer a um repertório maior que nas vezes anteriores.

Vale ressaltar, entretanto, que o foco deste texto não é discutir se nos aquecemos melhor correndo em volta do campo ou jogando bobinho. Ou se aprendemos a driblar melhor passando por um cone ou jogando golzinho na rua, mas sim trazer para o debate a ideia de que tudo isso pode ser feito com alegria, diversão, prazer, ou seja, fazendo da prática do futebol uma experiência positiva, prazerosa e, consequentemente, duradoura. Como já antecipamos, o outro aspecto que gostaríamos de destacar, também ligado ao plano afetivo, refere-se aos desafios, medos, situações de sucesso e fracasso, que costumeiramente a rua nos ensina.

Certamente, realizar um drible em um adversário é muito mais instigante do que em um cone ou em um adversário invisível.

Executar uma finalização ou desarme com a cabeça a partir de uma bola cruzada da lateral e com a presença de um adversário é muito mais desafiador do que lançar a bola com as mãos para o próprio cabeceio. Marcar ou enfrentar a marcação de um jogador mais rápido, mais alto ou mais forte que você, lhe ensinará muito mais a lidar com o medo do que ser marcado por um cone. Ou seja, é certamente no contato com o outro, em situação real ou simulada de jogo, que esses aprendizados se dão de modo mais intenso e permanente.

Isso não significa que, automaticamente, tal tipo de aprendizagem se transfere para outras situações de vida. A rua não tem esse compromisso. Num primeiro momento, aquilo que uma criança aprende jogando bola, superando medos, fracassando e sendo bem-sucedida, vivenciando o êxito ou a frustração, restringe-se ao plano imediato das ações práticas do jogo. A repercussão dessas aprendizagens na vida fora do jogo e ao longo da vida, mantém-se como mistério; muito do que sabemos, especialmente no plano afetivo, não sabemos de onde veio.

Porém, a rua não tem compromisso pedagógico. A aprendizagem da rua é uma aprendizagem ligada ao que se vive; na rua, aprende-se a viver, vivendo. Porém, quando compreendemos o que se passa na rua e transpomos esses ensinamentos para as escolas ou clubes, começamos uma outra história.

A escola sim, tem compromisso com ensinar tecnicamente, de imediato, e também com a formação para a vida. Aquilo que a rua faz tão bem, a escola tem que fazer, pelo menos, razoavelmente. E aquilo que a rua não faz, a escola tem que fazer. O que os conhecimentos de cada prática transcendem a própria prática e se estendem a outros campos do conhecimento (por exemplo, a superação de desafios, a definição de estratégias se transferindo ao conhecimento matemático) são, em boa parte, componentes de nosso inconsciente.

Podem chegar a outros campos do conhecimento, mas não saberemos como, nem quando. Porém, essa educação da rua transformada em pedagogia nas escolas pode alimentar uma metodologia que produza tomadas de consciência. Aí sim, os conhecimentos tornados, ao menos parcialmente, conscientes, podem ser orientados para potencializar conhecimentos em outras áreas.

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Inteligência emocional: Um olhar sobre o futebol

Por: Maurício Rech

A população do Brasil lidera mundialmente em níveis de ansiedade, conforme apontam dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), o que se reflete diretamente no esporte. Atletas de futebol, expostos à pressão por resultados, às críticas da mídia e às expectativas de torcedores, enfrentam desafios emocionais intensos. Além disso, o uso excessivo de redes sociais e tecnologia tem sido identificado como um fator que contribui para o aumento da ansiedade entre os jovens brasileiros (45% dos casos de ansiedade entre jovens de 15 a 29 anos estão relacionados ao uso intenso dessas plataformas). De forma geral, a ansiedade elevada pode comprometer tanto o desempenho profissional quanto a saúde mental, causando déficit de concentração, tomada de decisões impulsivas e aumento do estresse competitivo. Nesse contexto, a inteligência emocional surge como um recurso valioso para ajudar atletas a lidar com essas demandas psicológicas e a encontrar equilíbrio mental nas suas rotinas.


A inteligência emocional é definida como a capacidade de reconhecer, compreender e gerenciar as próprias emoções, bem como de lidar com as emoções dos outros de maneira eficaz. No contexto esportivo ela desempenha um papel fundamental, especialmente em esportes coletivos como o futebol, em que as relações interpessoais e a gestão emocional são cruciais para o desempenho individual e da equipe.

Historicamente, a inteligência emocional foi incorporada ao mundo dos esportes de alto rendimento como uma ferramenta para aprimorar a performance dos atletas, indo além do treinamento físico e técnico. Estudos científicos na área esportiva mostraram que atletas com maior capacidade de gerir suas emoções tendem a lidar melhor com a pressão de competições, recuperam-se mais rapidamente de fracassos e constroem relações mais saudáveis com colegas e treinadores. Equipes de elite no futebol têm investido em programas psicológicos voltados ao desenvolvimento da inteligência emocional, utilizando psicoeducação e capacitação em saúde mental para integrar estratégias emocionais aos treinamentos. Popularizada pelo psicólogo Daniel Goleman nos anos 90, a inteligência emocional está alicerçada em cinco fatores principais: autoconsciência, autocontrole, motivação, empatia e habilidades sociais. Este conjunto de fatores está presente no cotidiano dos atletas de futebol de maneira integrada, tanto em treinamentos quanto em competições, por isso a necessidade de desenvolvê-los de forma consciente e adequada. Treinadores também utilizam esses conceitos para liderar seus times de forma assertiva e emocionalmente equilibrada, contribuindo para uma dinâmica de grupo mais saudável. Vejamos:

  • A autoconsciência permite que os jogadores identifiquem suas emoções e compreendam como elas influenciam o desempenho em campo. Por exemplo, um atleta que reconhece sua ansiedade antes de uma partida pode usar técnicas de respiração para se acalmar.
  • O autocontrole é essencial para gerenciar reações impulsivas, como a frustração após um erro, ajudando o jogador a manter o foco no jogo.
  • A motivação intrínseca é um dos principais impulsionadores de resiliência e superação, permitindo que os atletas estabeleçam metas claras e persistam mesmo diante de adversidades.
  • A empatia possibilita que os atletas compreendam as necessidades e sentimentos dos colegas, promovendo uma comunicação mais eficaz dentro do time.
  • As habilidades sociais garantem que os jogadores trabalhem bem em equipe, resolvam conflitos e fortaleçam os laços interpessoais, criando um ambiente harmonioso e cooperativo.

