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O treino e a complexidade humana

Por: Manuel Sérgio

1. Será de referir, antes do mais, que os treinadores e os jogadores treinem e se treinem como se joga, ou seja, de modo competitivo, tendo em conta os factores de rendimento (físicos, técnico-tácticos, psicológicos e morais), todos igualmente importantes e incluindo neles o treino invisível. Há, no treino, fatores quantitativos e qualitativos. Saber interpretar a quantidade de ácido láctico; manejar os dados obtidos, através da pulsometria; entender os resultados dos exames médico-desportivos dos atletas – tudo isto (são exemplos, entre outros) permite dar prioridade ao quantificável. Mas, o essencial é invisível aos olhos e, por isso, dificilmente quantificável. Assim, como é possível medir-se a capacidade de comunicação de um treinador, ou a sua liderança? Há dimensões da subjectividade de fundamental importância, na profissão de treinador e no desempenho desportivo. É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser. Luís Alonso Perez, conhecido por Lula nos meios do futebol: “coube a ele comandar o maior time de futebol de todos os tempos, o Santos Futebol Clube dos anos 50 e 60” (Maurício Noriega, Os 11 Maiores Técnicos do Futebol Brasileiro, Editora Contexto, S. Paulo, 2009, p. 79). Entre 1954 e 1966 treinou uma equipa onde pontificavam Pelé, Coutinho, Pagão e Pepe. E, no entanto, Lula nunca jogou futebol profissional, era motorista de táxi e falava uma linguagem com muitos erros gramaticais. Mas, teve um êxito espectacular como treinador dos juvenis do Santos e, daí, passou a treinador da equipa principal. Em 12 anos, conquistou 38 títulos! O que o distinguia dos demais treinadores? Os jogadores deliciavam-se com o que ele dizia e com a simpatia que manifestava por todos. A relação era sujeito sujeito e não sujeito-objecto. Por fim, sabia ler um jogo, como poucos. Os êxitos (e os inêxitos) do treinador não podem dissociar-se da sua personalidade e da sua conduta. Um treinador informado, mas sem qualidades de liderança e sem um admirável comportamento moral, não é um treinador eficaz. Já digo, há muito, que para saber de futebol é preciso saber mais do que futebol. Fazer- se respeitar, pelas qualidades de liderança e pelo comportamento moral – tudo isto, essencial ao treinador de futebol, é bem mais do que futebol…

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2. Mas não é também, trabalho inadiável, no desporto, a qualificação dos recursos humanos? Não há que promover e realizar um trabalho científico de excelência, visando o desenvolvimento desportivo? “Devemos saber combinar inteligência instrumental-analítica, donde nos vem o rigor científico, com a inteligência emocional-cordial, donde derivam as imagens e os mitos” (Leonardo Boff, Saber cuidar, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1997, p. 37). Segundo o “erro de Descartes”, a alma (a res cogitans) e o corpo (a res extensa) são substâncias distintas, dando primazia à razão e ao more geométrico, ou seja, ao modelo das ciências ditas exactas. Dizer que se deve pensar o mundo físico, no quadro de uma axiomática geométrica, significa reconhecer que algo desse mundo se torna impensável: a qualidade. Ora, é precisamente sob a influência de Descartes (1596-1650) que nasce a educação física, entendida como educação do físico, ou do corpo que outra coisa não era, na cultura ocidental, do que físico, ou seja, matéria. Portanto, o corpo deveria treinar-se, para obedecer com celeridade e aprumo aos ditames da razão. Por outro lado, em Descartes, para conhecer, é preciso dividir “em tantas parcelas, quanto possível e necessário, para melhor resolver as dificuldades”. Assim, o método, na educação física e no desporto, começou por ser analítico e quantitativo, tentando fazer de cada educando, ou de cada atleta, o homem-máquina, já que tudo o que é natureza nada mais é do que uma máquina. Aliás, o mecanicismo constituiu o pressuposto de toda a investigação científica. Era portanto o homem-máquina, que os números davam a conhecer, o grande objectivo da educação física e do treino desportivo. Deverá acentuar-se também criou uma íntima relação entre a classe burguesa ascendente, ou seja: os homens de negócios, e a matemática, entendida como método universal: é que o quadro próprio dos negócios é o cálculo. Enfim, a educação física, como educação de um físico que será tanto mais perfeito quanto mais se aproximar do funcionamento de uma máquina nasce depois de Descartes e o primeiro autor a utilizar a expressão “educação física” é um médico, Ballesxerd, que, em 1762, escreveu o livro “Educação Física para as crianças”. Ora, esta educação física, como educação do físico, e um treino visando o homem-máquina, chegam até meados do século XX…

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3. “Não nos podemos esquecer que a ciência moderna conferiu uma extraordinária importância à quantificação. Temos boas razões para crer que esse procedimento epistemológico de valorizar o quantitativo tenha raízes sociais. O que significa quantificar senão contar, medir e pesar? A quantificação pressupõe a posse dos métodos de cálculo, de balanças, de todo um equipamento material e mental (…). A ciência moderna nasceu num momento histórico em que a quantificação possuía uma significação fundamental na prática social” (Hilton Japiassu, A Revolução Científica Moderna, Imago, Rio de Janeiro, 1985, p. 129) é que a ordem e a quantificação interessam sobremaneira ao desenvolvimento do capitalismo! A educação física e a medicina, ambas produto, em termos modernos, do cartesianismo, apresentam, até meados do século XX, as características da ciência moderna. E assim a ginástica, os jogos e os desportos destinam-se à formação de um corpo, máquina autêntica, mesmo quando ao serviço de grandes ideais sociais. O treino desportivo, ao longo da modernidade, mais propriamente a partir dos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, centrou-se em primeiro lugar na técnica, depois no treino físico e, por fim, no volume de treino. Num livro intitulado Metodologia do Treino Desportivo, da autoria da Associação Nacional de Treinadores de Basquetebol e editado pelo ISEF de Lisboa, em 1981, David Monge da Silva escreve: “Para detectarmos quais as tendências de evolução do treino, deveremos conhecer qual a situação actual, nos domínios da investigação. Com efeito, são os resultados desta que imprimem a orientação futura do treino. Neste momento, nos centros de investigação mais avançados, os estudos os estudos centram-se fundamentalmente nas seguintes áreas: técnicas de recuperação; métodos inabituais de treino” (p.67). Este texto, de há 30 anos atrás, permite que eu possa apresentar a minha teoria da motricidade humana ou, usando as palavras de Nietzsche, a minha “teoria da acção”. De acordo com este autor (que eu conheci, através de Júlio Garganta, no livro Olhares e Contextos da Performance nos Jogos Desportivos, editado pela Faculdade do Desporto da Universidade do Porto, pp. 150 ss.) no desporto, uma acção é um comportamento táctico. Para mim, a motricidade humana é a energia para o movimento intencional da transcendência (ou da superação). Assim, no corpo em acto, ou motricidade humana, o comportamento táctico encontra-se integral, mas superado. É que a transcendência (ou superação) é o sentido da vida. De facto, viver é uma tentativa incessante de superação. O desporto é um dos aspectos deste anseio inato de transcendência e portanto o treino desportivo persegue-a, prepara-a, antecipa-a, à luz do conhecimento do jogo.

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4. A Ciência da Motricidade Humana (CMH), por mim teorizada, foi apresentada, publicamente, nas minhas provas de doutoramento, em 1986. Porque estuda o movimento intencional da transcendência, é uma ciência social e humana. Aliás, a transcendência é uma dimensão especificamente humana, inédita nas demais criaturas, já que se afirma como ruptura e como projecto: ruptura, em relação ao mundo tradicional, que nos foi transmitido; projecto como criação de um mundo novo. São especialidades da CMH o desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação psicomotora, etc., ou seja, práticas onde se torna visível o movimento intencional da transcendência. José Mourinho, considerado pela FIFA o melhor treinador de futebol do mundo, no ano de 2010, foi capaz de transcender e transcender-se, criando um método anti-dualista e anti-cartesiano, longe dos métodos analíticos de treino e bem próximo do método da complexidade que a CMH defende. Em José Mourinho, a preparação dos jogadores, para a alta competição, subordina-se a um modelo de jogo, que se torna o elemento regulador das variáveis físicas, técnicas e psicológicas. Chama-se a esta metodologia a periodização táctica. Mas há mais: José Mourinho sabe que a prática desportiva se funda no sujeito, no humano na sua globalidade. Problematizá-la significa equacionar, não um físico, mas o Homem, em toda a sua amplitude e profundidade. Também no desporto não é pensando que somos, mas é sendo que pensamos. Em José Mourinho, a preparação do atleta é simultânea com a preparação do homem que o jogador é. No treino, que José Mourinho lidera, o físico, o técnico, o táctico, o psicológico e o moral são trabalhados ao mesmo tempo. “Por isso, a noção de organização passa a ser capital, dado que é através da organização das partes num todo que aparecem as qualidades emergentes e desaparecem as qualidades inibidas” (Edgar Morin e Jean Louis Le Moigne, Inteligência da Complexidade: Epistemologia e Pragmática, Instituto Piaget, 2009, p.43). Aqui, a organização obedece a princípios e a um determinado modelo de jogo. Portanto, José Mourinho tem uma forma de pensar (o pensamento complexo), um método (o método da complexidade, fundamentado em Edgar Morin) e tudo isto sujeito a um questionamento sistemático. Uma profissão é conhecida e respeitada, a partir do que produz, da qualidade do que produz, da utilidade do que produz e, sobretudo, da postura crítica diante do que produz.

