Por: João Batista Freire
Jogadores e jogadoras de futebol são mais que jogadores e jogadoras de futebol. São homens e mulheres, são seres humanos, são criaturas vivas. Assumem, ao nascimento (mesmo que não saibam disso), o compromisso de viver, de preservar a vida. Uma educação coerente com a natureza humana lhes ensinaria a nada fazer contra a vida e a tudo fazer a favor dela. De onde resulta uma espécie de compromisso ético primordial: nada contra a vida e tudo a favor da vida.
Treinadores e treinadoras de futebol, não importa se de equipes de base ou de equipes profissionais são professores e professoras, queiram ou não aceitar isso. Todos os professores e professoras, de futebol ou de qualquer outra matéria, ensinam a viver, fazendo isso de maneira consciente ou não. Seria melhor que assumissem que são professores e professoras e que sempre ensinarão mais que futebol, que ensinarão para a vida, e podem, com isso, causar benefícios ou danos, podem potencializar vícios ou virtudes.
É um erro enorme pretender ensinar futebol negligenciando o fato de que os jogadores, mais jovens ou mais maduros, são homens e mulheres, são seres humanos. O futebol não pode ser isolado da vida. O que se faz dentro do campo é viver, é realizar a vida. E não é necessário saber definir o que é a vida para lidar com isso. Deveríamos responder, quando nos perguntassem sobre ela, que viver é respirar, é chorar, é correr, saltar, sentar, comer, conversar, pensar… Viver é agir, é realizar a vida em cada ato. Não é necessário dar explicações complicadas sobre ela. Jogar futebol é viver, porque todo jogar é uma maneira sempre intensa de viver.
Anos atrás escrevi que devemos ensinar futebol a todos, ensinar bem futebol a todos e ensinar mais que futebol a todos. Aqueles a quem recusamos ensinar o futebol, porque avaliamos que não possuem talento para chegar ao estrelato, são, talvez, os que mais precisam aprender. Nossas falhas avaliações são incapazes de perceber talentos escondidos, aqueles que não se revelam de imediato. E se não formos capazes de reconhecer que somos educadores antes de sermos treinadores de futebol, negaremos a esses meninos e meninas a oportunidade de se educarem. É um direito humano aprender esporte, não importa se esse esporte é o futebol ou qualquer outro. Não recusemos ensinar o futebol a todos. Consideremos, inclusive, que um jogador maduro, com 38 anos de idade, ainda tem que aprender a jogar futebol, e ainda tem lições de vida a aprender. Ensinemos a todos, é a lição que vale.
Quanto a ensinar bem o futebol a todos indica que temos que nos preparar mais para ensinar melhor. Persiste, no campo do esporte, a ideia de que os talentos são natos, que não dependem de aprendizagens, mas apenas de desenvolvimento natural. Grande erro. O que sabemos sobre as coisas inatas? Sabemos distinguir entre o que é natural e o que é adquirido? Por mais que a ciência tenha avançado, ela ainda não nos responde adequadamente sobre isso. Entre os tantos erros que cometemos no esporte, um dos maiores é o ensino dele. Falhamos miseravelmente na pedagogia do esporte. No futebol, por exemplo, ainda somos piores em nossas metodologias que a rua. Por qual motivo crianças aprendem a jogar bola maravilhosamente bem quando brincam na rua ou em outros espaços, sem orientação de adultos, e sentem tanta dificuldade em aprender quando estão com professores e professoras? Claro que esse não é um problema só do futebol ou dos esportes. Uma criança aprende a falar sua língua materna com dois anos de idade, depois vai para a escola e fracassa na aprendizagem dos conteúdos da disciplina português. Passamos doze anos no ensino básico e nos tornamos analfabetos funcionais. Ensinar, quando se trata de fazê-lo nas escolas ou outras instituições, tornou-se um mistério. Provavelmente, entre outros problemas, isso ocorre porque o foco da educação é o da instituição, e não o do aluno. Na rua, ao contrário, o foco da educação é o aluno. Aliás, na rua não há aluno, há criança, há adolescente, há adulto, há a pessoa real. Na escola (e na escolinha de futebol etc.) não há criança ou adolescente, há aluno. Vamos imaginar uma criança chamada Lucas. O Lucas tem o direito de aprender futebol sem deixar de ser Lucas. É preciso que ele aprenda do jeito dele, porque o jeito dele é diferente do jeito de Antônio, Mário ou Pedro. Além disso, Lucas é criança e não pode ser tratado como adolescente ou adulto. E Lucas está aprendendo futebol para ter melhores recursos para viver, para dar conta de sua vida, o que é um projeto muito maior que aprender para jogar futebol. Futebol é meio e não fim. Lucas pode se tornar o melhor jogador de futebol do mundo, ou seja, ele pode ter extraordinário êxito no futebol…, mas pode fracassar na vida. Afinal, quando um jovem vai para uma equipe de base do futebol profissional, o ambiente da base deveria ser o de uma instituição educacional ou de uma incubadora de jogadores profissionais? Uma coisa é juntar novilhos numa fazenda para alimentá-los, garantir-lhes a saúde e aguardar que engordem para depois vendê-los com enorme lucro; outra coisa é acolher jovens em um centro de formação de futebol e bem educá-los para a vida, servindo-se do futebol como instrumento.