Por outro lado, a ausência ou falta de inteligência emocional entre atletas e treinadores pode gerar diversas dificuldades. Treinadores com baixos níveis de inteligência emocional frequentemente apresentam dificuldades em lidar com o estresse e as pressões inerentes ao ambiente esportivo, o que pode resultar em reações impulsivas, comunicação ineficaz e conflitos dentro da equipe. Em alguns casos, isso leva à perda de autoridade e à desmotivação dos jogadores. Já atletas com pouca inteligência emocional podem ter dificuldades em controlar emoções desagradáveis, como frustração ou ansiedade, o que pode impactar diretamente o desempenho em campo. Além disso, a incapacidade de lidar com derrotas ou situações adversas pode gerar queda de confiança, atritos interpessoais e até mesmo a deterioração do ambiente de trabalho em equipe.

A inserção da inteligência emocional no dia a dia dos clubes e atletas mostra-se cada vez mais associada ao crescimento integral do esportista e o sucesso das equipes, promovendo um ambiente capaz de lidar de forma mais equilibrada e funcional com derrotas e vitórias. Além disso, atletas emocionalmente inteligentes não apenas performam melhor em campo, mas também constroem uma carreira mais equilibrada e sustentável. A inteligência emocional, portanto, é uma aliada indispensável para transformar o futebol em uma experiência enriquecedora e bem-sucedida.

Maurício Rech tem formação acadêmica com Mestrado em Psicologia e Saúde e graduação em Direito, além de extensões nas áreas de Filosofia, Psicologia e Neurociências. Atua como professor, pesquisador científico e palestrante na área de Saúde Mental e Desenvolvimento Humano, integrando a área de psicoeducação aos seus trabalhos anteriores no esporte como advogado, agente e Diretor Executivo de Futebol Profissional e Categorias de Base.

Foto: Marcelo Cortes/CRF

Categorias
Sem categoria

Flow, atenção plena, coerência cardíaca e alto rendimento no futebol: A tríade do desempenho ótimo

Por: Ito Edson

Já foi referenciado, bastantes vezes, que o futebol está inserido em um sistema complexo e alcançar um desempenho de alto nível exige mais do que apenas habilidades técnicas e táticas. É necessária uma abordagem sistêmica para seu melhor entendimento, na qual vários fatores, em interação, podem melhorar o desempenho dos jogadores e das equipes.

O sucesso no campo depende, também, da capacidade mental e emocional dos jogadores, da forma como estão preparados para lidar com os vários momentos e problemas que aparecem ao longo da semana de vida e de trabalho, e durante os jogos. Cada situação com que o jogador se depara em campo, influencia a sua tomada de decisão. Podemos encontrar, como base na otimização do desempenho no futebol, a interseção entre três conceitos que consideramos sólidos e fundamentais na compreensão do mesmo, que são: o Flow Feeling, a atenção plena (mindfulness) e a coerência cardíaca.

O conceito de Flow Feeling, que se traduz na “imersão total no jogo (numa tarefa, em geral)”, foi introduzido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, e descreve um estado mental em que o jogador está completamente imerso nas tarefas a desempenhar durante a partida (movimentos, técnicas, etc.). Durante o flow, o atleta experimenta um foco intenso, a sensação de controle sobre suas ações e a perda da noção do tempo. Pensemos em um grande gol marcado de livre direto, apenas como exemplo. Um atleta em flow em uma situação de gol em livre direto, descreveria a ação em câmara lenta, com o ruído do público ao seu redor a silenciar-se, dar-se-ia conta de cada mínimo detalhe que aconteceu durante a marcação do livre, como se todos os sentidos do mesmo estivessem apenas voltados para essa ação. Seria como se “o mundo parasse” e o tempo abrandasse, apenas para marcar aquele livre.

A maioria dos atletas que descrevem casos de flow, referem-se a essas mesmas sensações, que se traduzem em momentos de elevado desempenho natural e fluido, onde o jogador reage instintivamente ms situações do jogo, as distrações desaparecem e o desempenho atinge a sua plenitude. Ele está totalmente conectado com o momento presente, o que é crucial para fazer passes precisos, tomar decisões rápidas e reagir eficazmente aos movimentos dos adversários. Um outro conceito da tríade a que nos referimos, é o de atenção plena, ou mindfulness, fundamental para um foco continuado durante uma partida de futebol

O mindfulness, que tem raízes na filosofia budista, estudado e disseminado na cultura ocidental por Jon Kabat-Zinn, é uma técnica que envolve treinar a mente para permanecermos conscientes de onde estamos e do que estamos fazendo. Observando pensamentos e sensações sem julgamento nem reações excessivas, reativas ou oprimidas pelo que está acontecendo ao nosso redor, ajuda m manutenção da concentração, em cada momento do jogo. É a capacidade humana de estar totalmente “no presente”. Esse foco exclusivo no momento, no jogo, ajuda o joga- dor de futebol a evitar distrações e preocupações, por exemplo, com o resultado final, com ações dos outros que não controla ou com os erros técnico-táticos cometidos pelo mesmo.