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5. Passemos a escutar o próprio José Mourinho: “Treino para mim só é bom, quando se consegue operacionalizar o que é a ideia-chave, isto é, o treinador tem de encontrar exercícios que induzam a sua equipa a fazer o que se faz no jogo” (A Bola, 2003-1-10). “O mais importante numa equipa é ter um determinado modelo, determinados princípios, conhecê-los bem, interpretá-los bem, independentemente de ser utilizado por este ou por aquele jogador. No fundo, é aquilo que eu chamo organização de jogo” (A Bola, 2002- 2-2). “A equipa que eu desejo é aquela que, num determinado momento, perante uma determinada situação, todos os jogadores pensam da mesma maneira” (revista Dragões, Janeiro de 2002). “Defendo a globalização do trabalho, a não separação das componentes físicas, técnicas, tácticas e psicológicas, embora para mim o psicológico seja fundamental” (revista Única do Expresso, 2004-11-27). Um jornalista da revista Ideias & Negócios (Junho de 2003) questionou José Mourinho que era, nesse ano, treinador do F.C.Porto: “O treinador, Felipe Scolari, diz que o sucesso deum jogador é feito em 50% por preparação física, em 25 por cento por técnica e em 25 por cento por psicologia. Concorda?”. Resposta pronta de José Mourinho: “Discordo totalmente. Eu digo que, para haver sucesso, numa equipa de futebol, a equipa tem de estar cem por cento preparada. E quando eu digo cem por cento não consigo dissociar aquilo que é físico, daquilo que é táctico, daquilo que é psicológico. Para mim, um jogador é um todo, tem características físicas, técnicas e psicológicas, que tenho de desenvolver como um todo. Não consigo separar. Eu não faço trabalho físico. E, quando dizem que o Porto está muito bem preparado fisicamente, refuto isso totalmente. O Porto utiliza uma metodologia que rompe com todos os conceitos tradicionais do treino analítico” À SportTV, no dia 2003-5-14: “Nós começámos esta época e, desde o primeiro dia, trabalhámos tacticamente”. – Ao jornal Record (1999/2/7): “Quando vejo referências às pré temporadas das nossas equipas e me mostram imagens dos atletas a correr, a trabalhar no espaço que não é o campo de futebol, da praia ao campo de golfe, dou comigo a pensar que são métodos ultrapassados, para não dizer arcaicos”. “Os meus treinos não são treinos demorados, não ultrapassam a hora e meia, mas com muita dinâmica e um tempo útil altíssimo”. Para o José Mourinho, a intensidade de esforço significa muita concentração: “correr por correr tem um desgaste energético natural, mas a complexidade desse exercício é nula. E, como tal, o desgaste, em termos emocionais, tende a ser nulo também, ao contrário das situações complexas, onde se exigem aos jogadores requisitos técnicos, tácticos, psicológicos e de pensar as situações – isso é que representa a complexidade do exercício e conduz a uma concentração maior” (Público, 2002/7/14). Sublinho, neste passo que, no arrolamento das minhas ideias sobre o treino em José Mourinho, a responsabilidade não é do treinador do Real Madrid, pois que elas me nasceram da leitura de livros que desta problemática se ocupam. Há nelas uma construção lógica, ou mental, do que encontro em obras várias.

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6. As ideias de José Mourinho informam profundamente os seus jogadores, porque ele tem qualidades de liderança, sabe ler o jogo e sabe comunicar para poder motivar. A liderança, a leitura de jogo e a motivação nem todos os treinadores as fazem, com mestria. E assim um conhecimento teórico do desporto é insuficiente, se não se têm as qualidades humanas típicas de um líder. Um ponto a salientar: porque o ser humano é um ser cultural, não há futebol sem filosofia. É que, em todas as grandes equipas de futebol, há um pensamento prévio que as informa. Compreende-se assim porque se fala da filosofia que subjaz ao jogo do Barcelona. Onde há futebol, há filosofia, ou seja, há uma tentativa de racionalizar, incluindo o que não é racionalizável. No futebol, há causalidade (causa) e caosalidade(caos), há pensamento e vivência. A realidade(neste caso, o futebol) é mais do que pensamento e mais do que a linguagem. Esta serve, sobre o mais, para motivar e explicar que o mais importante ainda está dizer e… fazer!

Assim, o futebol não se resume ao seu saber. A realidade excede sempre o que se sabe. Um treinador, como Jorge Jesus, tem a teoria da sua própria prática e, porque tem uma prática de mui tos anos, tem a teoria que criou mais a prática de todos os dias. Mas não é a cultura a aliança do saber e da vida?

Foto: https://img.iol.pt/image/id/566f2dfd0cf237ca45a2cd0b/

Imagem 1: Fotomontagem (Autoria Própria)

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Imagem 5: Isabella Bonotto/AFP

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Jogo ou profissão?

Por: João Batista Freire

Um funcionário de cartório recebe de seu chefe imediato a tarefa de elaborar uma planilha de custos do mês de maio. Em dois dias ele entrega o trabalho pronto, seu chefe fica satisfeito e elogia o trabalho. Eufórico o funcionário sai correndo e gritando, rola no chão em cambalhotas, é abraçado por seus colegas, arranca a camisa e cai no choro. Agora o mundo real: depois de preencher corretamente a planilha o funcionário volta discretamente para sua sala, arruma suas coisas e vai para casa descansar da rotina que cumpre, fielmente, há vinte anos.

Continuemos no mundo real, jogo decisivo, Copa do Brasil, o vencedor vai para a final. Último minuto da prorrogação, zero a zero, a bola teima em não entrar, eis que, de repente, o craque do time, salário milionário, finta o zagueiro, rompe o ferrolho, encobre o goleiro e faz a bola dormir no fundo da rede. Ele arranca a camisa (toma cartão amarelo), sai correndo e gritando, rola pelo chão em cambalhotas, é abraçado por seus colegas, a torcida vai à loucura, ele chora copiosamente, o jogo termina e nosso craque vira herói, o comentário quase exclusivo por toda a semana que antecede a final.

O funcionário do cartório e o funcionário do grande clube de futebol, o primeiro mal pago, o segundo milionário. A diferença de salário seria a diferença da alegria diante do gol? Ambos cumpriram suas obrigações profissionais. O jogador terminou sua tarefa tanto quanto o funcionário do cartório, não haveria o que comemorar… ou haveria? Nenhuma tarefa de rotina profissional produziria tanta alegria.

Por mais que alguns insistam em dizer que o futebol profissional deixou de ser jogo para ser apenas uma profissão, diante do gol os jogadores insistem no contrário. Jogador é contratado profissionalmente para jogar bem e produzir vitórias, títulos e lucros para seu clube, em troca de salários, alguns deles, altíssimos. Jogador não é contratado para rir ou chorar, para comemorar gols e vitórias com choros, risos, cambalhotas, abraços, beijos, gritos. Jogador não é contratado para brigar com adversários, para festejar com a torcida, para brincar com a bola, para se exibir. Tudo isso que ele faz e para o que não é contratado profissionalmente escapa à profissão, faz parte do jogo, é lúdico. O lúdico é o grande poder, a tentação que nos tira da rotina, que nos faz transgredir regras, que produz as deliciosas irresponsabilidades que temperam nossa vida e a faz valer a pena. O craque, esse que fez o gol decisivo, já fez mais gols que planilhas e ofícios fez o funcionário do cartório em suas rotinas. Fazer gol para o craque é rotineiro. Não é a rotina de gols que o jogador comemora, não é o cumprimento da obrigação que o faz chorar, é o lúdico, é o tanto de lúdico que não está em seu contrato. Não há paixão no documento que ele assinou ao se transferir para o clube, a paixão está no compromisso que nenhum jogador assina, o compromisso com o próprio jogo. Ele não recebe um tostão para isso, ele não presta contas disso ao patrão, mas a si mesmo, aos companheiros, à torcida e ao próprio jogo.

O futebol, como outros esportes, é a boa profissão, embora não consiga se livrar das imundícies que o invadem, trazidas por aqueles que cultuam, acima de tudo, o lucro e seus subprodutos, entre eles, a corrupção. É a boa profissão porque não é só profissão, é também jogo, festa, diversão, lúdico, comemoração da vida. Que fossem assim os cartórios, as agências de publicidade, os escritórios de engenharia e de advocacia, os consultórios médicos e as salas de aula. Quando exercemos um ofício e somos apaixonados por ele, parte do trabalho vira jogo.

Profissão e trabalho têm a ver com promessa, compromisso, esforço, tarefa. Jogo tem a ver com a ação em si mesma, com diversão, com risco, com imprevisibilidade, com vertigem. Juntos formam o casamento perfeito. A festa do artilheiro ao fazer o gol decisivo é uma festa de casamento.  

Foto: Mailson Santana/FFC

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A BOLHA FUTEBOL

Por: Valter Bracht

O termo bolha tem ganhado crescente e recente notoriedade. Foi muito utilizado para designar, no campo econômico, a existência de uma especulação sem lastro concreto (bolha imobiliária, bolha na bolsa de valores…). Mais recentemente, vem sendo utilizado para se referir a uma prática nas redes sociais da internet que configuram um circuito fechado de comunicação, ou seja, onde apenas determinados conteúdos são veiculados e admitidos, uma espécie de círculo vicioso.

Entendo ser possível pensar também o espetáculo do futebol como uma espécie de bolha. O grande estudioso do jogo, Johan Huizinga, autor do clássico Homo Ludens, destaca como uma de suas características, que o jogo produz uma espécie de suspensão do cotidiano (criando um mundo dentro do mundo). A partir do estabelecimento de um conjunto de regras próprias, produz um campo de ação também próprio. Cria-se então uma atmosfera na qual os envolvidos (atletas e torcedores) estão momentaneamente em “outro mundo”. Isso não elimina, no entanto, a ambiguidade, pois os envolvidos (no sentido de envoltos) mantém simultaneamente um pé dentro do jogo e outro fora; no fundo no fundo todos sabem que aquilo é “apenas um jogo” e que depois, voltam a valer as regras que regem nosso cotidiano.