Com isso chegamos ao terceiro princípio, aquele que diz que devemos ensinar mais que futebol a todos. O que significa ensinar para a vida enquanto se ensina futebol? Entre os grandes astros e estrelas do esporte, há fartura de exemplos de pessoas que se arruinaram na vida fora do esporte e outras que se tornaram exemplos de cidadãos e cidadãs. O quanto essas consequências para a vida dependeram da formação que tiveram no esporte? E o quanto aqueles que ensinam esporte se preocupam com isso? De maneira geral o público entende que um jovem que veio de uma situação de extrema pobreza e se tornou um astro no esporte, ganhando, com isso, muito dinheiro, está com sua vida resolvida. Longe disso, muitas vezes esse tanto de dinheiro tornou-se sua desgraça, arruinando seu caráter, e não resultou em benefícios sociais para ele e outros em torno dele. Sair subitamente de um estado de pobreza para um estado de opulência não garante realização de vida. Teríamos, portanto, que resolver essa questão de ensinar mais que o esporte a todos, de modo a ensinar, acima de tudo, a se conduzir bem na vida fora do esporte, a ser ético, a pesar bem os valores humanos e não só o dinheiro, a beneficiar-se e a beneficiar a sociedade. Porém, como conduzir isso jogando bola, aprendendo futebol? Porque não estamos falando de jogar bola em um momento e fazer discursos sobre a vida em outro momento. Trata-se de aprender para a vida enquanto se aprende futebol, enquanto se joga bola. Para isso teremos que entrar no campo da metodologia.
Há, entre outras, duas maneiras básicas de aprender a jogar bola. Para sermos mais específicos vamos falar, por exemplo, do passe. Primeiro em uma situação de acordo com a escola tradicional, de acordo com uma rotina de exercícios em uma escolinha de futebol ou em uma equipe de base. Vamos pensar em crianças de 11 a 12 anos. Nessa situação que estamos criando, elas farão o seguinte exercício: ficarão em duplas, uma de frente para a outra, distantes cerca de 5 metros entre elas. Ao sinal do professor, trocarão passes uma para a outra, com a parte interna do pé dominante, até que o professor mande parar. A cada vez que ele parar, ele dirá para se afastarem uma da outra um passo, aumentando a distância entre elas. Ao sinal do professor, novamente trocarão passes até ele pedir para parar. E assim sucessivamente, até chegarem a uma distância de 10 ou 11 metros umas das outras. Com esse procedimento é possível, inclusive, ter uma ideia razoável do número de passes dados por cada criança.
Vamos agora a uma situação não tradicional, em uma equipe de base de um clube de futebol ou em uma escolinha de futebol. A turma tem 16 crianças. O professor pede que formem uma roda, com a distância de dois braços entre cada aluno. Pede que mandem para o centro da roda um dos alunos que eles escolherem, ao modo deles. Em seguida diz para começarem uma brincadeira de bobinho, com quantos toques na bola quiserem. Depois de uns 3 minutos, o bobinho ainda não conseguiu sair do meio da roda. Então o professor para a brincadeira, coloca o problema e pede uma solução: como fazer para o bobinho não ficar tanto tempo na roda? Ouve as sugestões e escolhe aquela que for mais adequada para seu plano de aula (se não houver nenhuma boa sugestão, ele pode acatar uma má sugestão e mostrar depois que não houve solução. E então pedir novas sugestões). Suponhamos que os alunos sugiram colocar dois bobinhos. Aí o professor perguntará por que eles acham que é uma boa solução. Ouvidos os argumentos recomeçam a brincadeira. De fato, os bobinhos interceptaram a bola muito mais rapidamente. Mas há um problema que persiste: o aluno menos habilidoso continuou como bobinho muito tempo, porque quem tocava na bola era sempre um outro mais habilidoso. Como solucionar isso? Problema passado para os alunos, conversaram entre eles e sugeriram que não precisava sair da rola, necessariamente, quem tocasse na bola. Com a ajuda (o professor deve sempre interferir e ajudar, dando pistas) do professor concluíram que deveria sair o que estivesse há mais tempo na roda. A brincadeira recomeçou e, de fato, o rodízio de bobinhos aumentou. Passados mais alguns minutos, o professor novamente parou a brincadeira e deu mais um problema para os alunos. Ele queria aumentar a dificuldade do passe. Como fazer? Os alunos discutiram por mais ou menos 1 minuto e deram boas sugestões. Uma delas dizia que era só aumentar o número de bobinhos para três. Outra era dividir a roda em duas rodas. O professor sugeriu começar pela primeira. Isso facilitou para os bobinhos e exigiu passes mais cuidadosos dos que estavam formando a roda. Depois formou duas rodas e também o passe foi mais exigido.