Praticar mindfulness ajuda a reduzir o estresse, a ansiedade, e outras sensações que podem prejudicar o desempenho em campo. Além disso, melhora a capacidade de foco tornando mais fácil a transição para o estado de flow feeling, anteriormente descrito. Ao estar consciente e focalizado no momento presente, o jogador pode responder melhor ms situações dinâmicas que acontecem durante o jogo e manter a calma sob pressão, um dos lemas conhecidos, dos famosos NAVY SEALs: “stay calm in chaos / mantenha-se calmo no caos”. Finalmente, em interação com os conceitos anteriormente descritos, o de Coerência Cardíaca, desenvolvido pelo Instituto HeartMath e que influencia, também, o equilíbrio físico e emocional do jogador durante a partida, pro- movendo uma melhoria do seu foco. É uma técnica de respiração que regula o ritmo cardíaco e ajuda a sincronizar o corpo e a mente.

Imagem 1
Imagem 2

Pode ser especialmente útil durante momentos de alta pressão ou esforços físicos intensos. Ao promover uma respiração regular e profunda, a coerência cardíaca reduz o estresse e melhora a atenção. Durante uma partida, a prática da coerência cardíaca pode ajudar o jogador a manter a calma em situações críticas, ou momentos decisivos, como em cobranças de pênalti, de escanteio, finalizações decisivas, alívios de bola, carrinhos, dribles, passes com elevado nível de dificuldade e perigo, provocações em campo e fora dele, entre outras. Isso permite uma melhor clareza mental e aumento do controle emocional, facilitando a execução do jogador e, consequentemente, o desempenho da equipe, mantendo elevada qualidade nas tomadas de decisão.

Estas três práticas dos conceitos que apelidamos, resumidamente, da tríade do desempenho ótimo, fazem parte de uma realidade sistêmica, na qual tudo influencia tudo, e servem, não apenas para aprimorar as habilidades técnicas e táticas, como referimos no início deste artigo mas, também, fortalecer a mentalidade e as emoções do jogador e, consequentemente, das equipes.

Antes, durante e depois dos treinos e jogos, o jogador pode utilizar técnicas para praticar estes métodos da tríade: Flow Feeling, Atenção Plena e Coerência Cardíaca, e assim obter benefícios que o ajudarão a identificar áreas de bom desempenho e outras para melhoria do mesmo, mantendo uma atitude construtiva, ao longo de todo o processo.

Foto capa: Twitter/Manchester City

Imagem 1: Jewel SAMAD/AFP

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

Categorias
Sem categoria

Incubadoras de atletas ou a transgressão dos direitos da criança e do adolescente

Por: João Batista Freire

Em 24 de setembro de 1990 o Brasil tornou-se signatário da Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU. O sofrimento das crianças durante as duas grandes guerras, especialmente na segunda, levou à iniciativa de reunir os países em torno da ideia de protegê-las dos maus tratos de vários tipos (bombardeios, exploração sexual, fome, desabrigo etc.), que resultou na elaboração da Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia da ONU, em 20 de novembro de 1959. Algumas boas medidas foram tomadas por alguns países mas, de modo geral, as crianças continuam sendo as maiores vítimas da estupidez dos adultos que dirigem o mundo.

O universo de desrespeito e agressões às crianças é enorme, porém, neste caso, limitaremos nosso empenho ao campo do esporte de maneira geral, e ao do futebol de maneira específica. O desrespeito às crianças e adolescentes ocorre, especialmente, na chamada iniciação ao esporte, e ele é praticado por parte de famílias das crianças, de dirigentes esportivos, de professoras, professores, técnicos, técnicas, políticos, judiciário, redes sociais e jornalismo, entre outros. Como seria por demais extenso detalhar o desrespeito por cada um desses setores, cabe-me, como educador e pesquisador, mais uma vez fazer considerações científicas sobre o absurdo cometido por aqueles que são responsáveis pela formação esportiva de nossas crianças e adolescentes. Aproveito para render homenagens aos que trabalham respeitando a dignidade humana, não importa a idade. Vamos às diversas dimensões do desenvolvimento humano, e como elas podem ser afetadas pelo desrespeito praticado no campo do esporte.

Moral: no campo da moral ocorrem, talvez os maiores equívocos e as maiores transgressões à criança e ao adolescente. Que sabem as pessoas que estão cometendo tais transgressões a respeito do desenvolvimento moral da criança e do adolescente? Eu poderia tomar de empréstimo inúmeras situações vividas por mim como educador. Ontem assisti à animação Flow, premiada com o Oscar deste ano, a história de um gatinho. Havia muitas crianças no cinema. De repente, numa das cenas iniciais, o gatinho está caminhando na floresta e ocorre uma inundação súbita, muita água, barulho, tudo vindo para cima do gato. Atrás de mim uma garotinha de uns 4 anos de idade começou a gritar desesperadamente com pena do bichinho. Ela gritava que ele ia morrer, coitadinho! E passou o filme todo falando, chorando, gritando com pena do gatinho. Aos 4 anos ela não entenderia a regra de que é preciso fazer silêncio na sala de cinema. Essa é uma regra para adolescentes e adultos. Ela mergulhou na história e a vivia como algo real. Não separava a ficção do filme da realidade de estar em uma sala de cinema. Para ela havia mesmo um gato que corria imenso risco de morrer na inundação. Os adultos ao redor achavam muita graça da garotinha, mas ela sofria de verdade. Assim são as crianças. Quando brincam de jogar bola, as crianças dessa idade não conseguem se colocar em outros pontos de vista que não os seus. Para elas o jogo de bola é um faz-de-conta, uma fantasia. Elas correrão todas atrás da bola, não importa sua direção. Querem apenas brincar, se divertir. Começam a apresentar vestígios de moral aos 5, 6 anos de idade mais ou menos. E esse processo de desenvolvimento levará anos até que elas tenham compreensão suficiente do que é regra, norma, lei etc. A norma ou regra, exige renúncia de interesses. A regra é feita das renúncias parciais dos interesses individuais. Crianças são incapazes de renunciar aos seus interesses, a não ser por imposições severas das crianças mais velhas e dos adultos. No entanto, vemos hoje crianças de 5, 6, 7 anos e mais sendo submetidas a regras de adultos, tanto em escolas de futebol, como em categorias de base de clubes ou em torneios e campeonatos. Mesmo quando se trata de adolescentes (temos que lembrar que infância e adolescência são períodos longos da vida), seria preciso também levar em conta o modo de entender as coisas desses jovens. Adolescentes são capazes, sim, de compreender regras, porém, ao mesmo tempo, adolescentes são pessoas que procuram novos horizontes, novas perspectivas, são questionadores do presente, precisam ser ouvidos, planejar, discutir. Ao envolver crianças e adolescentes no esporte é preciso se colocar no ponto de vista deles e não apenas no ponto de vista de quem ensina. No esporte há muito ensino e pouca aprendizagem, ou seja, respeita-se pouco quem aprende e se investe muito em quem ensina. Quando as crianças e os adolescentes podem brincar de jogar bola, além de poderem aprender melhor, podem viver em um ambiente com flexibilidade suficiente para resguardar o ritmo de desenvolvimento moral de cada pessoa.