Chama a atenção o fato de que essa atmosfera pode ser exacerbada, e o é muitas vezes intencionalmente, elevando em muito a tensão emocional do ambiente e dos envolvidos. Isso pode chegar a um ponto, em que, exatamente essa ambiguidade é como que borrada: não é mais apenas um jogo. O fato do jogo (de futebol, no caso) acontecer num espaço fechado, estádio ou arena, favorece a construção de um clima propício à exacerbação das emoções e a sensação de participação de todos na construção do evento. (análises sobre o papel, a influência e a necessidade da grande mídia nessa construção mereceria um capítulo a parte).

Fiz essa pequena digressão porque venho me perguntando, como é possível que nesse nosso mundo, uma boa parte da população esteja tão intensamente envolvida com os espetáculos esportivos (não só, mas particularmente com o campeonato mundial de clubes de futebol) ao mesmo tempo em que muitos seres humanos estejam sendo mortos em diferentes lugares em confrontos bélicos, em guerras de grandes proporções? (aliás, voltando ao Homo Ludens, seu autor identifica características do jogo em várias outras práticas humanas, inclusive na guerra; outros ainda entendem o próprio futebol como uma “guerra domesticada”).

É conhecido e alardeado o fato de que os gregos antigos suspendiam suas atividades guerreiras durante a realização dos jogos (Olímpicos, Píticos, Nemeus, Fúnebres,…). Não é nosso caso: convivemos, aparentemente sem remorsos, com os dois.

O que esse fenômeno, ou seja, de que simultaneamente grandes massas estejam “festejando” e participando de espetáculos de futebol e outras promovendo a morte de milhares de pessoas em guerras espalhadas pelo mundo, simboliza a respeito da humanidade? Se assistimos a um telejornal nesses dias, podemos perceber que um apresentador ou apresentadora com semblante sério e muitas vezes sisudo, num segmento narra as últimas notícias sobre as guerras e, em outro segmento, com um semblante risonho traz reportagens sobre os resultados do mundial de futebol e as comemorações das torcidas das equipes vencedoras – duas facetas da realidade colocadas lado a lado como absolutamente equivalentes. A sensação é a de que vivemos efetivamente em dois mundos. Num em que o homem brinca ou joga (para Schiller, em seu famoso A educação estética do homem, é no jogo que o homem é verdadeiramente humano), em outro em que negamos um ideal de humanidade construído a duras penas no nosso processo civilizador. Parece que o ser humano é realmente capaz de viver essa dicotomia (esquizofrenia?) sem grandes afetações.

Mas, podemos também ser mais condescendentes conosco mesmo e perguntar, se esses momentos de suspensão do cotidiano não são necessários para conviver com a impotência que sentimos de mudar os rumos da história? Sinal de insanidade, de alienação ou, ao contrário, de manutenção da capacidade de sobreviver às agruras do mundo, de seguir vivendo, ou mesmo um sinal ou uma indicação de que um outro mundo é possível?

Pode ser isso e aquilo, mas lembro que no período da pandemia de COVID (momento em que todos nós fomos afetados), debate semelhante ocorreu: devemos ou não paralisar as atividades esportivas em favor da saúde da população? Poderíamos ou desejaríamos paralisar as atividades esportivas mundiais como protesto contra as guerras e a favor de um acordo de paz? (não lembro de nenhuma faixa a favor do fim da guerra e da política dos EUA a respeito dos migrantes nesse campeonato mundial) Tivemos opiniões divididas no caso da pandemia, mas, no caso atual, suspeito que a força do mercado mundial do futebol, com a multinacional FIFA à frente, vai fazer o show continuar; de dentro da minha bolha sinto a vida pulsar, não a morte, que é dos “outros”!

Imagem: Brennan Asplen/Getty

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Futebol e Responsabilidade social: Um campo de transformação e inclusão

Por: André Tixa Orsine

Como o futebol transcende o campo e se transforma em uma poderosa ferramenta de responsabilidade social, promovendo educação, saúde e inclusão em nossa sociedade. Abaixo um relato detalhado sobre o impacto do futebol na transformação social promovida pelo AKA (Associação dos K-iauzeiros Ausentes) e como ele pode construir um futuro mais justo e equitativo para todos e promove uma verdadeira revolução no Vale do Jequitinhonha.

O futebol, mais do que um esporte, é uma ferramenta de impacto social, capaz de transformar vidas, reunir comunidades e promover a inclusão. Através de sua universalidade e apelo, oferece uma plataforma única para abordar questões sociais, educacionais e econômicas, contribuindo para o desenvolvimento humano e comunitário. Este artigo explora a interseção entre futebol e responsabilidade social, destacando como essa relação pode ser explorada para gerar mudanças positivas e sustentáveis na sociedade.

O FUTEBOL COMO VEÍCULO DE INCLUSÃO SOCIAL

A capacidade do futebol de unir diferentes camadas sociais é inegável. Em campos improvisados, praças e estádios, pessoas de diferentes origens e status sociais se encontram para compartilhar uma paixão comum. Esta universalidade torna o futebol uma ferramenta eficaz para a inclusão social. Programas que utilizam o futebol para reintegrar jovens em situação de risco ou expostos aos malefícios das drogas, têm mostrado resultados significativos ao redor do mundo. Esses programas não apenas ensinam habilidades futebolísticas, como também valores como trabalho em equipe, respeito mútuo e disciplina, que quando complementados aos estudos e demais programas de capacitação, elevam o interesse pelo desenvolvimento promovendo a inserção no contexto social.

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EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ATRAVÉS DO FUTEBOL

Além de promover a inclusão, o futebol também é um poderoso veículo educacional. Projetos sociais baseados no futebol frequentemente incluem componentes educacionais, como tutoria e programas de alfabetização. Essas iniciativas ajudam a manter as crianças e adolescentes longe das ruas e do perigo de atividades ilícitas, oferecendo-lhes uma alternativa saudável e educativa. Ao mesmo tempo, o esporte ajuda no desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, preparando os jovens para desafios futuros tanto dentro quanto fora do campo.

FUTEBOL E SAÚDE COMUNITÁRIA

O impacto do futebol na saúde física e mental dos indivíduos é bem explícito. A prática regular do esporte reduz o risco de doenças crônicas, como obesidade e hipertensão, e também serve como uma ferramenta eficaz na luta contra a depressão e a ansiedade. Por meio de torneios e eventos de futebol comunitário, os projetos sociais promovem um estilo de vida saudável e ativam o engajamento comunitário em questões de saúde pública.

RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS ORGANIZAÇÕES DE FUTEBOL

Os clubes de futebol e organizações esportivas têm uma responsabilidade social inerente. Muitos clubes já reconhecem essa responsabilidade e têm desenvolvido programas comunitários que vão além do esporte. Estes programas abrangem desde a oferta de bolsas de estudos para jovens atletas até iniciativas de sustentabilidade e campanhas de conscientização sobre questões críticas, como racismo e violência doméstica. Essas ações refletem não apenas um compromisso com o bem-estar da comunidade, mas também contribuem para a construção de uma marca forte e responsável.

DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Apesar dos muitos benefícios, a implementação de projetos de futebol com foco social enfrenta vários desafios. A sustentabilidade financeira é uma das principais barreiras, especialmente para organizações não governamentais e iniciativas comunitárias que dependem de doações e patrocínios. Além disso, a falta de infraestrutura adequada pode limitar o alcance e a eficácia desses programas. No entanto, as oportunidades para expandir o impacto do futebol na sociedade são vastas. Com o apoio adequado de entidades privadas e públicas, projetos de futebol e responsabilidade social podem se tornar um modelo replicável de desenvolvimento comunitário. Além disso, a crescente conscientização sobre a importância do esporte na promoção da igualdade e inclusão social sugere um futuro promissor para essas iniciativas.

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A JORNADA DO AKA EM TRANSFORMAR VIDAS NO VALE DO JEQUITINHONHA

Ao longo dos últimos 18 anos, a Associação dos K-iauzeiros Ausentes (AKA) vem redefinindo o papel do futebol na responsabilidade social, empregando o esporte não apenas como um meio de entretenimento, mas como um catalisador poderoso para o desenvolvimento socioeconômico. Fundada em 2006, a AKA não se limita ao gramado; ela se estende às vidas dos jovens do Vale do Jequitinhonha, utilizando o futebol como ponto de partida para um amplo ecossistema social.

DESENVOLVIMENTO INTEGRADO ATRAVÉS DO ESPORTE

Desde sua concepção, o projeto “Valemos pelo que Somos” abraçou uma visão multidimensional, atuando em diversas frentes como saúde, educação, capacitação e engajamento comunitário. O futebol, embora seja o núcleo inicial, é apenas uma das muitas ferramentas utilizadas pela AKA para fomentar a mudança. Esta abordagem integrada propicia o acolhimento e desenvolvimento dos jovens, oferecendo-lhes oportunidades para crescerem como cidadãos conscientes e ativos.

TRANSPARÊNCIA E INOVAÇÃO NA GESTÃO

A transparência e o compromisso com resultados palpáveis são pedras angulares na filosofia da AKA. Ao incorporar práticas modernas de gestão como compliance e governança, a associação garante a eficácia e a sustentabilidade de suas iniciativas. Essa metodologia permite não apenas alcançar, mas também expandir seus objetivos, multiplicando o impacto de cada ação realizada.