Para não nos alongarmos muito, vamos analisar rapidamente as duas situações. Afinal, este é um texto breve e não um curso. As situações criadas servem apenas para ilustrar a ideia de ensinar mais que o futebol. Na primeira situação, pensando no jogo de bola ou de futebol, o exercício tradicional realizado está fora de contexto. Cumpre-se a ideia de que podemos treinar partes do futebol descontextualizadas para depois juntá-las, na expectativa de que se ordenarão para melhorar a qualidade do jogo. Sem dúvida, essa prática facilita o controle dos professores sobre os alunos e sobre a realização do exercício. Porém, trata-se de um passar sem outro objetivo que não cumprir as determinações do professor ou da professora. Não é um passar necessário em uma situação de jogo e o ato de passar da maneira como é realizado no exercício não acontecerá em uma situação de jogo. Quando os alunos e alunas estiverem jogando bola, o que mais farão durante o jogo é receber e passar a bola, porém, não da maneira como se exercitaram. Quem pensa a atividade nesse exercício é o professor ou a professora, e não os alunos. Do ponto de vista metodológico, é uma ação criada a partir do ponto de vista de quem ensina, e não de quem aprende. Não se trata da realização de uma aprendizagem de futebol para os alunos, mas da realização de um plano dos professores. Nessa prática, o jogo lúdico, se é que existe, consiste em passar a bola um para o outro, frente a frente. Não se realiza o passe para cumprir um objetivo maior dentro de um jogo maior. A inteligência dos jogadores restringe-se a cumprir a determinação de passar a bola com precisão para o colega à frente.
Na segunda situação, quando os alunos brincaram de bobinho, o professor passou o protagonismo para os alunos. A situação, neste caso, é inversa à primeira. O ponto de vista educacional passou a ser o dos alunos. Não há somente ensino, mas igualmente aprendizagem. Os alunos não se restringiram a cumprir as determinações do professor, mas igualmente suas decisões. Do ponto de vista educacional os ganhos, para além do futebol são muito visíveis. Os alunos ganharam autonomia, e essa autonomia decorreu de reflexões sobre o jogo e decisões tomadas por eles. O jogo termina, mas os ganhos em autonomia não. Os alunos tiveram a oportunidade de aprender a ser autônomos, e o fizeram conscientemente, e quando se aprende com consciência, a aprendizagem pode ser estendida a outros contextos (sobre isso comentaremos em outros artigos). O professor deu problemas para os alunos resolverem. Eles conversaram entre eles e mostraram competência para fazer isso. E, de fato, resolveram o problema de como evitar que um deles ficasse muito tempo no centro da roda (situações como essa foram vividas por mim com meus alunos, não são mera ficção). Para resolver os problemas colocados, eles tiveram que pensar sobre a situação, imaginar como aconteceram, verbalizar, trocar ideias e sugerir hipóteses, que foram testadas na prática. Exercitaram a imaginação e o pensamento. O jogo de bobinho terminou, mas os alunos saíram dali com o pensamento fortalecido. Serão beneficiados por isso em outras situações de vida. Reparem num detalhe entre os problemas colocados pelo professor: ele advertiu que havia alunos que iam exercer o papel de bobinho e ficavam nele por muito tempo, e isso era constrangedor. Os alunos tiveram que resolver um problema que não se resolvia só com o pensamento, mas também com o sentimento de solidariedade. Trata-se de uma questão lógica, mas também afetiva. O professor estava preocupado com a educação geral desses alunos, com seu modo de viver em sociedade, tendo como campo de vivência um jogo de bola. Por fim, quando ao aprendizado do jogo de bola ou de futebol. O jogo do bobinho mobiliza para o futebol, acima de tudo, o passe e o desarme. Quantas vezes os alunos passaram e desarmaram? Nem eles nem o professor sabem isso. Mas podemos garantir que a quantidade é enorme. Mas não se trata só de quantidade. Os alunos passaram e desarmaram dentro de um contexto. Fazia sentido passar para cumprir o objetivo maior do jogo, tanto quanto desarmar. Isso não afronta a inteligência dos alunos, pelo contrário, alimenta-a.
Na primeira situação os alunos estavam aprendendo a passar bola uns para os outros, frente a frente, e não mais que isso. Os ganhos para o futebol serão muito pequenos, se houverem. Na segunda situação, considerando o jogo do bobinho, um dos pequenos jogos da família dos jogos de bola com os pés (1), os alunos aprenderam a passar e desarmar para cumprir o objetivo do jogo. E, da forma como a prática foi orientada, aprenderam, não só a jogar bola, mas a serem solidários, a pensarem melhor, a viverem com autonomia. E por constatarem que jogaram com êxito, puderam se sentir competentes, capazes de realizar, ingredientes para a elevação da autoestima.
Na primeira situação aprende-se a passar a bola para um companheiro à frente, sem obstáculos. Na segunda situação aprende-se a passar e a desarmar para o futebol e aprende-se além do futebol – aprende-se para a vida.
Referências: Scaglia, Alcides José. O futebol e as brincadeiras de bola: a família dos jogos de bola com os pés. São Paulo: Phorte, 2011.