Para as pessoas que pretendem evitar equívocos na educação esportiva, do ponto de vista moral, recomendo algumas leituras. Entre elas Jean Piaget, Lawrence Kohlberg e Yves de La Taille.

Motora: como sabem aqueles que estudam o desenvolvimento humano, o ser humano é um só, e essa divisão em dimensões, como estamos fazendo aqui, é um artifício didático, uma tentativa de facilitar a compreensão, dada a complexidade que constitui a criatura humana. Não existe um desenvolvimento motor desconectado de um desenvolvimento moral, por exemplo. Também sabemos que, em todas as dimensões do desenvolvimento humano, os ritmos variam significativamente de pessoa para pessoa. É possível encontrar crianças andando aos dez meses de idade, ao passo que outras só podem fazê-lo aos 16 meses por exemplo. Algumas crianças falam com 12 meses e outras somente com 20 meses e assim por diante. Portanto, encontrar crianças de 6 anos de idade muito habilidosas para controlar bolas pode ser sintoma de precocidade e não de talento especial. Há um detalhe muito importante quando do nascimento do ser humano que nos ajudaria a compreender, não só o desenvolvimento motor, mas todas as dimensões do desenvolvimento. Quando nascemos, somos bastante desprovidos de coordenações motoras. Conseguimos observar, enquanto movimentos ordenados, apenas aquilo que chamamos de reflexos inatos, isto é, respostas automáticas a estímulos, alguns dos quais desaparecem em poucos meses. Exemplos de reflexos inatos são o reflexo de sucção, o da marcha, o de preensão etc. Ao longo da vida, podemos adquirir reflexos condicionados. E por qual motivo o ser humano, ao contrário dos outros animais, nasce tão desprovido de coordenações? Trata-se de um recurso especial da natureza humana para que possamos nos adaptar às constantes mudanças de nosso meio ambiente, uma vez que o meio ambiente da criatura humana é mais cultural que natural. E, como sabemos, a cultura é algo que muda o tempo todo. Portanto, à medida que o tempo passa, a criança vai ajustando seus gestos desordenados à necessidade de ordenação. Como base para esse desenvolvimento ela tem, desde os reflexos, esquemas inatos de se equilibrar, mantendo uma postura equilibrada para os demais gestos, de segurar, gerador de todas as coordenações de manipulação, e de marchar, gerador das coordenações de deslocamento. Em torno dessa base a criança, de acordo com as experiências vividas em seu meio, transformará seus gestos desordenados em gestos ordenados, isto é, em coordenações motoras. O começo de tudo é essa desordem inicial. O fim, não existe, as coordenações prosseguem por toda a vida, mas possuem um período privilegiado, que é a infância.

A lei geral do desenvolvimento na natureza, de modo geral, inclusive a natureza humana, é a diversidade. A diversidade é a regra, não importa se na Mata Atlântica ou na natureza humana. Pode-se alegar que não é possível atingir níveis de campeãs olímpicas na ginástica artística se a especialização não se der precocemente. Num universo de gestos mecânicos e estereotipados, onde todas seguem os mesmos procedimentos, sim, porém, trata-se de crianças que trocaram a riqueza da infância por milhares de horas de rotinas de exercícios. Podemos discutir ideologicamente o que esperamos da infância, o que queremos para nossos filhos, mas não podemos dizer que uma criança, se pudesse escolher, trocaria a brincadeira por rotinas de exercícios semelhantes a trabalhos forçados. A experiência de preparar a criança para o esporte respeitando seu direito de ser criança, servindo-se de uma metodologia que tenha o lúdico como base, poucos arriscam. Uma metodologia lúdica talvez não levasse a rendimentos superiores à metodologia mecanicista, mas valeria tentar. Caso os rendimentos não fossem os mesmos, pelo menos garantiríamos uma vida mais feliz para essas crianças, em qualquer esporte, e um nível de respeito adequado. A humanidade precisa que crianças tenham o direito de ser crianças.

O que significa respeitar a diversidade quando envolvemos crianças no esporte? Significa que a base de qualquer gesto especializado é a riqueza do acervo motor acumulado. Toda criança deveria viver gama de movimentos suficiente para acumular um imenso banco de dados de gestos, sobre o qual se assentariam, com solidez, os gestos especializados do esporte. Isso demandaria anos e anos de experiências, estendendo-se à adolescência, porque o sistema nervoso do ser humano demora, até se consolidar completamente, perto de vinte anos. Somos a criatura viva que se mantém jovem por mais tempo.

No caso do futebol, seria possível ensinar crianças e adolescentes respeitando as leis da diversidade, do lúdico, do respeito à dignidade humana? Claro que sim. Pois se somos capazes de executar treinamentos exaustivos, rotineiros, mecânicos, transformando crianças em miniaturas de adultos, por que não conseguiríamos fazer o mais simples, o mais natural, que seria tratar criança como criança e adolescente como adolescente? Pois não foi assim que os brasileiros, desde o início do século XX aprenderam a jogar bola com tal maestria que se tornaram os melhores jogadores do mundo? Esquecemos isso? Pois vamos relembrar: o fabuloso futebol brasileiro, fonte de inspiração em todo o mundo, foi aprendido por crianças pobres, brancas e pretas, das periferias das cidades, brincando, se divertindo, criando, inventando. Como acham que Garrincha aprendeu a jogar bola? Será que a ficha não cai nunca para esse pessoal que não se cansa de explorar e desrespeitar crianças?