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MUDANÇA DE PARADIGMA: ALÉM DO ASSISTENCIALISMO

Contrariamente ao assistencialismo tradicional, o AKA promove um modelo de desenvolvimento que valoriza a dignidade e a autoestima através do exemplo e do estabelecimento de referências reais e tangíveis. A ideia não é se espelhar em heróis inatingíveis, mas sim em modelos inspiradores que compartilham experiências semelhantes com os jovens do Vale, demonstrando que é possível alcançar novos horizontes.

A FILOSOFIA DE CUIDAR E APOIAR

A essência do trabalho do AKA está em proporcionar desenvolvimento e capacitação, fomentando a inclusão social de maneira efetiva. O projeto se empenha em cuidar e apoiar cada indivíduo, garantindo que a assistência oferecida seja tanto um impulso quanto uma rede de segurança que permita a todos avançar com confiança em direção aos seus objetivos.

CONSTRUINDO UM LEGADO

O desafio assumido pela AKA é monumental: construir um legado duradouro no Vale do Jequitinhonha que não apenas resgate sonhos, mas também fortaleça a capacidade mental da comunidade, aproximando os sonhos de uma realidade viável e promissora. Para construir uma sociedade mais equitativa e rica em oportunidades, a AKA estabelece canais de acesso e incentivo, sempre disponíveis para aqueles que procuram um caminho para o crescimento. Neste cenário, o trabalho da AKA e do projeto “Valemos pelo que Somos” ressoa como um exemplo vibrante de como o esporte pode ser a base para uma transformação social abrangente e significativa, marcando não só uma, mas várias gerações no Vale do Jequitinhonha.

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CONCLUSÃO

O futebol, longe de ser apenas um passatempo ou entretenimento, é um elemento transformador na sociedade. Quando alinhado com objetivos sociais claros e estratégias sustentáveis, pode ajudar a moldar comunidades mais fortes, mais saudáveis e mais inclusivas. A responsabilidade social no futebol não é apenas sobre organizar torneios ou patrocinar equipamentos; trata-se de reconhecer o potencial do esporte como um catalisador para o bem social e agir de forma a maximizar esse potencial. Ao fazer isso, o futebol não apenas eleva o espírito humano, mas também reafirma seu lugar como uma força vital para o bem na sociedade global.

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Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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Gol: o acontecimento quase impossível do jogo de futebol

Por: João Batista Freire

O futebol é um esporte inventado para que o gol seja quase impossível. Entre uma trave e outra apenas 7,32m de largura. Altura? Somente 2,44m. O campo tem mais de 100m de comprimento e aproximadamente 65m de largura. Os jogadores, quando atacam, só fazem o gol se a bola for dirigida a esse pequeno espaço de 7,32m, com 6, 7, 8 defensores na frente dela, mais o goleiro, que, ainda por cima, pode usar as mãos. Quanto aos defensores, podem chutar a bola para qualquer direção, exceto aos 7,32m entre as traves. A vantagem dos defensores é ampla. Além disso, existe a tal regra do impedimento, uma desgraça que anula boa parte dos gols obtidos a duras penas. Quem nunca jogou futebol não faz ideia do cansaço produzido em cada jogada. Aos que estão em más condições físicas, depois de um lance muito disputado, parece que terminou o oxigênio do mundo. À medida que o cansaço aumenta, as coordenações motoras e de pensamento diminuem, a visão se estreita, e passar ou finalizar torna-se um drama, quanto mais endereçar a bola para os diminutos 7,32m. Tudo favorece a defesa. Todas as vezes que uma equipe de futebol recupera a bola, a intenção é atacar o gol adversário, e todos os jogadores se mobilizam para isso. Vamos dizer que esse estar com a bola para atacar o adversário ocorra umas 95 vezes por jogo. Considerando que, de maneira geral, uma equipe faz um, dois ou três gols por partida, concluímos que ela fracassará em seu intento mais ou menos em 97 a 98 por cento das tentativas. Ou seja, o futebol é um jogo em que tudo favorece a defesa. Não foi feito para que aconteça gols, pelo contrário, foi concebido para impedir, quase a qualquer custo, a realização do gol.

É tão quase impossível fazer gols no futebol que, quando ele ocorre, assistimos a um verdadeiro orgasmo coletivo. Jogadores e público torcedor vão ao delírio. Em uma Copa do Mundo, esse orgasmo coletivo pode atingir mais de dois bilhões de pessoas. Por ser tão difícil fazer o gol, pela tensão que precede cada ataque, pela frustração da equipe e torcida ante cada sucesso da defesa, cria-se uma energia brutal, dificilmente contida. E quando essa energia não pode ser extravasada em comemoração do gol, explode em choros, gritos, agressões, palavrões. Foi diante do gol que assisti, pela primeira vez, anos e anos atrás, homens se abraçando, se beijando e chorando. Nunca vi tantos homens, que jamais admitiriam certos contatos com outros homens em outras situações, se tocando. Assisti a alguns dos mais bárbaros encontros entre homens no estádio e fora deles, mas também assisti aos mais esperançosos sinais de humanidade durante os jogos. E tudo porque o gol, no jogo de futebol, é quase impossível. E é isso, acredito, que o torna mais apaixonante que qualquer outro esporte.

Foto: Toru Yamanaka – 16.dez.12/AFP

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Ensinar futebol a todos, ensinar bem o futebol a todos, ensinar mais que o futebol a todos

Por: João Batista Freire

Jogadores e jogadoras de futebol são mais que jogadores e jogadoras de futebol. São homens e mulheres, são seres humanos, são criaturas vivas. Assumem, ao nascimento (mesmo que não saibam disso), o compromisso de viver, de preservar a vida. Uma educação coerente com a natureza humana lhes ensinaria a nada fazer contra a vida e a tudo fazer a favor dela. De onde resulta uma espécie de compromisso ético primordial: nada contra a vida e tudo a favor da vida.

Treinadores e treinadoras de futebol, não importa se de equipes de base ou de equipes profissionais são professores e professoras, queiram ou não aceitar isso. Todos os professores e professoras, de futebol ou de qualquer outra matéria, ensinam a viver, fazendo isso de maneira consciente ou não. Seria melhor que assumissem que são professores e professoras e que sempre ensinarão mais que futebol, que ensinarão para a vida, e podem, com isso, causar benefícios ou danos, podem potencializar vícios ou virtudes.

É um erro enorme pretender ensinar futebol negligenciando o fato de que os jogadores, mais jovens ou mais maduros, são homens e mulheres, são seres humanos. O futebol não pode ser isolado da vida. O que se faz dentro do campo é viver, é realizar a vida. E não é necessário saber definir o que é a vida para lidar com isso. Deveríamos responder, quando nos perguntassem sobre ela, que viver é respirar, é chorar, é correr, saltar, sentar, comer, conversar, pensar… Viver é agir, é realizar a vida em cada ato. Não é necessário dar explicações complicadas sobre ela. Jogar futebol é viver, porque todo jogar é uma maneira sempre intensa de viver.

Anos atrás escrevi que devemos ensinar futebol a todos, ensinar bem futebol a todos e ensinar mais que futebol a todos. Aqueles a quem recusamos ensinar o futebol, porque avaliamos que não possuem talento para chegar ao estrelato, são, talvez, os que mais precisam aprender. Nossas falhas avaliações são incapazes de perceber talentos escondidos, aqueles que não se revelam de imediato. E se não formos capazes de reconhecer que somos educadores antes de sermos treinadores de futebol, negaremos a esses meninos e meninas a oportunidade de se educarem. É um direito humano aprender esporte, não importa se esse esporte é o futebol ou qualquer outro. Não recusemos ensinar o futebol a todos. Consideremos, inclusive, que um jogador maduro, com 38 anos de idade, ainda tem que aprender a jogar futebol, e ainda tem lições de vida a aprender. Ensinemos a todos, é a lição que vale.

Quanto a ensinar bem o futebol a todos indica que temos que nos preparar mais para ensinar melhor. Persiste, no campo do esporte, a ideia de que os talentos são natos, que não dependem de aprendizagens, mas apenas de desenvolvimento natural. Grande erro. O que sabemos sobre as coisas inatas? Sabemos distinguir entre o que é natural e o que é adquirido? Por mais que a ciência tenha avançado, ela ainda não nos responde adequadamente sobre isso. Entre os tantos erros que cometemos no esporte, um dos maiores é o ensino dele. Falhamos miseravelmente na pedagogia do esporte. No futebol, por exemplo, ainda somos piores em nossas metodologias que a rua. Por qual motivo crianças aprendem a jogar bola maravilhosamente bem quando brincam na rua ou em outros espaços, sem orientação de adultos, e sentem tanta dificuldade em aprender quando estão com professores e professoras? Claro que esse não é um problema só do futebol ou dos esportes. Uma criança aprende a falar sua língua materna com dois anos de idade, depois vai para a escola e fracassa na aprendizagem dos conteúdos da disciplina português. Passamos doze anos no ensino básico e nos tornamos analfabetos funcionais. Ensinar, quando se trata de fazê-lo nas escolas ou outras instituições, tornou-se um mistério. Provavelmente, entre outros problemas, isso ocorre porque o foco da educação é o da instituição, e não o do aluno. Na rua, ao contrário, o foco da educação é o aluno. Aliás, na rua não há aluno, há criança, há adolescente, há adulto, há a pessoa real. Na escola (e na escolinha de futebol etc.) não há criança ou adolescente, há aluno. Vamos imaginar uma criança chamada Lucas. O Lucas tem o direito de aprender futebol sem deixar de ser Lucas. É preciso que ele aprenda do jeito dele, porque o jeito dele é diferente do jeito de Antônio, Mário ou Pedro. Além disso, Lucas é criança e não pode ser tratado como adolescente ou adulto. E Lucas está aprendendo futebol para ter melhores recursos para viver, para dar conta de sua vida, o que é um projeto muito maior que aprender para jogar futebol. Futebol é meio e não fim. Lucas pode se tornar o melhor jogador de futebol do mundo, ou seja, ele pode ter extraordinário êxito no futebol…, mas pode fracassar na vida. Afinal, quando um jovem vai para uma equipe de base do futebol profissional, o ambiente da base deveria ser o de uma instituição educacional ou de uma incubadora de jogadores profissionais? Uma coisa é juntar novilhos numa fazenda para alimentá-los, garantir-lhes a saúde e aguardar que engordem para depois vendê-los com enorme lucro; outra coisa é acolher jovens em um centro de formação de futebol e bem educá-los para a vida, servindo-se do futebol como instrumento.