Se quiserem estudar mais sobre esse tema recomendo ler livros de Manuel Sérgio Vieira e Cunha, João Batista Freire, Roberto Rodrigues Paes, Alcides Scaglia, Rafael Castellani, João Paulo Medina e outros.

Afetiva: o esporte é o território dos afetos, isto é, das emoções, dos sentimentos, das paixões. Isso não significa que não haja razão no esporte, mas que, em determinados momentos, a razão não é superior. A tal ponto isso é fundamental no esporte que alguns técnicos o reconhecem e até incentivam. Lembro Phil Jackson, lendário técnico de basquetebol do Chicago Bulls, ao tempo de Michael Jordan, dizendo aos jogadores, em certas ocasiões: “parem de pensar e joguem”. Inteligente como ele era, sabia que ninguém podia parar de pensar, mas reconhecia que era o momento de jogar com as emoções, de juntar, num único momento, pensamento e emoção, um não se sobrepondo ao outro, ou até deixando que as emoções assumissem o controle. Também na vida cotidiana saber lidar com as emoções é fundamental. Há cerca de mil feminicídios por ano no Brasil, praticados por homens que, educados para serem inseguros quanto à sua masculinidade, portanto, para serem machistas, perdem completamente o controle sobre os afetos e matam mulheres. Emoção é algo educável. Devemos educar emocionalmente as pessoas para que elas possam ser equilibradas e não cometer desatinos. No calor de um jogo como o futebol, perder o equilíbrio emocional significa chutar o pênalti na mão do goleiro, tomar cartão vermelho, esquecer de marcar o atacante etc. A educação das emoções é um processo de uma vida inteira. No entanto, esperamos que uma criança de 6, 7, 10 anos seja capaz de lidar com as emoções de competições que não são feitas para elas, mas apenas uma miniaturização das competições adultas. Árbitros de competições infantis se comportam em relação às crianças como se elas fossem profissionais adultas. Pais cobram de seus filhos crianças comportamentos adultos durante treinamentos e jogos. No mundo do esporte pouco se reconhece o fato de que as emoções estão em formação e que as crianças precisam de um ambiente acolhedor, organizado ao molde delas e dos adolescentes, para que na vida adulta essas, então, crianças e adolescentes, sejam equilibradas, generosas, solidárias. Uma criança não consegue lidar com as pressões geradas pelas cobranças da família, dos professores, dos dirigentes, das torcidas, em relação a rendimentos. É comum crianças e adolescentes frequentarem escolas de futebol ou equipes de base e serem educadas para sentirem medo: medo de driblar, medo de chutar, medo de atacar, medo de defender, medo de errar, medo de tudo. Crescem e se tornam, se se tornarem, jogadores e jogadoras medrosos, incapazes de lidar com as emoções geradas pela imprevisibilidade típica de todo esporte. E como fazer para lidar com isso durante a educação esportiva (usarei o termo educação esportiva em vez de formação esportiva)? Todos temos medos em certas situações, mas, como educar para que a coragem se sobreponha ao medo, que a ousadia supere a insegurança, a autonomia seja maior que a dependência?  

Os profissionais da área que pretendem se aprofundar nesse tema poderão transitar por teorias de grandes autores como Freud, Winnicott, Vygotsky, Wallon, Klaus Scherer, LeDoux, James-Lange, Goleman e outros.  

Social: O ser humano é um animal gregário. Precisa se juntar para ter chances de sobrevivência. Foi o que fez, ao longo da história, embora tropece ainda nas habilidades necessárias para viver em sociedade. Um exemplo típico, tomando de empréstimo um universo específico, nós o encontramos no futebol. Não basta um jogador ter habilidades excepcionais no controle de bola; de nada vale ser um malabarista com a bola se não souber colocar tais habilidades a serviço do coletivo, isto é, do time que ele compõe com mais dez jogadores.

Com muita frequência, quando lidamos com crianças e adolescentes no futebol, deixamos de considerar as características de desenvolvimento desses alunos. Não levamos em conta, por exemplo, que a criança tem dificuldades de se colocar no ponto de vista do outro, algo indispensável para a vida em sociedade. Ela tende a investir seus esforços apenas para satisfazer seus próprios interesses, o que explica, num jogo de bola de crianças de até 7 ou 8 anos de idade mais ou menos, termos várias delas correndo atrás da bola sem se preocuparem muito com a equipe como um todo. Quanto aos adolescentes, sem dúvida são capazes de compreender a importância do coletivo, porém, são questionadores, cheios de dúvidas, e essa maneira de ver as coisas deveria levar professores e professoras a sempre conversar com eles, antes e depois das práticas.

A respeito das crianças, e isso veremos melhor quando tratarmos da dimensão lúdica, as práticas selecionadas para as aulas deveriam privilegiar o modo como as crianças lidam com o viver em grupo. Precisamos entender que elas estão aprendendo a viver em grupo, saindo de um estado de autocentrismo para um estado de heterocentrismo. Precisam de tempo e muitas experiências diversificadas para lidar com isso. Uma das hipóteses frequentemente colocadas em prática é a de impor comportamentos sociais artificialmente coletivos, em que as crianças agirão de acordo com imposições rígidas. Por outro lado, podemos respeitar o fato de que são autocentradas, apenas sugerindo, sempre que houver oportunidades, que poderiam agir de maneira mais coletiva. Melhor que isso seria escolher conteúdos em que as crianças tivessem que observar, ao mesmo tempo, a bola e o campo, a bola e os companheiros etc., criar situações em que precisam dar atenção a outros componentes do jogo além da bola. Dar boas aulas, formando não só o jogador, mas também o cidadão, requer criatividade, competência.

A obsessão por formar precocemente o craque de futebol, certamente por ver nele uma fonte de lucros, leva a equívocos terríveis. Quantos talentos não são desperdiçados por esses equívocos? Infelizmente parte dos responsáveis pela educação esportiva dos jogadores de futebol não é a que mais estuda, que mais se prepara, que mais se preocupa com a formação do ser humano.

Os que pretendem se aprofundar nesse tema certamente terão que passar por obras de autores como Durkheim, Max Weber, Norbert Elias, Zigmunt Bauman e outros.

Inteligível: trata-se de nossa dimensão intelectual, nossa capacidade de pensar, de criar, de refletir, de compreender, de nos fazermos inteligíveis. Quando nascemos, e durante alguns meses, por insuficiência de amadurecimento cortical, não somos capazes de pensar, tal como nós adultos entendemos o pensamento. Agimos por reflexos, por impulsos e por ajuda dos mais velhos. Aos poucos, com o amadurecimento das funções corticais, a imaginação passa a produzir seus frutos. Imaginação é essa capacidade de “ver” para dentro as experiências praticadas. Experiência humana é qualquer ação, desde caminhar, pegar, bater, ver, ouvir, tocar, até pensar, criar, lembrar etc. Tudo que fazemos pode ser recuperado pela imaginação e se tornar matéria prima para novas produções. É isso que nos faz humanos. Uma das produções privilegiadas da imaginação é o pensamento, esse fazer mental que nos permite compreender as ações realizadas ou a serem realizadas.

Vamos concordar que o futebol é um jogo extremamente complexo. Trata-se de um esporte, assim considerado porque é praticado por uma imensa comunidade. Exige poucas e rigorosas regras, capazes de normatizar as relações entre pessoas as mais diversas. Sua estrutura envolve um campo de grandes dimensões e um número grande de habitantes (22 jogadores, vários árbitros, plateia, meios de comunicação, dirigentes, técnicos, médicos etc.). O futebol é um escoadouro de culturas. Uma criança pode, quando muito, brincar de jogar futebol, e não praticá-lo em toda a sua complexidade. O pensamento de uma criança não é capaz de compreender toda essa complexidade. Exigir isso de uma criança é contribuir para comprometer sua formação intelectual. O pensamento de uma criança de 5 ou 6 anos, algumas delas alvos da cobiça de agentes e famílias (projetando-as como futuros craques de futebol), é do tipo fantasioso, que resolve os problemas por soluções mágicas. Monteiro Lobato, em sua obra para crianças, criou o pó de pirlimpim, usado pelas crianças do sítio do Pica Pau Amarelo para resolver, magicamente, os problemas. A criança acha que alguma coisa é porque ela acha que é e pronto! Uma vez perguntei, durante uma brincadeira, a crianças de 5 e 6 anos, como a gente poderia fazer para viajar para a Lua. Elas se serviram de um tronco de árvore caído no pátio da escola como foguete e, num passe de mágica, viajaram para a Lua. Como poderiam essas crianças lidar com a complexidade de um jogo como o futebol, ou com a ideia de serem craques no futuro. Quando criança eu também queria ser jogador de futebol, queria ser como Pelé, Nilton Santos e Garrincha. Mas era uma fantasia, meu gosto pessoal e não um plano de realidade adulta. Aos 7 anos mais ou menos a criança começará a compreender as coisas, razoavelmente se colocando fora de seu próprio ponto de vista. Mas isso é insipiente e dependerá do apoio de coisas concretas. Ela continuará achando, por exemplo, que seu pai é um herói, incapaz de ver defeitos nele, por dificuldade de considerar vários outros pontos de vista de análise. Uma criança de até 10, 11 anos de idade, terá muitas dificuldades para lidar com projeções no futebol. Jogará com as coisas imediatas: o drible preso ao momento, evitará o passe, chutará ao gol em qualquer oportunidade, exibirá suas próprias habilidades. Haverá exceções, crianças com amadurecimento precoce e, infelizmente, serão tomadas como regra para justificar o treinamento precoce das demais.

Se o ensino do futebol, ou de qualquer outro esporte, fosse feito a partir do ponto de vista da criança ou do adolescente, seria completamente diferente. No caso da criança começaria por ser totalmente lúdico, ou seja, o futebol para ela seria uma brincadeira. No caso do adolescente o ensino do futebol seria um promotor de autonomia, de emancipação, de independência. O ensino do futebol feito a partir do ponto de vista unicamente de quem ensina transforma o futebol para crianças e adolescentes em réplica mal resolvida do futebol adulto profissional.

O aprofundamento nesse tema pode ser facilitado pela consulta de obras de autores como Jean Piaget, Vygotsky, Wallon, Lino de Macedo, Luria e outros.

Lúdica: a dimensão lúdica trata dos estados em que realizamos uma ação sem qualquer outro propósito que não seja a própria ação. Uma espécie de fazer por fazer. Ou seja, quando retiramos da ação os compromissos com algo externo, com as cobranças, podemos vivê-la somente com as tensões internas, sem as pressões externas. Porém, quando uma criança vai ao esporte e é cobrada em resultados, por pais, agentes, professores e outros, parte do lúdico da ação esportiva é perdido em detrimento dessas pressões, muitas vezes insuportáveis para a estrutura de uma criança. Algo parecido ocorre com os adolescentes, porque, mesmo considerando seu poder de pensar virtualmente, por hipóteses, ele ainda não é suficientemente maduro emocional, moral e socialmente para suportar as cobranças por resultados.

O lúdico é aquele estado que nos alivia das tensões, que nos permite viver momentos de leveza, que nos permite viver sensações de realização frequentes, que faz crescer nossa autoestima. Quando a criança aprende esporte brincando, ela viverá ambientes em que sua autoestima estará alta e isso poderá repercutir positivamente por toda a sua vida.