Com isso chegamos ao terceiro princípio, aquele que diz que devemos ensinar mais que futebol a todos. O que significa ensinar para a vida enquanto se ensina futebol? Entre os grandes astros e estrelas do esporte, há fartura de exemplos de pessoas que se arruinaram na vida fora do esporte e outras que se tornaram exemplos de cidadãos e cidadãs. O quanto essas consequências para a vida dependeram da formação que tiveram no esporte? E o quanto aqueles que ensinam esporte se preocupam com isso? De maneira geral o público entende que um jovem que veio de uma situação de extrema pobreza e se tornou um astro no esporte, ganhando, com isso, muito dinheiro, está com sua vida resolvida. Longe disso, muitas vezes esse tanto de dinheiro tornou-se sua desgraça, arruinando seu caráter, e não resultou em benefícios sociais para ele e outros em torno dele. Sair subitamente de um estado de pobreza para um estado de opulência não garante realização de vida. Teríamos, portanto, que resolver essa questão de ensinar mais que o esporte a todos, de modo a ensinar, acima de tudo, a se conduzir bem na vida fora do esporte, a ser ético, a pesar bem os valores humanos e não só o dinheiro, a beneficiar-se e a beneficiar a sociedade. Porém, como conduzir isso jogando bola, aprendendo futebol? Porque não estamos falando de jogar bola em um momento e fazer discursos sobre a vida em outro momento. Trata-se de aprender para a vida enquanto se aprende futebol, enquanto se joga bola. Para isso teremos que entrar no campo da metodologia.

Há, entre outras, duas maneiras básicas de aprender a jogar bola. Para sermos mais específicos vamos falar, por exemplo, do passe. Primeiro em uma situação de acordo com a escola tradicional, de acordo com uma rotina de exercícios em uma escolinha de futebol ou em uma equipe de base. Vamos pensar em crianças de 11 a 12 anos. Nessa situação que estamos criando, elas farão o seguinte exercício: ficarão em duplas, uma de frente para a outra, distantes cerca de 5 metros entre elas. Ao sinal do professor, trocarão passes uma para a outra, com a parte interna do pé dominante, até que o professor mande parar. A cada vez que ele parar, ele dirá para se afastarem uma da outra um passo, aumentando a distância entre elas. Ao sinal do professor, novamente trocarão passes até ele pedir para parar. E assim sucessivamente, até chegarem a uma distância de 10 ou 11 metros umas das outras. Com esse procedimento é possível, inclusive, ter uma ideia razoável do número de passes dados por cada criança.

Vamos agora a uma situação não tradicional, em uma equipe de base de um clube de futebol ou em uma escolinha de futebol. A turma tem 16 crianças. O professor pede que formem uma roda, com a distância de dois braços entre cada aluno. Pede que mandem para o centro da roda um dos alunos que eles escolherem, ao modo deles. Em seguida diz para começarem uma brincadeira de bobinho, com quantos toques na bola quiserem. Depois de uns 3 minutos, o bobinho ainda não conseguiu sair do meio da roda. Então o professor para a brincadeira, coloca o problema e pede uma solução: como fazer para o bobinho não ficar tanto tempo na roda? Ouve as sugestões e escolhe aquela que for mais adequada para seu plano de aula (se não houver nenhuma boa sugestão, ele pode acatar uma má sugestão e mostrar depois que não houve solução. E então pedir novas sugestões). Suponhamos que os alunos sugiram colocar dois bobinhos. Aí o professor perguntará por que eles acham que é uma boa solução. Ouvidos os argumentos recomeçam a brincadeira. De fato, os bobinhos interceptaram a bola muito mais rapidamente. Mas há um problema que persiste: o aluno menos habilidoso continuou como bobinho muito tempo, porque quem tocava na bola era sempre um outro mais habilidoso. Como solucionar isso? Problema passado para os alunos, conversaram entre eles e sugeriram que não precisava sair da rola, necessariamente, quem tocasse na bola. Com a ajuda (o professor deve sempre interferir e ajudar, dando pistas) do professor concluíram que deveria sair o que estivesse há mais tempo na roda. A brincadeira recomeçou e, de fato, o rodízio de bobinhos aumentou. Passados mais alguns minutos, o professor novamente parou a brincadeira e deu mais um problema para os alunos. Ele queria aumentar a dificuldade do passe. Como fazer? Os alunos discutiram por mais ou menos 1 minuto e deram boas sugestões. Uma delas dizia que era só aumentar o número de bobinhos para três. Outra era dividir a roda em duas rodas. O professor sugeriu começar pela primeira. Isso facilitou para os bobinhos e exigiu passes mais cuidadosos dos que estavam formando a roda. Depois formou duas rodas e também o passe foi mais exigido.

Para não nos alongarmos muito, vamos analisar rapidamente as duas situações. Afinal, este é um texto breve e não um curso. As situações criadas servem apenas para ilustrar a ideia de ensinar mais que o futebol. Na primeira situação, pensando no jogo de bola ou de futebol, o exercício tradicional realizado está fora de contexto. Cumpre-se a ideia de que podemos treinar partes do futebol descontextualizadas para depois juntá-las, na expectativa de que se ordenarão para melhorar a qualidade do jogo. Sem dúvida, essa prática facilita o controle dos professores sobre os alunos e sobre a realização do exercício. Porém, trata-se de um passar sem outro objetivo que não cumprir as determinações do professor ou da professora. Não é um passar necessário em uma situação de jogo e o ato de passar da maneira como é realizado no exercício não acontecerá em uma situação de jogo. Quando os alunos e alunas estiverem jogando bola, o que mais farão durante o jogo é receber e passar a bola, porém, não da maneira como se exercitaram. Quem pensa a atividade nesse exercício é o professor ou a professora, e não os alunos. Do ponto de vista metodológico, é uma ação criada a partir do ponto de vista de quem ensina, e não de quem aprende. Não se trata da realização de uma aprendizagem de futebol para os alunos, mas da realização de um plano dos professores. Nessa prática, o jogo lúdico, se é que existe, consiste em passar a bola um para o outro, frente a frente. Não se realiza o passe para cumprir um objetivo maior dentro de um jogo maior. A inteligência dos jogadores restringe-se a cumprir a determinação de passar a bola com precisão para o colega à frente.

Na segunda situação, quando os alunos brincaram de bobinho, o professor passou o protagonismo para os alunos. A situação, neste caso, é inversa à primeira. O ponto de vista educacional passou a ser o dos alunos. Não há somente ensino, mas igualmente aprendizagem. Os alunos não se restringiram a cumprir as determinações do professor, mas igualmente suas decisões. Do ponto de vista educacional os ganhos, para além do futebol são muito visíveis. Os alunos ganharam autonomia, e essa autonomia decorreu de reflexões sobre o jogo e decisões tomadas por eles. O jogo termina, mas os ganhos em autonomia não. Os alunos tiveram a oportunidade de aprender a ser autônomos, e o fizeram conscientemente, e quando se aprende com consciência, a aprendizagem pode ser estendida a outros contextos (sobre isso comentaremos em outros artigos). O professor deu problemas para os alunos resolverem. Eles conversaram entre eles e mostraram competência para fazer isso. E, de fato, resolveram o problema de como evitar que um deles ficasse muito tempo no centro da roda (situações como essa foram vividas por mim com meus alunos, não são mera ficção). Para resolver os problemas colocados, eles tiveram que pensar sobre a situação, imaginar como aconteceram, verbalizar, trocar ideias e sugerir hipóteses, que foram testadas na prática. Exercitaram a imaginação e o pensamento. O jogo de bobinho terminou, mas os alunos saíram dali com o pensamento fortalecido. Serão beneficiados por isso em outras situações de vida. Reparem num detalhe entre os problemas colocados pelo professor: ele advertiu que havia alunos que iam exercer o papel de bobinho e ficavam nele por muito tempo, e isso era constrangedor. Os alunos tiveram que resolver um problema que não se resolvia só com o pensamento, mas também com o sentimento de solidariedade. Trata-se de uma questão lógica, mas também afetiva. O professor estava preocupado com a educação geral desses alunos, com seu modo de viver em sociedade, tendo como campo de vivência um jogo de bola. Por fim, quando ao aprendizado do jogo de bola ou de futebol. O jogo do bobinho mobiliza para o futebol, acima de tudo, o passe e o desarme. Quantas vezes os alunos passaram e desarmaram? Nem eles nem o professor sabem isso. Mas podemos garantir que a quantidade é enorme. Mas não se trata só de quantidade. Os alunos passaram e desarmaram dentro de um contexto. Fazia sentido passar para cumprir o objetivo maior do jogo, tanto quanto desarmar. Isso não afronta a inteligência dos alunos, pelo contrário, alimenta-a.

Na primeira situação os alunos estavam aprendendo a passar bola uns para os outros, frente a frente, e não mais que isso. Os ganhos para o futebol serão muito pequenos, se houverem. Na segunda situação, considerando o jogo do bobinho, um dos pequenos jogos da família dos jogos de bola com os pés (1), os alunos aprenderam a passar e desarmar para cumprir o objetivo do jogo. E, da forma como a prática foi orientada, aprenderam, não só a jogar bola, mas a serem solidários, a pensarem melhor, a viverem com autonomia. E por constatarem que jogaram com êxito, puderam se sentir competentes, capazes de realizar, ingredientes para a elevação da autoestima.

Na primeira situação aprende-se a passar a bola para um companheiro à frente, sem obstáculos. Na segunda situação aprende-se a passar e a desarmar para o futebol e aprende-se além do futebol – aprende-se para a vida.

Referências: Scaglia, Alcides José. O futebol e as brincadeiras de bola: a família dos jogos de bola com os pés. São Paulo: Phorte, 2011.

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Diniz, o aliado do caos (parte 2): No caos há ordem

Por: Matheus Almeida

Alternativas e dinâmicas específicas na Gestão do Caos

Durante as partidas, de acordo com o modo que o adversário apresentava lacunas e possibilidades para o Fluminense de 2023-2024, Diniz e os atletas já se comunicavam para que se gerasse caos nesses setores, com a interação entre jogadores de características específicas no mesmo local do campo.

O primeiro gol do Fluminense na final da Libertadores contra o Boca é a prova disso. Diniz orienta Keno para que ele atravesse o campo e faça uma dobra com o ponta oposto Árias, para gerar combinação de velocidade, habilidade e quebra de linha pelo lado direito. Assim, Keno vai para o lado oposto entrar na “estrutura caótica” para se associar ao Árias e assim participam da jogada do gol.

Quando Diniz faz um padrão de substituição muito realizado (Saída de Ganso para entrada de Lima e saída de Marcelo para entrada de Diogo Barbosa) dois jogadores com características diferentes dos que foram substituídos entram na estrutura caótica. Assim, muda-se a forma do todo, pois as características que estarão se relacionando serão outras.

Assim, a equipe se torna mais ofensiva em momentos em que se aplica a estrutura caótica nas beiradas, e também em momentos em que a equipe está com maior amplitude na construção, se organizando um pouco mais posicional (ainda com trocas de posição e muito peso na última linha adversária, mas sendo um ajuste estratégico específico que o Fluminense pode apresentar). A equipe, com essas substituições, passa a ter uma dinâmica mais veloz e vertical, com mais ataques à profundidade e mais rupturas de última linha em velocidade, principalmente com Diogo, que ataca mais o fundo que o Marcelo, assim como na grande chance criada por Diogo na final contra o Boca. Gestão dos elementos do sistema caótico.

Em questões estruturais, há muitas alternativas que podem ser aproveitadas fornecidas pela estrutura caótica, como é a busca do pivô, ou o giro caso jogadores em apoios frontais não recebam a bola, ficando de frente como opção, como no vídeo a seguir.

Vídeo 5. Padrão: Jogador sai de apoio frontal, fica de frente e ataca a profundidade como opção de passe.

Fonte: Globo

Nessa estrutura também se gera jogadas que se repetem, como por exemplo, a tabela 2×1 contra o lateral adversário com posterior domínio orientado para a área (como no movimento da expressão de jogo “bate para dentro” do basquete) em velocidade, seguido de cruzamento de retorno para o finalizador, como no vídeo abaixo.

VÍDEO 6. Padrão: Tabela 2×1 seguido de finalização

Fonte: Globo

Em documentário que mostra os bastidores da campanha do título da Libertadores do Fluminense em 2023, em uma das preleções Diniz, em tom de relembrar conceitos, diz aos seus atletas duas questões:

“Vamos dar ordem ao caos” […] “ficou na dúvida? Organiza. Organizou, Caos neles”. Fernando Diniz, Documentário Todo dia é 4 de Novembro da Globoplay

Dar ordem ao Caos, já abordei os motivos dessa fala. Mostra que Fernando Diniz tem conhecimento sobre a teoria do Caos no futebol e usa isso como base da sua ideia de jogo. No caos há ordem, os fractais são pequenos padrões que se repetem e dão ordem à uma estrutura caótica na interação entre os elementos do sistema.

Já o “organiza”, dito por Diniz, tende a se referir à ação coletiva de abrir os dois pontas, realizar uma saída a 3 com um apoio interno (3 +1), ou a 4 com dois apoios (4+2), Cano de 9 segurando zagueiros, laterais inicialmente abertos, ganso adiantado entre linhas, equipe com mais amplitude, aguardando o momento de saírem de suas posições para gerar a estrutura caótica, ou gerar situação de 1×1 em determinado lado do campo. Veja no vídeo.

VÍDEO 7 . Dinâmica ofensiva geral Fluminense

Fonte: CazéTV

Fragilidade

O sistema, porém, tem suas fragilidades. Uma delas é quando o adversário também leva muitos jogadores ao lado da bola, encaixando na estrutura caótica. Assim, a equipe busca retirar o lado, virar o jogo. Nesse momento, os jogadores da estrutura caótica permanecem onde estavam, e o adversário vai se movimentar para o lado que a bola foi lançada. Quando o Fluminense retira o adversário da sua estrutura caótica ele retorna à bola ao lado que a jogada estava, com a equipe em vantagem numérica e, com essa vantagem, consegue progredir em sua dinâmica. Ótima solução.

VÍDEO 8. Fluminense retira a bola da zona congestionada, e retorna a bola para a mesma zona após remover o adversário deste setor, agora atacando em vantagem numérica com a estrutura caótica posicionada

Fonte: ESPN

Entretanto, quando o adversário também leva muitos jogadores ao lado da bola e realiza encaixes agressivos nos jogadores da estrutura caótica e pressão forte na bola, dificulta para o Flu, como foi em alguns momentos contra o Manchester City, como foi contra o River Plate no primeiro tempo de jogo, no histórico 5×1 do Flu, e também contra o Palmeiras, na reta final do Brasileirão.

Quando o Fluminense perde a bola, está com seu lado oposto muito aberto. Caso o adversário esteja com jogadores posicionados e preparados para atacar esse espaço com velocidade e verticalidade, o Fluminense pode sofrer uma finalização ou até um gol. Como no vídeo abaixo.

VIDEO 9. River Plate encaixando a marcação com coberturas curtas | Palmeiras gera volume no lado da bola com marcações por encaixe, deixando apenas o jogador base da estrutura caótica livre, mas fechando suas linhas de passe, recuperando a bola e acionando jogadores no lado oposto | Man City gera volume no lado da bola com marcações por encaixe, forçando a bola longa, recuperando a posse já no lado oposto livre.

Fonte: ESPN, Globo e CazéTV

O jogo do Fluminense de Diniz tem seus riscos. Os treinadores não conseguem controlar tudo o que ocorre no jogo, e o jogo é caótico e imprevisível. Porém, alguns ajustes podem ser feitos, sem abrir mão do caos da maneira que se realiza, para que se possa ter uma maior proteção pós perda de bola, como por exemplo, fixar um volante à frente dos zagueiros, assim preencheria melhor o espaço vazio.

Diniz sabiamente aborda que jogar contra clubes do mais alto nível te ajuda a desenvolver a equipe. Adversários como City geram problemas e aproveitam lacunas que os sul-americanos não conseguem aproveitar com frequência e eficiência, assim, jogos como os do Mundial, fazem Diniz visualizar falhas do sistema que não eram problemas até então, ou por vezes não eram percebidas. Começo a ver que o Dinizismo é um novo óculos para o futebol brasileiro, pois nesses últimos anos tivemos muita influência da escola europeia, que nos ajudou a compreender que estávamos atrasados em muitos processos, porém acabou colocando de lado o melhor que o jogo dos atletas brasileiro têm: a relação com bola em alto nível técnico (por isso a constante exportação para a Europa). Diniz vem para mostrar que, se havia uma defasagem tática no atleta brasileiro, existem maneiras que já conhecíamos, nas ruas, quadras e campinhos de terra, que contribuem para que a tática também evolua, e de um jeito genuinamente brasileiro.

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Futebol, um esporte transgressor

Por: João Batista Freire

É bastante incomum assistirmos o desenvolvimento de um talento para o futebol brasileiro nas chamadas “escolinhas de futebol”. Sem pretender desrespeitar as exceções que, certamente, existem, não há ambiente para desenvolver habilidades diferenciadas em futebol nessas escolinhas. Também não é muito frequente o desenvolvimento de talentos nas equipes de base dos clubes profissionais de futebol. Os meninos e meninas chegam a essas equipes, vindos dos mais diversos recantos do Brasil, cheios de habilidades, mas elas raramente crescem no ritmo que vinham crescendo em seus recantos, nas ruas onde aprenderam a jogar bola. Geralmente, só sobrevivem ao tempo consumido na base os excepcionais.

O futebol é, basicamente, um esporte de transgressões. Ele começa por ser uma espécie de transgressão biológica; somos animais bípedes, evoluímos para nos apoiarmos sobre os pés e manipular as coisas com as mãos. No futebol, ao contrário, manipulamos a bola com os pés. Os pés são as mãos dos jogadores de futebol. Além disso, enquanto os demais esportes com bolas as fazem transitar acima da linha de cintura, próximas à cabeça, no futebol a bola transita ao rés do chão, bem distante da cabeça. A maioria dos esportes exige paramentos especiais para serem praticados. No futebol pode-se jogar quase nu e descalço. Raramente se vê um esporte sendo praticado sem equipamentos e locais específicos. O futebol pode ser jogado em qualquer lugar, com ou sem grama, com terra ou areia, na lama, quase dentro da água, com chuva ou com sol, de dia ou de noite, com traves ou sem traves. No basquetebol, por exemplo, quando o árbitro marca uma falta, imediatamente todos se posicionam para aguardar a cobrança, sem discussões, e com raras exceções. No futebol não há marcação de falta indiscutível, todas as regras são relativas. É o único esporte em que falta pode não ser falta e não falta pode ser falta. O único esporte em que falta fora da área é uma coisa e falta dentro da área é outra. Por enquanto há nove pessoas encarregadas de fiscalizar as regras em cada jogo e, no futuro, talvez haja mais pessoas e equipamentos para isso.