O jogo, em suas materializações de brincadeiras, folguedos, danças, músicas, entre tantas possíveis, é o território privilegiado de desenvolvimento de uma criança. Ela pode praticar qualquer esporte, desde que seja em forma de brincadeira. Ela pode brincar de lançamento do dardo, de jogar basquetebol, de jogar futebol, de nadar etc., mas não pode treinar atletismo, basquetebol, futebol ou natação como se fosse um adulto pequeno. São coisas completamente diferentes e só não sabe isso quem não se preparou para ser bom professor ou boa professora, bom dirigente, bom pai ou boa mãe. A criança também pode participar de competições esportivas, porém, essas competições precisam ser adaptadas para atender às características da criança. Ela pode participar de um festival de atletismo ou de natação, onde todas as crianças correriam ou nadariam, por exemplo, sem que fossem classificadas ao final como melhores ou piores, e onde todas seriam premiadas com diplomas de reconhecimento pelas ações realizadas.

Quem pretender estudar melhor esse tema pode consultar as obras de Piaget, Vygotsky, Alcides Scaglia, João Batista Freire e outros.

Para finalizar, cabe a pergunta: e agora, o que fazer diante de tudo isso? Podemos encaminhar alguns trabalhos práticos para dar conta das advertências feitas ao longo do texto? Sim, foram feitas muitas advertências e, inclusive, várias denúncias. Todas as agressões contra a criança no esporte devem ser denunciadas. Além das denúncias de agressões, também fizemos denúncias contra a incompetência dos trabalhos. Não é vergonhoso verificar que as crianças aprendem futebol brincando entre elas melhor que nos momentos em que está frequentando uma escola de futebol (em boa parte dos casos)? O que há naquela brincadeira entre elas que ensina tão bem? E não foi assim que aprenderam os grandes craques da história do futebol brasileiro?

É bastante simples ensinar futebol ou qualquer outro esporte em um ambiente lúdico, respeitando a criança como criança e o adolescente como adolescente. Sim, eu sei que teremos a oposição de boa parte dos pais e dirigentes, mas esse é um problema que só pode ser resolvido com paciência, muito estudo, e boas conversas em reuniões com pais e dirigentes. Os pais, pouco informados, acreditam que colocar seus filhos em uma atmosfera de treinamentos adultos adiantará o processo e os tornará craques precocemente. Isso nunca aconteceu e não acontecerá (a não ser excepcionalmente, o que não pode ser tomado como regra), mas a ilusão permanece. Quando muito tal medida tornará os pais vítimas de maus agentes, que ganharão dinheiro à custa de alimentar essa ilusão.

Vou dar um único exemplo para mostrar como é simples o trabalho num ambiente lúdico. Simples, prazeroso, realizador! Vou escolher a brincadeira de pega-pega. Metade das crianças ficará de posse de uma bola (podemos usar vários tipos de bola, de borracha, de meia, de plástico, bolas oficiais, os que forem possíveis). A outra metade ficará sem bola. As crianças estarão descalças, porque jogar descalço facilita o desenvolvimento de habilidades mais refinadas e previne futuras lesões. Uma das crianças será escolhida como pegador, os demais terão que escapar à sua perseguição. O pegador correrá atrás da criança que ele decidir perseguir, mas terá que tomar a bola do perseguido – não basta tocar na bola. O perseguido poderá driblar o pegador, poderá fugir dele em velocidade, ou poderá passar para alguém que estiver sem bola. Quando o pegador tomar alguma bola, aquele que a perdeu passará a ser o pegador.

Variação dessa brincadeira – Podemos aumentar o número de pegadores para dois ou três. Quando um pegador tomar uma bola, deixará de ser pegador o que estiver há mais tempo nesse papel. Outra variação – Podemos aumentar ou diminuir o número de alunos sem bola.

Essa brincadeira eu criei agora. A partir de qualquer brincadeira popular podemos criar inúmeras brincadeiras para ensinar futebol ou outro esporte. No caso dessa brincadeira minha intenção era ensinar o drible, o desarme, o passe, e a condução de bola, portanto, uma brincadeira bem ampla. Quantas vezes, em quinze minutos, por exemplo, cada criança conduzirá a bola, driblará, desarmará ou passará? Não dá para calcular, pois o número de repetições será muito grande. Além disso, quando ela conduzir a bola, será para fugir do pegador, e isso fará sentido para ela. Quando ela driblar, será por um motivo forte na brincadeira, ou seja, realizará gestos que farão sentido para ela, que não afrontarão sua inteligência. Por outro lado, se ela tiver que passar a bola para um colega com repetições mecânicas, apenas para obedecer ao comando de um professor, que sentido tem isso para ela? Serão passes que jamais acontecerão num jogo de futebol. Ou quando ela tem que, obedecendo ao comando de um professor, conduzir a bola contornando cones. Quando isso acontecerá num jogo de futebol? Já viram cones espalhados pelo campo durante um jogo contra um time adversário?

A criança é inteligente e isso tem que ser respeitado. A aula de futebol não pode ser uma agressão a essa inteligência. A criança tem que aprender futebol para se tornar mais inteligente, mais segura emocionalmente, mais solidária, mais cooperativa, mais sociável, mais habilidosa.

Usei apenas um exemplo, e poderia usar dezenas ou centenas de outros. No entanto, continuamos insistindo na velha fórmula de querer ensinar por ações descontextualizadas, sem sentido, mecânicas. E nos frustramos, porque não ensinamos.

Uma sugestão final: em vez de colocarem como objetivo no ensino futebol para crianças formar craques futuros, coloquem como objetivo fazê-las felizes. Certamente, com isso, as chances de que um dia venham a ser craques aumentarão, mesmo que não seja esse o objetivo.