Creio que não há erro maior no futebol que insistir em domesticar um esporte que é, naturalmente, transgressor. Queremos que os jogadores se comportem como se estivessem cumprindo rotinas cartoriais em um esporte que se mostra, desde suas raízes, avesso aos padrões estabelecidos.  

O que leva o futebol a ser tão transgressor? Se quisermos ainda podemos aumentar a lista das transgressões. Que tal pensar que boa parte dos esportes deriva de práticas lúdicas antigas em que as bolas representavam o sol e deuses, por isso manipuladas da cintura para cima e na direção desse sol e desses deuses? Homenagens ao deus, figura masculina, ao pai. Aí passamos ao futebol, com bolas manipuladas da cintura para baixo, na direção da terra, não do deus masculino, mas da deusa terra, do feminino, da mãe. Haja transgressão! Talvez tanta transgressão se deva ao fato de se tratar de um esporte de grande instabilidade. O chão, por onde rola a bola, por exemplo, por mais que a grama seja bem tratada, é repleto de irregularidades a desviar a trajetória da bola, a enganar o jogador, a surpreender o goleiro. Durante um ataque, o defensor torce para que o atacante repita as jogadas de sempre, neutralizadas com facilidade, e o atacante se desespera para conseguir fazer algo diferente que traia a expectativa do defensor.

Do ponto de vista das teorias da complexidade, nada, neste universo se repete. Nem as pedras são iguais a cada instante que passa. Teoricamente é impossível repetir ações. Porém, podemos realizá-las de modo que guardem bastante semelhança com anteriores. A arte de fazer com que sejam diferentes é o que torna o jogador de futebol eficiente, competente, decisivo. Ele pode trazer a bola da ponta direita para o bico da área e chutá-la ao gol cem vezes, mas fará o gol quando fizer isso com diferença suficiente para surpreender defensores e goleiro. Entre todas as transgressões possíveis no futebol, nenhuma será maior que a transgressão dos padrões estabelecidos, das rotinas, dos posicionamentos rígidos, das táticas engessadas. Treinar para lidar com a complexidade, com a imprevisibilidade, com a transgressão, essa é a questão básica que poucos ousam enfrentar. Em um esporte que tem o DNA da transgressão é preciso saber ser transgressor. Em um esporte que tem a imprevisibilidade exacerbada como núcleo, é preciso aprender a jogar com ela.

De tal maneira consolidou-se uma cultura de medo do enfrentamento do que é, na realidade, o futebol, que o que mais se assiste nele, das equipes de base aos grandes clubes, é a mesmice modorrenta de jogadores guardando posições como se fossem robôs guiados por inteligência artificial. Nada é mais punido que a transgressão dos esquemas pré-estabelecidos. É o que tem matado o futebol dos meninos e meninas talentosos nas equipes de base. Punir a transgressão é matar a galinha dos ovos de ouro do futebol. O sonho de todo marcador no futebol é o posicionamento rígido dos jogadores adversários. A transgressão do posicionamento é o inferno dos defensores. Não defendo que as regras de relacionamento entre as equipes em cada partida sejam transgredidas, pelo contrário, devem ser obedecidas. Porém, mesmo nesse caso, a transgressão persistirá. A tarefa dos árbitros seguirá árdua.

E então, para não me alongar muito, vamos ao fecho. Como ser coerente com as características do jogo de futebol e aprender a ousar, a transgredir, a ajustar-se ao que o futebol realmente é? Comecemos pelo fato de que os jogadores de uma equipe deveriam ser os mais diferentes possíveis uns dos outros. Uma boa equipe não é formada de jogadores com o mesmo comportamento, mesma habilidade, mesmo tamanho, mesma personalidade. Pelo contrário, quanto mais diferentes uns dos outros, maiores as possibilidades de um conjunto harmonioso que saiba lidar com a imprevisibilidade e a transgressão aos padrões. Pensemos na questão da imprevisibilidade. Vamos considerar uma equipe de futebol como uma pequena sociedade. Trata-se de uma sociedade que, por menor que seja, tem uma estrutura extremamente complexa. E, pela dinâmica do jogo, a surpresa será sempre a regra. Surpresa significa novidade. Os jogadores terão que aprender a conviver com o novo, o inusitado. Que não esperem que as coisas se repitam. Que não treinem para lidar com rotinas, com o igual. Porém, só há uma saída para isso. Precisam aprender a produzir autonomia e criatividade. Algo que não acontecerá se a autoestima dos jogadores estiver baixa. Tarefa número um dos treinadores, portanto: elevar a autoestima dos jogadores. Algo que precisará ser feito durante os treinamentos, durante conversas informais, durante as refeições, no vestiário, nas entrevistas e durante e após os jogos, entre outras situações possíveis. Autoestima é a palavra-chave do sucesso.

Foto de capa:  Nelson Coelho/Placar

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Diniz o aliado do caos (parte 1): caos, jogo e seres humanos

Por: Matheus Almeida

Durante 2023, andei refletindo com maior profundidade e engajamento os trabalhos de Fernando Diniz, principalmente o Fluminense da temporada 2023. Já havia tido contato com alguns conceitos do “Dinizismo” em 2017, por meio de uma palestra de Eduardo Barros, seu assistente técnico, na época no Audax, mas nunca havia concentrado meus estudos em Diniz. No Fluminense que foi campeão da libertadores e vice mundial em 2023, algo necessita ser destacado: O modo como jogam transcende a bola, é algo maior, uma filosofia coletiva com valores e princípios humanos muito presentes e, justamente isso que fazem a tática e as ideias de jogo, de fato, acontecerem em campo. Em minha análise, existem duas grandes bases para o “Dinizismo”: Valores Humanos e Caos, sendo o caos, uma maneira muito peculiar de lidar com ele. Sem essas duas coisas, acredito que o “Dinizismo” não existiria.

Valores Humanos como sustentação da tática

Como exemplo, é impossível uma equipe, no jogo mais importante para o clube, a final da libertadores contra o Boca Juniors, nas partidas da semifinal do mesmo torneio contra o Internacional, ou então no Mundial de Clubes contra o melhor time do mundo em 2023 (o Manchester City de Pep Guardiola), realizar uma saída curta, dinâmica, com trocas de posição para encontrar jogadores livres, se não houver coragem, solidariedade, dedicação nos treinos e nos jogos, e prazer em ousar e jogar dessa maneira, não importa o contexto.

Diniz já deixou isso bem claro em entrevista coletiva após o jogo contra o Internacional, vencido por 2×0, válido pela 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023, ressaltando que esses valores humanos são fundamentais para que o jogo proposto por suas equipes aconteça:

“[…] Então hoje acho que, preponderantemente, o time entrou muito agressivo, muito solidário. Jogar futebol, pra mim, é quando as relações humanas, elas conseguem, dentro do campo acontecerem. Nosso jogo é um jogo muito solidário, precisa de muitas coisas, precisa vontade para fazer, precisa disposição para fazer, precisa inteligência para fazer, então essas qualidades humanas, elas faltaram no jogo do São Paulo, aí a parte tática ela não funciona. Quando falta essas coisas a parte tática não corrige, essas coisas quando têm elas corrigem falha tática, mas falta de interesse em ganhar, a parte tática nunca corrige esse tipo de falta, ao contrário sim, quando a gente está com muita vontade, muito focado, jogando de uma maneira solidária, a gente pode errar alguma coisa taticamente como a gente errou hoje, taticamente sempre tem erro, mas a gente corrige de uma outra forma, porque essas coisas são mais importantes do que a parte tática […]” – Fernando Diniz coletiva após a 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023.

Nino, zagueiro do Fluminense campeão da Libertadores, que recentemente foi vendido ao Zenit, disse em carta de despedida, publicada no blog “The Players Tribune”, algo que se refere diretamente ao “Dinizismo” como uma filosofia de vida, além do campo:

“Esse cara (Fernando Diniz) me ensinou muita coisa, mas me ensinou principalmente a enxergar certas coisas que realmente importam de outro jeito. Eu tinha medo de fracassar. E talvez eu tenha transformado esse medo no meu combustível pra não fracassar. Mas é pesado viver assim. Então o que é fracassar? Falam muito em “dinizismo”, que o dinizismo isso, o dinizismo aquilo. Pra mim o dinizismo é ter outra perspectiva sobre tudo, enxergar o mundo e a vida de outro jeito. Pra isso é preciso ter coragem. E amigos” – Nino em The Players Tribune

Além dos valores humanos, outra base fundamental do “Dinizismo” é a ideia de caos ser muito presente no jogar das suas equipes.

Caos, o aliado do “Dinizismo”

Ricardo Drubski, em participação no podcast Charla, comenta que conversou com Eduardo Barros, Auxiliar Técnico de Fernando Diniz desde outros clubes. Segundo Drubski, Eduardo o disse que Diniz faz uma Gestão do Caos. Isso é muito interessante.

Diniz mostrou seu poder de influência com suas ideias, inclusive nas transmissões de jogos do Fluminense ou da Seleção Brasileira, pois até narradores e comentaristas começaram a falar sobre o caos nos jogos das equipes de Diniz, um conceito muito profundo sobre o jogo, que nas universidades, como na Unicamp, já se estudava e, que por meio do treinador, começaram a entrar no entendimento da imprensa.