Foto: Oli Scarff/Getty Images

Categorias
Sem categoria

Psicologia positiva no futebol: Uma nova visão de desempenho

Por: Maurício Rech

A Psicologia Positiva é uma área relativamente recente dentro do campo da psicologia e da saúde mental, focada no estudo científico das forças e virtudes que contribuem para o desenvolvimento humano. Enquanto a psicologia tradicional tem como objetivo principal o tratamento de transtornos mentais e a redução do sofrimento humano, a Psicologia Positiva busca compreender o que torna a vida significativa e satisfatória. Ao invés de se limitar a resolver problemas, esse campo de estudo promove o desenvolvimento de potencialidades e a construção de uma vida equilibrada e produtiva.

É importante destacar que a Psicologia Positiva não é uma ideia romântica ou ingênua de acreditar que “está sempre tudo bem”, mas sim uma área científica comprometida em encontrar maneiras funcionais de lidar com situações emocionais difíceis. É um caminho que busca focar na solução e não no problema, de compreender e enfrentar desafios em vez de fugir deles ou culpar os outros, e de olhar para as emoções internas como um caminho para lidar melhor com os desafios externos. Apresenta-se como uma área de estudo que atenta para o ser humano com uma visão sistêmica e propõe-se a otimizar sua atuação dentro de seus diversos papeis sociais, tanto profissionais quanto pessoais. A Psicologia Positiva e a psicologia tradicional são complementares, uma não substitui o trabalho clínico da outra, mas aqui falaremos daquela que tem como foco a ampliação da compreensão sobre como potencializar e promover o bem-estar em indivíduos e grupos.

No contexto esportivo, em especial no futebol, os treinadores desempenham um papel central no desenvolvimento técnico e emocional de seus atletas. Incorporar princípios da Psicologia Positiva à formação dos treinadores pode ser um diferencial significativo para alcançar maiores níveis de saúde mental e, consequentemente, melhor desempenho. Isso envolve capacitá-los a identificar e potencializar pontos fortes dos jogadores, incentivar a mentalidade de crescimento e criar um ambiente propício ao engajamento e à colaboração. Em situações de vitórias, por exemplo, o treinador pode utilizar momentos específicos para reforçar emoções agradáveis e o senso de competência e resiliência do time, destacando o trabalho em equipe e os esforços individuais que contribuíram para o sucesso. Esse tipo de abordagem não ignora as dificuldades enfrentadas, mas utiliza área emocional para fortalecer a capacidade do grupo de lidar com futuros desafios. Por outro lado, em derrotas, a Psicologia Positiva oferece elementos e técnicas fundamentadas que ajudam os atletas a enfrentar a frustração de maneira funcional, transformando erros em oportunidades de aprendizado. Nesse processo, o foco deixa de ser atribuir culpa ou negar o ocorrido, e passa a ser compreender e superar o desafio. Capacitar treinadores também envolve o desenvolvimento de habilidades de comunicação empática e liderança positiva, fundamentais para criar relações de confiança e respeito com os atletas. Um treinador e corpo técnico que compreende e aplica esses conceitos pode inspirar não apenas um melhor desempenho em campo, mas também um crescimento pessoal em seus jogadores.

Os atletas, especialmente em esportes de alto rendimento como o futebol, enfrentam diversas formas de pressão constante, não apenas por resultados em campo, mas decorrentes de adaptações contínuas em viagens durante as competições e transferências de clubes, além de questões culturais e distanciamento da família. A aplicação da Psicologia Positiva no dia a dia pode transformar a forma como eles lidam com essas demandas. Práticas como o fortalecimento do otimismo, o cultivo de gratidão e a definição de metas claras e alcançáveis podem melhorar não apenas o desempenho esportivo, mas também o bem-estar geral dos jogadores. Elas não eliminam as dificuldades existentes, mas ajudam os atletas a desenvolverem uma perspectiva mais equilibrada e funcional sobre as adversidades. O treinamento mental baseado em princípios e elementos da Psicologia Positiva pode incluir programas de psicoeducação e de capacitação focados em identificar forças pessoais, criar planos de superação para desafios específicos e fortalecer o senso de propósito dos atletas. Técnicas como a atenção plena e meditação são cientificamente comprovadas como úteis para melhorar o foco, reduzir os efeitos do estresse e favorecer a neuroplasticidade.

Ao promover a autoconfiança e a coesão de grupo, a Psicologia Positiva apresenta-se como potente caminho para influenciar diretamente os resultados no campo. Trabalhar com uma equipe que treina em um ambiente positivo e encorajador tende a apresentar maior comprometimento, menos erros associados ao estresse e maior capacidade de recuperação após derrotas. Em longo prazo, essa mentalidade e forma de desenvolvimento psicossocial contribui para a formação de atletas mais completos, resilientes e motivados. Além de resultados esportivos, o impacto positivo se estende à vida fora dos gramados, respeitando a integridade do ser humano atleta.

Nesse sentido, investir na capacitação de treinadores e na implementação de princípios da Psicologia Positiva no cotidiano dos clubes de futebol é um passo estratégico para transformar a experiência esportiva em uma oportunidade de crescimento pessoal e coletivo. Ao longo dos anos trabalhei com centenas e centenas de atletas, de base e profissionais, assim como treinadores e comissões técnicas, e, seguramente, a falta de conhecimento e de atenção aos quesitos saúde mental e inteligência emocional desviaram muitos de uma trajetória de sucesso. Se antes não havia fundamento científico para entender causas e apresentar soluções para esta área, atualmente já temos muita informação e material embasado. Portanto, hoje, mais do que buscar vitórias em campo, é essencial criar condições para que atletas e equipes se fortaleçam e floresçam de forma integral!

Maurício Rech tem formação acadêmica com Mestrado em Psicologia e Saúde e graduação em Direito, além de extensões nas áreas de Filosofia, Psicologia e Neurociências. Atua como professor, pesquisador científico e palestrante na área de Saúde Mental e Desenvolvimento Humano, integrando a área de psicoeducação aos seus trabalhos anteriores no esporte como advogado, agente e Diretor Executivo de Futebol Profissional e Categorias de Base.

Foto: Marcos Ribolli