Sobre a gestão do Caos, o Fluminense apresenta o que, para mim, seria uma “estrutura caótica”, geralmente nas beiradas, onde busca aglomerar muitos jogadores do lado da bola, com no máximo dois atletas para a retirada no lado oposto do campo. Nessa estrutura caótica, há a paralela cheia, apoios, jogadas e movimentações coordenadas, como se fossem geradas quadras de futsal onde está a bola. Um jogo caótico, mas com padrões, pois no caos, há ordem.

Diria eu que Diniz é um aliado do Caos, pois, pelo menos vendo de fora, se aproxima do Caos da mesma maneira que se aproxima de seus atletas para que a equipe crie fortes laços interpessoais. As equipes de Fernando criam laços fortes com o Caos.

A Teoria do Caos tem como objeto de pesquisa os sistemas não-lineares, buscando entender eventos aparentemente aleatórios, imprevisíveis e desordenados, sensíveis a pequenas alterações, sendo possível encontrar padrões no Caos como o pesquisador Gleick traz em 1989, mencionado por Rodrigo Leitão em sua Tese de Doutorado em 2009. Essas pequenas alterações são abordadas na ideia de “Efeito Borboleta”, de Edward Lorenz, ao observar que o sistema computacional que utilizava para fazer previsões climáticas chegou a resultados distintos partindo de mesmas condições iniciais, devido a uma diferença de casas decimais depois da vírgula, algo muito pequeno, que com o passar dos resultados, começa a gerar grandes alterações nos cálculos. (Leitão, 2009)

No caos há padrões, mas para observar a complexidade contida no caos é necessária a ideia de fractais, pequenas partes de um todo, que são a forma e conteúdo de sua figura maior (Leitão, 2009). As partes são a imagem do todo e o todo é a imagem das partes como na figura abaixo, o todo, triângulo maior, e seus fractais, triângulos cada vez menores.

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EDUARDO BARROS E FERNANDO DINIZ NA FINAL DO MUNDIAL DE CLUBES. FOTO DE LUCAS MERÇON /FLUMINENSE FC | EDIÇÃO DE MATHEUS ALMEIDA

Em um sistema caótico, a complexidade é presente, sendo o termo Complexidade, sinônimo da interação de elementos, cada qual com sua característica individual, se relacionando entre si, e formando uma organização específica da combinação daquelas características dos elementos, dando forma a um todo (Morin, 1997).

Para simplificar, vamos pensar de modo prático. Se em um espaço reduzido no campo, houver uma situação de 3×3 e, em uma equipe o trio for formado por Messi, Neymar e Suárez, ocorrerá uma combinação de características individuais, que, ao se relacionarem, formam um todo específico que se expressa no jogar deste trio contra seus adversários. Porém, se nesse trio, substituirmos Neymar por Thiago Silva, muda-se as características de um dos seus elementos, muda-se o todo e o modo como esse todo jogará. Relacionando as interações do trio com as interações do trio rival, percebe-se que o jogo de futebol é muito complexo e caótico e não se pode controlar o caos, mas geri-lo, como faz Diniz de modo muito peculiar.

Diniz, em suas equipes, busca gerar uma estrutura caótica, mas que apresenta padrões, fractais que se repetem e organizam esse caos. A “Estrutura caótica” de Diniz pode ser composta, segundo minha análise, por:

  1. Valores Humanos como sustentação das interações táticas;
  2. Características dos jogadores se relacionando formando um todo específico naquele pequeno espaço de campo;
  3. Posicionamentos, movimentações e jogadas coordenadas para o funcionamento da estrutura caótica que visa atrair o adversário em direção à bola e liberar jogadores livres nas costas da pressão

A principal ideia da equipe de Diniz, atacando, é atrair a pressão para a bola e libertar jogadores livres nas costas dessa pressão em vantagem posicional. Isso se observa no macro, quando o Fluminense faz uma saída de bola curta, sustentada, com muitos jogadores próximos à primeira fase de construção, induzindo o adversário a subir o bloco de marcação e pressionar sua saída de bola. Essa dinâmica acontece também nos seus fractais, nos espaços reduzidos, próximos à bola, onde o fluminense também busca atrair a pressão e quebrar linhas com passes e triangulações.

Muito importante dizer, porém, que o modo como se gera essa vantagem posicional é muito peculiar devido à mobilidade e trocas de posição, pois os jogadores que podem aparecer no setor da bola nas costas da pressão não necessitam ser um meia ou um ponta que jogam no lado em que a bola está, mas podem ser o ponta do lado oposto, que atravessou o campo para estar alí, ou outro jogador de outra posição.

A estrutura caótica gerada no lado da bola em espaço reduzido tem posições base para abrir a marcação adversária e gerar um corredor no meio deste pequeno espaço de campo, onde o Fluminense irá atrair a marcação para a bola e para fora, abrindo este corredor, que pode ser ocupado por qualquer jogador visando receber nas costas da pressão.

Vídeo 1. O todo está para as partes assim como as partes estão para o todo

A “Estrutura Caótica” de Diniz apresenta muitos jogadores atacando os espaços na paralela. Esse padrão pode ser chamado de paralela cheia, com o seguinte posicionamento inicial: Dois, três ou até quatro jogadores podendo se posicionar na paralela, pelo menos dois jogadores de apoio, por dentro em suas diagonais, um pivô e um jogador na base da estrutura como passe de retorno.

Vídeo 2. A estrutura Caótica (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

Os jogadores saem das suas posições para formar essa estrutura inicial, num jogo “aposicional” (chamo assim não para rotular, mas para compreender que os jogadores não se mantêm em suas posições, buscando gerar vantagem numérica no setor da bola, próximos à essa estrutura caótica). Pode-se perceber que se busca inicialmente de um a dois passes na paralela, em seguida, passes para os apoios internos, sempre de frente para o jogo, buscando tocar e passar da linha da bola, ou ocupar um espaço vazio dentro dessa estrutura caótica, gerando uma nova linha de passe. Os jogadores buscam aproximar desta estrutura caótica e podem formar triângulos ou “escadinhas”, com tabelas e corta-luzes para gerar situação de 3º jogador e infiltração.

VIDEO 3. Escadinha gerada com Marcelo circulando pelo meio e aproximando da bola

Fonte: Globo

Outro detalhe são as trocas de posição no setor da bola. Uma mecânica frequente é quando a bola está com o zagueiro, lateral vem por dentro, meia ocupa o espaço deixado pelo lateral, recebe a bola, em caso de manutenção de posse, faz o passe horizontal para o lado oposto e troca com o zagueiro, que ocupa a beirada. Veja no vídeo.

Vídeo 4. Trocas de Posição (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)

Fonte: Canal Guilherme Dieckmann

(Esse texto continua na parte 2, semana que vem, sobre o tema “Diniz: No Caos Há Ordem)

Até lá!

📷 Foto de capa: Matheus Lima/Vasco da Gama

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Imaginem uma semana sem surpresas

Por: João Batista Freire

Imaginem uma semana de futebol em que todos os times favoritos vençam, nenhum pênalti seja registrado, jogadores não reclamem, técnicos não deem entrevistas polêmicas, técnicos não sejam demitidos, nenhum jogador se machuque, nenhuma jogada diferente chame a atenção, que os gols consignados sejam comuns, que não haja nenhuma goleada, nada de temporais alagando campos, torcidas bem-comportadas, que árbitros não cometam erros. A partida de futebol em campo seria apenas um detalhe. O que alimentaria os debates nas redes de rádio, televisão e internet ao longo da semana? O que alimentaria as discussões nos botecos? Que coisa chocha, não? Tudo normal. Imaginário vazio. Ah, o imaginário! É nele que mora o verdadeiro jogo. E o futebol, mais que qualquer outro esporte, é um estupendo alimentador de imaginação. Talvez venha daí seu enorme sucesso de público e de crítica.

Tal semana aqui descrita nunca existiu, para sorte e graça do esporte bretão, caso contrário ele desapareceria da face da terra. O futebol, como de resto, nenhum esporte, sobreviveria com a assepsia do incomum. O futebol é um jogo, um acontecimento lúdico, portanto, uma fonte inesgotável de alimentos para a imaginação. E nada há de mais rico na espécie humana que a imaginação. É ela que nos distingue, acima de tudo, dos outros animais. Não somos nem superiores e nem inferiores aos outros animais, somos apenas diferentes. Cada animal tem, na sua diferença, o instrumento decisivo de sobrevivência. A diferença que permite ao ser humano sobreviver é a imaginação – no resto ele é fraco. É por isso que não lhe basta o comum. Ele precisa do diferente, do inusitado, do imprevisível, do contraditório. E é aí que aguardamos, e até torcemos, tanto pela vitória de nosso time do coração, quanto pelo gol de bicicleta, pelo erro do árbitro, pelo temporal que alaga o gramado, pelo corte súbito de energia elétrica, pela contusão que afasta o craque do time, pela briga nas arquibancadas, pela expulsão do zagueiro, pelo frango do goleiro, pela goleada por sete a um, pelo choro sofrido dos derrotados na final do campeonato. Não é o futebol a questão maior, é a imaginação, que precisa ser alimentada. Essa imaginação que, durante a infância, constitui o principal motor da atividade das crianças, que as obriga a brincar em todos os momentos possíveis, até mesmo nos intervalos entre as misérias. Os seres humanos precisam brincar, as crianças em qualquer lugar, os adultos quando lhes sobra tempo e espaço. O futebol, em alguns países, é uma grande brincadeira.

Se parássemos de alimentar a imaginação, decretaríamos o fim da espécie humana. E aqueles que dominarem nossas imaginações, dominarão o planeta.